a arte do encontro com imagens e personagens … a arte do encontro com... · intercessão de...

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A ARTE DO ENCONTRO COM IMAGENS E PERSONAGENS ESTÉTICOS ENTRE OS CORPOS QUE HABITAM O CURRÍCULO Larissa Ferreira Rodrigues - UVV Dulcimar Pereira - UVV Resumo: O presente artigo é uma composição de ideias, ações, artes de vida e educação junto a um grupo de professoras de uma escola do município de Vitória-ES, em pesquisa realizada no ano de 2013 i . Intenciona problematizar os processos de constituição da docência e do currículo escolar pelo viés da arte e da fabulação dos movimentos de aprenderensinar, a partir dos entrelaçamentos das conversas disparadas pelos usos de imagens do cinema durante processos de formação. Articula as conversas docentes com a rizomática maneira de criar conceitos dos filósofos Gilles Deleuze (1990; 2006 ), Deleuze e Félix Guattari (1995) e Rodrigo Guéron (2011) na perspectiva de pensar a escola e a intercessão de imagens constituindo os modos de ser e estar na docência. Metodologicamente, utiliza o entrelaçamento entre a cartografia e a pesquisa com os cotidianos, articulando-se às linhas que atravessam os planos de imanência da produção das práticas educativas e os planos de composição de outros movimentos para a produção de sentidos e de pensamentos não dogmáticos para os currículos. Conclui que as escolas criam seus personagens conceituais e estéticos, na tentativa de fuga do endurecimento e burocratização existentes nas relações cotidianas, compondo novas maneiras de pensar a docência em seus entrelaçamentos com a produção de currículos. Palavras-chave: Currículos. Fabulação. Docência. Entrar. Subir, descer. Ouvir, ver e conversar. Correr, parar, ser parado, ficar paralisado. Sentir, discutir, indagar. Incomodar e ficar incomodado. Velocidades, repouso. Falar e falar, calar e calar. Barulhos e silêncios, cheiros, cores, vazios. Saber e não-saber: escola. Confusão, criação. Conceitos e pessoas: personagens em aprendizagens. Inventar, roubar, viver, artistar. Câmera, fabulação: Caos-Escolas. Começamos com um jogo de palavras que povoam nossos pensamentos ao dizer da escola, da produção dos currículos e da subjetivação da docência. Somos remetidas à diversidade de linhas que, como dizem Deleuze e Parnet (1998) constituem os indivíduos e a vida porque, ao mesmo tempo, que tentam burocratizar as conversas, ações-invenções e os modos de viver-escola, também nos remetem para desconcertantes maneiras de experimentar conhecimentos-artes em seus espaçostempos. Entretanto, não encontramos somente palavras soltas, mas também jogos de forças- verdades sobre as experiências educativas que nos possibilitam indagar sobre os processos constituintes do caos-força-pensamento nas escolas. Processos que se dobram sobre as formas dogmáticas de compreender a educação na tentativa de deslizar pela lógica Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola EdUECE- Livro 1 00038

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A ARTE DO ENCONTRO COM IMAGENS E PERSONAGENS ESTÉTICOS

ENTRE OS CORPOS QUE HABITAM O CURRÍCULO Larissa Ferreira Rodrigues

- UVV

Dulcimar Pereira - UVV

Resumo: O presente artigo é uma composição de ideias, ações, artes de vida e educação

junto a um grupo de professoras de uma escola do município de Vitória-ES, em pesquisa

realizada no ano de 2013i. Intenciona problematizar os processos de constituição da

docência e do currículo escolar pelo viés da arte e da fabulação dos movimentos de

aprenderensinar, a partir dos entrelaçamentos das conversas disparadas pelos usos de

imagens do cinema durante processos de formação. Articula as conversas docentes com a

rizomática maneira de criar conceitos dos filósofos Gilles Deleuze (1990; 2006 ), Deleuze

e Félix Guattari (1995) e Rodrigo Guéron (2011) na perspectiva de pensar a escola e a

intercessão de imagens constituindo os modos de ser e estar na docência.

Metodologicamente, utiliza o entrelaçamento entre a cartografia e a pesquisa com os

cotidianos, articulando-se às linhas que atravessam os planos de imanência da produção

das práticas educativas e os planos de composição de outros movimentos para a produção

de sentidos e de pensamentos não dogmáticos para os currículos. Conclui que as escolas

criam seus personagens conceituais e estéticos, na tentativa de fuga do endurecimento e

burocratização existentes nas relações cotidianas, compondo novas maneiras de pensar a

docência em seus entrelaçamentos com a produção de currículos.

Palavras-chave: Currículos. Fabulação. Docência.

Entrar. Subir, descer. Ouvir, ver e conversar.

Correr, parar, ser parado, ficar paralisado. Sentir, discutir, indagar.

Incomodar e ficar incomodado. Velocidades, repouso.

Falar e falar, calar e calar. Barulhos e silêncios, cheiros, cores, vazios.

Saber e não-saber: escola. Confusão, criação.

Conceitos e pessoas: personagens em aprendizagens. Inventar, roubar, viver, artistar.

Câmera, fabulação:

Caos-Escolas.

Começamos com um jogo de palavras que povoam nossos pensamentos ao dizer da

escola, da produção dos currículos e da subjetivação da docência. Somos remetidas à

diversidade de linhas que, como dizem Deleuze e Parnet (1998) constituem os indivíduos e

a vida porque, ao mesmo tempo, que tentam burocratizar as conversas, ações-invenções e

os modos de viver-escola, também nos remetem para desconcertantes maneiras de

experimentar conhecimentos-artes em seus espaçostempos.

Entretanto, não encontramos somente palavras soltas, mas também jogos de forças-

verdades sobre as experiências educativas que nos possibilitam indagar sobre os processos

constituintes do caos-força-pensamento nas escolas. Processos que se dobram sobre as

formas dogmáticas de compreender a educação na tentativa de deslizar pela lógica

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moralizante “de mortificação do corpo e da linguagem” (BRITO, 2010), traçando fugas da

retidão do pensamento.

Deleuze (2006) problematiza a imagem dogmática do pensamento, dizendo que ela

acaba por construir uma ideia de erro ao buscar a pura verdade, e isso se torna um

obstáculo para o surgimento de uma filosofia da diferença e da repetição, ou seja, de uma

filosofia da potência e da afirmação da vida.

Afirmar a vida no caos-escola significa curvar a força a favor de um povo-menor,

artista, que inventa línguas, lendas, gestos, pensamentos, personagens e sentidos para

habitar e explorar as paisagens escolares. Aprendemos com Deleuze (1979) e Foucault

(1979) que transpor a linha de força é estabelecer outra relação consigo capaz de afetar

outras forças, permitindo resistir, furtar-nos e fazer a vida dobrar-se contra o poder.

Dobras estilísticas, éticas e estéticas (FOUCAULT, 1979) que inventam conceitos e

que vão além: criam personagens pelos quais os conceitos circulam e, que imanentemente,

movimentam o pensamento. Dobras de invenção, de fabulação que permitem que os

personagens sejam também estéticos, constituídos pelo plano de composição da arte.

Marques (2013, p. 20) destaca que os personagens conceituais são inventados, não

representam o filósofo e [...] não devem ser confundidos com personificações

míticas[...]Como potência é um personagem conceitual quem opera os movimentos que

descrevem o plano de imanência e povoa-o de conceitos [...] É ele quem faz viver os

conceitos. Já os personagens estéticos, são criados a partir do plano de composição da arte

e constituem a obra do artista, buscando dialogar com ela.

Fabular ganha a conotação Deleuziana de afirmar a arte como potência criadora de

outras formas de vida nas escolas. A tentativa de entender a função fabuladora perpassa

por captar o momento em que o personagem real ficciona. O processo fabulatório que está

em jogo na perspectiva deleuzina não é a apreensão de personagens reais, como por

exemplo, analisar e julgar as produções de professores e alunos, mas sim “[...] o devir da

personagem real enquanto se põe a ‘ficcionar’, quando ‘em flagrante delito de criar lendas’

(Deleuze, 1990, p. 189).

O devir das personagens permite o desenho de paisagens caóticas, que mesmo

diante a homogeinização que tenta sobrecodificar os movimentos de aprenderensinar

produzidos no encontro entre os planos de imanência e os planos de composição,

atravessam os corpos que habitam o currículo com vida e arte. Marques (2013, p.19, 20)

argumenta que Deleuze e Guattari consideram a arte e a filosofia como potências do

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pensamento. Enquanto o plano de imanência é da filosofia, o da arte é o da composição,

como afirmam os autores. Esses dois planos são criações e opõem-se à ideia de formação e

de desenvolvimento.

Nesse contexto, uma questão que se coloca é referente aos modos pelos quais nesse

encontro é possível fabular e ultrapassar as fronteiras dogmaticamente estabelecidas entre a

arte e a realidade na produção de conhecimentos nas escolas. Consideramos que a

intencionalidade deste artigo pauta-se em indagar os processos de constituição da docência

e do currículo escolar pelo viés da arte e da fabulação dos movimentos de

aprenderensinarii, a partir dos entrelaçamentos das conversas disparadas pelos usos de

imagens do cinema durante a formação continuada de professores.

Buscamos a potência metodológica de pesquisa que emerge entre os

procedimentos dos estudos com os cotidianos e da pesquisa cartográfica. Importou-nos

deslizar entre as “linhas e planos” (Deleuze e Guattari, 1995) ou “mergulhar” na rebeldia

do cotidiano escolar, (Alves e Oliveira, 2002), que produz saberesfazeres que não são

passíveis e domináveis. Acreditamos, assim como Ferraço (2008, p.27) que

[...] qualquer tentativa de pesquisa com o cotidiano só se faz possível, em meu

caso, como processo, se acontecer com as pessoas que praticam esse cotidiano

e, sobretudo, a partir de negociações com as questões que se colocam em meio

às redes tecidas.

Nesse sentido, nas redes de conversações realizadas com os professores, nos

cotidianos de uma escola de Ensino Fundamental do Município de Vitória/ES, em

processos de formação continuada com encontros que ocorriam quinzenalmente, durante 6

meses, acompanhamos os sentidos, as sensações e as experimentações feitas pelos

docentes numa concepção ética e estética. Figuras e personagens compunham as conversas

que se configuraram como blocos de sensações, de afectos e perceptos (DELEUZE, 1990),

tornando-se essenciais para compreendermos os fluxos e as intensidades dos movimentos

produzidos por essa unidade de ensino.

Conectamo-nos, então, às redes de conversações da escola que envolvem discursos,

textos, narrativas, imagens, sons, encontros, silêncios e silenciamentos (CARVALHO,

2009). Cartografamos as experiências nos desenhos que os corpos faziam em nossas

conversas porque

[...] cartografia no cotidiano escolar implica acompanhar movimentos que vão transformando a cultura da escola, fortalecendo a criação coletiva e individual,

ou seja, cartografar os “possíveis” do coletivo escolar em seu modo processual e

relacional (CARVALHO, 2008, p. 129).

Dessa maneira, nas superfícies das relações produzidas, fomos remetidas pelos e

com movimentos-câmera do cinema que emergiram com os cotidianos da escola,

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disparados nas conversas com os professores para seguir e conhecer personagens

conceituais e estéticos que entrelaçavam-se nas redes tecidas durante a pesquisa.

Uma escola en-cena

A câmera percorre os espaços da escola. Ouvimos sons. As imagens nas paredes

com as atividades das crianças ecoam as sonoridades desse momento de produção; na

quadra, ouvimos o som da bola e das cordas batendo ao chão e os movimentos dos corpos

que agitam-se; no refeitório cheiros e sabores percorrem as mesas; subimos as escadas e,

nos corredores, as professoras caminham em várias direções, traçando linhas em suas

ações: há uma aula para ministrar, um aviso para dar, uma solicitação a fazer... A escola

não para... Nem a câmera. Nas salas, as crianças realizam as atividades, cada uma a seu

tempo, e as professoras cumprem mais um dia de sua jornada de trabalho. Apaixonadas,

cansadas, satisfeitas, felizes, inquietas, surpresas... Num misto de sensações e de

provocações, sentindo e afetando-se na constituição do corpo-escola. Um caos-escola está

sendo produzido e com ele a “[...] possibilidade virtual de um mundo atual (o que

chamamos real), uma possibilidade que deseja, e tantas vezes, consegue atualizar-se,

tornando-se real” (GUERÓN, 2011, P.15)”.

A câmera segue e, em outra sala, mais vozes são ouvidas. Agora ela não só

acompanha e afeta-se pela e com a escola, mas produz afetos, agencia conversas e dispara

pensamentos com FRATiii

. As imagens do cinema entram na composição da vida escolar e,

como diz Deleuze (2007), ajudam a pensar a banalidade da vida cotidiana, já que é um

agenciamento que reúne às suas cenas “partes reais, para fazê-las produzirem enunciados

coletivos, como prefiguração do povo que falta [...]” (p. 266). As professoras, então,

colocam-se a conversar sobre o afetamento de seus corpos em meio aos modos como se

constituemiv.

[...] existe o massacre do professor da educação básica. O professor vive uma

angústia e, hoje, é ainda maior, porque o horário que é o nosso de planejamento, é a

alimentação do sistema de gestão, que é a pauta eletrônica. Nós estamos deixando de

planejar as aulas para poder alimentar o sistema, porque, na verdade, a prefeitura não

nos deu o equipamento para fazer em hora-aula. Eles não querem que faça na hora da

aula a chamada e o registro do conteúdo. Querem que você faça no horário de

planejamento. Não existe mais planejamento na educação básica.

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Outras professoras en-cenam, gesticulam concordando com a colega, “[...] as

imagens agora “falam”, [como se fossem também as do filme FRAT], interrompendo as

narrações e liberando a partir de si, descrições, pensamentos e leituras (GUÉRON, 2011, P.

22, grifo nosso)”. A câmera é afetada e capta essas expressões: contrariedade, insatisfação,

petrificações ... E as professoras-frat continuam a falar ...

Às vezes a gente tem que pegar com as pedagogas... Poxa, ela até falou assim:

“Vamos sentar e planejar”. E eu assim: “Poxa, mas vem um conselho de classe aí e eu

tenho que terminar as minhas pautas”.

As professoras denunciam os movimentos petrificantes que perseguem a

constituição da docência e os currículos escolares: os horários, as pautas, as relações com a

Secretaria de Educação.

[...] a gente teve uma formação fajuta lá – e até hoje tenho dificuldade no negócio,

mas enfim, um ajuda, outro ajuda... Na primeira reunião de pedagogo a gente foi colocar

todas as nossas ansiedades com relação ao sistema, com relação a um monte de coisas.

Eles já tinham uma pauta! Você sabe o que é as pessoas olharem para você e fazer cara de

paisagem? E no outro dia, no outro encontro, manter a mesma pauta [...].

A câmera segue e traz à cena aquilo que afeta as personagens professoras-frat e que

produz insatisfação: regulação dos horários e das tarefas. A situação-limite, dramática,

existencial das professoras que também se assemelham aos vários personagens do cinema

da imagem-tempo (DELEUZE, 1990) guia a câmera. Figuram forças niilistas que tentam

engessar, controlar o planejamento e a ação pedagógica. Entretanto, as professoras-frat em

oposição a essas forças, reagem, vão ontologicamente, produzindo outras condições de

existência para as necessidades, desejos e para o drama de ter que inventar lendas, fabular

outras histórias e sentidos para os currículos escolares. O que essas imagens movem em

nossos pensamentos para indagar sobre o que dizem as professoras? Que outras

possibilidades de composição dos currículos em meio aos engessamentos cotidianos

poderiam ser vislumbradas?

As docentes falam da pauta eletrônica, ressentem-se por não serem ouvidas e, nesse

momento, a câmera distancia-se e busca outras imagens para dialogar com elas sobre o que

dizem: o plano-montagem com as muitas vozes que ecoam é atravessado pelo plano de

composição. Assim, Deleuze (1990, p.9) indica a potência de pensar a formação docente

não só por uma imagem-movimento. Em vez de representar um real já decifrado, o neo-

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realismo visava um real, sempre ambíguo, a ser decifrado; por isso o plano-seqüência

tendia a substituir a montagem das representações.

As imagens da escola também são disruptivas: Devem outras lógicas, abrem o

campo das sensações e experiências. O foco da câmera é deslocado novamente para os

corredores e encontra uma professora que adapta o conteúdo do livro didático para a sua

turma; outra faz um jogo para suas crianças que estão com dificuldades em matemática; na

biblioteca, livros são pesquisados para o desenvolvimento de um projeto; conversas aqui,

negociações ali, e a docência vai articulando-se em processos de invenção e de fabulação

de mundos.

A fabulação, como Deleuze (2006) nos coloca a pensar, permite o contato entre o

dentro e o fora, uma intercessão entre a ficção e a realidade, ampliando as possibilidades

de aprenderensinar pela potência falsificadora, pois é “antes de tudo uma potência

criadora de mundos, de mundos habitáveis e visíveis” (PIMENTEL, 2013, P. 183).

Entendemos que apesar das petrificações a que as professoras fazem referência,

existe a potência criadora dos corpos que habitam e se encontram nos currículos e que

apresentam outras possibilidades. Rolnik (2007) destaca que somos movidas pela repulsa

ou atração nos encontros de corpos- corpos outros e os mesmos que se tornaram outros.

Linhas que se entrecruzam e, assim,

Os homens estão expostos a viver essas três linhas, em todas as suas dimensões.

É através delas que eles se expressam, se orientam. É em seu exercício que se

compõem seus territórios, com seus modos de subjetivação, seus objetos e saberes (ROLNIK, 2007, p. 53).

Essas linhas encontram-se emaranhadas. É possível estarmos em uma delas

territorializados e, de repente, em outra, desterritorializados. Moleculares, inconscientes,

invisíveis, desestabilizadoras, nômades. Molares, conscientes, visíveis, limitadas. E as

linhas de fuga que buscam outras trajetórias e outras possibilidades para habitar os

currículos.

Linhas que agenciam o foco da câmera, que ora aproxima-se, ora distancia-se. As

conversas e imagens vão assumindo cartografias que desenham e mostram, no exercício

docente, os modos de saber-fazer-conhecer-compreender-viver a profissão. As professoras-

frat se metamorfoseiam no encontro com o filme “Como Estrelas na Terra”v, compondo

com as professoras-inventoras; a potência criadora de novos mundos é agenciada pelos

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encontros da criança com a escola e sua luta por uma subjetividade a-centrada. Segundo

Deleuze (1991, p.113),

A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas formas

atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de acordo com as

exigências do poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade

sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela

subjetividade se apresenta então à diferença e direito à variação, à metamorfose.

Assim, as professoras-Frat não são apenas sujeitadas ao clichê de professor

salvacionista afirmado pelo filme “Como estrelas na terra”, mas buscam variar e

metamorfosear as redes de conversas que emergem pela força do coletivo ao se dobrar

sobre as petrificações impostas pela lógica individualizante e burocrática dos sistemas de

ensino.

Deleuze (1990), Guéron (2011) e Machado (2009) concordam que promover outras

imagens de pensamentos significa romper ou “quebrar” os clichês que tendem a manter o

pensamento preso a modelos de perfeição e de verdade, a esquemas representacionais que

excluem ou que não se encaixam na ordem recognitiva da imagem dogmática do

pensamento. Dito de outro modo, é preciso extrair dos clichês uma nova imagem de

pensamento, de formação continuada e de aprendizagem nas escolas que possibilitem uma

relação direta com o tempo.

Relação de conhecimento que viabilize o encontro da criança com um mundo

sensível, artista, envolto pela valorização de uma vida que aprende, ensina, descobre e

potencializa os saberes escolares para além do domínio da memorização, resolução

dogmática de problemas disciplinares, ao deslocar as conversas das docentes para a

necessidade de fabular a educação, pela urgência de práticas mais éticas e estéticas, mais

coletivas e inventivas.

-Eu acho que a gente tem que começar a não aceitar as questões [...].

-Tinha que acontecer algum enfrentamento [...] nós não nos mobilizamos [...] Na

verdade, somos muito covardes também. Nós somos muito covardes também, a gente

precisa se unir.

-Mas olha, a justiça... olha só, a gente está lidando contra tubarões. Por quê?

-Mas tubarões se assustam diante do coletivo(...).

Nessa cena, as personagens-professoras-Frat se enfrentam: a imagem-clichê da

professora petrificada, submissa aos sistemas educativos começa a se desfazer. Ela sofre

uma dobra na força que as colocam como impotentes diante das determinações oficiais.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

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Outras alternativas são vislumbradas com a fabulação criada para o enfrentamento dos

tubarões pelo coletivo escolar.

Deleuze e Guattari (1995) destacam que os movimentos macropolíticos e

micropolíticos estão coengendrados, o que nos permite pensar e agir por meio da

resistência ao poder instituído. Criando lendas, fabulando a vida, na qual uma

micropolítica de lutas entre tubarões e o coletivo escolar permita o surgimento de imagens-

tempo, imagens-vida, imagens-obra-arte que possibilitam a atualização de conhecimentos,

pensamentos e docências mais sensíveis, artistas e estéticas para os habitantes do currículo.

Então, as professoras se entreolham. A imagem-tempo é de desejo. Imagem-tempo

que, para Deleuze (2006) promove outra duração e criação de diferença, ao deslizar por

lógicas não dogmáticas, por um tempo puro que remete o pensamento e as ações para

outras possibilidades de docência e de aprendizagem nas escolas. Desejo que não se vê

pelo clichê professora-salvadora, corpos isolados, mas que se afeta e que se constitui num

corpo-coletivo.

Assim, a imagem da câmera não desencadeia só imagem-movimento, que como

ressalta Bergson (2006), constitui o universo material, ou seja, são imagens iluminadas e

iluminadoras, que em dobras de subjetivação constituem a matéria e o espírito, as coisas e

os pensamentos.

A mesma câmera que segue a lógica de um plano-sequência, que condiciona

olhares a ações que prendem nossa atenção e aprisionam o pensamento em uma condição

reta, guiando o acontecimento de ações nas escolas, também capta a invenção de história:

“professoras que, num corpo-coletivo, podem opor-se aos tubarões”. Não é fixada essa ou

aquela professora-heroína; as ligações são soltas, abrem um campo possível para pensar e

viver o caos-escola.

Um pouco de possível?! Cenasimagens fabuladoras de vida-educação

As professoras entreolham-se. A imagem é da surpresa do encontro de corpos que

encontram possibilidades. Não se veem isoladas, mas como corpos que afetam e que se

constituem num coletivo. Os desenhos das conversas com as professoras assumem

contornos variados. A câmera capta a imagem do corpo-coletivo que passa a compor

desenhos estéticos da escola e que rompem com a ideia imobilizadora da regulação de

tempos, horários e engessamentos. Assim, movem-se na direção de imagens que suscitam

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outros modos de compreender os sentidos pelos quais a docência é assumida por esse

coletivo.

Linhas molares, moleculares e de fuga produzindo forças e sentidos nos corpos que

se movimentam. Tessitura de encontros... Professoras-frat, professoras-inventoras

metamorfoseando-se em outras composições de escola-vida. A câmera desliza e agora

capta as imagens de “Um raio de sol através da chuva”vi. No cruzamento dos olhares

docentes atentos à tela, há aberturas. Carvalho (2013, p. 04), ao discutir o currículo entre

imagens e afecções, dialoga sobre o episódio do filme, transpondo a relação desigual de

grandezas e de poder entre criança e mundo para o campo do currículo. Segundo a autora,

“esse universo de proporções grandiosas se mantém pelo afastamento do universo infantil,

tanto pelos seus conteudospráticos, como pelo distanciamento colocado entre o mundo dos

que professam e o dos que aprendem”.

E mais conversas sobre docência e currículo.

- Na verdade eu penso que quando a gente ensina, a gente aprende também. E

quando a gente está lá, a gente está fazendo atividade com uma criança, de repente surge

uma situação que vai levar a novas aprendizagens [...]

As professoras portam em si, uma geografia de linhas (DELEUZE; PARNET,

2004), que dão abertura para fabulação de outros modos de aprenderensinar na escola.

Linhas que buscam o plano da composição, da arte: cantar músicas, produzir histórias em

quadrinhos, encenar, ser surpreendido e deixar-se surpreender pelas relações entre docentes

e discentes com as possibilidades de produção de conhecimentos.

-[...] tem horas que você tem que extravasar, deixar a criança extravasar, contar

história, contar um caso, mas ao mesmo tempo, tem horas que você tem que manter a

disciplina, porque aquilo dali tem que virar um conhecimento, um aprendizado para ele.

O que as docentes apontam é um constante deslizamento por entre o plano da

imanência que atravessa a vida com os saberes escolares, com as imposições de um

sistema capitalista classificatório, modelizante e excludente que acomete as escolas com

falta de tempo para planejamento e burocracias da gestão do ensino. No entanto, deslizar é

passar entre as coisas e ideias. É encontrar espaço para compor uma fábula. Uma relação

direta com o tempo, na qual não podemos mais separar ou entender o que são professoras-

frat, professoras-inventoras, professoras-raposas. A câmera não consegue mais

dicotomizar. Ficção e realidade são uma só, escola e arte são uma só, signos e vida são um

só: sentido.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

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Deleuze (2003), em “Proust e os signos”, destaca que a relação do pensamento com

a exterioridade se constitui em presença dos signos e que sua importância é provocar,

violentar, consciente ou inconscientemente, o pensamento a pensar e a buscar o sentido.

Essa busca em relação entre signo e sentido diz, portanto, respeito ao aprendizado.

- E citamos aqui como experiência a utilização da tecnologia para incentivar a leitura e a

escrita utilizando um software chamado HQ e utilizamos o blog educacional, que deu um

suporte legal e um incentivo muito bom aos alunos na participação, na construção, um

intercâmbio, uma discussão... HQ é um programa de construção de história em

quadrinhos, então envolve muita leitura, escrita, imagens.

- E houve uma turma que me pediu para trazer música clássica…Eu fiquei assim

“Gente, música clássica…”, aí eu tinha em casa e trouxe. E durante a aula eu colocava,

eles iam fazendo as atividades e ouvindo música. Ficava aquele ambiente gostoso, mais

calmo - são coisas que a gente vai inventando assim.

-Você lê um texto e, de repente, “Quem quer vir aqui na frente dramatizar?”, aí

você monta as cadeiras ali na frente, traz telefone velho, umas coisas doidas assim, e eles

fazem ali, outras vezes eu conto a história - digo, conto história não, já montei as cadeiras

assim ao redor da minha mesa, e trouxe um lençol para fechar dos lados e eu ficava lá por

trás falando (não me lembro nem o que era!), e eles levantavam e iam ver quem é que

estava falando! Pois sabiam que era eu! Sabiam que era eu, mas eu mudava a voz assim,

sabe? Fazia o papel de dois personagens, mudando a voz, e eles tinham que ir lá ver quem

é que estava falando. Eu achei tão engraçado isso. Sabe, umas coisas bem malucas assim

que a gente faz que tem hora que dá certo.

Aprender é compor. É produzir encontros e se constituir entre signos e sentido.

Entre leituras e escritas e músicas e dramatizações e imagens e aprendizados ... E os corpos

que habitam os currículos criam personagens conceituais, personagens-câmera que se

movem por entre os planos e linhas e criam personagens-estéticos: professoras-frat,

professoras-inventoras, professoras-raposas, que no caos-escola, produzem artisticamente e

são compostas pelos signos da arte como exercício do pensamento. Dessa maneira, como

Deleuze (2003) ressalta, permitem a descoberta de um tempo puro para a música, para a

produção de sentidos para os conteúdos expostos nos quadrinhos, na dramatização, na

invenção de outra temporalidade que transborda na contação de histórias com os

estudantes. Produção fabuladora de imagens-tempo, que operam por sensações óticas e

sonoras puras de diferença para os processos de constituição da docência e dos currículos.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

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Por uma ou várias vidas? A vida que pulsa...

A câmera desliza pelas imagens produzidas nos movimentos que a escola en-cena.

Imagens petrificantes que, a princípio pareciam imobilizar os corpos, abrem espaço a

outras que apontam possibilidades de vida e de invenção. A articulação com outras

imagens permite deslocar o pensamento para a constituição de um coletivo que cria e

fabula em suas criações.

O corpo coletivo composto pelas vozes-imagens-sons-movimentos das professoras

que mobiliza forças é constituído por essas personagens que assumem em seus fazeres

cotidianos a composição de linhas que atravessam e constituem suas práticas. Elas não se

prendem a uma única definição da docência. Elas não são “isso ou aquilo”, mas isso “isso e

aquilo e e e e ...”. Em sua constituição, são atravessadas por movimentos petrificantes,

regulatórios, ressentem-se... movimentam-se e traçam linhas que percorrem outros traçados

e apresentam modos de viver a escola e de compor seus currículos.

A câmera dá um giro e retorna aos espaços que já são outros e os mesmos

atravessados por outras linhas que entraram em sua composição. Silêncios, risos, passos,

reclamações, saltos... sons, cores, cheiros e sabores compõem essas cenas. A câmera

desliza nesse vai-e-vem recordando as imagens. Distancia-se e, enquanto desloca-se, outro

grupo coloca-se a conversar. Silêncio! Outras conversas-imagens que a escola en-cena,

ainda estão por vir, assumindo linhas de fuga, de invenção, traçados criativos e estéticos

nos desenhos cartográficos de constituição da escola em seus currículos com as

experiências das professoras.

Referências

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pela profª Drª Janete Magalhães Carvalho, apoio CNPq (Bolsa PQ).

iii FRAT é um curta-metragem produzido por estudantes da escola francesa ESMA . Imagem disponível:

http://www.itsartmag.com/features/frat/ . Acessado em 26-04-2014

v “Como estrelas na terra”, filme indiano. Imagem disponível:

http://trabalhosdaprofivani.blogspot.com.br/2012/09/como-estrelas-na-terra-toda-crianca-e.html. Acessado

em 26-04-2014. vi “Um raio de sol através da chuva” é o primeiro episódio do filme “Sonhos” de Akira Kurosawa. Imagem

disponível:http://javiuesse.wordpress.com/2012/09/11/sonhos-1990. Acessado em 26-04-2014.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

EdUECE- Livro 100049