a ascensão da casa dos mortos.pdf

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Copyright 2012 Editora Estronho

Esta é uma vErsão dE dEmonstração, Em baixa rEsolução, do livro “a ascEnsão da casa dos mortos” E podE sEr distribuida gratuitamEntE. porém sEu contEúdo não podE sEr copiado, rEproduzido ou altErado sEm a pErmissão da Editora Estronho.

nEsta vErsão você Encontra o capítulo “1o dia “.

a vErsão imprEssa possui mElhor qualidadE gráfica.

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Estronho Ltda

Belo Horizonte - Minas Geraiswww.editora.estronho.com.br

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1º dia

E lá estava a casa. Uns cem metros após a entrada. Úmida demais. O homem magricela desceu do jipe e, cumprimentando os

jovens, um a um, pelo caminho, parou diante dos portões de ferro.– Prazer, meu nome é Felício Merchant – disse para Ale-

xandre, que tentava destrancar a entrada. – Sou um dos proprie-tários da casa.

Alexandre se virou para retribuir, mas sentiu-o recuar invo-luntariamente. Porém, ele logo se recompôs. Fingiu normalidade.

– Sou Alexandre. Noivo de...– O senhor é o irmão de Penélope? – Samara se aproxima-

va do sujeito. – Não sabe como agradeço pela sua vinda.– Não faço mais que uma obrigação – olhou para o grupo

a sua volta. – São somente vocês?– Exatamente.– Posso começar a mostrar a casa e o terreno quando qui-

ser – falou Felício, girando para cima, no lugar onde deveria estar a fechadura, metade de um cacho metálico de uva. Um pequeno visor com os números de zero a nove surgiu. – Para cada hospede diferente eu altero a senha. A de vocês é 03911188.

Digitou os números na tela, então as duas partes do por-tão se distanciaram. Após os passageiros retomarem aos carros, estacionaram diante da fachada. Felício desceu, retirou uma câ-mera do porta-luvas e levou até o grupo.

– É um costume nosso tirar uma foto de quem vem a pas-seio – disse aos noivos. – No final, entregamos numa bela mol-dura. E não se preocupem, é sem custo adicional e a imagem de vocês não será utilizada para fins comerciais – fez uma breve pausa. – A não ser que queiram. Vocês querem?

Samara agitou a cabeça.

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– Não obrigada. Só a foto está ótimo.– Pessoal! – gritou Alexandre. – Todo mundo juntando aqui

para tirar uma foto! – observou o fisioterapeuta destacado. – O Paulo também.

– Fala sério – Julieta sussurrou, enquanto caminhava.Eles pararam diante da enorme construção de dois andares

e se puseram mais uma vez de pé, agora sobre a grama escura. To-dos se uniram em duas fileiras desorganizadas. A foto foi batida.

– Essa casa é perfeita – sussurrou Samara, os lábios for-mando um leve sorriso.

O vasto campo dianteiro era dividido em dois quadrados, cercados por muros de tijolos. A singela reta pela qual passaram constituía-se como único meio de entrada e saída do terreno.

As grossas paredes do imóvel estavam pintadas impecavel-mente no tom creme. Não havia manchas, não havia infiltração. As enormes e extensas janelas exibiam vidros polidos e brilhan-tes, assim como o vitral da torre de telhado coniforme, acima do segundo andar. Nele, um belo anjo parecia voar.

Havia uma curta cobertura de telhas coloniais na divisão dos andares. Todas escurecidas pelo tempo e excesso de umidade.

Victória olhava pasma para a composição.– Há quanto tempo essa casa pertence à família de vocês? –

perguntou para o proprietário.– Não era da nossa família – Felício deslizou a mão sobre

a câmera e admirou a mansão com a mesma reverência com que trataria uma pessoa idosa. – Meu pai a comprou há vários anos, num leilão do governo. Os donos morreram. Sem herdeiros. As casas sempre têm uma história, essa não foge do padrão. Vou con-tá-la enquanto fazemos um breve passeio pela propriedade – se apressou em subir as escadas.

O grupo avançava sobre os degraus de mármore branco, ultrapassando as finas colunas em estilo grego a cada elevação de nível. No piso em frente à porta de madeira bruta, uma es-trela de granito com oito pontas encravada no chão. Havia uma leve diferença de relevo entre o contraste de cores. Letras.

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– Mansão Morrigan? – indagou Santiago. Seu pai ainda olhava curioso, para os muros de tijolos. – Era o sobrenome da família?

Felício Merchant abriu a porta e virou-se para o jovem.– O arquiteto, e dono da casa, era fascinado pela mitologia

celta. Morrigan é o nome de uma deusa. Um dos diversos nomes presentes na casa. O pomar, nos fundos da casa, para vocês terem uma ideia, se chama Cernunnos. Essa é a sala – disse, empurrando as duas bandas da porta. – Muito ampla, bonita e elegante. Tudo foi muito bem limpado para a chegada de vocês, mas se precisarem de um serviço de empregados, buffet e ou decoração, temos ótimas indicações. Mas podem contratar outros, se preferirem. É opcional.

– Gostaria que me fornecesse os números depois, se possí-vel – Samara falou.

A sala tinha um charme, apesar de branca e as únicas peças eram o enorme relógio de torre e os diversos quadros envelhe-cidos, postos em ordem aleatória nas paredes. Em toda sua área, diversas colunas foram implantadas sem padrão fixo.

No final do cômodo, a passagem para o corredor estava embutida em um gigantesco cilindro de concreto, que desapa-recia no encontro com o teto do primeiro andar. Uma escada curva descia de cada lado, usando a forma distinta como apoio. O mesmo ângulo de curvatura fora criado para dar a intenção de um corredor crescente.

– A mansão foi construída em 1853, por ordem do criador da planta baixa. Seu nome era Pierre Rousseau, um arquiteto não muito bem-sucedido.

– Se ele não foi bem-sucedido, de onde tirou dinheiro para construir isso? – questionou Alexandre.

– Pierre Rousseau era rico. E muito rico. Tentei ao máxi-mo obter informações sobre o negócio da família. Encontrei algo sobre forja de armamentos, nada detalhado. Enfim, ele se tornou frustrado por não conseguir sucesso com o próprio ta-lento, era meio moderno para a época clássica. Então desistiu. Vasculhou as suas plantas e retirou o melhor de cada para criar esta casa – se apoiou em uma das colunas. – Pobre homem rico.

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Felício indicou a escada.– Vamos para o andar de cima – avançou à frente dos demais.Ainda curioso, Alexandre deu uma última olhada para trás.

Queria indagar algo. Controlou-se. Poderiam olhar para a boca torta. Decerto, a qualquer momento ocorreria tal fato, por isso questionou:

– Qual a finalidade daqueles dois quadrados cercados entre o caminho de acesso?

– São dois jardins. Agora vejam o ângulo em que essa esca-da foi posta... interessante, não?

Assim que os degraus acabaram, puderam ver um estreito corredor em linha reta.

– Vamos ver os quartos. São todos padronizados, portanto um já basta.

Ao invés de seguir para frente, foi para a direita, no corre-dor torto pela curvatura da escada. Felício ultrapassou três por-tas e abriu a quarta.

– Esse é o padrão. Temos doze desses.Julieta surpreendeu-se.– Todos são nesse formato? – questionou.– Sim. Todos octogonaisO piso, de tábua corrida, estava um pouco embaçado. Paredes

brancas novamente. Móveis robustos, verdadeiras toras moldadas nos mais diversificados desenhos. Apenas uma janela. Próximo dela, um corrimão circular protegia um buraco bem moldado.

– O que é aquilo? – perguntou Lindsay.– Banheiro. Sem acesso pelo primeiro andar.Avançou até o corrimão, puxando uma leve tranca entre as

barras de ferro. Um quarto da circunferência se afastou feito porta.– Aproximem-se.A longa escada caracol desaparecia no breu do cômodo.– Para mim – iniciou Felício –, é a melhor ideia. Agora va-

mos ver a cozinha e o salão de dança. Depois faremos um passeio

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pelo pomar. Se quiserem, seria legal levá-los aos jardins que o Sr. Alexandre mencionou. Para ficar mais esclarecedor, providenciei uma listagem dos cômodos da casa – abriu sua pastinha preta, contou o número de folhas e distribuiu.

Julieta assustou-se.– Pré-salão das estátuas, salão de dança, galeria própria, galeria

particular, sala da fonte, sala de vista... – Julieta encarou o homem de forma confusa. – Tem certeza de que entregou a folha certa?

– São os cômodos. Em alguns vocês nem ao menos entra-rão. Pré-salão das estátuas é uma antessala para o salão de festas. Possui oito esculturas de homens e mulheres, quatro na esquerda, quatro na direita, antes da divisão de madeira e vidro para o salão.

– Tudo bem, então.– Não levem a mal o número de estátuas que encontrarão

nessa propriedade, a esposa de Pierre era escultora.Ao pisarem no cômodo, Tábita sentiu a diferença da ma-

deira para o piso. Nunca vira tantos utensílios pendurados sobre a pia. Do lado, dois imensos fogões à lenha compartilhavam o espaço com um atual, à gás, de seis bocas.

– O espaço é amplo e tem um excelente suporte – indicou. – A dispensa está localizada na porta da direita, como podem ver. To-dos os seus mantimentos já foram devidamente guardados, assim como os que necessitam de refrigeração. Para manter um aspecto mais original do cômodo, o freezer e a geladeira foram postos tam-bém lá dentro. Espero que não se importem.

Felício abriu a porta dos fundos. A brisa gelada da manhã, escurecida de forma precoce, invadiu o ambiente, carregando consigo os sons do farfalhar das árvores. Lindsay teve a rápida impressão de ver algo escuro correndo no mato, talvez um animal.

– Agora vamos para a minha parte favorita do terreno, o pomar.

Entre o início do matagal e a casa havia um segmento de terra pura, batida. Quando olharam para as extremidades, observaram mais dois caminhos de paralelepípedos. Dessa vez, o limite era aquele, ambos cessavam nas árvores.

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– Esse é o pomar? – indagou Tábita, olhando para o irre-gular terreno arborizado.

– Na verdade, há um pequeno trecho da mata natural, aí sim começa o pomar – apontou para uma fina trilha entre os vários tons de verde. – Vamos.

Receosos, eles seguiram. As árvores possuíam os mais va-riados tamanhos e formas. O ar fresco misturado ao som dos pássaros proporcionava uma sensação acolhedora da natureza. Trepadeiras se enrolavam aos troncos enquanto pequenos cipós pendiam dos os galhos mais altos.

Após três minutos caminhando em linha reta, um exten-so portal de metal, coberto de pátina, chamou a atenção. Sem muros ou qualquer coisa do tipo, simplesmente o portal encra-vado no chão. A transição simbólica da mata para o pomar. Ali extensas carreiras de árvores lodosas estavam em linha. Victória identificara de imediato, pés de maçã e acerola.

– Os pontos alaranjados no final são tangerinas – comple-mentou Felício.

Entre a parte superior do umbral lia-se: CernunnosOs galhos retorcidos e as raízes salientes, embora fossem

bucolicamente sombrios, não transmitiam receio que se compa-rasse ao que estava diante deles, uma estranha figura de homem mesclada com traços de animal. A estátua, com chifres e orelha de cervo, trajava um manto longo, com as mãos estendidas.

Antes que alguém pudesse perguntar, Felício avisou:– Este é Cernunnos. Nada sutil – avançou, pondo o braço

direito sobre o ombro da figura –, mas é bacana.– Então foi ela quem fez isso?– Foi. E tem muito mais.Com mais de cento e cinquenta anos, as árvores sobre-

viventes cresceram de forma estrondosa ou engrossado o sufi-ciente para espantar pela proporção. Victória, minutos após sua entrada, perguntava-se se teria sido melhor permanecer ao lado do homem-cervo ou continuado o trajeto. Para afligir seu estado

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emocional perturbado, metros à frente, numa clareira improvi-sada, em uma cruz fina e extensa estava um espantalho surrado.

– Não liguem para esse troço horrível – comentou Felício –, foi meu pai quem colocou aí para assustar a mim e a minha irmã quando éramos crianças. Para evitar que ficássemos aqui sozi-nhos. Ele não gostava. Por mim, eu tirava, mas minha irmã o vê como recordação.

As primeiras gotas geladas de chuva começaram a despencar.– Mais à frente fica uma plantação de figueira-branca. Não

sei o motivo para terem resolvido plantá-las, elas não dão fru-tos. E após isso, o lago. Podem tomar banho nele, se quiserem. Fica fora da propriedade, mas os acessos, exceto pelo terreno da mansão, são verdadeiros brejos. Sendo assim, é deserto. Agora acho melhor retornarmos. A chuva vai piorar.

¨¨¨Já era de tarde quando Tábita começou a desfazer suas ma-

las e a organizar as roupas no armário. Uma chuva fraca ain-da caia, somanda a um vento gélido que entrava pela janela do ambiente octogonal. O almoço, embora simples, foi apreciável. Sanduíches. Deveria ter sido algo mais refinado, não fosse a ca-pacidade anormal de Samara em encomendar as compras sem pensar em quem as prepararia. Lindsay se ofereceu, mas já esta-va em cima da hora para descongelar alguma peça de carne. Os frios, pães e molhos foram as únicas alternativas viáveis.

– Não estou gostando desse lugar – afirmou Victória, en-quanto a mãe colocava uma roupa dobrada sobre a cama. – Se dissesse que quer ir embora, não hesitaria em te acompanhar.

Tábita se assustou com as palavras da filha.– Mas acabamos de chegar! Já vai começar? – olhou para a

entrada do banheiro. – Não te obriguei, foi justamente o contrá-rio. Estou aqui por sua causa.

– Não a estou culpando, eu queria vir, sim. Não nego isso. Mas foi antes de saber que estávamos na antiga casa da Família Monstro.

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– Ah, Vic, o lugar não é tão horrível assim.– A construção em si não – viu a mãe fechar as malas e

pô-las embaixo da cama –, são os detalhes. Mãe, pelo amor de Deus, estátua de homem-cervo no pomar mórbido, espantalho esquisito, torre com vitral! Isso porque não visitei o resto da casa e do terreno.

– Você só está vendo os pontos negativos.– Então me diga quais são os positivos.A mãe pigarreou ao mesmo tempo em que botava a mente

à procura de afirmações concretas.– Você está de férias, a casa é grande, tem um quarto com

um banheiro só para você, poderá nadar no lago quando quiser e participará de uma festa superchique no final disso tudo. Não basta?

– Talvez. Acho que sim.– Então curta, filha, já que momentos como esse costumam

ser únicos – foi até o corrimão e puxou a portinhola de acesso ao banheiro. – Não está curiosa para saber como é lá embaixo?

A garota fez um gesto de indiferença.– Então, me acompanha?Victória se levantou da cama e andou em direção à mãe.

Os degraus de ferro ainda pareciam firmes, novos, embora a ida-de da casa denunciasse justamente o contrário. Desciam vaga-rosamente a escada caracol, penetrando cada vez mais no escuro intencional. No andar de baixo, o único facho de luz era emitido pelo basculante retangular, anexado próximo ao teto.

A garota ouviu um forte estalo. Em seguida, sua mãe não estava mais diante de si. Havia desaparecido. O braço direito foi imediatamente para frente enquanto o outro se mantinha firme no corrimão: não enxergava. A mão estendida encontrou nada além do vazio pavoroso que a ausência da companhia causava. Onde está o interruptor?

– Mãe?!

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Embora Merchant tivesse guiado todos pelos locais julga-dos mais importantes, e que o passeio pelo jardim frontal havia sido cancelado pela chuva, Julieta sabia que muitos outros locais curiosos na Mansão Morrigan ainda eram desconhecidos. Havia cômodos e mais cômodos não visitados, o lago, o jardim... Olhou outra vez o papel dobrado no bolso. Se fizesse sol no dia se-guinte, chamaria alguém para um breve passeio na propriedade. Samara, de acordo com seu gosto extravagante, escolhera o local certo. E por falar em Samara, ela estava no andar de baixo, com Alexandre e Paulo. O fisioterapeuta explicava o avanço e pro-cessos do seu trabalho. Seria o total de três sessões de uma hora e meia por semana, a começar pelo dia seguinte.

Julieta acabou seguindo pelo corredor curvado até o seu quarto, tinha escolhido um de frente para o jardim. Ao perceber que ainda vestia as roupas de viagem, decidiu tomar um banho e colocar peças mais confortáveis.

Viu algo escuro atravessar a extremidade oposta a que es-tava. Não fora imaginação, os passos no piso de madeira soaram bem distinguíveis. Tinha certeza disso. Mas ignorou, poderia ser qualquer um.

Sentiu um arrepio súbito ao ser atingida por uma corrente de ar frio. Ao olhar para trás, no final do corredor estreito, diante da porta do quarto de Alexandre e Samara, viu Lindsay sorrir e entrar em um dos cômodos.

Alívio. E como o alívio pareceu forte. Não esperava algo de ruim, na verdade, não tinha ideia do que esperava, apenas temia pelo ato de temer. Podia retomar sem problemas a ida até o quarto.

No andar de baixo, Lindsay conversava com Santiago.

¨¨¨– Estou aqui embaixo, Victória – ouviu sua mãe falar. Ela cor-

reu até as paredes, e as esfregou com as mãos. Cadê o interruptor?! Será que havia a porra de algum naquele maldito cômodo?! Quando pressionou algo perto da pia, as luzes acenderam. Olhou para trás.

Tábita estava caída no chão, sobre uma larga poça d’água.

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– Escorreguei. Me ajude a levantar, por favor.Com um esforço além da normalidade, e do que podia fa-

zer, a garota impulsionava a mãe contra si. Após alguns segun-dos, Tábita se ergueu do piso, dando passos para frente, deso-rientada. A coluna doía, beirando um formigamento, mas o que incomodava de verdade era a roupa encharcada nas suas costas.

– Desculpa não tê-la ajudado antes, mãe. Não consegui en-xergar nada, estava muito escuro...

Só que Tábita não dava atenção. Analisava a estrutura. Do piso à base da banheira suspensa, em formato de patas de cavalo. Era um pouco pequeno se comparada com a proporção da casa, en-tretanto o luxo parecia ter sido redobrado por esse motivo. Respirou fundo. Outra vez. Pelo visto, agora o molhado de sua roupa parecia ser indiferente. E queria mais que o formigamento se danasse.

– Depois vou tomar um banho de banheira – Tábita alisou as torneiras douradas. – Sempre tive vontade. Parece ser bom.

– É mãe – interrompeu Victória, não entendendo a mu-dança de comportamento. – A senhora está se sentindo bem?

– Mas é claro que estou, garota. Só preciso ficar um tempo sozinha, trocar essa roupa. Daqui a pouco, se conheço a Samara, ela vai pedir para que ajude a fazer a comida.

– Lindsay comentou comigo que ela queria fazer. Acho que esse problema você não terá, a não ser que queira ajudar.

Ao ver que a mãe não se propusera a falar nada, recolhida em sua estranha letargia, Victória recuou até as escadas e disse:

– Qualquer coisa eu estarei por aí.E subiu vagarosamente os curtos degraus para a área me-

nos claustrofóbica do quarto. Olhou as roupas da mãe, observou a aberta paisagem de tempo frio, suspirou, então saiu.

¨¨¨– Espero que gostem do jantar – disse Lindsay, pondo o últi-

mo prato sobre a longa mesa de madeira escura. O cheiro da carne assada com cebolas entrou agradavelmente pelo nariz de todos, ex-ceto da prima. Julieta tentou evitar respirar com frequência.74’

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– Parece boa – Julieta deu um sorriso muxoxo. – Espero que vocês gostem do animal morto.

Samara adquiriu um olhar de repulsa sobre o alimento e sobre a filha do Juiz.

Essa garota precisa ser tão desagradável?– Julieta, contenha seus modos – Alexandre falou próximo

ao fisioterapeuta, enquanto sentava. – Não gostar de carne é uma opção sua – olhou para Lindsay com um sorriso. – Não ligue para sua prima, o jantar parece incrível.

– Obrigada, tio. E não se preocupe, Julieta – ela apontou para algo sobre a mesa –, o pote amarelo tem três divisões. Aí tem o que precisa para acompanhar seu prato: legumes corados ao molho branco, salada viva e purê de batatas com queijo.

A garota olhou assustada.– Como teve tempo para preparar isso tudo?– Tive tempo suficiente.– Me explique uma coisa, Julieta – Samara servia-se de

porções da comida. O modo desajeitado revelava o quão des-confortável se encontrava naquela situação. Obviamente não ar-rumava seu próprio prato há anos. – Não come carne vermelha e branca... nem nada. Mas bebe leite, come queijo, ovo e outras coisas?

Organizou a salada e verificou os alimentos preparados por Lindsay antes de responder. Pareciam realmente bons.

– Creio que devemos usufruir do meio sem danificá-lo. Eu não preciso matar uma vaca para beber seu leite ou algum tipo de derivado. Isso não acontece com a lasca de carne posta em seu prato – sorriu. – Sabe, não me considero vegetariana. De modo algum. Só prefiro não ter qualquer tipo de sangue no meu estômago. Acho que o ser humano é evoluído demais para ainda ficar preso a cadáveres animalescos. Bom apetite.

Enquanto colocava na boca colheres e mais colheres de purê recheado, os outros sentados à mesa se entreolhavam na tentativa vã de compreender a ornamentação da sala de jantar. Não havia janelas ou qualquer coisa que interligasse o cômodo

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com o meio exterior. Somente uma sala ampla, muito bem de-corada, repleta de espelhos e detalhes de construção da época.

– E eu confesso, Lindsay, está incrível. Só um tapado não te contrataria.

– Valeu pelo elogio – disse em meio a um sorriso.Aos poucos, com Paulo sendo o primeiro a por um pedaço

de carne na boca, o grupo retomava o interesse pelo jantar.– Nada melhor do que um bom vinho para acompanhar o

banquete, não concorda, Samara? – insinuou Julieta, ao indicar a ausência de qualquer bebida sobre a mesa. – Sei que ninguém aqui é menor de idade.

– Claro. Como pude me esquecer! Poderia buscá-lo enquan-to termino de comer meu cadáver animalesco?

Julieta afastou a cadeira e levantou.– Claro. É só me dizer onde as garrafas ficam.– Na dispensa da cozinha tem uma entrada para a adega,

uma porta de madeira desgastada. – Tudo bem. Não demoro.Observando mais detalhes da sala de jantar, Julieta atra-

vessou o ambiente em passos calmos até ficar em frente à porta. Ao abri-la, colocou o rosto para fora, fitando o corredor extenso e estreito. A entrada da cozinha não ficava muito longe, apenas alguns poucos metros de onde estava.

Perdendo o contato visual com sua família, amigos e Sa-mara, se apressou. Não gostava de andar sozinha, não em um lugar ainda estranho para ela, mas o fato de ter deixado um pouco aquele clima carregado a fez sentir a possibilidade de res-pirar melhor, mais profundamente. E só precisava ir até a adega buscar um pouco de vinho. Será que as garrafas eram pagas por fora, como num hotel? Não sabia, e também não fazia questão de saber. Pegaria o vinho mais antigo que encontrasse. Pronto.

Abriu a porta da cozinha, tudo estava aceso, a luz refletin-do nos diversos objetos metálicos postos sobre a pia, bancada e parede. Desviou o olhar para a porta da dispensa, outrora apre-sentada pelo dono cujo nome não se lembrava mais. Felix?

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Entrou na dispensa.Sentiu o cheiro forte de comida crua e umidade. Estava um

pouco mais escuro. As paredes de pedra e o chão de madeira a faziam se sentir em outra casa, num casebre. Um casebre pútri-do, nada em comum com a classe da Mansão Morrigan. A porta escurecida da adega estava lá no final, quase imperceptível.

Seguiu lentamente, procurando um interruptor. Não que-ria estragar qualquer coisa que houvesse lá de dentro. Não lera o contrato que Samara havia assinado, mas provavelmente qual-quer peça danificada teria que ser ressarcida. E dessa vez o valor importava, pois se o pai soubesse que a filha tinha sido a causa-dora do dano, o dinheiro provavelmente sairia de sua conta. Não por desejo de Samara, mas sim pela obrigação.

Ótimo, não há luz! Como é que a merda de um imbecil aluga uma casa sem ao menos verificar a existência de luz em um cômodo? Já estressada, segurou a maçaneta e girou. O rangido agudo se in-tensificava a medida que o espaço mais escuro se revelava. Dessa vez, porém, ao levar a mão até a parede ao lado, percebeu o relevo do interruptor. A lâmpada piscou durante poucos segundos e, en-tão, se acendeu definitivamente, uma luz fraca que mal destacava as várias garrafas sobre as prateleiras emboloradas.

– Quero tinto suave – murmurou, enquanto procurava a gar-rafa certa. – Para que tanto vinho? – puxou um recipiente de forma aleatória. – Tinto seco.

Ia ser uma tarefa difícil. Havia, no mínimo, cento e cin-quenta garrafas ali. Sua comida ia esfriar. Puxou mais uma gar-rafa e suspirou entediada.

– Branco suave.A luz apagou.Como o teto era baixo, alcançava facilmente a lâmpada

pendurada no fio. Deu alguns petelecos e a claridade retomou com intensidade, machucando seus olhos. De repente, escutou algo atrás de si. Ao virar-se, só conseguiu enxergar a claridade da luz fixada em sua visão. Manchas claras que pulsavam nos olhos irritados.

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Ignorou o som e se voltou para as garrafas. Agora con-seguia ver algo. Foi novamente para as prateleiras de madeira. Segurou uma e, ao puxar, sentiu uma súbita sensação de dor na direção da palma mão. Sangue!

Tateou sobre a madeira mais uma vez. Uma ponta gelada. Provavelmente de ferro. Era um prego.

– Porcaria.Assim que o fluxo de sangue diminuiu, entrou em pânico.

Não queria qualquer resquício da ferrugem dentro dela, pode-riam causar uma infecção. Espremeu o ferimento sem pensar duas vezes, a dor foi aguda, vacilou um pouco para a frente, mas era necessário. Mais sangue brotou. Melhor dor do que tétano ou gangrena, não sabia o que vivia naquele espaço.

A fita rubra, brilhante, descia pela mão até a altura do pul-so, onde se acumulou. Formara o aglomerado de líquido espesso. Após perceber que tinha pressionado o suficiente, envolveu a mão contra a outra e fechou.

O sangue escorreu para o chão. Julieta podia jurar que es-cutara o barulho do baque enquanto analisava as outras garrafas. Mas não deu atenção.

Atitude infeliz! Se Julieta tivesse olhado para baixo, teria visto o sangue ao seu lado. Se tivesse sido prudente, teria visto o sangue começar a perder a cor. E se Julieta tivesse dado a mere-cida atenção, teria visto o sangue sendo absorvido, aos poucos, pela construção antiga.

Pois o teu medo revela a ira e o meu desejo por sangue...Um forte rangido ecoou atrás dos vinhos. Segundos após

o som estranho ter cessado, um fluido vermelho escuro escorreu por um dos espaços vazios da prateleira.

– Tem uma garrafa quebrada – sussurrou.Ela levou a mão sadia ao encontro do vinho que escorria.

Era grosso. Não parecia ser relevante, não com o tanto de poeira velha que havia na adega. Então, sentiu o cheiro de ferro.

– Não é vinho – mais filetes surgiram, se intensificaram. Ela, de imediato, se afastou das prateleiras. Recostou-se na

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parede, depois correu até a porta. Forçara-a cinco vezes... não abriu. Não funcionava. Emperrada. Agora ignorava o machu-cado, esmurrava com as duas mãos para ver se libertava a porta.

O fluxo de sangue nas prateleiras aumentava entre as gar-rafas esverdeadas. Uma poça de tamanho considerável surgira no chão encardido. Não parava de expandir seu formato disforme.

Quando tudo pareceu mais inimaginável, o desespero atin-gindo escalas que jamais imaginou possuir, ouviu um barulho, um splash. Ao olhar para a poça de sangue, percebeu um relevo. O coração disparou. Era uma mão.

Esmurrou a porta com violência.– Me tira daqui! Socorro! – gritou e se voltou para o líqui-

do no chão. As pontas dos dedos de uma nova mão começavam a emergir. O choro veio à tona.

Um braço foise esticando, até a palma da mão bater no piso. Outro splash. Agora via a força que os dois braços faziam para o resto de o corpo sair do buraco.

Julieta gritou mais uma vez. Gritou como nunca havia gritado.A cabeça emergiu, a boca aberta expeliu uma gosma escura

antes de gargalhar. Após o corpo se arrastar para fora, num pis-car de olhos, estava de pé, fitando-a.

Em estado quase catatônico, Julieta não conseguia fazer mais nada, nem ao menos desviar o olhar. O corpo vermelho deu um guincho, como um porco sendo abatido, e espremeu a cabeça da vítima contra a porta de madeira.

Enterrou, vagarosamente, os polegares nas órbitas dos olhos.

¨¨¨Julieta levantou-se aos gritos. O lençol branco, embevecido

pelo suor, gelava a pele. O frio ar da madrugada entrava pela janela aberta.

– Um sonho – sussurrou para si mesma. Não conseguia se acalmar. – Um sonho e nada mais.

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- A Ascensão da Casa dos Mortos -

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Olhou para a mão direita e viu o esparadrapo em volta da pele. Não podia ter sido real. Foi quando os flashes da noite co-meçaram a surgir. Lembrava-se de ter ido até a adega, ajeitado a luz, furado o dedo. Pegou o vinho certo, lavou o dedo na pia e retornou para a sala de jantar. Tábita, mais tarde, assim que viu o corte, preparou o curativo.

Era isso. Respirou mais uma vez, aliviada.– Foi só um sonho – tentou olhar para a janela, mas não

conseguiu, tinha medo do que encontraria.A casa deu um rangido forte. Julieta se encolheu.No quarto de Santiago, em meio à penumbra, uma figura

desconhecia velava o sono do jovem adormecido.

80’

- Lemos Milani -

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