a bíblia como literatura – a bíblia como ficção

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    Estudos de Religio, v. 29, n. 1 153-168 jan.-jun. 2015 ISSN Impresso: 0103-801X Eletrnico: 2176-1078

    DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-1078/er.v29n1p153-168

    *

    Doutor em Cincias da Religio pela Universidade Metodista de So Paulo. Atualmente professor de teologia na Faculdade de Teologia Umbandista (FTU). Currculo Lattes:. E-mail: [email protected].

    A Bblia como literatura A Bblia como fico

    Anderson de Oliveira Lima*

    ResumoEste artigo trata de diferentes modos pelos quais a literatura bblica tem sido abordadae coloca a nfase sobre a perspectiva literria que, diferente da crtica histrica ou dasleituras religiosas, arma que a Bblia uma obra que apresenta caractersticas muitopeculiares de ccionalidade literria. Ele tambm discute a hiptese de que essa ccio-nalidade bblica seja um dos fatores determinantes para que, como a histria testica,esse livro seja to inuente, apesar do modo tirnico com que pressiona o leitor.Palavras-chave:Bblia. Bblia como literatura. Histria da leitura bblica. Crtica his-trica. Retrica bblica.

    The Bible as Literature The Bible as Fiction

    AbstractThis article deals with ways by which the biblical literature has been discussed and putsthe emphasis on the literary approach that, different from historical criticism or religiousreadings, states that Bible is a book that shows us a very peculiar feature of literaryctionality. The article also discusses the hypothesis that this biblical ctionality is oneof the decisive reasons for, as our history testies, the Bible has been a so inuentialbook, despite the tyrannical way with its press the reader.Keywords: Bible. Bible as literature. History of biblical reading. Historical criticism.Biblical rethoric.

    La Biblia como literatura La Biblia como fccin

    ResumenEste artculo trata de diversas formas en que la literatura bblica se ha discutido y ponesu nfasis en el enfoque literario, que diferente de la crtica histrica o de las lecturas

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    DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-1078/er.v29n1p153-168

    religiosas, arma que la Biblia es una obra que tiene caractersticas muy peculiares de laccionalidad literaria. Con esto, el artculo tambin analiza la hiptesis de que esta c-cionalidad sea uno de los factores determinantes para que, como atestigua la historia, la

    Biblia sea un libro tan inuyente, a pesar del modo tirnico en el que presiona su lector.Palabras clave:Biblia. Biblia como literatura. Historia de la lectura bblica. La crticahistrica. Retrica bblica.

    Consideraes iniciais: a Bblia como literaturaA expresso a Bblia como literatura se popularizou nas ltimas d-

    cadas e deu nome a vrios livros no Brasil e no exterior.1Ela supostamentedene uma prtica de leitura bblica contempornea, mais prxima dos h-bitos preferidos pelos crticos e tericos da literatura, e se apresenta como

    uma nova proposta em relao quelas prticas mais tradicionais comumenteempregadas por leitores religiosos ou exegetas. Na verdade, essa supostaescola ainda possui uma conscincia de grupo frgil, cujos traos caracters-ticos ainda no esto rmemente denidos e os adeptos no demonstramhomogeneidade terica ou metodolgica. Mas poderamos dizer para muitos,ainda de maneira provisria, que sua identidade se baseia na abordagem daBblia como obra clssica da literatura, texto basilar para a constituio deboa parte do cnon literrio ocidental (FRYE, 2004, p. 10, 18; MALANGA,2005, p. 184; MILES, 2009, p. 11-12). Nesse caso, tal abordagem deve estar

    de acordo com as teorias literrias contemporneas e deixar de lado o tra-dicional status religioso que declara ser a Bblia um livro distinto de todosos demais, um livro sagrado. Quem assim dene a leitura da Bblia comoliteratura geralmente so crticos literrios seculares que precisam romperalguns preconceitos para que definitivamente incluam-na entre as obrasclssicas que frequentemente avaliam, obra que merece ser lida e estudadaindependentemente de sua importncia religiosa.

    1 No cenrio norte-americano e europeu, o leitor pode encontrar uma variedade considervel

    de obras disponveis com ttulos desse tipo ao fazer uma busca supercial pela expressoThe Bible as Literature nalgum site que comercializa livros. Por exemplo, encontramos:de Glen Cavaliero e T. R. Henn, a Taunton Press publicou The Bible as Literature em 2008.A Lightning Source publicou em 2006 outro The Bible as Literature, dessa vez de IrvingFrancis Wood e Elihu Grant. Tambm temos um The Bible as Literature, de John P. Peters,Richard Green Moulton e A. B. Bruce, publicado pela Bibliolife em 2009. Alm disso, hmuitos outros ttulos parecidos, como a obra de James S. Ackerman e Thayer S. Warshawintitulada The Bible as/in Literature de 1995 pela Prentice Hall, e Reading the Bible as Literature:

    An Introduction, de Jeanie C. Crain, publicado em 2010 pela Polity Press. No Brasil, aindaque a produo seja bem mais modesta, algumas editoras tm se empenhado na traduoe publicao de ttulos como esses. Para citar alguns poucos exemplos, temos da EditoraLoyola A Bblia como Literatura,de John Gabel e Charles Wheeler, em 2003; e Leia a Bbliacomo Literatura,de Cssio Murilo Dias da Silva, em 2007. A Editora Vozes tambm publicouo seuA Bblia como Literatura, mas de Jos Pedro Tosaus Abada, em 2000.

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    Ainda falando daqueles que abordam a Bblia como literatura, h os quedo maior nfase ao fato de que ela no precisa ser lida como fonte histrica

    (TOSAUS ABADA, 2000, p. 23; MILES, 2009, p. 22). Entre esses nota-seuma aberta rejeio s anlises exegticas tradicionais, crtica histrica quedominou a erudio bblica nos ltimos sculos e quelas leituras populares,religiosas de carter fundamentalista, nas quais mais fantsticas narrativas soconsideradas descries precisas de fatos reais do passado histrico. Podera-mos dizer que, para essa elite leitora, tomar os textos bblicos como co condio indispensvel para que possamos dizer que estamos lendo a Bbliacomo literatura. exatamente sobre esse ltimo argumento que queremosnos deter neste artigo, e o leitor agora j sabe em que mbito dos estudos da

    religio (e da Bblia mais especicamente) se insere a discusso aqui proposta.Se falar da Bblia como literatura j uma questo complicada, falar dela

    como co pode ser o estopim de embates acirrados em nossa sociedade,acostumada a abrir esse livro que, desde a capa, arma sua (inquestionvel)sacralidade. Um dos motivos que dicultam o dilogo a esse respeito acompreenso limitada que em geral se tem de co. Este trabalho procuradiscutir essa abordagem literria da Bblia de maneira pontual, tratando exa-tamente do carter ccional do texto bblico e colocando em pauta algunsimportantes tericos da literatura e crticos da Bblia. Acreditamos que tal

    debate no serve apenas para armar a ccionalidade da literatura bblica,mas tambm nos conduz a resultados importantes do ponto de vista dosestudos da recepo. Veremos como a compreenso mais apurada sobre essaccionalidade capaz de nos ajudar a esclarecer outros problemas, como odos motivos que levam os leitores leigos a ignorarem os elementos ccionaisdos textos bblicos e o do exclusivo poder retrico deles que, como sabemos,continuam inuenciando ativamente a vida de muitos leitores.

    A crtica histrica e a abordagem literria da BbliaDesde o nal da dcada de 1970 essa abordagem da Bblia como lite-ratura ganhou um nmero crescente de adeptos e foi se estabelecendo, aomenos entre certo grupo elitizado de leitores. Como vimos, por um lado elesestavam inuenciados pela teoria literria contempornea, e alguns exegetasbblicos passaram a empregar os instrumentos dos estudos literrios secularesem suas leituras bblicas, substituindo passos metodolgicos antiquados eatualizando a exegese que j praticavam; por outro, crticos literrios secu-lares adotaram a Bblia como objeto para seus experimentos, tirando-a do

    exclusivo posto de livro sagrado e a equiparando aos demais ttulos que jcompunham o cnon literrio da cultura ocidental. Esse quadro bipartidoserve para que compreendamos essas novas leituras que, como fenmenos

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    histricos, nascem no apenas por conta do impulso dos estudos literriosrecentes e sua abrangncia, mas tambm reagindo aos protocolos de leituras

    anteriores que passavam a ser vistos como epistemologicamente superados. Aabordagem literria da Bblia, portanto, se caracterizou como prtica que reagediretamente s abordagens religiosas e crtica histrica, ambas caracterizadaspor uma nfase no passado que no novo momento parecia sem propsitos.

    Essa reao nfase histrica na interpretao bblica popular e acad-mica ns vemos, por exemplo, em um artigo intitulado O que signica lera Bblia como Literatura?.O autor, Leandro Thomaz de Almeida, voltousua ateno para a leitura religiosa da Bblia e destacou exatamente como elaesteve (e ainda est) marcada por essa postura ingnua do leitor que, diante

    do texto sagrado, no questiona sucientemente o suposto carter factualdas narrativas. Ele v a abordagem literria da Bblia como uma reao a essaforma religiosa de ler, como vemos nessas linhas:

    [...] a leitura da Bblia por muito tempo desconsiderou a caracterstica literria de seus

    textos, o que fez com que fossem tomados, em sua maioria, como descries literais de

    fatos do mundo, sejam estes relacionados criao do universo, ao dilvio, ascenso

    do Cristo etc. Essa leitura praticada, por exemplo, pelo puritanismo ingls do sculo

    XVII continua viva hoje em dia, ao menos em crculos teolgicos muito conservadores.

    Atualmente, no entanto, cada vez mais se fortalece a compreenso de que a leitura daBblia tem muito a ganhar se levar em considerao o carter literrio dos textos que

    a compem. (ALMEIDA, 2011, p. 13-14)

    Mais adiante o autor emprega algumas observaes mais pontuais sobreo evangelho de Marcos para destacar os aspectos ideolgicos e as caracte-rsticas literrias dele e colocar ao leitor esta questo: Se sua construoprivilegia determinadas imagens, repeties, ditos e parbolas, por que toda

    essa diversidade deveria ser desprezada em nome de uma leitura que se quermeramente biogrca da vida de Jesus? (ALMEIDA, 2011, p. 17). V-se quepara o autor, ler a Bblia literariamente uma prtica que comea por tomaro texto bblico como um crtico literrio faria diante de qualquer romance,deixando de lado o potencial que ele possa ter como fonte para a pesquisahistrica.

    Tambm temos um bom exemplo no texto de Steven Weitzman (2007, p.191), que, falando sobre as mudanas de paradigma na leitura bblica ocorridana dcada de 1980 nos EUA e sobre o papel determinante de Robert Alter

    nesse processo de transio, escreveu:

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    Anteriormente os estudiosos da Bblia desviaram a ateno da literatura bblica para

    uma realidade anterior aos textos as fontes da Bblia, sua autoria, os eventos e ins-

    tituies que esto por trs deles. Estudiosos como os que contriburam com O GuiaLiterrio da Bblia de Alter e Kermode buscavam ensinar sua audincia sobre como ler

    e apreciar a Bblia em si por meio da ateno s suas artimanhas como ela orquestra

    o som, a repetio, o dilogo, a aluso e a ambiguidade para gerar signicado e efeito.

    Deveras a questo da historicidade dos eventos narrados nos livrosbblicos foi a que mais ocupou a erudio bblica nos ltimos sculos, peloque muitos dos leitores que hoje pretendem ler a Bblia como literatura sesentem forados a argumentar contra a relevncia daquela avaliao quanto historicidade dos textos. Portanto, se para ler a Bblia como literatura hoje

    parea imprescindvel considerar suas narrativas como co, isso resulta-do de uma longa trajetria que nos legou prticas antigas, tradicionais, cujovalor no deve ser esquecido, mas que precisam ser questionadas se o quese quer fazer algo diferente.

    Ns nos vemos exatamente neste momento de indenies, em quenovas e antigas abordagens parecem excludentes, seus adeptos se mostramcombativos e as reexes a respeito so mais necessrias. Da nossa intenode oferecer algumas contribuies por meio de consideraes mais aprofun-dadas sobre a ideia de co antes de imp-la s narrativas bblicas.

    Para entender a fccionalidade bblicaAntes de mais nada, preciso cuidar para no deixar que o senso co-

    mum nos conduza a uma compreenso equivocada de co. Foi WolfgangIser quem salientou que, de modo geral, os textos literrios so consideradosccionais, mas que h um senso comum, um saber tcito, que nos levaa entender a co de forma simplista, como um polo oposto realidade.Iser nega esse modo binrio de compreender co e prope um modelotridico formado por essas trs instncias: real, ctcio e imaginrio (2013, p.31-34). Ele explica as relaes entre essas trs instncias ao dizer que o textoliterrio, descrito como a combinao de atos de ngir, produz repetiesda realidade que, no podendo reproduzi-la, transgridem-na em direo aoimaginrio: Quando a realidade repetida no ngir se transforma em signo,ocorre forosamente uma transgresso de sua determinao. O ato de ngir, portanto, uma transgresso de limites. Nisso se expressa sua aliana como imaginrio (ISER, 2013, p. 33).

    Iser ainda prope um olhar diferente para as mesmas relaes, ao ar-

    mar que o imaginrio humano (difuso, informe, uido, arbitrrio) tambm transgredido ao ser ccionalizado, ganha forma ao entrar em contato coma realidade ngida do texto literrio: No ato de ngir, o imaginrio ganha

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    uma determinao que no lhe prpria e adquire, desse modo, um atributode realidade; pois a determinao uma denio mnima do real (ISER,

    2013, p. 33). Assim, o autor dene o texto literrio, o texto ccional, comoevento lingustico que transgride os limites do real e do imaginrio, e que deuma s vez a irrealizao do real e a realizao do imaginrio (2013, p. 34).

    Isso ainda pode ser dito de outras formas, como, por exemplo, nas li-nhas que adotamos de Joo C. Leonel Ferreira sobre o carter representativo(mimtico) e criativo (poitico) do texto literrio:

    [...] pode-se dizer que a literatura: a) caracterizada por uma determinada relao com

    a realidade e b) que ela apresenta certas propriedades de linguagem. Os dois aspectos

    esto interligados. No primeiro caso, so teis os conceitos de [...] mimesis e de poiesisapresentados por Aristteles em seu livro Potica. Mimesis e poiesis signicam imita-

    o/representao e criao, respectivamente. Com eles quer-se armar que uma obra

    literria no uma cpia ou descrio da realidade, mas que, em uma instncia

    preliminar, por usar a linguagem que se constitui em signos grcos e sonoros, ela

    uma reconstruo do mundo a partir da percepo do artista, de modo a transmitir

    aos leitores uma viso particular da realidade. (FERREIRA, 2008, p. 9-10)

    [...] dizer que so literatura implica o reconhecimento que elas guardam certa relao

    de proximidade/distncia com a realidade, nunca sendo mera transcrio desta, pelo

    contrrio, representando-a e buscando transform-la por intermdio das histrias nar-radas. (FERREIRA, 2008, p. 10)

    Empregando as denies de Wolfgang Iser (ou de Joo Leonel Ferrei-ra), chegamos mais perto do que os crticos literrios querem dizer quandoarmam que a literatura bblica deve ser lida como co. No se trata deencarar seus personagens como sujeitos que nunca existiram, ou os cenriosque descrevem como mundos puramente imaginrios; o que se pede que se

    pense em todo texto literrio, inclusive o bblico, como uma representaoesttica que necessariamente transcende a realidade e limita o imaginriohumano. Isso parece responder parcialmente questo da leitura religiosae fundamentalista que, ignorando o modo como temos denido co combase em Iser, parece se apoiar sobre aquele senso comum que induz o leitorreligioso a encarar toda co como mentira. Decorre da que a Bblia, oumelhor, a Palavra de Deus que o leitor religioso manuseia, no pode seruma mentira, pelo que ele far de tudo para assegurar o carter factual doseventos ali narrados.

    Lendo os textos bblicos de nossa posio, procurando livrar-nos dasconhecidas mediaes religiosas, pode parecer fcil notar a presena doselementos imaginrios que o texto bblico ccionalizou. Iser (2013, p. 42)

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    armou que o texto literrio geralmente d a conhecer sua ccionalidade, eque quando um leitor se encontra diante de um texto declaradamente ccio-

    nal ele assume uma atitude coerente com a co quando se defronta comos elementos ccionais. como se texto e leitor zessem um acordo sobreo modo de apreender aquele contedo escrito e a partir da o leitor buscacompreender as leis que regem aquele mundo literrio em que a narrativa sedesenvolve, tomando a precauo de no supor que as mesmas leis devamse aplicar ao seu mundo concreto. Mas na leitura fundamentalista as coisasno funcionam assim; como se o leitor zesse vistas grossas ccionalidade,preferindo supor que tudo o que est escrito possvel para Deus por meiosmiraculosos.

    Segundo Iser, quando o leitor no nota os sinais da co ou no osreconhece e ingenuamente segue lendo o texto como um simples retrato darealidade, comete erros na sua produo de sentidos: A iluso no correpor conta da ccionalidade do texto, mas sim da ingenuidade de um modode pensar que no capaz de registrar os sinais do ccional (ISER, 2013,p. 43). Isso quer dizer que em geral no o texto bblico que nos diz comodeve ser lido; podemos faz-lo como uma coleo de mitos ou de relatos his-tricos precisos. Comprova-se a ideia de que o leitor possui certa autonomiapara a determinao dos sentidos daquilo que l; todavia, ela no plena, j

    que, como o exemplo da leitura fundamentalista nos mostra, o leitor podeestar inserido numa tradio de leitura que atua como mediadora entre ele eo texto e condiciona sua interpretao.

    A despeito da leitura que se faz, queremos destacar a armao de Isersobre o fato de a ccionalidade se dar a conhecer em todo texto literrio.Para julgar melhor a aplicabilidade dessa assero s narrativas bblicas, po-demos recordar algumas observaes feitas por Erich Auerbach em Mimesis:A representao da realidade na literatura ocidental. A obra, original de 1946, traz

    no primeiro captulo uma admirvel anlise da narrativa de Gnesis 22.1-13,que narra a lacnica histria do (quase) sacrifcio do lho de Abrao. Peloolhar de Auerbach, o texto bblico comparado ao canto XIX da Odisseia,que antes de tudo, contrasta com o primeiro por sua prolixidade. Nessetrabalho, Auerbach fala sobre a combinao dos elementos do real e doimaginrio nas narrativas do Antigo Testamento, e esse o ponto que nosinteressa no momento. Primeiro, o crtico alemo havia dito que Homeropermanece, com todo o seu assunto, no lendrio, enquanto que o assuntodo Velho Testamento, medida que o relato avana, aproxima-se cada vez

    mais do histrico (AUERBACH, 2011, p. 15). A princpio isso no seriaum problema para o leitor da Bblia, j que na maioria dos casos, a dife-rena entre lenda e histria , para o leitor um pouco experiente, fcil de

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    descobrir (AUERBACH, 2011, p. 15-16). Aprofundando a questo, o autorreconhece que o texto bblico pode ter sido construdo com base em fatos

    que os leitores reconhecem como histricos, o que pode levar alguns delesa conarem demasiadamente na plausibilidade de toda a narrativa. Porm,para Auerbach, a verso ccional faz com que a histria transcorra de ma-neira excessivamente linear, e nisso a ccionalidade se desnuda. Leiamos suaspalavras, que tratam primeiro do texto ccional (que ele chama de lenda) edepois da realidade que experimentamos fora do texto:

    Mesmo quando a lenda no se denuncia imediatamente pela presena de elementos

    maravilhosos, pela repetio de motivos conhecidos, pelo desleixo na localizao espacial

    ou temporal, ou, por outras coisas semelhantes, pode ser reconhecida rapidamente, omais das vezes, por sua estrutura. Desenvolve-se de maneira excessivamente linear. Tudo

    o que correr transversalmente, todo atrito, todo o restante, secundrio, que se insinua

    nos acontecimentos e motivos principais, todo o indeciso, quebrado e vacilante, tudo

    o que confunde o claro curso da ao e a simples direo das personagens, tudo isso

    apagado. A histria que presenciamos, ou que conhecemos atravs de testemunhos de

    contemporneos, transcorre de maneira muito menos uniforme, mais cheia de contra-

    dies e confuso... (AUERBACH, 2011, p. 16)

    Lendo Auerbach baseado em Iser, vemos que o autor do texto literrio,ao selecionar da realidade os elementos que sero combinados imaginaopara constituir sua co, sempre d sinais de que suas descries do realso na verdade atos de ngir. Noutro momento do mesmo captulo, o crticoalemo destaca que alguns autores bblicos tentaram dar maior plausibilidadehistrica quilo que est sendo narrado; ele defende que o recurso literrioempregado para produzir esse efeito de realidade foi o uso de elementosconfusos, contraditrios, do tipo que geralmente a co prefere omitir, mas

    que so caractersticas da vida humana que sempre mais complexa do quea linearidade da lenda capaz de expressar (AUERBACH, 2011, p. 17).Em 1981 o crtico literrio norte-americano Robert Alter, professor de

    literatura hebraica e comparada, publicou um livro que pode ser consideradoum marco na histria da pesquisa bblica das ltimas dcadas, um ttulo quesimbolicamente inaugurou uma nova fase, incentivando uma nova geraode leitores a adotarem a abordagem literria da Bblia (BERLINERBLAU,2004, p. 10). Intitulado The Art of Biblical Narrativeem seu idioma de origem,2a obra de Alter reuniu artigos que o autor publicou entre 1975 e 1980, nos

    2 O livro foi chamadoA Arte da Narrativa Bblicana traduo brasileira publicada em 2007 pelaEditora Companhia das Letras. dessa edio brasileira que falaremos em nossas citaes.

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    quais aprofundava vrias das sugestes deixadas por Auerbach em 1946. Oque nos interessa aqui que Alter classicou as narrativas bblicas sob a

    rubrica prosas de co historicizadas e usou como exemplo as narrativaspatriarcais de Gnesis e sua heterogeneidade:

    Um exemplo claro so as narrativas patriarcais, que podem ser vistas como ces

    compsitas, baseadas em tradies nacionais heterogneas; mas a recusa dos autores a

    conform-las s simetrias da expectativa, somada a suas contradies e anomalias, sugere

    o carter insondvel da vida na histria sob um Deus inescrutvel. (ALTER, 2007, p. 46)

    Pouco adiante, baseando-se na percepo de Herbert Schneidau, Alter

    (2007, p. 50) praticamente repete as mesmas armaes: [...] a escrita bblicarecusa a circularidade estvel do mundo mitolgico e se abre indetermi-nao, s variveis causais, s ambiguidades de uma co elaborada para seaproximar das incertezas da vida na histria.

    Robert Alter fugia opinio comum de que os textos bblicos eramformados por fragmentos incoerentes, reunidos sem critrio por um redatorprimitivo e ingnuo. Ele preferiu acreditar que a redao confusa segue nor-mas que ns, leitores modernos, temos diculdade de compreender. TantoAlter quanto Auerbach acabaram armando que a redao dos textos bblicos

    deu origem a narrativas irregulares, e que tal irregularidade uma forma deproduzir relatos mais humanizados. Ou seja, os personagens bblicos imi-tam a vida, so profundos, agem como heris e depois cometem pecadosterrveis; nos do lies morais e de f, depois mentem, matam e adulteram;envelhecem e ao longo de suas histrias so transformados pelas circuns-tncias... Assim, as narrativas ccionais da Bblia seriam capazes de produzirum efeito de realidade que lhes peculiar, e no deveria nos surpreenderque essa ccionalidade to peculiar confunda um bom nmero de leitores.

    Mais recentemente Jack Miles chegou a uma concluso parecida en-quanto comentava os livros de Samuel e Reis sob uma perspectiva literria.Para ele, somos ns, leitores modernos, que buscamos distinguir gneros eacabamos confusos com a forma ambgua pela qual a Bblia transmite fatose imaginaes (MILES, 2009, p. 213). Destacamos estas linhas:

    O trao que caracteriza a histria de conquista atravs do exlio [...] a maneira relati-

    vamente direta como ela introduz Deus na narrativa, combinando histria genuna com

    mito e lenda [...] A controvrsia quanto ao carter histrico, mtico ou ctcio dessa

    narrativa no tem fundamento. Trata-se na realidade de uma mistura das trs coisas. Eessa mistura que constitui precisamente o seu trao distintivo como uma forma de

    literatura. (MILES, 2009, p. 214)

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    DOI: http://dx.doi.org/10.15603/2176-1078/er.v29n1p153-168

    possvel, enm, explicar esse recurso literrio que historiciza a cobblica com base na semitica greimasiana. Essa escola interpretativa chama de

    ancoragem o emprego de elementos concretos que acabam por produzir umefeito de realidade no texto literrio;3deveras, a literatura bblica muitas vezesprocura se ancorar numa suposta realidade histrica citando datas precisas,nomes de cidades, fazendo referncia a pessoas e suas funes... Nesses casos,o acmulo de dados aparentemente concretos muitas vezes desnecessriospara o desenvolvimento do enredo deve ser reconhecido como estratgicasenunciativas que visam a atribuir maior efeito de realidade ao texto. Se bem--sucedida, a ancoragem faz com que o leitor tenha diculdades em questionara plausibilidade factual da narrativa, e aumentando a conana desse leitor

    no contedo, o texto o transforma num destinatrio mais receptivo, maismanipulvel, apto a aceitar os valores e contratos que lhes so propostos.

    No estamos armando que os autores bblicos tinham um domniotcnico desses recursos s recentemente compreendidos e os usavam cons-cientemente para controlar a mente dos leitores. Esse tipo de linguagemmtica fortemente ideolgica que cria narrativas ccionais por meio do usoeventual de elementos historicamente plausveis parece ser uma caractersticada Bblia de modo geral, uma virtude dela, capaz de torn-la curiosamenteimpactante. Como ilustrao, leiamos as linhas abaixo de Eliana B. Malanga,

    que discutia exatamente o tipo de histriaque temos na Bblia, mais especi-camente, no livro de xodo:

    Com relao sada dos hebreus do Egito, as fontes extra-bblicas (sic)permitem

    acreditar em um fundo histrico e factual para ela. No entanto, a narrativa se reveste

    de aspectos miraculosos e de uma clara inteno ideolgica. O autor bblico no narra

    a sada do Egito simplesmente para registrar um fato histrico, mas para ressaltar o

    poder de Deus e a escolha de Israel, elaborando um pensamento religioso por meio da

    narrativa. Uma possvel funo referencial, de narrativa dos fatos, ca, aqui, submetida

    funo conativa ou imperativa. (MALANGA, 2005, p. 280)4

    3 Conforme o Dicionrio de Semitica de A. J. Greimas e J. Courts: Por ancoragem hist-rica compreende-se a disposio, no momento da instncia da gurativizao do discurso,de um conjunto de ndices espaotemporais e, mais particularmente, de topnimos e decronnimos que visam a constituir o simulacro de um referente externo e a produzir oefeito de sentido realidade (2012, p. 30; grifo dos autores).

    4 Em seu trabalho, Eliana B. Malanga adota a ideia de funes da linguagem com base emestudiosos renomados como Eco, Jakobson e Epstein, e julgamos necessrio acrescentaressa nota para que o leitor compreendesse melhor aquilo que por ela foi dito e aquicitado. Em dado momento a autora fala da funo referencial como uma caractersticade textos que privilegiam o contexto, ou o referente, para usar um termo da semitica.Depois, menciona a funo conativaou imperativacomo aquela mais presente em textos

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    Ento nos parece especialmente acertada a armao Northrop Frye,famoso crtico literrio canadense, que escreveu que se alguma coisa na

    Bblia verdadeira do ponto de vista histrico, ela l est por outra razoque no esta (FRYE, 2004, p. 67).Portanto, desse dilogo que produzimos entre Iser, Auerbach e Alter,

    conclui-se que a co bblica possui caractersticas prprias que podem con-fundir os leitores, levando-os a exacerbarem a importncia da historicidadedas narrativas em detrimento dos sinais de ccionalizao que deveriam serreconhecidos. Mas os autores no deixaram de armar tambm que, apesarde tudo, leituras fundamentalistas como que nos temos referido so resul-tados de certa ingenuidade por parte dos leitores, que na maioria das vezes

    passam sobre elementos claramente fantasiosos e se negam a reconhec-lospor se submeter a certa tradio de leitura preconcebida.

    A tirania da retrica bblicaVoltamos a empregar Erich Auerbach para dar incio a uma nova seo

    que se pauta nas intuies do crtico alemo no captulo j citado de Mimesis.Desta feita, recordamos que ele armava que as narrativas bblicas no erammeras ces, ou melhor dizendo, no eram histrias contadas meramentepara entreter, como geralmente encaramos os romances modernos. Para

    Auerbach, as narrativas bblicas so incisivas, pungentes, querem inuenciar oleitor em sua prpria viso de mundo, querem convert-lo. Vejamos algumaspalavras do autor a esse respeito:

    A pretenso de verdade da Bblia no s muito mais urgente que a de Homero, mas

    chega a ser tirnica; exclui qualquer outra pretenso. O mundo dos relatos das Sagra-

    das Escrituras no se contenta com a pretenso de ser uma realidade historicamente

    verdadeira pretende ser o nico mundo verdadeiro, destinado ao domnio exclusivo.

    (AUERBACH, 2011, p. 11)

    que esto centrados no destinatrio, ou seja, cujo objetivo primordial inuir sobre ocomportamento desse receptor (Malanga, 2005, p. 25). Portanto, no trecho que citamosacima ela alega que a narrativa de xodo emprega a funo referencial, se apresenta comouma histria, com informaes sobre acontecimentos que teriam acontecido no passado.Todavia, ainda segundo a autora, essa funo possui um papel secundrio no texto, j queestaria submetida funo conativa ou imperativa; isso quer dizer que os fatos narradosservem, acima de tudo, para convencer o leitor, lev-lo a crer, a agir. Nesse caso, a his-toricidade dos eventos narrados est condicionada aos interesses do autor, e a delidadehistrica no pode ser considerada uma prioridade nem na escolha dos eventos contadose omitidos, nem no modo como eles so apresentados ao leitor.

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    Os relatos das Sagradas Escrituras no procuram nosso favor, como os de Homero,

    no nos lisonjeiam para nos agradar e encantar o que querem nos dominar. (AUER-

    BACH, 2011, p. 12)Quando isso se torna impraticvel, pela transformao demasiado profunda do meio

    ambiente e pelo despertar de uma conscincia crtica, a pretenso autoridade corre

    perigo [...] os relatos bblicos convertem-se em velhas lendas e doutrina [...] (AUER-

    BACH, 2011, p. 13)

    Mais recentemente Frye retomou indiretamente o tema levantado porAuerbach dando-lhe razo, e escreveu palavras fortes sobre esse mesmoaspecto da literatura bblica: Claramente a Bblia um livro violentamente

    partidrio: e como em qualquer outro caso de propaganda, a verdade aquiloque o escritor pensa que deva ser a verdade (FRYE, 2004, p. 66-67). Em OCdigo dos Cdigos ele tratou a questo da retrica bblica empreendendo umabreve anlise da poesia e prosa bblicas; da extraiu suas intuies sobre opoder retrico dos textos bblicos. Primeiro discutiu a prosa bblica, enfa-tizou sua laconicidade, sua descontinuidade, o que a aproxima da sentenapotica de forma particular; e ento apontou para o fato de que essa umacaracterstica que expressa autoridade. Para Frye, as ordens impessoais ediretas do tipo Faa-se a luz ou No matars fazem da Bblia um livro

    cuja linguagem particularmente autoritria. Aqui tambm vale a pena leralgumas linhas do prprio autor:

    A prosa contnua ou descritiva tem uma autoridade democrtica: professa ser uma dele-

    gada do experimento, da evidncia, ou da lgica. Tipos mais tradicionais de autoridade

    se expressam numa prosa descontnua, de aforismas, ou orculos, onde cada sentena

    cercada de silncio. (FRYE, 2004, p. 251)

    Tradiciona lmente a Bblia fala com a voz de Deus e atravs da voz do homem. Sua

    retrica ca, portanto, polarizada entre o oracular e o impositivo, que tambm repe-

    titivo, e o mais familiar e imediato. Quanto mais potica, repetitiva e metafrica for a

    tessitura, mais se v cercada pelo sentido de uma autoridade externa; quanto mais ela

    se aproxima da prosa contnua, mais predomina o sentido do humano e do familiar.

    (FRYE, 2004, p. 253)

    No precisamos de muita pesquisa para dar razo a Auerbach e a Fryequanto ao poder exercido pelos textos bblicos sobre os leitores. Poderamos,sim, ampliar nossos horizontes para dizer que esse poder no se deve apenas

    s caractersticas intratextuais, mas tambm histria da leitura, tradioreligiosa, mediao dos editores no processo de produo de sentidos porparte do leitor... Mas assim excederamos todos os nossos limites, pelo que

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    seguiremos lidando apenas com a questo da ccionalidade, o que nos conduzde volta a Wolfgang Iser antes de encerrarmos este trabalho.

    Para Iser, a co cria um mundo no texto, que, como vimos, transgri-de os limites da realidade ao selecionar dela elementos que transforma emsignos. Do mesmo modo, esse real ccionalizado acrescido de elementosdo imaginrio, os quais transgridem sua dimenso abstrata para se realizar notexto. Dessa combinao de elementos nasce a co, que cria um prpriomundo, um mundo ccional que no um m em si mesmo, mas cuja nali-dade voltar realidade e transform-la. Noutras palavras, para Iser a copossui uma nalidade prtica (2013, p. 44-45), e nisso vemos uma relaodireta entre a ideia de Iser e o conceito de desfamiliarizaoempregado pelos

    formalistas russos no incio do sculo passado para descrever a literatura.5Atualmente pode parecer um exagero a armao de que toda co possuiesse efeito desfamiliarizador;6contudo, talvez o conceito se aplique bem aboa parte da literatura bblica que, como temos visto por meio dos autorescitados, especialmente dedicada a transformar seus leitores.

    Indo alm, Iser tambm arma que para que o texto tenha eccia natarefa de retornar vida ele precisa saber dosar o real e o imaginrio, a mde que o leitor o tenha um como se; ou seja, a co no deve ser nemmuito prxima do mundo real nem tampouco independente ou indiferente

    a ele. Entende-se que se uma narrativa no permite que o receptor noteseus traos excedentes da realidade, ela perde o carter ccional e se tornasuprflua. Do mesmo modo, se a narrativa no cumpre bem a tarefa deimitar a realidade, o mundo que constri se torna demasiadamente abstrato,impedindo que o leitor faa a comparao necessria entre o ccional e arealidade (ISER, 2013, p. 45-47).

    Agora estamos prontos para uma pergunta nal. Vimos em Iser que aco tem um propsito prtico e deve ser construda com a medida certa

    de realidade e imaginao para que cumpra a funo na transformao doleitor. Tambm percebemos que a literatura bblica deve ser encarada comoobra ccional, e conforme armou Auerbach e testica a histria da leitura

    5 Para os formalistas a literatura (ou a arte em geral) tinha de especial uma potencialidadedesfamiliarizadora. Eles defenderam que a co nos colocava em contato com um mundoirreal e diferente do nosso, e que tal contato com o imaginrio era capaz de nos fazerver nossa prpria realidade com um olhar renovado, menos familiar. Citando James L.Resseguie, a desfamiliarizao [...] vira de ponta cabea o modo familiar ou cotidiano dever o mundo [...] o leitor desfamiliarizado o que menos automtico, menos capaz dedeslizar suavemente sobre o texto; ele est mais atento aos solavancos no caminho e srupturas no texto (RESSEGUIE, 2005, p. 33-34, 38).

    6 Veja a crtica de Terry Eagleton a esse modo de caracterizar a literatura ou a arte emTeoriada Literatura (2006, p. 3-10, 124)

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    da Bblia, ela um dos livros mais inuentes da cultura humana. Ento, serque poderemos algum dia armar que a Bblia a co na medida exata?

    Estamos cientes de que h muitos outros fatores que tornam o textobblico to manipulador: a Bblia aproveita a tradio religiosa herdada pelacultura, usa personagens poderosos como Deus ou Jesus para fazer arma-es e apelos, e muitas vezes lida sob um pano de fundo ritualstico que atorna ainda mais inuente sobre a mente do leitor religioso. Todavia, pos-svel que esse poder tenha outras razes; talvez boa parte de suas narrativassejam composies ccionais compostas com medidas precisas e que esseseja o fator pelo qual o leitor muitas vezes se v obrigado a se posicionarde modo particularmente ativo diante de seus textos, convertendo-se ou

    desprezando-os. Em geral, preciso certa maturidade literria para ignoraro poder das ces bblicas e tom-las como fonte de entretenimento. Commais frequncia seus imperativos atingem o leitor em voz alta, o colocamcontra a parede e o foram a dar uma resposta. A resposta pode variar, claro. Alguns dobram os joelhos e se submetem a essa voz, aceitam seusvalores e passam a ler o mundo com base nessas ces. Outros rejeitamseus contratos, e muitas vezes essa rejeio tambm precisa ser forte, peloque muitos empreendem verdadeiras lutas contra aqueles textos que queriamprend-los. Nalguns casos, alguns leitores so encontrados guerreando contra

    a ditadura que surpreendentemente a co instaurou.

    Consideraes fnaisVimos que os autores que lidam com a Bblia como literatura frequen-

    temente se preocupam em armar o carter ccional dela, assim como seesforam por demonstrar as limitaes das abordagens de pretenses histo-riogrcas. No mbito acadmico as reaes se voltam, com alguns excessos,contra a crtica histrica que certamente ainda tem seu valor e deve coexistir

    junto com as abordagens literrias. Mas natural que levemos um tempo paraavaliar ambas as contribuies e tom-las conjuntamente como legado per-manente do campo dos estudos bblicos. At o presente momento parece queos literriosainda consideram necessrio combater os histricospara conquistarseu lugar. No mbito popular, ler a Bblia como literatura pode parecer umaforma laica e contempornea de reagir ao texto, mas como essa abordageminsiste em adotar o livro sagrado das tradies religiosas judaico-crists, o quevemos (pelo menos no contexto brasileiro) que toda armao de que aBblia pode ser encarada como obra ccional possui uma potencialidade para

    o conito. Isso talvez explique por que a abordagem literria, que nos parecemais didtica e acessvel aos leigos interessados na Bblia do que a exegesetradicional, no tem conquistado o espao que merece. Esses so alguns dos

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    motivos pelos quais julgamos relevante o aprofundamento relativo cciona-lidade literria de modo geral. Se forem desfeitos os mal-entendidos, talvez

    a abordagem literria da Bblia, com todas as suas virtudes, possa conquistarmais espao e contribuir mais ativamente com a pesquisa bblica nacional,penetrando nos ambientes em que a Bblia j objeto de estudo e tambmalcanando estudiosos da literatura em geral, alm dos leitores religiosos que,anal de contas, so os que mais leem a Bblia.

    Tambm vimos que os pesquisadores esto cientes do poder que essaliteratura particularmente exerce sobre os leitores, e que tm se buscadoexplicar esse fenmeno por meio de anlises extratextuais, estudando gruposreligiosos, suas relaes sociais e seus protocolos de leitura. Por conta disso

    nos propomos tratar da ccionalidade bblica como outro modo de tentarcompreender esse poder retrico dos textos bblicos. Nossa impresso a deque no apenas por fora das tradies e instituies religiosas que a Bbliatem convertido leitores ao longo dos sculos. Todo leitor dela atingido porforas mediadoras de carter religioso, mas supomos que nesse contexto aprpria fora retrica das narrativas contribua para que ele se sinta pressio-nado enquanto l. Portanto, o caminho que escolhemos foi voltar crticaliterria, tanto para ampliar nossos conhecimentos sobre a literariedade bblicaquanto para contribuir com as pesquisas que se tm empreendido sobre a

    recepo emprica desses textos que, seja do ponto de vista religioso, sejasecular, so inegavelmente cannicos.

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