a arte-de-pesquisar-mirian-goldenberg

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A antropóloga Mirian Goldenberg, autora de Toda mulher é meio Lei/a Dinize A outra, está diante de um novo desafio: mostrar que a pesquisa científica não se reduz a meia dúzia de regras preestabelecidas. Em A arte de _ ^_,^ pesquisar, ela ensina aos futuros pesquisadores a importância do olhar científico. Curiosidade, criatividade, disciplina e especialmente paixão são algumas exigências para o desenvolvimento de um trabalho criterioso, baseado no confronto permanente entre o desejo e a realidade possível. ISBN 85-01-04965-4 Capa: Fábio Campos Fotografia da autora: César Duarte 9 "788501"049650"

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A antropóloga Mirian Goldenberg, autora de Toda mulher

é meio Lei/a Dinize A outra, está diante de um novo

desafio: mostrar que a pesquisa científica não se reduz

a meia dúzia de regras preestabelecidas. Em A arte de

_ ̂ _,^ pesquisar, ela ensina aos futuros

pesquisadores a importância do

olhar científico. Curiosidade,

criatividade, disciplina e

especialmente paixão são algumas

exigências para o desenvolvimento

de um trabalho criterioso, baseado

no confronto permanente entre o

desejo e a realidade possível.

ISBN 85-01-04965-4

Capa: Fábio Campos

Fotografia da autora: César Duarte 9 "788501"049650"

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A arte depesquisar

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Mirian Goldenberg

A arte depesquisarComo fazer pesquisaqualitativa emCiências Sociais

8a EDIÇÃO

E D I T O R A R E C O R DRIO DE J A N E I R O • SÃO PAULO

2004

Page 4: A arte-de-pesquisar-mirian-goldenberg

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Goldenberg, MiríanG566a A arte de pesquisar: como fazer pesquisa8*ed. qualitativa em Ciências Sociais / Mirian

Goldenberg. - 8' ed. - Rio de Janeiro: Record, 2004.Inclui glossário

1. Ciências sociais - Metodologia. 2. Pesquisa- Metodologia. 3. Pesquisa social. I. Título. II.Título: Como fazer pesquisa qualitativa em CiênciasSociais.

97-0797CDD-300,18CDU-301:001.8

Copyright © 1997 by Mirian Goldenberg

Todos os direitos reservados, inclusive os de reprodução,no todo ou em pane, através de quaisquer meios.

Direitos exclusivos desta edição reservados pelaDISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000

Impresso no Brasil

ISBN 85-01-04965-4

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTALCaixa Postal 23.052Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 EDITORA AFILIADA

Dedico este livro a todos os meus alunos ealunas, que têm me ensinado a ser uma

pessoa cada vez melhor.

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"Há uma idade em que se ensina o que se sabe;mas vem em seguida outra, em que se ensina oque não se sabe: isso se chama pesquisar. Vemtalvez agora a idade de uma outra experiência,a de desaprender, de deixar trabalhar o remane-jamento imprevisível que o esquecimento im-põe à sedimentação dos saberes, das culturas,das crenças que atravessamos. Essa experiên-cia tem, creio eu, um nome ilustre e fora demoda, que ousarei tomar aqui sem complexo,na própria encruzilhada de sua etimologia:sapientia- nenhum poder, um pouco de saber,um pouco de sabedoria, e o máximo de saborpossível."

ROLAND BARTHES

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Sumário

Introdução 11

(Re)Aprendendo a Olhar 13Pesquisa Qualitativa em Ciências Sociais 16A Escola de Chicago e a Pesquisa Qualitativa 25Estudos de Caso 33 ,O Método Biográfico em Ciências Sociais 36Objetividade, Representatividade e Controle

de Bias na Pesquisa Qualitativa 44Pesquisa Qualitativa: Problemas

Teórico-Metodológicos 53Integração entre Análise Quantitativa

e Qualitativa 61Faça a Pergunta Certa! 68Formulando o Problema de Pesquisa 71Construindo o Projeto de Pesquisa 74Os Passos da Pesquisa 78

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Fichamento da Teoria 81Entrevistas e Questionários 85Pensando como um Cientista 92Análise e Relatório Final 94Algumas Palavras Finais 100

Glossário 103 Introdução

Quando inicio um curso de Metodologia de Pesquisanoto, no semblante de meus alunos, uma profunda mávontade. Costumo perguntar sobre suas experiênciasanteriores com esta disciplina e, com raríssimas exce-ções, são unânimes em afirmar que a matéria foi muitodesinteressante na faculdade. Com esta recepção, não éfácil iniciar um curso de dezenas de horas ou semanas.

Ao final do curso, no entanto, sempre encontro alu-nos entusiasmados, empolgados com seus projetos, e nãoraro com manifestações de carinho e agradecimentos.

Quero, com este livro, passar um pouco desta expe-riência prazerosa em sala de aula e também mostrarque a postura científica não é algo de apenas algunseleitos, podendo ser exercida em qualquer campo deestudo. Metodologia Científica é muito mais do que al-gumas regras de como fazer uma pesquisa. Ela auxiliaa refletir e propicia um "novo" olhar sobre o mundo:um olhar científico, curioso, indagador e criativo.

Minha primeira experiência com pesquisa científicafoi em 1978, aos 21 anos, quando ingressei no Mestradode Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio

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de Janeiro. Após dois anos e meio defendi minha disser-tação sobre "O deficiente auditivo no mundo do traba-lho: um estudo sobre a satisfação profissional". Comorientação da professora Nícia Bessa, que cobrava rela-tórios semanais, fui a primeira da turma a defender adissertação. É preciso registrar a importância dos nos-sos primeiros orientadores, que nos ensinam a pensar,ter disciplina e escrever corretamente.

A minha verdadeira formação como pesquisadora,no entanto, se iniciou dez anos depois, em 1988, quandoingressei no Programa de Pós-Graduação em Antropo-logia Social, do Museu Nacional, Universidade Federaldo Rio de Janeiro, para fazer meu doutoramento. Nesseambiente de intensas e calorosas discussões, de profes-sores e alunos brilhantes, encontrei solo fértil para co-meçar a fazer pesquisa na área das assim chamadasCiências Humanas ou Ciências Sociais. Desde então, con-tagiada pelo vírus do "olhar científico", não conseguiparar de pesquisar.

(REAPRENDENDO A OLHAR

"A ciência não corresponde a um inundo a des-crever. Ela corresponde a um mundo a construir."

Bachelard

O objetivo principal deste livro é ensinar o "olhar cien-tífico" e mostrar que a pesquisa não se reduz a certosprocedimentos metodológicos. A pesquisa científica exi-ge criatividade, disciplina, organização e modéstia, ba-seando-se no confronto permanente entre o possível eo impossível, entre o conhecimento e a ignorância.

Nenhuma pesquisa é totalmente controlável, cominício, meio e fim previsíveis. A pesquisa é um proces-so em que é impossível prever todas as etapas. O pes-quisador está sempre em estado de tensão porque sabeque seu conhecimento é parcial e limitado — o "possí-vel" para ele.

No meu entender, não existe um único modelo de

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pesquisa. Neste livro apresentarei um dos caminhospossíveis: o caminho que tenho buscado seguir. Assim,quando falo de Metodologia estou falando de um cami-nho possível para a pesquisa científica. O que determi-na como trabalhar é o problema que se quer trabalhar:só se escolhe o caminho quando se sabe aonde se querchegar.

Anteriormente as ciências se pautavam em um mo-delo quantitativo de pesquisa, em que a veracidade deum estudo era verificada pela quantidade de entrevista-dos. Muitos pesquisadores, no entanto, questionam arepresentatividade e o caráter de objetividade de que apesquisa quantitativa se revestia. E preciso encarar ofato de que, mesmo nas pesquisas quantitativas, a sub-jetividade do pesquisador está presente. Na escolha dotema, dos entrevistados, no roteiro de perguntas, na bi-bliografia consultada e na análise do material coletado,existe um autor, um sujeito que decide os passos a se-rem dados. Na pesquisa qualitativa a preocupação dopesquisador não é com a representatividade numéricado grupo pesquisado, mas com o aprofundamento da com-preensão de um grupo social, de uma organização, deuma instituição, de uma trajetória etc. Neste livro ireime deter na pesquisa qualitativa, na qual venho traba-lhando desde 1988.

É bom lembrar que nós, estudiosos brasileiros,estamos pouco acostumados ao verdadeiro debate deideias. Entendemos como ataques pessoais muitas crí-ticas que podem contribuir para o amadurecimento denosso trabalho. A socialização do pesquisador exige umexercício permanente de crítica e autocrítica. Esperoencontrar leitores-alunos dispostos a viver intensa-mente esta experiência decisiva: a de expor seus traba-lhos a uma crítica permanente.

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Este livro é, na verdade, um difícil (e espero praze-rosp) desafio: um exercício para aprender a pensar cien-tificamente, com criatividade, organização, clareza e,acima de tudo, sabor.

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PESQUISA QUALITATIVA EMCIÊNCIAS SOCIAIS

Ao se pensar nas origens da pesquisa qualitativa emciências sociais, corre-se o risco de se perder num ca-minho longo demais, que procurando as origens dasorigens não chega jamais ao fim. Poderia chegar a He-ródoto, que, descrevendo a guerra entre a Pérsia e aGrécia, se dedicou a esboçar os costumes, as vesti-mentas, as armas, os barcos, os tabus alimentares e ascerimónias religiosas dos persas e povos circunvi-zinhos.

Não pretendo fazer um caminho tão longo mas, parasituar a questão da utilização de técnicas e métodosqualitativos de pesquisa nas ciências sociais dentro deuma discussão filosófica mais ampla, acredito ser im-portante elucidar o debate entre a sociologia positivistae a sociologia compreensiva.

Os pesquisadores que adotam a abordagem quali-tativa em pesquisa se opõem ao pressuposto que defen-de um modelo único de pesquisa para todas as ciên-cias, baseado no modelo de estudo das ciências da na-

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tureza. Estes pesquisadores se recusam a legitimar seusconhecimentos por processos quantificáveis que ve-nham a se transformar em leis e explicações gerais.Afirmam que as ciências sociais têm sua especificidade,que pressupõe uma metodologia própria.

Os pesquisadores qualitativistas recusam o mode-lo positivista aplicado ao estudo da vida social. O fun-dador do positivismo, Augusto Comte (1798-1857), de-fendia a unidade de todas as ciências e a aplicação daabordagem científica na realidade social humana. Combase em critérios de abstração, complexidade e rele-vância prática, Comte estabeleceu uma hierarquia dasciências, em que a matemática ocupava o primeiro lu-gar, e a sociologia ou "física social", o último, precedi-da, em ordem decrescente, da astronomia, física, quí-mica e biologia. Para Comte, cada ciência dependia dodesenvolvimento da que a precedeu. Portanto, a socio-logia não poderia existir sem a biologia, que não pode-ria existir sem a química, e assim por diante.

Nesta perspectiva, na qual o objeto das ciênciassociais deve ser estudado tal qual o das ciências físi-cas, a pesquisa é uma atividade neutra e objetiva, quebusca descobrir regularidades ou leis, em que o pes-quisador não pode fazer julgamentos nem permitir queseus preconceitos e crenças contaminem a pesquisa.

Émile Durkheim (1858-1917), preocupado, comoComte, com a ordem na sociedade e com a primazia dasociedade sobre o indivíduo, também se posicionou afavor da unidade das ciências. Tomando "os fatos so-ciais como coisas", Durkheim defendia que o social éreal e externo ao indivíduo, ou seja, o fenómeno social,como o fenómeno físico, é independente da consciênciahumana e verificável através da experiência dos senti-dos e da observação.

Durkheim acreditava que os fatos sociais só pode-

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riam ser explicados por outros fatos sociais, e não porfatos psicológicos ou biológicos, como pretendiam al-guns pensadores de seu tempo. Defendendo a visão daciência social como neutra e objetiva, na qual sujeito eobjeto do conhecimento estão radicalmente separados,Durkheim teve uma influência decisiva para que asciências sociais tenham adotado o método científicodas ciências naturais.

Na segunda metade do século passado, alguns pen-sadores, influenciados pelo idealismo de Kant, reagi-ram criticamente ao modelo positivista de conhecimen-to aplicado às ciências sociais, acreditando que o estu-do da realidade social através de métodos de outrasciências poderia destruir a própria essência desta rea-lidade, já que esquecia a dimensão de liberdade e indi-vidualidade do ser humano.

A sociologia compreensiva, que tem suas raízes nohistoricismo alemão, distinguindo "natureza" de "cul-tura", considera necessário, para estudar os fenóme-nos sociais, um procedimento metodológico diferentedaquele utilizado nas ciências físicas e matemáticas.O filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi umdos primeiros a criticar o uso da metodologia das ciên-cias naturais pelas ciências sociais, em função da dife-rença fundamental entre os objetos de estudos das mes-mas. Nas primeiras, os cientistas lidam com objetosexternos passíveis de serem conhecidos de forma obje-tiva, enquanto nas ciências sociais lidam com emoções,valores, subjetividades. Esta diferença se traduz emdiferenças nos objetivos e nos métodos de pesquisa. ParaDilthey, os fatos sociais não são suscetíveis dequantificação, já que cada um deles tem um sentidopróprio, diferente dos demais, e isso torna necessárioque cada caso concreto seja compreendido em sua sin-gularidade. Portanto, as ciências sociais devem se preo-

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cupar com a compreensão de casos particulares e nãocom a formulação de leis generalizantes, como fazemas ciências naturais.

Por meio de dois conceitos, Dilthey diferenciou ométodo das ciências naturais — erklaren —, que buscageneralizações e a descoberta de regularidades, do dasciências sociais — verstehen —, que visa à compreen-são interpretativa das experiências dos indivíduos den-tro do contexto em que foram vivenciadas.

O maior representante da chamada sociologia com-preensiva é Max Weber (1864-1920), que se apropriouda ideia de verstehen proposta por Dilthey. Para Weber,o principal interesse da ciência social é o comporta-mento significativo dos indivíduos engajados na açãosocial, ou seja, o comportamento ao qual os indivíduosagregam significado considerando o comportamento deoutros indivíduos. Os cientistas sociais, que pesquisamos significados das ações sociais de outros indivíduose deles próprios, são sujeito e objeto de suas pesquisas.Nesta perspectiva, que se opõe à visão positivista deobjetividade e de separação radical entre sujeito e obje-to da pesquisa, é natural que cientistas sociais se inte-ressem por pesquisar aquilo que valorizam. Estes ci-entistas buscam compreender os valores, crenças, mo-tivações e sentimentos humanos, compreensão que sópode ocorrer se a ação é colocada dentro de um contex-to de significado.

Esta discussão filosófica mais geral, que diferen-cia as ciências sociais das demais ciências, contex-tualiza o surgimento e o desenvolvimento das técnicase métodos qualitativos de pesquisa social.

Frédéric Lê Play, contemporâneo de Comte, foi umdos primeiros a estudar a realidade social dentro deuma perspectiva científica que considerava a observa-ção direta, controlável e objetiva da sociedade como o

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método mais adequado à pesquisa social. Em La Refor-me Sociale en France (1864), Lê Play expõe o métododas monografias, que se caracteriza por ser uma técni-ca, ordenada e metódica, de observação direta da soci-edade. Trouxe de sua experiência de mineralogista, naqual estava habituado a colher amostras de jazidas paraserem analisadas, a preocupação de observar direta-mente e analisar sistematicamente as famílias operá-rias localizadas nos diferentes países da Europa ondepesquisou. De seus registros minuciosos e ordenadosresultou um conjunto de monografias reunidas em Lêsouvriers européens (1855).

No final do século XIX e início do século XX, osestudos dos antropólogos nas sociedades "primitivas"foram determinantes para o desenvolvimento das téc-nicas de pesquisa que permitem recolher diretamenteobservações e informações sobre a cultura nativa. Associedades estudadas diretamente por esses antropó-logos são sociedades sem escrita, longínquas, isoladas,de pequenas dimensões, com reduzida especializaçãodas atividades sociais, sendo classificadas como "sim-ples" ou "primitivas" em contraste com a organização"complexa" das sociedades dos pesquisadores.

O primeiro antropólogo a conviver com os nativosfoi o americano Lewis Henry Morgan, um dos maisexpressivos representantes do pensamento evolucio-nista. Jurista de formação, em 1851 publicou The Lea-gue of Ho-dé-no-sau-nee, or Iroquois, considerado oprimeiro tratado científico de etnografia. Mas foramos trabalhos de campo de Franz Boas, entre 1883 e1902, e, particularmente, a expedição de BronislawMalinowski às ilhas Trobriand, que consagraram aideia de que os antropólogos deveriam passar um lon-go período de tempo na sociedade que estão estudandopara encontrar e interpretar seus próprios dados, em

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vez de depender dos relatos dos viajantes, como faziamos "antropólogos de gabinete".

Nos primeiros trinta anos do século XX, o trabalhode campo passou a orientar as pesquisas antropológi-cas. Boas, um geógrafo de formação, crítico radical dosantropólogos evolucionistas, ensinou que no campotudo deveria ser anotado meticulosamente e que umcostume só tem significado se estiver relacionado aoseu contexto particular. Ensinou também o "relati-vismo cultural": o pesquisador deveria estudar as cul-turas com um mínimo de preconceitos etnocêntricos.Para Boas, o que constitui o "génio próprio" de umpovo repousa sobre as experiências individuais e, por-tanto, o objetivo do pesquisador é compreender a vidado indivíduo dentro da própria sociedade em que vive.Boas foi o grande mestre da antropologia americanana primeira metade do século XX. Formou toda umageração de antropólogos, como Ralph Linton, RuthBenedict e Margaret Mead, considerados representan-tes da antropologia cultural americana, que utilizammétodos e técnicas de pesquisa qualitativa somados amodelos conceituais próximos da psicologia e da psi-canálise1.

A primeira experiência de campo de Malinowski foiem 1914, entre os mailu na Melanésia. Impedido devoltar à Inglaterra, no início da Primeira Guerra Mun-dial, ele começou sua pesquisa nas ilhas Trobriand, de1915 a 1916, retornando em 1917 para uma estada demais um ano. Esta longa convivência com os nativosteve uma influência decisiva na inovação do método

'A expressão "culturalismo" ou "teoria culturalista da personalidade" foiempregada pela primeira vez nos anos 50 para se referir às pesquisasamericanas sobre as relações entre cultura e personalidade.

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de pesquisa antropológica. Argonauta of the WesternPacific, publicado em 1922, é um verdadeiro tratadosobre o trabalho de campo. A convivência íntima comos nativos passou a ser considerada o melhor instru-mento de que o antropólogo dispõe para compreender"de dentro" o significado das lógicas particulares ca-racterísticas de cada cultura. Malinowski demonstrouque o comportamento nativo não é irracional, mas seexplica por uma lógica própria que precisa ser desco-berta pelo pesquisador. Colocou em prática a obser-vação participante, criando um modelo do que deveser o trabalho de campo: o pesquisador, através de umaestada de longa duração, deve mergulhar profunda-mente na cultura nativa, impregnando-se da mentali-dade nativa. Deve viver, falar, pensar e sentir como osnativos.

Malinowski, considerado o pai do funcionalismo,acreditava que cada cultura tem como função a satis-fação das necessidades básicas dos indivíduos que acompõem, criando instituições capazes de responder aestas necessidades. A análise funcional consiste emanalisar todo fato social do ponto de vista das relaçõesde interdependência que ele mantém, sincronicamente,com outros fatos sociais no interior de uma totalida-de. A conduta de observação etnográfica, assim como aapresentação dos resultados sob a forma monográfica,obedecem aos pressupostos do método funcional.

Grande parte da renovação das ciências sociais sedeve às influências (diretas ou indiretas) dos métodosde pesquisa de Malinowski. Argonauta of the WesternPacific provocou uma verdadeira ruptura metodológicana antropologia priorizando a observação direta e aexperiência pessoal do pesquisador no campo.

Malinowski sugeriu três questões para o trabalho decampo: o que os nativos dizem sobre o que fazem? O que

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realmente fazem? O que pensam a respeito do que fazem?Por meio do contato íntimo com a vida nativa, exaustiva-mente registrado no diário de campo, Malinowski bus-cou as respostas destas questões preocupando-se em com-preender o ponto de vista nativo.

Para Malinowski, a antropologia era o estudo se-gundo o qual compreendendo o "primitivo" poderíamoschegar a compreender melhor a nós mesmos. A rica ex-periência de campo de Malinowski, assim como suaspropostas metodológicas, influenciaram decisivamentea aplicação de técnicas e métodos de pesquisa qualitati-va em ciências sociais.

Na década de 1970, surge nos EUA, inspirada na ideiaweberiana de que a observação dos fatos sociais deve le-var à compreensão (e não a um conjunto de leis), a antro-pologia interpretativa. Um dos principais representantesda abordagem interpretativa é Clifford Geertz, que pro-põe um modelo de análise cultural hermenêutico: o an-tropólogo deve fazer uma descrição em profundidade("descrição densa") das culturas como "textos" vividos,como "teias de significados" que devem ser interpreta-dos. De acordo com Geertz, os "textos" antropológicossão interpretações sobre as interpretações nativas, já queos nativos produzem interpretações de sua própria expe-riência. Tais textos são "ficções", no sentido de que são"construídos" (não falsos ou inventados). Esta perspec-tiva se traduz em um permanente questionamento doantropólogo a respeito dos limites de sua capacidade deconhecer o grupo que estuda e na necessidade de expor,em seu texto, suas dúvidas, perplexidades e os caminhosque levaram a sua interpretação, percebida sempre comoparcial e provisória.

Geertz inspirou a tendência atual da chamada antro-pologia reflexiva ou pós-interpretativa, que propõe umaauto-reflexão a respeito do trabalho de campo nos seus

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aspectos morais e epistemológicos. Esta antropologiaquestiona a autoridade do texto antropológico e propõeque o resultado da pesquisa não seja fruto da observaçãopura e simples, mas de um diálogo e de uma negociaçãode pontos de vista, do pesquisador e pesquisados.

A ESCOLA DE CHICAGO E APESQUISA QUALITATIVA

A Universidade de Chicago surgiu em 1892 e em 1910 oseu departamento de sociologia e antropologia tornou-seo principal centro de estudos e de pesquisas sociológicasdos EUA. Em 1930, o termo Escola de Chicago foi utili-zado pela primeira vez por Luther Bernard, em "Schoolsof sociology". Por este termo, designa-se um conjunto depesquisas realizadas, a partir da perspectiva intera-cionista, particularmente depois de 19152 na cidade deChicago. Um de seus traços marcantes é a orientaçãomultidisciplinar, envolvendo, principalmente, a sociolo-gia, a antropologia, a ciência política, a psicologia e afilosofia. O departamento de sociologia e antropologiada Universidade de Chicago esteve unido até 1929, o quesugere que as pesquisas etnográficas contribuíram paradar legitimidade às técnicas e métodos qualitativos napesquisa sociológica em grandes centros urbanos.

2Após 1935, acentuou-se o conflito entre uma sociologia quantitativista,que viria a se tornar dominante nos EUA, e a sociologia qualitativa que seproduzia na Escola de Chicago.

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Já desde o final do século XIX, o interacionismosimbólico* exercia uma profunda influência sobre asociologia de Chicago, através da presença de GeorgeHerbert Mead e do filósofo americano John Dewey.Dewey, que lecionou em Chicago de 1894 até 1904, trou-xe para o interacionismo o pragmatismo, uma filoso-fia de intervenção social que postula que o pesquisa-dor deve estar envolvido com a vida de sua cidade e seinteressar por sua transformação social.

Mead, considerado o arquiteto da perspectivainteracionista, lecionou na Universidade de Chica-go até 1931. Sua perspectiva teórica, fortementemarcada pela influência da psicologia social e deGeorg Simmel, que trouxe para a sociologia a filoso-fia de Kant, é apresentada em Mind, Self andSociety*.

Para Mead, a associação humana surge apenasquando cada indivíduo percebe a intenção dos atos dosoutros e, então, constrói sua própria resposta em fun-ção desta intenção. Tais intenções são transmitidas pormeio de gestos que se tornam simbólicos, ou seja, pas-síveis de serem interpretados. A sociedade humana sefunda em sentidos compartilhados sob a forma de com-preensões e expectativas comuns. O componente sig-nificativo de um ato acontece através do role-taking: oindivíduo deve se colocar no lugar de outro. Ao afir-mar que o indivíduo possui um self, Mead enfatiza que,da mesma forma que interage socialmente com outrosindivíduos, ele interage consigo mesmo. O self repre-

3Em 1937, Blumer criou o termo interacionismo simbólico e sistemati-zou seus pressupostos básicos em Symbolic Interactionism, Perspectiveand Method, onde discute os mais importantes aspectos da interaçãosimbólica tentando ser fiel ao pensamento de Mead.4Mead não publicou, em vida, uma obra sobre a sua teoria. Seus quatrolivros foram organizados, após a sua morte em 1931, a partir de palestras,aulas, notas e manuscritos.

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senta o outro incorporado ao indivíduo. É formado atra-vés das definições feitas por outros que servirão dereferencial para que o indivíduo possa ver a si mesmo.

Enfatizando a natureza simbólica da vida social,Mead postula que são as atividades interativas dos in-divíduos que produzem as significações sociais. Umaconsequência importante deste postulado é que o pes-quisador só pode ter acesso a esses fenómenos particu-lares, que são as produções sociais significantes dosindivíduos, quando participa do mundo que se propõeestudar. O interacionismo simbólico, ao contrário daconcepção durkheimiana que defende que as manifes-tações subjetivas não pertencem ao domínio da socio-logia, afirma que é a concepção que os indivíduos têmdo mundo social que constitui o objeto essencial dapesquisa sociológica.

O interacionismo simbólico destaca a importânciado indivíduo como intérprete do mundo que o cerca e,consequentemente, desenvolve métodos de pesquisa quepriorizam os pontos de vista dos indivíduos. Ò propó-sito destes métodos é compreender as significações queos próprios indivíduos põem em prática para construirseu mundo social. Como a realidade social só aparecesob a forma de como os indivíduos vêem este mundo, omeio mais adequado para captar a realidade é aqueleque propicia ao pesquisador ver o mundo através "dosolhos dos pesquisados".

A pesquisa da Escola de Chicago tem a marca dodesejo de produzir conhecimentos úteis para a soluçãode problemas sociais concretos que enfrentava a cida-de de Chicago. Grande parte de seus estudos refere-seaos problemas da imigração e da integração dos imi-grantes à sociedade americana, delinquência, crimi-nalidade, desemprego, pobreza, minorias e relaçõesraciais.

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Devido à sua forte preocupação empírica, uma dascontribuições mais importantes da Escola de Chicagofoi o desenvolvimento de métodos originais de pesqui-sa qualitativa: a utilização científica de documentospessoais, como cartas e diários íntimos, a exploraçãode diversas fontes documentais e o desenvolvimentodo trabalho de campo sistemático na cidade.

O estudo de W. I. Thomas e F. ZnaniecM, sobre avida social dos camponeses poloneses nos EUA, é umótimo exemplo da sociologia praticada pela Escola deChicago. The Polish Peasant in Europe and America(1918-1920) é um estudo da emigração de camponesespoloneses e dos seus problemas de assimilação nosEUA. Os dois pesquisadores reuniram dados coletadosna Polónia e nos Estados Unidos: artigos de jornaisdiários, arquivos de tribunais e de associações ameri-cano-polonesas, fichários de associações de assistên-cia social, cartas trocadas entre famílias que viviamnos Estados Unidos e na Polónia, além do longo relatoautobiográfico de um imigrante polonês.

Thomas e Znaniecki dedicaram todo um volume deThe Polish Peasant5 a uma autobiografia escrita porum imigrante polonês em Chicago. Essa autobiografiafoi cotejada com outras fontes, como cartas familia-res, jornais diários e arquivos. Aplicando um dos prin-cípios do interacionismo simbólico, os dois pesquisa-dores acreditavam que através do registro da vida deum imigrante poderiam penetrar e compreender "pordentro" o seu mundo.

Grande parte da produção da Escola de Chicago foiorientada por Robert Park, que, antes de se tornar pro-fessor de sociologia em Chicago de 1914 a 1933, foi,

*The Polish Peasant in Europe and America tem mais de 2.200 páginas,distribuídas em cinco volumes.

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durante vários anos, jornalista, atividade que influen-ciou seus métodos de pesquisa e de seus discípulos. Parkconsiderava a cidade como o laboratório de pesquisassociológicas por excelência.

Muitas pesquisas de Chicago voltaram-se para umproblema candente nos EUA: os conflitos étnicos e astensões raciais. Pesquisas sobre as comunidades deimigrantes, sobre os conflitos raciais entre brancos enegros, sobre criminalidade, desvio e delinquência ju-venil, tornaram a sociologia de Chicago famosa em todoo mundo.

Frederic Thrasher publicou, em 1923, sua tese dedoutorado sobre as gangues de Chicago. John Landescopublicou, em 1929, uma obra com uma vasta pesquisasobre a criminalidade de Chicago, a partir de históriasde vida de gângsteres. Uma das obras mais famosas daEscola de Chicago, The Jack-Roller: A delinquent boy'sown story, publicada em 1930, é baseada na história devida de um jovem delinquente de dezesseis anos, Stanley,que Clifford Shaw acompanhou durante seis anos, den-tro e fora da prisão. Logo depois, em 1931, Shaw publi-cou The natural history of a delinquent career, sobreum adolescente acusado de estupro. Em 1937, EdwinSutherland publicou um estudo, baseado no relato au-tobiográfico de um ladrão profissional, sobre sua vidacotidiana e suas diferentes práticas (roubo, estelionato,fraude, extorsão etc.). Estes estudos demonstram a pre-ocupação dos pesquisadores de Chicago em analisar osgraves problemas enfrentados pela cidade a partir doponto de vista dos indivíduos que são vistos socialmen-te como os principais responsáveis.

The Polish Peasant, em 1918-1920, inaugurou operíodo mais expressivo da sociologia qualitativa deChicago, que, em 1949, com a publicação de The ameri-can soldier, de Samuel Stouffer, deu lugar a um perío-

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do de crescente utilização de técnicas de pesquisa quan-titativa na sociologia americana. Stouffer, desde 1930,defendia a estatística ccomo um método de pesquisamais eficaz e mais científico do que a história de vidaou o estudo de caso.

Apesar da importância e originalidade das pesqui-sas qualitativas da Escola de Chicago, não se pode dei-xar de lado suas pesquisas quantitativas. Em 1929,Shaw e outros pesquisadores publicaram uma obrasobre a delinquência urbana em que recensearam cer-ca de 60 mil domicílios de "vagabundos, criminosos edelinquentes" de Chicago, para demonstrar as taxasde criminalidade em diferentes bairros.

E. Burgess, um dos nomes mais representativos daEscola de Chicago, apontava, em 1927, que os métodosda estatística e dos estudos de caso não são conílitivosmas mutuamente complementares e que a interaçãodos dois métodos poderia ser muito fecunda. Afirmavaque as comparações estatísticas poderiam sugerir pis-tas para a pesquisa feita com estudos de caso, e queestes poderiam, trazendo à luz os processos sociais,conduzir a indicadores estatísticos mais adequados.

É preciso destacar que a sociologia da Escola deChicago abriu caminhos para a sociologia como umtodo, principalmente no que diz respeito à utilizaçãode métodos e técnicas de pesquisa qualitativa. O tra-balho de campo tornou-se uma prática de pesquisa cor-rente também na sociologia e não apenas na antropo-logia. Também proporcionou vários temas de pesquisaà sociologia contemporânea e desenvolveu novas cor-rentes teóricas, como as teorias do rótulo e do desvio.Dentre os estudos mais representativos desta correnteestão os de Howard Becker e Erving Goffman. Outsi-ders: studies in the sociology of deviance (1963), deHoward Becker, sobre músicos profissionais fumantes

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de maconha, discute os processos pelos quais osdesviantes são definidos como tais pela sociedade queos cerca, mais do que pela natureza do ato que prati-cam. The Presentation ofSelfin Everyday Life (1959),de Goffman, analisa os "desempenhos teatrais" dosatores sociais em suas açóes do dia-a-dia.

A Escola de Chicago abriu caminho para correntesteóricas que, mesmo não podendo ser diretamente asso-ciadas a ela, não deixam de apresentar certa influênciade sua abordagem metodológica, como a fenomenologiasociológica e a etnometodologia. A primeira busca suafundamentação na filosofia de Husserl, que faz uma crí-tica radical ao objetivismo da ciência. O argumento deHusserl é o mesmo de W Dilthey e Max Weber: os atossociais envolvem uma propriedade—o significado — quenão está presente em outros setores do universo abarca-dos pelas ciências naturais. Proceder a uma análisefenomenológica é substituir as construções explicativaspela descrição do que se passa efetivamente do ponto devista daquele que vive a situação concreta. A fenomeno-logia quer atingir a essência dos fenómenos, ultrapas-sando suas aparências imediatas. O pensamentofenomenológico traz para o campo de estudo da socieda-de o mundo da vida cotidiana, onde o homem se situacom suas angústias e preocupações. A etnometodologiaapóia-se nos métodos fenomenológicos e hermenêuticoscom o objetivo de compreender o dia-a-dia do homem co-mum na sociedade complexa. Harold Garfínkel estabele-ceu as bases metodológicas e o quadro conceituai daetnometodologia em Studies in Ethnomethodology, pu-blicado em 1967 nos EUA. Garfínkel define sua teoriacomo uma forma de compreender a prática artesanal davida cotidiana, interpretada já numa primeira instânciapelos atores sociais. A etnometodologia procura desco-brir as práticas e representações segundo as quais as pés-

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soas negociam, cotídianamente, a sua inserção nos gru-pos A sociologia de Garfinkel repousa sobre o reconhe-cimento da capacidade reflexiva e interpretativa de todoator social. Estas duas escolas, a fenomenologia e aetnometodologia, inserem-se na tradição metodológicaqualitativa ao tentar ver o mundo através dos olhos dosatores sociais e dos sentidos que eles atribuem aos obje-tos e às ações sociais que desenvolvem. ESTUDOS DE CASO

O termo estudo de caso vem de uma tradição de pes-quisa médica e psicológica, na qual se refere a umaanálise detalhada de um caso individual que explica adinâmica e a patologia de uma doença dada. Este mé-todo supõe que se pode adquirir conhecimento do fenó-meno estudado a partir da exploração intensa de umúnico caso. Adaptado da tradição médica, o estudo decaso tornou-se uma das principais modalidades de pes-quisa qualitativa em ciências sociais. O estudo de casonão é uma técnica específica, mas uma análise holística,a mais completa possível, que considera a unidade so-cial estudada como um todo, seja um indivíduo, umafamília, uma instituição ou uma comunidade, com oobjetivo de compreendê-los em seus próprios termos6.O estudo de caso reúne o maior número de informa-ções detalhadas, por meio de diferentes técnicas de pes-quisa, com o objetivo de apreender a totalidade de uma

6Uma das dificuldades do estudo de caso decorre do fato de a totalidadepesquisada ser uma abstração científica construída em função de umproblema a ser investigado. Torna-se difícil traçar os limites do que deveou não ser pesquisado já que não existe limite inerente ou intrínseco aoobjeto.

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situação e descrever a complexidade de um caso con-creto. Através de um mergulho profundo e exaustivoem um objeto delimitado, o estudo de caso possibilita apenetração na realidade social, não conseguida pelaanálise estatística.

Diferente da "neutra" sociologia das médias esta-tísticas, em que as particularidades são removidaspara que se mostre apenas as tendências do grupo, noestudo de caso as diferenças internas e os comporta-mentos desviantes da "média" são revelados, e nãoescondidos atrás de uma suposta homogeneidade.Moacir Palmeira7 mostra que a pesquisa quantitati-va pressupõe uma padronização e se ilude com a ideiade que questões formalmente idênticas tenham o mes-mo significado para indivíduos diferentes. A observa-ção direta, diz o autor, apresenta a vantagemmetodológica de permitir um acompanhamento maisprolongado e minucioso das situações. Essa técnica,complementada pelas técnicas de entrevista em pro-fundidade, revela o significado daquelas situaçõespara os indivíduos, que sempre é mais amplo do queaquilo que aparece em um questionário padronizado.O tipo' de dados e de procedimentos de pesquisa quenormalmente se relacionam com o método de estudode caso, como a observação participante e as entrevis-tas em profundidade, têm suas origens em uma tradi-ção de pesquisa antropológica nas sociedades "pri-mitivas".

Não é possível formular regras precisas sobre astécnicas utilizadas em um estudo de caso porque cadaentrevista ou observação é única: depende do tema,do pesquisador e de seus pesquisados. Como os dados

'Moacir Palmeira. "Emprego e mudança sócio-econômica no Nordeste"em Anuário antropológico 76. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.

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não são padronizados e não existe nenhuma regra ob-jetiva que estabeleça o tempo adequado de pesquisa,um estudo de caso pode durar algumas semanas oumuitos anos. O pesquisador deve estar preparado paralidar com uma grande variedade de problemas teóri-cos e com descobertas inesperadas, e, também, parareorientar seu estudo. E muito frequente que surjamnovos problemas que não foram previstos no inícioda pesquisa e que se tornam mais relevantes do queas questões iniciais.

Uma proposta de Pierre Bourdieu é "boa para pen-sar" a utilização do estudo de caso em ciências sociais.Bourdieu, em Introdução a uma sociologia reflexiva,explica a importância da "interrogação sistemática deum caso particular" para retirar dele as propriedadesgerais ou invariantes, ocultas "debaixo das aparênciasde singularidade".

"É ele [o raciocínio analógico] que permite mer-gulharmos completamente na particularidade docaso estudado sem que nela nos afoguemos, como faza idiografia empirista, e realizarmos a intenção degeneralização, que é a própria ciência, não pela apli-cação de grandes construções formais e vazias, maspor essa maneira particular de pensar o caso par-ticular que consiste em pensá-lo verdadeiramentecomo tal. Este modo de pensamento realiza-se demaneira perfeitamente lógica pelo recurso ao méto-do comparativo, que permite pensar relacionalmenteum caso particular constituído em caso particulardo possível."8

8Pierre Bourdieu. "Introdução a uma sociologia reflexiva" em O podersimbólico. Lisboa: Difel, 1989. pp. 32-33 (grifos do autor).

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O MÉTODO BIOGRÁFICO EMCIÊNCIAS SOCIAIS

A utilização do método biográfico em ciências sociaisvem, necessariamente, acompanhada de uma discussãomais ampla sobre a questão da singularidade de um in-divíduo versus o contexto social e histórico em que estáinserido. Para Franco Ferrarotti9, por exemplo, cada vidapode ser vista como sendo, ao mesmo tempo, singular euniversal, expressão da história pessoal e social, repre-sentativa de seu tempo, seu lugar, seu grupo, síntese datensão entre a liberdade individual e o condicionamen-to dos contextos estruturais. Portanto, cada indivíduo éuma síntese individualizada e ativa de uma sociedade,uma reapropriação singular do universo social e histó-rico que o envolve. Se cada indivíduo singulariza emseus atos a universalidade de uma estrutura social, épossível "ler uma sociedade através de uma biogra-

9Franco Ferrarotti. Histoire et Histoires de Vie: lê méthode biographiquedans lês sciences sociales. Paris: Librairie dês Méridiens, 1983.

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fia", conhecer o social partindo-se da especificidadeirredutível de uma vida individual. Ou, como afirmaNorman Denzin10, inspirado em Sartre, o homem é"um singular universal".

Aspásia Camargo, ao defender a utilização do "méto-do biográfico" para estudar a elite política brasileira, lem-bra que os ganhos iniciais dos estudos de História de Vidapodem ser identificados em pesquisas sobre o comporta-mento desviante desenvolvidas pela Escola de Chicago.A autora, ao adotar a abordagem de História de Vida,concentrou-se em estudar o que chamou de inner circle,um pequeno número de pessoas que formulam e im-plementam políticas estratégicas. Para ela, reconstituirsuas Histórias de Vida é o melhor caminho para conhe-cer estes indivíduos que tomam decisões estratégicas, suasorigens, seus instrumentos para controlar e manter opoder, seus valores e interesses. Uma das dificuldadesdesta abordagem, apontada pela autora, é que se limitaàquelas pessoas que "querem falar". Para muitos mem-bros da elite, o silêncio e a discrição são a regra pois"quanto mais destacados e politicamente ativos forem osatores, mais conscientes são também do risco de conce-der informações 'verdadeiras' sobre seu próprio desem-penho ou de seus pares"11. A autora aponta como seusmelhores informantes os políticos aposentados, os exclu-ídos, os exilados, os perdedores: aqueles que, ao contrá-rio de temer o interesse do pesquisador, procuram de-nunciar injustiças, traições, corrupção e os interesses dogrupo.

10Norman K. Denzin. "Interpretando as vidas das pessoas comuns: Sartre,Heidegger e Faulkner" em Dados-Revista de Ciências Sociais, vol. 27,nfi l, 1984. p. 30."Aspásia Camargo. "Os usos da História Oral e da História de Vida: Traba-lhando com elites políticas" em Dados-Revista de Ciências Sociais, vol. 27,nfi l, 1984. p. 14.

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A autora propõe que se supere a dicotomia determi-nismo e livre-arbítrio, como princípios conflitantes queobjetivam explicar o desempenho individual e a açãosocial, para enxergar nas trajetórias singulares o re-flexo das condições históricas e culturais em que seinserem. A abordagem de História de Vida cria "umtipo especial de documento no qual a experiência pes-soal entrelaça-se à ação histórica, diluindo os antago-nismos entre subjetividade e objetividade"12. O objeti-vo é estabelecer uma clara articulação entre biografiaindividual e seu contexto histórico e social. Ao tomarcomo exemplo algumas das trajetórias mais significa-tivas da elite política dos anos 30, a autora afirma quevê, em cada uma delas, "o reflexo perfeito das condi-ções históricas e culturais do período, sem no entantoperder seu caráter singular e típico"13.

Um estudo exemplar para discutir a relação indiví-duo e sociedade a partir de uma análise de biografia é ode Norbert Elias, Mozart: sociologia de um génio1*.Esta análise é uma importante referência teórica paracompreender o que uma determinada trajetória diz so-bre o momento histórico, cultural e político em queocorreu, sobre comportamentos e valores que refleteou antecipa e as condições sociais existentes para oaparecimento de um artista singular.

Norbert Elias estuda não apenas Mozart, mas aposição que o compositor ocupou na sociedade de suaépoca, as determinações que pesaram sobre seu desti-no pessoal e os constrangimentos que sofreu no exer-cício de sua criação. O autor pensa a liberdade de cadaindivíduo inscrita numa cadeia de interdependências

12Idem, p. 16 (grifos da autora).

"Norbèrt Elias. Mozart: sociologia de um génio. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

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que o liga aos outros homens, limitando o que é possí-vel decidir ou fazer. Elias busca compreender como ohomem que se tornou o "símbolo do maior prazer mu-sical que o mundo conhece" encontrou uma morte pre-matura. Analisa os dois elementos que considera fun-damentais para explicar o curso trágico da vida deMozart: a relação com o pai e os conflitos com a aristo-cracia de corte.

Elias revela que as razões pelas quais Mozart sesentiu um fracasso só podem ser entendidas conside-rando-se o conflito existente na Áustria, e em quasetoda a Europa da segunda metade do século XVIII, en-tre os padrões de uma classe mais antiga, a aristocra-cia de corte, e os de outra, a burguesia em ascensão.Na geração de Mozart, um compositor que quisesse tersua música reconhecida e garantir a subsistência de-pendia de um cargo numa corte. Elias lembra que osmúsicos eram tão indispensáveis nos palácios dos prín-cipes quanto pasteleiros, cozinheiros e criados: tinhamo mesmo status na hierarquia da corte.

Ao apresentar o modelo das estruturas sociais emque vivia um músico no século XVIII — e a posiçãodominante dos padrões cortesãos de comportamento,sentimento, gosto musical e vestuário —, Elias de-monstra o que Mozart era capaz de fazer como indiví-duo, e o que não era capaz de fazer, apesar de sua gran-deza e singularidade. Mozart viveu o drama de um ar-tista burguês na sociedade de corte: a identificação como gosto cortesão e a vontade de ter sua música reco-nhecida pela nobreza; e o ressentimento pela humilha-ção de ser tratado como serviçal pelos aristocratas dacorte. Ao contrário do pai, nunca aceitou esta posiçãoe, consciente do valor de sua música, queria ser reco-nhecido como igual (ou superior) por quem o tratavacomo inferior.

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Norbert Elias chama a atenção para a curiosa con-tradição dos desejos dos outsiders: a tentativa de rom-per com o establishment e, ao mesmo tempo, a luta peloreconhecimento e aceitação deste establishment. Paraser um músico da corte, além de qualificações musicais,era necessário assimilar o padrão de comportamentocortesão. Mas Mozart não tinha as habilidades necessá-rias para conquistar os nobres: odiava bajulações, erafranco, direto e até rude com as pessoas de quem depen-dia. Com pouco mais de 20 anos, desistiu de seu postorelativamente seguro de regente da orquestra e orga-nista da corte de Salzburgo e foi ganhar a vida comoartista autónomo, dando aulas de música e concertospara o público vienense, vendendo seu talento e suasobras em um mercado incipiente, predominantementecomposto de aristocratas da corte.

Elias mostra que o conceito de génio é aplicado aMozart com os olhos do presente, já que esta noção sur-giu muito depois de sua morte, com o romantismo. Nasua época, era muito difícil se estabelecer como artistaautónomo e conseguir "dar rédea livre às suas fantasi-as", como Mozart desejava. Elias, analisando a mudan-ça na posição social do artista — do patronato ao mer-cado livre —, lembra que Beethoven, nascido em 1770,quase 15 anos depois de Mozart, conseguiu com muitomenos problemas libertar-se da dependência dopatronato da corte, impor seu gosto a um públicopagante e alcançar sucesso com a venda de suas compo-sições para os editores. Mozart antecipou atitudes e sen-timentos de um tipo posterior de artista: o artista livre,que confia acima de tudo em seu talento, numa épocaem que a estrutura social não oferecia tal lugar para osmúsicos. Mozart nasceu numa sociedade que não per-mitia a existência de um artista individualizado e inde-pendente, "foi um génio antes da época dos génios".

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Para Norbert Elias, o caso individual de Mozart temuma importância paradigmática: interessa a todos com-preender como surge um talento criativo singular. Nor-bert Elias lembra que a "sociologia de um génio" não éfeita para reduzir ou destruir sua fama, mas para melhorcompreender sua dimensão humana. O autor, ao forne-cer instrumentos para compreender como um indivíduose transforma, após sua morte, em "génio", permite pen-sar como indivíduos se transformam em modelos para asdemais pessoas de suas sociedades e de suas épocas. Eliasdemonstra que somente condições muito particulares deexistência (sociais, históricas, familiares e psicológicas)permitiram o reconhecimento ãa genialidade de Mozart.Sua análise contribui para questionar a visão essencia-lista que percebe o indivíduo como encarnação de um gé-nio, como algo que está contido em si próprio, inexplicável,hereditário, que vem do berço. Elias demonstra que o in-divíduo se faz por suas atividades e pelas condições quedispõe para realizá-las no contexto histórico e social emque existiu. Norbert Elias ajuda a compreender a vidanão só de Mozart, mas a trajetória de outros indivíduosconsiderados génios, revolucionários, heróis ou loucos.

Elias, um estudioso que combina sólida formaçãoem filosofia, psicologia e sociologia, mostra que o casode Mozart é "bom para pensar" a relação de um indiví-duo com o mundo em que vive e contribui para trans-formar.

Foi a partir desta perspectiva que desenvolvi mi-nha tese de doutorado sobre a trajetória de Leila Diniz,buscando entender como ela se tornou um modelo paraas pessoas de sua época. Ao tomar emprestado o títu-lo da minha tese de uma música de Rita Lee, Todamulher é meio Leila Diniz, tento demonstrar que aoanalisar a vida de Leila Diniz estou analisando, tam-bém, o "campo de possibilidades" e as questões colo-

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cadas para as mulheres de sua geração, particular-mente na cidade do Rio de Janeiro. Analiso, atravésde uma trajetória singular, as transformações dospapéis femininos ocorridos na década de 60, princi-palmente no que diz respeito à sexualidade, conju-galidade e maternidade. Inicio com a desconstruçãodo mito Leila Diniz, através de uma análise minucio-sa de cinco materiais biográficos (dois livros, doisvídeos e um filme feito sobre a vida da atriz). Inspira-da em Michael Pollak, realizei entrevistas em profun-didade com os familiares de Leila Diniz, buscandoapreender o "não-dito" no material biográfico. To-mando como referência os estudos de Pierre Bourdieu,comparei a trajetória artística de Leila Diniz com atrajetória de Cacilda Becker. Através destas duas atri-zes, discuto o campo do teatro, cinema e televisão noBrasil, do início do século até a década de 70.

Howard Becker15 tem algumas reflexões interessan-tes sobre a utilização do método biográfico nas ciên-cias sociais. Este autor considera que a principal dife-rença entre o método biográfico nas ciências sociais eas biografias e autobiografias tradicionais está na pers-pectiva a partir da qual o trabalho é realizado e nosmétodos utilizados. O pesquisador, alerta Becker, deveestar consciente do fato de que as biografias, autobio-grafias e Histórias de Vida não revelam a totalidadeda vida de um indivíduo, mas apenas uma versão sele-cionada de modo a apresentá-lo como o retrato de sique prefere mostrar aos outros, ignorando o que podeser trivial ou desagradável para ele, embora de grandeinteresse para a pesquisa.

Howard Becker enfatiza o valor das biografias, atri-

16Howard Becker. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo:Hucitec, 1994.

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buindo grande importância às interpretações que aspessoas fazem de sua própria experiência como expli-cação para o comportamento social. Defendendo a uti-lização de outras fontes, para serem cotejadas às His-tórias de Vida, Becker utiliza a imagem do mosaicopara pensar sobre este tipo de método. Para ele, cadapeça acrescentada num mosaico contribui para a com-preensão do quadro como um todo. O método biográfi-co pode acrescentar a visão do lado subjetivo dos pro-cessos institucionais estudados, como as pessoas con-cretas experimentam estes processos e levantar ques-tões sobre esta experiência mais ampla.

A utilização do método biográfico em ciências sociaisé uma maneira de revelar como as pessoas universalizam,através de suas vidas e de suas ações, a época históricaem que vivem.

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OBJETIVIDADE, REPRESENTATIVIDADEE CONTROLE DE BiAS16 NA

PESQUISA QUALITATIVA

Muitos cientistas sociais acusam a pesquisa qualitati-va de não apresentar padrões de objetividade, rigor econtrole científico, já que não possui testes adequadosde validade e fidedignidade, assim como não produzgeneralizações que visem à construção de um conjuntode leis do comportamento humano. Outra crítica dizrespeito à falta de regras de procedimento rigorosaspara guiar as atividades de coleta de dados, o que podedar margem para que o bias do pesquisador venha amodelar os dados que coleta, que, portanto, não podemser usados como evidência científica.

Cientistas sociais como Max Weber, Pierre Bour-dieu e Howard Becker acreditam ser fundamental aexplicitação de todos os passos da pesquisa para evi-

16A utilização do termo em inglês é comum entre os cientistas sociais. Podeser traduzido como viés, parcialidade, preconceito.

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tar o bias do pesquisador. Recusam a suposta neutra-lidade do pesquisador quantitativista e propõem queo pesquisador tenha consciência da interferência deseus valores na seleção e no encaminhamento do pro-blema estudado. A tarefa do pesquisador é reconhe-cer o bias para poder prevenir sua interferência nasconclusões. Para os autores citados, não existe outraforma para excluir o bias nas ciências sociais do queenfrentar as valorações introduzindo as premissasvalorativas de forma explícita nos resultados da pes-quisa.

Não podendo ser realizada a objetividade nas pes-quisas sociais, e o conhecimento objetivo e fidedignopermanecendo como o ideal da ciência, o pesquisadordeve buscar o que Pierre Bourdieu chama de objeti-vação: o esforço controlado de conter a subjetividade.Trata-se de um esforço porque não é possível realizá-lo plenamente, mas é essencial conservar-se esta meta,para não fazer do objeto construído um objeto inventa-do. A simples escolha de um objeto já significa um jul-gamento de valor na medida em que ele é privilegiadocomo mais significativo entre tantos outros sujeitos àpesquisa. O contexto da pesquisa, a orientação teóri-ca, o momento sócio-histórico, a personalidade do pes-quisador, o ethos do pesquisado, influenciam o resul-tado da pesquisa. Quanto mais o pesquisador tem cons-ciência de suas preferências pessoais mais é capaz deevitar o bias, muito mais do que aquele que trabalhacom a ilusão de ser orientado apenas por considera-ções científicas.

Wright Mills, em A imaginação sociológica17, pro-põe que o cientista social seja autoconsciente, reco-nhecendo que, necessariamente, seus valores estão

"C. Wright Mills. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.

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envolvidos na escolha dos problemas estudados e, porisso, devem ser permanentemente explicitados. E pre-cisamente quando se pretende uma objetividade ab-soluta, quando se crê ter recolhido fatos objetivos,quando se eliminam dos resultados da pesquisa to-dos os traços da implicação pessoal no objeto de es-tudo, que se corre mais o risco de se afastar da obje-tividade possível.

Howard Becker é um dos cientistas sociais que maistem se preocupado em refletir sobre a questão da obje-tividade nas ciências sociais. Para refutar a pretensaneutralidade dos surveys, Becker levanta o problema,bastante frequente, dos entrevistadores que induzemou falsificam seus dados com respostas imagináriaspara entrevistas que nunca foram realizadas. Mas se obias do pesquisador pode afetar os dados coletados empesquisas mais controladas, não afetará muito maisem pesquisas qualitativas, onde o pesquisador tem umnúmero maior de oportunidades de escolher apenas asevidências que lhe são convenientes? Os pesquisado-res qualitativos têm muito mais liberdade do que osentrevistadores de surveys e podem ter vários tipos deatitudes que vão desde sorrisos até intervenções maisdiretas. Como, então, podem ser consideradas objeti-vas as conclusões baseadas em dados que podem tersido assim coletados?

Becker lembra que o entrevistado de um survey éabordado por alguém que nunca viu antes e espera nun-ca mais ver de novo. Uma vez que ele não é constrangi-do por nada além das pressões que surgem na situaçãoimediata da entrevista, estas pressões têm grande pro-babilidade de exercer um efeito de bias sobre o que elediz. Já as pessoas que um pesquisador qualitativo es-tuda, em geral, são observadas de diferentes maneiras

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durante um longo período de tempo, o que torna maisdifícil que elas fabriquem o seu comportamento durantetoda a duração da pesquisa. A pesquisa qualitativa,através da observação participante e entrevistas emprofundidade, combate o perigo de bias, porque tornadifícil para o pesquisado a produção de dados que fun-damentem de modo uniforme uma conclusão equivo-cada, e torna difícil para o pesquisador restringir suasobservações de maneira a ver apenas o que sustentaseus preconceitos e expectativas.

Para Becker, as técnicas de pesquisa qualitativapermitem um maior controle do bias do pesquisadordo que as da pesquisa quantitativa. Por meio, porexemplo, da observação participante, por um longoperíodo de tempo, o pesquisador coleta os dados atra-vés da sua participação na vida cotidiana do grupo ouda organização que estuda, observa as pessoas paraver como se comportam, conversa para descobrir asinterpretações que têm sobre as situações que obser-vou, podendo comparar e interpretar as respostasdadas em diferentes situações. Ele terá dificuldade deignorar as informações que contrariam suas hipó-teses, do mesmo modo que as pessoas que estuda te-riam dificuldade de manipular, o tempo todo, impres-sões que podem afetar sua avaliação da situação. Ob-servações numerosas feitas durante um longo perío-do de tempo ajudam o pesquisador a se proteger con-tra seu bias, consciente ou inconsciente, contra "verapenas o que quer ver".

Becker também discute a questão do bias do pes-quisador ao tratar da hierarquia de credibilidade dosinformantes da pesquisa qualitativa. Em geral, sãoentrevistados aqueles que estão nos níveis superio-res de uma organização, que parecem "saber mais"

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sobre o problema estudado, do que aqueles que estãonos níveis inferiores. Uma das maneiras de evitar estebias é entrevistar todos os envolvidos, comparandoas versões dos superiores com as dos subordinados,evitando, conscientemente, ficar a favor de um ladoou de outro. Outra maneira de evitar o bias é assu-mir, também conscientemente, "de que lado o pesqui-sador está", explicitando esta escolha nas conclusõesda pesquisa.

Outro possível bias decorre do fato da pesquisaficar restrita aos indivíduos e organizações que per-mitam ser pesquisados, deixando de lado aqueles quese recusam a ser estudados. Este fato pode ter sériasimplicações nos resultados das pesquisas, já que aque-les que resolvem falar devem ter motivações e inte-resses bastante diversos daqueles que se recusam afalar. Mais uma vez, a única forma de tentar minimi-zar este problema é explicitando detalhadamente oslimites das escolhas feitas. Além disso, Becker enfa-tiza a necessidade de tornar explícitos os resultadosnegativos dos estudos, de mostrar as dificuldades eos (dês) caminhos percorridos pelo pesquisador atéchegar aos resultados de sua pesquisa. Em geral, ospesquisadores "escondem" as suas dificuldades emseus relatórios de pesquisa, preferindo mostrar ape-nas "o que deu certo".

Diferentemente dos dados estatísticos, que podemser resumidos em tabelas, os dados da pesquisa quali-tativa não se prestam a tal resumo. Um dos problemasda pesquisa qualitativa é que os pesquisadores geral-mente não apresentam os processos através dos quaissuas conclusões foram alcançadas. O pesquisador devetornar essas operações claras para aqueles que não par-ticiparam da pesquisa, através de uma descrição explí-

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cita e sistemática de todos os passos do processo, des-de a seleção e definição dos problemas até os resulta-dos finais pelos quais as conclusões foram alcançadase fundamentadas. Becker chama esta solução para oproblema da apresentação dos resultados da pesquisaqualitativa de "história natural" das conclusões. Seeste método for empregado, outros estudiosos serãocapazes de acompanhar os detalhes da análise e vercomo e em que bases o pesquisador chegou às suas con-clusões. Isso daria, então, a oportunidade de outros pes-quisadores fazerem seus próprios julgamentos quantoà adequação da prova e ao grau de confiança a seratribuído à conclusão.

Na discussão sobre a representatividade dos dadoscoletados através de uma pesquisa qualitativa estáembutida a questão da possibilidade (ou não) de suageneralização, a partir do modelo das ciências natu-rais que se impõe como paradigma. Nas abordagensque privilegiam a compreensão do significado dos fa-tos sociais, a questão da representatividade dos dadosé vista de forma diferente do positivismo.

Partindo do princípio de que o ato de compreenderestá ligado ao universo existencial humano, as abor-dagens qualitativas não se preocupam em fixar leis parase produzir generalizações. Os dados da pesquisa qua-litativa objetivam uma compreensão profunda de cer-tos fenómenos sociais apoiados no pressuposto da maiorrelevância do aspecto subjetivo da ação social. Contra-põem-se, assim, à incapacidade da estatística de darconta dos fenómenos complexos e da singularidade dosfenómenos que não podem ser identificados através dequestionários padronizados.

Enquanto os métodos quantitativos supõem umapopulação de objetos comparáveis, os métodos qualita-

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tivos enfatizam as particularidades de um fenómenoem termos de seu significado para o grupo pesquisado.É como um mergulho em profundidade dentro de umgrupo "bom para pensar" questões relevantes para otema estudado.

O reconhecimento da especificidade das ciênciassociais conduz à elaboração de um método que permi-ta o tratamento da subjetividade e da singularidadedos fenómenos sociais. Com estes pressupostos bási-cos, a representatividade dos dados na pesquisa qua-litativa em ciências sociais está relacionada à suacapacidade de possibilitar a compreensão do signi-ficado e a "descrição densa" dos fenómenos estuda-dos em seus contextos e não à sua expressividade nu-mérica.

A quantidade é, então, substituída pela intensida-de, pela imersão profunda—através da observação par-ticipante por um período longo de tempo, das entrevis-tas em profundidade, da análise de diferentes fontesque possam ser cruzadas — que atinge níveis de com-preensão que não podem ser alcançados através de umapesquisa quantitativa. O pesquisador qualitativo bus-cará casos exemplares que possam ser reveladores dacultura em que estão inseridos. O número de pessoas émenos importante do que a teimosia em enxergar aquestão sob várias perspectivas.

Um motivo pelo qual as pessoas se preocupam coma possibilidade de as conclusões das pesquisas qualita-tivas não serem objetivas é que os pesquisadores àsvezes surgem com conclusões bastante diferentes a res-peito de organizações ou comunidades supostamentesemelhantes. Se os métodos são objetivos, pergunta-seBecker, dois estudos do mesmo grupo não deveriamproduzir resultados semelhantes? Não, ele mesmo res-

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ponde, já que os pesquisadores podem ter se preocupa-do com questões e enfoques diferentes. A diferença deresultados indica não a falta de objetividade dos pes-quisadores mas que estavam observando coisas dife-rentes a partir de enfoques, teóricos e metodológicos,diferentes. Não se deve esperar resultados semelhan-tes e sim que estes resultados sejam compatíveis, queas conclusões de um estudo não contradigam, implíci-ta ou explicitamente, as de outro.

Seja qual for o método, qualitativo ou quantitati-vo, ele sempre dirige sua atenção apenas para certosaspectos dos fenómenos, os que parecem importantespara o pesquisador em função de suas pressuposições.A totalidade de qualquer objeto de estudo é uma cons-trução do pesquisador, definida em termos do que lheparece mais útil para responder ao seu problema depesquisa. É irreal supor que se pode ver, descrever edescobrir a relevância teórica de tudo. Na verdade, opesquisador acaba se concentrando em alguns pro-blemas específicos que lhe parecem de maior impor-tância.

Por fim, cabe assinalar as possíveis consequênci-as de uma interação de longo prazo com o objeto deestudo, em que é difícil evitar sentimentos de amiza-de, lealdade e obrigação, que podem provocar censu-ras nos resultados da pesquisa. O pesquisador, em suasconclusões, corre o risco de censurar dados conside-rados "negativos" pelo grupo, vistos como compro-metedores de sua imagem pública ou sua auto-ima-gem. Este bias pode ser evitado reproduzindo cuida-dosamente um relato completo de todos os eventosobservados, em momentos diferentes do dia ou ano,procurando membros de grupos diferentes da comu-nidade ou organização. Observar aspectos diferentes,

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sob enfoques diferentes, pode não só contribuir parareduzir o ôias da pesquisa como, também, propiciaruma compreensão mais profunda do problema es-tudado.

PESQUISA QUALITATIVA: PROBLEMASTEÓRICO-METODOLÓGICOS

Grande parte dos problemas teórico-metodológicos dapesquisa qualitativa é decorrente da tentativa de se tercomo referência, para as ciências sociais, o modelopositivista das ciências naturais, não se levando em con-ta a especificidade dos objetos de estudo das ciênciassociais. Os dados qualitativos consistem em descriçõesdetalhadas de situações com o objetivo de compreenderos indivíduos em seus próprios termos. Estes dados nãosão padronizáveis como os dados quantitativos, obri-gando o pesquisador a ter flexibilidade e criatividade nomomento de coletá-los e analisá-los. Não existindo re-gras precisas e passos a serem seguidos, o bom resulta-do da pesquisa depende da sensibilidade, intuição e ex-periência do pesquisador. Mesmo os pesquisadores queusam métodos de pesquisa qualitativa criticam a faltade regras de procedimento rigorosas para guiar as ati-vidades de coleta de dados e a ausência de reflexão teóri-ca, o que pode dar margem para que o bias do pesquisa-dor venha a modelar os dados que coleta.

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Ruth Cardoso18 apontou para a falta de uma críti-ca teórico-metodológica consistente no campo dasciências sociais e para algumas das armadilhas e li-mitações das pesquisas qualitativas. A autora descre-ve um "indisfarçado pragmatismo (muitas vezes con-fundido com politização)" que dominou as ciênciassociais contemporâneas e desqualificou o debate so-bre os compromissos teóricos que cada método exige.Eunice Durham19 concorda com esta crítica ao afir-mar que ocorreu uma politização crescente dos estu-dos em ciências sociais, com a preocupação dos pes-quisadores em descobrirem uma aplicação imediata edireta dos resultados de sua pesquisa que beneficie apopulação estudada. Sem deixar de ver como necessá-ria a identificação do pesquisador com seu objeto, por-que sem ela é impossível a compreensão "de dentro",Durham adverte para o risco de se explicar a socieda-de através das categorias "nativas", sem uma análisecientífica sobre as mesmas e sem uma reflexão teóri-ca e metodológica sobre a postura militante do cien-tista social.

Aaron Cicourel20 já havia advertido para o perigode o pesquisador ficar tão envolvido com o grupo estu-dado que poderia se tornar um "nativo", sem compre-ender as consequências desta "conversão" para os ob-jetivos da pesquisa, como, por exemplo, "tornar-se cegopara muitas questões importantes cientificamente".Cicourel aponta para as faltas de regras processuais

18Ruth C. L. Cardoso. "Aventuras de antropólogos em campo ou comoescapar das armadilhas do método" em A aventura antropológica. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1986.19Eunice R. Durham. "A pesquisa antropológica com populações urba-nas" em A aventura antropológica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.20Aaron Cicourel. "Teoria e método em pesquisa de campo" em Desven-dando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980.

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claras que definam o papel do pesquisador no campodesde o momento de sua inserção.

Mariza Peirano, em A favor da etnografia21, afir-ma que nossa tradição etnográfica se baseia no prin-cípio de que a criatividade pode superar a falta dedisciplina e a carência de um ethos científico. Não sepode, diz a autora, ensinar a fazer pesquisa de cam-po como se ensinam os métodos estatísticos, técni-cas de surveys, aplicação de questionário. A pesqui-sa qualitativa depende da biografia do pesquisador,das opções teóricas, do contexto mais amplo e dasimprevisíveis situações que ocorrem no dia-a-dia dapesquisa.

Um dos principais problemas a ser enfrentado napesquisa qualitativa diz respeito à possível conta-minação dos seus resultados em função da persona-lidade do pesquisador e de seus valores. O pesquisa-dor interfere nas respostas do grupo ou indivíduoque pesquisa. A melhor maneira de controlar estainterferência é tendo consciência de como sua pre-sença afeta o grupo e até que ponto este fato podeser minimizado ou, inclusive, analisado como dadoda pesquisa.

Maria Isaura Pereira de Queiroz enfatiza que aomissão de fatos, de ocorrências, de detalhes pode sertão significativa quanto sua inclusão nos depoimen-tos. Para a autora, o importante não é verificar se oentrevistado conhece ou não o fato, "mas sim buscarsaber por que razão ele o havia esquecido, ou o haviaocultado, ou simplesmente dele não tivera registro"22.

21Mariza Peirano. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.22Maria Isaura Pereira de Queiroz. Variações sobre a técnica de gravadorno registro da informação viva. (Col. Textos, 4). São Paulo: CERU eFFLCH/USR 1983. p. 76.

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O pesquisador deve estabelecer um difícil equilíbriopara não ir além do que pode perguntar mas, também,não ficar aquém do possível. Além disso, a memória éseletiva, a lembrança diz respeito ao passado mas seatualiza sempre a partir de um ponto do presente. Aslembranças não são falsas ou verdadeiras, simplesmen-te contam o passado através dos olhos de quem ovivenciou. Um trabalho de negociação e compromisso,como afirma Pollak, que consiste em interpretar, orde-nar ou rechaçar (temporária ou definitivamente) todaexperiência vivida de maneira a torná-la coerente comuma identidade construída: "U s'agit, en un mot,d'intégrer lê présent dans lê passe"23,

Ainda sobre as entrevistas em profundidade, é pre-ciso apontar algumas de suas inúmeras limitações edificuldades, como, por exemplo, o constrangimentoque pode causar ao pesquisado o fato de ter suas in-formações gravadas ou anotadas pelo pesquisador.Esta é uma "negociação" que deve ser feita desde logo,para minimizar o problema. O pesquisador deve ela-borar um roteiro de questões claras, simples e dire-tas, para não se perder em temas que não interessamao seu objetivo. Um problema frequente é o da con-servação do material coletado. Muitos pesquisadoresqualitativos não se preocupam com o registro minu-cioso e a conservação dos documentos ou gravações,impossibilitando que outros pesquisadores tenhamacesso aos seus dados ou que ele próprio possa retomá-los no futuro.

Existem algumas qualidades essenciais que o pes-quisador deve possuir para ter sucesso em suas en-

^Michael Pollak. "Lê Témoignage" em Actes de Ia Recherche en SciencesSociales (62-63).

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trevistas: interesse real e respeito pelos seus pesqui-sados, flexibilidade e criatividade para explorar no-vos problemas em sua pesquisa, capacidade de demons-trar compreensão e simpatia por eles, sensibilidadepara saber o momento de encerrar uma entrevista ou"sair de cena" e, como lembra Paul Thompson24, prin-cipalmente, disposição para ficar calado e ouvir.Thompson, ao analisar a situação de entrevista, afir-ma que quem não consegue parar de falar nem resis-tir à tentação de discordar do informante e de imporsuas próprias ideias, irá obter informações que sãoinúteis ou enganosas.

Howard Becker admite que, no lugar de procedi-mentos uniformes, prefere um modelo artesanal deciência, no qual cada pesquisador produz as teorias etécnicas necessárias para o trabalho que está sendofeito. Segundo Becker, os cientistas sociais podem edevem improvisar soluções para os seus problemasde pesquisa, sentindo-se livres para inventar os mé-todos capazes de responder às suas questões. Beckeralerta que a escolha das teorias que orientam a pes-quisa também está contaminada pelas preferências edificuldades do pesquisador, já que uma organizaçãoou grupo pode ser visto de muitas maneiras diferen-tes, nenhuma delas certa ou errada, visto que são al-ternativas possíveis e talvez complementares. Não épossível formular regras precisas sobre as técnicasde pesquisa qualitativa porque cada entrevista ouobservação é única: depende do tema, do pesquisadore de seus pesquisados.

A delimitação do objeto de estudo deve ser clara-

24Paul Thompson. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1992.

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mente explicitada pelo pesquisador para que outrospesquisadores analisem as conclusões obtidas. A es-colha do objeto está relacionada a um problema cen-tral deste tipo de abordagem: a questão da repre-sentatividade do caso escolhido. Ao contrário daspesquisas quantitativas, em que a representatividadese estabelece através de procedimentos claros, nãoexistem regras precisas para a escolha de um caso aser estudado de forma aprofundada pelo cientista so-cial. A exemplaridade de um indivíduo ou grupo, apossibilidade de explorar um problema em profundi-dade em uma instituição ou família, são alguns dosmotivos que levam à escolha do objeto de estudo.Esta escolha depende, fortemente, da sensibilidade eexperiência do pesquisador e não apenas de caracte-rísticas objetivas do grupo estudado. O pesquisadordeve, então, apresentar claramente as característi-cas do indivíduo, organização ou grupo, que foramdeterminantes para sua escolha, de tal forma que oleitor possa tirar suas próprias conclusões sobre osresultados e a sua possível aplicação em outros gru-pos ou indivíduos em situações similares. O pesqui-sador deve precisar as dificuldades e os limites dapesquisa, as pessoas que lhe ajudaram em sua entra-da no campo (que são determinantes para a constru-ção da identidade do pesquisador pelo grupo estuda-do), as pessoas que se recusaram a dar entrevistas,as perguntas que não foram respondidas pelospesquisados, as contradições apresentadas, a (in)con-sistência das respostas, possibilitando uma visãoampla do estudo, e não apenas dos aspectos que "de-ram certo".

Um dos principais problemas da pesquisa qualita-tiva está relacionado à certeza do próprio pesquisador

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com relação aos seus dados. A sensação de dominarprofundamente o seu objeto de estudo o faz esquecerque somente uma parte bem reduzida da totalidade estárepresentada nos dados. A consequência é a possibili-dade de tentar generalizar dados que se baseiam emanálises de determinados casos particulares. O pesqui-sador corre o risco de usar mais suas intuições do queum quadro de referência teórico apropriado para ana-lisar seus dados.

O fato de ter uma convivência profunda com o gru-po estudado pode contribuir para que o pesquisador "na-turalize" determinadas práticas e comportamentos quedeveria "estranhar" para compreender. Malinowski cha-ma atenção para a "explosão de significados" no mo-mento de entrada no campo, em que cada fato observadona cultura nativa é significativo para o pesquisador. Oolhar que "estranha", em um primeiro momento, passaa "naturalizar" em seguida e torna-se "cego" para da-dos valiosos.

E comum que pesquisadores se vejam em situaçõesdelicadas com o indivíduo ou grupo pesquisado queextrapolam os limites da pesquisa, como pedido de di-nheiro ou de favores, convites inapropriados, telefone-mas após o término da pesquisa etc. Todos estes pro-blemas, decorrentes do envolvimento intenso com o ob-jeto de estudo, precisam ser administrados pelo pes-quisador de tal forma que sua pesquisa não fique com-prometida. Quanto mais intensa a relação, maior a ne-cessidade de um "distanciamento" do pesquisador, quetorne possível que ele reflita sobre cada dificuldade que,com certeza, terá de enfrentar. A questão do relaciona-mento entre pesquisador e objeto, da possível depen-dência ou disputa de poder, é um dos maiores proble-mas que devem ser enfrentados. Como não existem ré-

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gras claras, cada pesquisador deve ter bom senso ecriatividade para encaminhar as soluções para cadasituação. Á experiência e a maturidade do pesquisadorsão fatores determinantes para que a pesquisa seja bem-sucedida.

INTEGRAÇÃO ENTRE ANÁLISEQUANTITATIVA E QUALITATIVA

Muitos pesquisadores que utilizam métodos de pes-quisa qualitativos consideram que os surveys ser-vem apenas para dar legitimidade ao senso comum,visto que não contribuem para a compreensão dosfenómenos sociais. Para estes cientistas sociais, osmétodos quantitativos simplificam a vida social li-mitando-a aos fenómenos que podem ser enumera-dos. Afirmam que as abordagens quantitativas sa-crificam a compreensão do significado em troca dorigor matemático.

Max Weber acreditava que se podia tirar provei-to da quantificação na sociologia, desde que estemétodo se mostrasse fértil para a compreensão deum determinado problema, e não obscurecesse a sin-gularidade dos fenómenos que não poderia ser cap-tada através da generalização. Como nenhum pés-

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quisador tem condições para produzir um conheci-mento completo da realidade, diferentes abordagensde pesquisa podem projetar luz sobre diferentes ques-tões. É o conjunto de diferentes pontos de vista, ediferentes maneiras de coletar e analisar os dados(qualitativa e quantitativamente), que permite umaideia mais ampla e inteligível da complexidade de umproblema.

A integração da pesquisa quantitativa e qualita-tiva permite que o pesquisador faça um cruzamentode suas conclusões de modo a ter maior confiança queseus dados não são produto de um procedimento es-pecífico ou de alguma situação particular. Ele não selimita ao que pode ser coletado em uma entrevista:pode entrevistar repetidamente, pode aplicar questio-nários, pode investigar diferentes questões em dife-rentes ocasiões, pode utilizar fontes documentais edados estatísticos.

A maior parte dos pesquisadores em ciências so-ciais admite, atualmente, que não há uma única técni-ca, um único meio válido de coletar os dados em todasas pesquisas. Acreditam que há uma interdependênciaentre os aspectos quantificáveis e a vivência da reali-dade objetiva no cotidiano. A escolha de trabalhar comdados estatísticos ou com um único grupo ou indiví-duo, ou com ambos, depende das questões levantadas edos problemas que se quer responder. É o processo dapesquisa que qualifica as técnicas e os procedimentosnecessários para as respostas que se quer alcançar. Cadapesquisador deve estabelecer os procedimentos de co-leta de dados que sejam mais adequados para o seu ob-jeto particular. O importante é ser criativo e flexívelpara explorar todos os possíveis caminhos e não reificar

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a ideia positivista de que os dados qualitativos com-prometem a objetividade, a neutralidade e o rigor cien-tífico.

A combinação de metodologias diversas no estu-do do mesmo fenómeno, conhecida como trian-gulação25, tem por objetivo abranger a máxima am-plitude na descrição, explicação e compreensão doobjeto de estudo. Parte de princípios que sustentamque é impossível conceber a existência isolada de umfenómeno social. Enquanto os métodos quantitati-vos pressupõem uma população de objetos de estudocomparáveis, que fornecerá dados que podem sergeneralizáveis, os métodos qualitativos poderão ob-servar, diretamente, como cada indivíduo, grupo ouinstituição experimenta, concretamente, a realida-de pesquisada. A pesquisa qualitativa é útil paraidentificar conceitos e variáveis relevantes de situa-ções que podem ser estudadas quantitativamente. Éinegável a riqueza que pode ser explorar os casosdesviantes da "média" que ficam obscurecidos nosrelatórios estatísticos. Também é evidente o valorda pesquisa qualitativa para estudar questões difí-ceis de quantificar, como sentimentos, motivações,crenças e atitudes individuais. A premissa básica daintegração repousa na ideia de que os limites de ummétodo poderão ser contrabalançados pelo alcancede outro. Os métodos qualitativos e quantitativos,nesta perspectiva, deixam de ser percebidos comoopostos para serem vistos como complementares.

Um exemplo de integração de observação partici-

^Triangulação é uma metáfora tomada emprestada da estratégia militare da navegação, que se utilizam de múltiplos pontos de referência paralocalizar a posição exata de um objeto.

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pante e survey é o estudo de Neuma Aguiar26 no" Cariri,uma região no sul do Ceará, sobre os modos de orga-nização social da produção na transformação de trêstipos de matéria-prima. A pesquisadora procurou ob-servar as atividades envolvidas na produção do mi-lho, do barro e da mandioca, assim como as represen-tações ocupacionais elaboradas pelos próprios traba-lhadores. Aguiar afirma que os dados da observaçãoparticipante são profundos "na medida em que atin-gem níveis de compreensão dos fatos sociais não al-cançados pelos surveys". Por outro lado, os dados dossurveys atingem um nível de mensuração que a ob-servação participante não pode atingir. A autora pro-põe que um modo de superar a dificuldade de genera-lização dos dados qualitativos e a dificuldade de in-terpretação das correlações alcançadas pelos surveysé tentar integrar os dois métodos. Para aumentar avariabilidade dos dados de forma a situar o fenómenoestudado em um contexto mais abrangente, propõe queas categorias relevantes, selecionadas através do pro-cesso de observação participante, sejam empregadasde modo amplo e sistemático com a utilização do ques-tionário. Durante seis meses, a autora estudou, atra-vés da observação participante, duas indústrias deprodutos cerâmicos e duas indústrias de farinha demilho. Também recolheu, por meio de entrevistas edocumentos, dados sobre uma fábrica de fécula demandioca que havia fechado. Foram aplicados, depoisdisso, 250 questionários.

A autora afirma que a generalização não é o únicoobjetivo de sua pesquisa, e que a observação partici-

26Neuma Aguiar. "Observação participante e 'survey': uma experiência deconjugação" em A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

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pante foi de fundamental importância para exploraro tema e levantar hipóteses, para questionar as cate-gorias de seu vocabulário (que não foram compreen-didas pelos trabalhadores), para especificar os con-ceitos e as perguntas de seus questionários. Aguiardemonstra que a combinação do survey com a obser-vação participante possibilitou ir além das generali-zações sobre o processo de industrialização na região,e permitiu a compreensão das representações dos tra-balhadores sobre suas atividades.

Outro exemplo de integração de dados qualitati-vos e quantitativos é a minha pesquisa sobre aman-tes de homens casados. Fiz entrevistas em profundi-dade com oito mulheres que viveram a situação deamantes, em um primeiro estudo. Em seguida, entre-vistei nove homens casados que refletiram sobre assuas experiências extraconjugais. Por fim, realizei umestudo de caso, em que entrevistei o homem casado,sua amante e toda a sua família (pai, mãe, duas irmãse um irmão)27. Além destes dados qualitativos, foramfundamentais para as minhas conclusões as análisesdemográficas feitas por Elza Berquó, a partir dos da-dos do censo de 1980.

Berquó percebeu que, entre a população com maisde 65 anos, somente 32% das mulheres estavam casa-das enquanto 76% dos homens estavam casados. Amaior mortalidade dos homens — e também o fato dohomem brasileiro casar com mulheres mais jovens queele — gera este desequilíbrio. "As mulheres têm até os30 anos, no máximo, chances iguais às dos homens."28

27Mirian Goldenberg. A outra. Rio de Janeiro: Record, 1997.28Elza Berquó. "A família no século XXI" em Ciência Hoje. Vol. 10, n9 58,outubro 1989, p. 64.

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Berquó levanta a hipótese de que no Brasil esteja exis-tindo uma poligamia disfarçada, já que as mulheressem possibilidades de casamento acabam se unindo ahomens casados.

Neste caso, apenas para ilustrar, os dados quanti-tativos revelam uma realidade demográfica e as en-trevistas em profundidade retratam como cada mulhervivência esta situação. É interessante como minhasentrevistadas se queixam que "falta homem no merca-do", constatação que pode ser facilmente verificadapelos dados do censo.

Os dados do IBGE sobre idade, sexo e estado civilforam usados para pensar situações complexas, não-quantificáveis, como a situação de ser amante de umhomem casado. Estes dados ajudaram a interpretar odiscurso e a compreender a situação de uma forma maisampla. Interpretados à luz da minha questão, concluoque as mulheres têm menos chances de casar e estapode ser uma possível explicação para a situação daamante. Sem os dados do IBGE, poderia me restringiràs explicações dos pesquisados: a ideia de que o fato deser amante deve corresponder a um tipo determinadode personalidade de mulher "que não se valoriza" ouque "não quer compromisso". A integração dos dadosquantitativos e qualitativos permite verificar a tensãoexistente entre a "escolha individual" e o "campo depossibilidades" das mulheres que são amantes de ho-mens casados.

Creio que demonstro, através de uma análise con-creta, que a integração de dados quantitativos e qua-litativos pode proporcionar uma melhor compreen-são do problema estudado. Na verdade, o conflito en-tre pesquisa qualitativa e quantitativa é muito ar-

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tificial. Arrisco afirmar que cada vez mais os pes-quisadores estão descobrindo que o bom pesquisa-dor deve lançar mão de todos os recursos disponí-veis que possam auxiliar à compreensão do proble-ma estudado.

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FAÇA A PERGUNTA CERTA!

Agora, depois dessa discussão mais teórica, vamos co-locar a mão na massa e aprender a construir um prqje-to de pesquisa. Proponho ao leitor que leia os próxi-mos capítulos pensando em um tema de pesquisa queverdadeiramente o interesse, em qualquer área de co-nhecimento, e tente transformá-lo em um objeto cien-tífico de estudo.

Fazer uma pesquisa significa aprender a pôr ordemnas próprias ideias. Não importa tanto o tema escolhi-do mas a experiência de trabalho de pesquisa. Traba-lhando-se bem não existe tema que seja tolo ou poucoimportante. A pesquisa deve ser entendida como umaocasião única para fazer alguns exercícios que servi-rão por toda a vida. O trabalho de pesquisa deve serinstigante, mesmo que o objeto não pareça ser tão in-teressante. O que o verdadeiro pesquisador busca é ojogo criativo de aprender como pensar e olhar cientifi-camente.

Qualquer tema ou assunto da atualidade pode serobjeto de uma pesquisa científica. É preciso ter estu-

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dado muito, ter uma sólida bagagem teórica, ter muitaexperiência de pesquisa para enxergar o que outros nãoconseguem ver. O pesquisador experiente descobre as-suntos que podem parecer banais e os transforma empesquisas fecundas.

O desejo de reconhecimento não só leva o cientista acomunicar os seus resultados, mas também o influen-cia na escolha de temas e métodos que tornem seu tra-balho mais aceitável pelos seus pares. Quanto maior aconsciência de suas motivações, mais o pesquisador écapaz de evitar os desvios (ou bias) próprios daquelesque trabalham com a ilusão de serem orientados ape-nas por propósitos científicos.

Existe uma hierarquia de legitimidade dentro docampo científico traçada de acordo com os temas quedão prestígio, recursos para a pesquisa, cargos univer-sitários, publicações em editoras prestigiadas etc. As-sim, falar de "liberdade de escolha" neste campo édesconsiderar as pressões (evidentes ou sutis) às quaiso pesquisador permanentemente se submete. Tendoconsciência de tais pressões, muitas contradições e di-ficuldades podem ser mais bem compreendidas na es-colha de um assunto e na sua formulação como umprojeto de pesquisa.

Nesse jogo ou nessa "arte" de fazer pesquisa, o jo-gador precisa ter alguns atributos para poder entrarno campo científico. Alguns podem ser vistos como in-ternos, atributos pessoais que devem fazer parte doindivíduo que quer ser um pesquisador. Cito, entre eles:ética, curiosidade, interesse real, empatia, paciência,paixão, equilíbrio, humildade, flexibilidade, iniciativa,disciplina, clareza, objetividade, criatividade, concen-tração, delicadeza, respeito ao entrevistado, facilidadepara conversar com outras pessoas, tranquilidade eorganização. Outras qualidades chamarei de externas,

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porque dependem da formação científica do pesquisa-dor. São elas: bom domínio da teoria, escrever bem, re-lacionar dados empíricos com a teoria, domínio dastécnicas de pesquisa, experiência com pesquisa.

As principais etapas da pesquisa científica envol-vem a concepção de um tema de estudo, a coleta de da-dos, a apresentação de um relatório com os resultadose, em alguns casos, a aplicação dos resultados. Doispassos são necessários para o início da tarefa: a for-mulação do problema e a elaboração do projeto de pes-quisa.

i:.,

FORMULANDO o PROBLEMADE PESQUISA

"Frequentemente, a formulação de um problemaé mais essencial que sua solução."

Einstein

Como formular um problema específico que possa serpesquisado por processos científicos?

O primeiro passo é tornar o problema concreto eexplícito através:

• da imersão sistemática no assunto;• do estudo da literatura existente;• da discussão com pessoas que acumularam ex-

periência prática no campo de estudo.

A boa resposta depende da boa pergunta! O pesqui-sador deve estar consciente da importância da pergun-

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ta que faz e deve saber colocar as questões necessáriaspara o sucesso de sua pesquisa.

O pesquisador ao escolher seu objeto de estudo devepensar:

1. como identificar um tema preciso (recorte doobjeto);

2. como escolher e organizar o tempo de trabalho;3. como realizar a pesquisa bibliográfica (revisão

da literatura);4. como organizar e analisar o material selecionado;5. como fazer com que o leitor compreenda o seu

estudo e possa recorrer à mesma documentaçãocaso retome a pesquisa.

Para tanto, o objeto de estudo deve responder aosinteresses do pesquisador e ter as fontes de consultaacessíveis e de fácil manuseio. Quanto mais se recorta otema, com mais segurança e criatividade se trabalha.

O estudo científico deve ser claro, interessante eobjetivo, tanto para as pessoas familiarizadas com oassunto quanto para as que não são. A maior parte doscientistas se perde em parágrafos herméticos que mui-tas vezes não são compreendidos nem pelos seus pares.O verdadeiro pesquisador não precisa utilizar termosobscuros para parecer profundo. A profundidade e se-riedade do estudo pode ser mais bem percebida se o pes-quisador utiliza uma linguagem compreensível para omaior número de leitores.

A pesquisa apresenta diferentes fases. A fase ini-cial, que pode ser chamada de exploratória, lembra uma"paquera" de dois adolescentes. É o momento em quese tenta descobrir algo sobre o objeto de desejo, quemmais escreveu (ou se interessou) sobre ele, como po-deria haver uma aproximação, qual a melhor aborda-

A Arte de Pesquisar / 73

gem dentre todas as possíveis para conquistar esteobjeto. Em seguida, vem a fase que equivale ao "na-moro", uma fase de maior compromisso que exige umconhecimento mais profundo, uma dedicação quaseque exclusiva ao objeto de paixão. É a fase de elabora-ção do projeto de pesquisa em que o estudioso mergu-lha profundamente no tema estudado. A terceira faseé o "casamento", em que a pesquisa exige fidelidade,dedicação, atenção ao seu cotidiano, que é feito de al-tos e baixos. O pesquisador deve resolver todos osproblemas que vão aparecendo, desde os mais simples(como se vestir para realizar as entrevistas) até osmais cruciais (como garantir a verba para a execuçãoda pesquisa). Por último, a fase de "separação", emque o pesquisador precisa se distanciar do seu objetopara escrever o relatório final da pesquisa. É o mo-mento em que é necessário olhar o mais criticamentepossível o objeto estudado, em que é preciso fazer rup-turas, sugerir novas pesquisas. É o momento de veros defeitos e qualidades do objeto amado.

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CONSTRUINDO o PROJETODE PESQUISA

"Uma aranha executa operações semelhantes àsdo tecelão, e a abelha supera mais de um arqui-teto ao construir sua colmeia. Mas o que distin-gue o pior arquiteto da melhor abelha é que elefigura na mente sua construção antes de trans-formá-la em realidade. No fim do processo dotrabalho aparece um resultado que já existia antesidealmente na imaginação do trabalhador."

Karl Marx

A construção do projeto de pesquisa é uma etapa im-portante e delicada da pesquisa científica. É a partirdeste projeto que se delimita o problema que será estu-dado. É o que se chama de recorte do objeto, pôr ordemnas próprias ideias, sistematizar as questões que se-rão estudadas. O pesquisador deve ser objetivo e rigo-

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roso ao transformar suas boas ideias em um projeto depesquisa.

A formulação de um projeto de pesquisa passa porvárias etapas:

1. o problema que exige respostas deve ser delimi-tado dentro de um campo de estudo;

2. a tarefa de pesquisa precisa ser reduzida ao queé possível ser realizado pelo pesquisador;

3. é preciso evitar que a coleta de dados seja feita deforma a favorecer uma determinada resposta;

4. é preciso definir os conceitos que serão usados;5. é necessário prever as etapas do processo de pes-

quisa, mesmo sabendo-se que elas poderão serreformuladas.

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SUGESTÃO PARA UM PROJETO DE PESQUISA

CAPA

1. INSTITUIÇÃO (local onde será desenvolvida a pesquisa)2. TÍTULO3. SUBTÍTULO4. NOME DO PESQUISADOR5. MÊS E ANO

I. INTRODUÇÃO

1. Objetivo Geral (questão principal da pesquisa, proble-ma a ser resolvido) (o quê?principal)

2. Objetivos Específicos (questões secundárias a serem res-pondidas, relacionadas à questão principal) (os quês?secundários)

3. Objeto (indivíduo, grupo ou instituição pesquisada)(quem? onde?)

H. JUSTIFICATIVA (importância do tema proposto; mo-tivação individual, profissional, social e teórica para esco-lher o tema) (por quê?)

III. HIPÓTESES DE TRABALHO (algo provável, ante-cipa algo que será ou não confirmado) (eu acredito que)

IV. DISCUSSÃO TEÓRICA (contextualizar o tema den-tro do debate teórico existente; principais conceitos e cate-gorias; estudos precedentes: diálogo com os autores) (apar-tir de quem?)

V. METODOLOGIA (caminhos possíveis, instrumentos efontes de pesquisa) (como?)

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VI. CRONOGRAMA (quanto tempo ?)

Por exemplo:Etapa I: revisão da bibliografiaEtapa II: construção dos instrumentos de pesquisaEtapa El: entrevistasEtapa IV: análise do material coletadoEtapa V: redação do trabalho final

meses

etapas

I

n

m

IV

v

1 2 3 4 5 6 7 8 9 1 0 U 1 2

X X X

x

x x x x

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VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (livros e ar-tigos citados)

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Os PASSOS DA PESQUISA

"A pesquisa é talvez a arte de se criar dificulda-des fecundas e de criá-las para os outros. Noslugares onde havia coisas simples, faz-se apare-cer problemas."

Pierre Bourdieu

O início da pesquisa depende da escolha do tema deestudo; da delimitação do problema; da definição doobjeto a ser pesquisado e dos objetivos a serem atingi-dos; da construção do referencial teórico; da formula-ção de hipóteses e da elaboração dos instrumentos decoleta de dados.

Com relação ao tema de estudo, vale lembrar mais

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uma vez que a escolha de um assunto não surge es-pontaneamente, mas decorre de interesses e circuns-tâncias socialmente condicionadas. Essa escolha é fru-to de determinada inserção do pesquisador na socieda-de. O olhar sobre o objeto está condicionado historica-mente pela posição social do cientista e pelas corren-tes de pensamento existentes.

A pesquisa científica requer flexibilidade, capa-cidade de observação e de interação com os pesqui-sados. Seus instrumentos devem ser corrigidos eadaptados durante todo o processo de trabalho, vi-sando aos objetivos da pesquisa. No entanto, não sepode iniciar uma pesquisa sem se prever os passosque deverão ser dados.

Um dos primeiros passos do pesquisador é o de de-finir alguns conceitos fundamentais para construir oquadro teórico da pesquisa. Toda construção teórica éum sistema cujos eixos são os conceitos, unidades designificação que definem a forma e o conteúdo de umateoria. Categorias são os conceitos mais importantesdentro de uma teoria.

Em seguida, o pesquisador deverá estabelecer ashipóteses de seu estudo. Hipóteses são afirmações pro-visórias a respeito de determinado fenómeno em estu-do. Uma hipótese é uma suposição duvidosa, algo pro-vável, que poderá ser posteriormente confirmada ourejeitada. É necessário que as hipóteses sejam claras,estejam relacionadas com os fenómenos concretos quese pretende estudar e com a teoria. As hipóteses podemser criadas a partir dos resultados de outros estudosou de um conjunto de teoria.

Qualquer pesquisa está situada dentro de um qua-dro de preocupações teóricas. A leitura da bibliografiadeve ser um exercício de crítica, na qual devem ser dês-

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tacadas as categorias centrais usadas pelos diferentesautores. Este é um exercício de compreensão funda-mental para a definição da posição que o pesquisadorirá adotar.

FlCHAMENTO DA TEORIA

Durante o período de coleta de dados, o pesquisadordeve organizar o material pesquisado de tal forma quena hora da análise e do relatório final não se sinta per-dido. O fichamento dos livros lidos, a partir das ques-tões da pesquisa, é uma forma prática de juntar a teo-ria e o material empírico.

Apesar de existirem regras metodológicas para cadaetapa da pesquisa científica, a marca pessoal do pes-quisador é imprescindível. Afinal, cada estudioso sabecomo apreende e analisa melhor o seu trabalho. As-sim, vou mostrar como faço meus fichamentos e cadaleitor pode inventar o seu próprio estilo para aprovei-tar ao máximo cada livro lido.

Uma das minhas primeiras regras é compreenderbem o que o autor quer dizer com seu texto. Para isso,é necessária uma primeira leitura em que sublinho olivro e escrevo meus comentários pessoais no própriotexto. Muitas pessoas tratam o livro como uma precio-sidade que não pode ser tocada. Livros não foram fei-tos para serem guardados mas para serem usados, as-

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similados, compreendidos. Meus livros são totalmentesublinhados com lápis e canetas coloridas, que mos-tram o verdadeiro debate de ideias que mantenho comos autores no próprio livro. Resumo as ideias princi-pais, discordo, questiono, lembro de outros autores queescreveram sobre o tema... tudo nas margens de cadapágina. Se o livro não me pertence (não consigo encon-trá-lo nas livrarias porque está esgotado ou é importa-do), tiro xerox e encaderno, ficando livre para subli-nhar e escrever tudo o que quero na cópia.

Na primeira leitura, anoto as ideias que vão sur-gindo, indicando livros a consultar e ideias a desen-volver. Quando necessário, busco dados sobre deter-minado autor e referências de suas obras. Faço de-pois uma releitura, já com um roteiro estabelecido doque interessa fichar. Para diferentes estudos, faço di-ferentes fichamentos do mesmo livro, porque são ques-tões diferentes que me interessam a cada pesquisa.

É importante lembrar: o fichamento pode ser feitoem um caderno ou em fichas compradas numa papela-ria. Após entrar na era da informática, abandonei oscadernos e passei a fazer o fichamento diretamente nocomputador, o que facilita muito no momento de redi-gir o texto final. Se você ainda não tem seu computa-dor, procure aprender rapidamente a usar um editor detexto e verá que tenho razão.

Para a ficha de resumo do livro, começo com as re-ferências do autor. Por exemplo:

Goldenberg, Mirian. Toda mulher é meio LeilaDiniz. Rio de Janeiro: Record, 1995.

Depois faço um roteiro de leitura e tento responderàs seguintes questões:

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1. Qual o objetivo da autora?2. Com que outros autores está dialogando ou dis-

cutindo (explícita ou implicitamente)?3. Quais as categorias utilizadas? (como são defi-

nidas?)4. Quais as suas hipóteses de trabalho?5. Qual a metodologia utilizada em sua pesquisa?6. Qual a importância de seu estudo no campo em

que está inserido? (o que a autora diz? o que euacho?)

7. A autora sugere novos estudos?8. Resumo do livro.9. Minha avaliação crítica do livro.

Para a ficha de citações, também inicio com as re-ferências do autor. Depois transcrevo literalmente,entre aspas, todos os parágrafos que considerei impor-tantes para o meu estudo, com a referência da páginaem que aparece. Se depois eu quiser citar este trechono meu relatório final, basta reproduzi-lo e introduziro sobrenome do autor e o ano da publicação.

Por exemplo:

Goldenberg, Mirian. Toda mulher é meio LeilaDiniz. Rio de Janeiro: Record, 1995.

"Leila Diniz 'inventou' seu lugar no mundo, fez um'nome', tornou-se palavra autorizada na música deErasmo Carlos ('Como diz Leila Diniz...'), eternizou seunome no poema de Drummond ('Leila para sempre Diniz')e passou a ser adjetivo na música de Rita Lee ('Todamulher é meio Leila Diniz')". (Goldenberg, 1995:221).

Depois desta leitura dirigida, você perceberá a dife-rença entre lembrar que um autor existe e dominar as

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suas ideias. A maioria das pessoas sai da faculdadesabendo quais os autores mais importantes em seu cam-po de conhecimento, mas eles permanecem inacessí-veis. Ao fichar um livro, somos obrigados a ler comprofundidade, buscando compreender cada ideia e ca-tegoria utilizada. Após essa leitura, todos os autoresfichados passam a ser nossos amigos íntimos. Com odomínio dos autores podemos estabelecer um diálogoteórico verdadeiro com seus artigos ou livros (e nãoapenas citá-los). Somente dessa maneira os autores setornam peças importantes nas interpretações do ma-terial coletado na pesquisa.

ENTREVISTAS E QUESTIONÁRIOS

"Só existe a ciência do escondido."

Bachelard

Em princípio, o pesquisador entrevista as pessoas queparecem saber mais sobre o tema estudado do que quais-quer outras. Acredita-se que essas pessoas estão no topode uma hierarquia de credibilidade, isto é, o que dizemé mais verdadeiro do que aquilo que outras, que nãoconhecem tão bem o assunto, diriam. Na verdade, opesquisador não deve se limitar a ouvir apenas estaspessoas. Deve também ouvir quem nunca é ouvido, in-vertendo assim esta hierarquia de credibilidade.

Um dos principais problemas das entrevistas e ques-tionários é detectar o grau de veracidade dos depoimen-tos. Trabalhando com estes instrumentos de pesquisa ébom lembrar que lidamos com o que o indivíduo desejarevelar, o que deseja ocultar e a imagem que quer proje-tar de si mesmo e de outros. A personalidade e as atitu-

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dês do pesquisador também interferem no tipo de res-postas que ele consegue de seus entrevistados.

As entrevistas e questionários podem ser estrutu-rados de diferentes maneiras:

1. podem ser rigidamente padronizados: as pergun-tas são apresentadas a todas as pessoas exata-mente com as mesmas palavras e na mesma or-dem, de modo a assegurar que todos os entrevis-tados respondam à mesma pergunta, sendo asrespostas mais facilmente comparáveis. Taisperguntas podem ser do tipo:a. fechadas: as respostas estão limitadas às al-

ternativas apresentadas. São padronizadas,facilmente aplicáveis, analisáveis de manei-ra rápida e pouco dispendiosa. Uma de suasdesvantagens é que as pessoas limitam suasrespostas às alternativas apresentadas, mes-mo quando há outras razões;

b. abertas: resposta livre, não-limitada por al-ternativas apresentadas, o pesquisado fala ouescreve livremente sobre o tema que lhe é pro-posto. A análise das respostas é mais difícil;

2. podem ser assistemáticos: solicitam respostasespontâneas, não-dirigidas pelo pesquisador. Aanálise do material é muito mais difícil;

3. entrevista projetiva: utiliza recursos visuais (qua-dros, pinturas, fotos) para estimular a respostados pesquisados.

O pesquisador deve ter em mente que cada questãoprecisa estar relacionada aos objetivos de seu estudo.As questões devem ser enunciadas de forma clara eobjetiva, sem induzir e confundir, tentando abrangerdiferentes pontos de vista.

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Se o pesquisador decidir enviar um questionáriopelo correio, não deverá esquecer de escrever um forteapelo para que o pesquisado o responda o mais breve-mente possível. Para que isso ocorra, é fundamentaluma carta de apresentação explicando o que está fa-zendo, por que o faz e para quem. A carta deve ser bre-ve mas não deixar nada sem explicação. O indivíduopesquisado precisa ser convencido da importância desua resposta para o sucesso da pesquisa. E importantea garantia de anonimato: não se deve pedir nomes efazer perguntas que facilitem a identificação. Uma boatécnica para facilitar a devolução do questionário éenviar um envelope impresso auto-endereçado e sela-do. Cabe lembrar a importância da impressão definida,bem espaçada, em papel de boa qualidade.

No caso da entrevista, é importante a apresenta-ção do pesquisador por uma pessoa de confiança dopesquisado (esta pessoa que irá intermediar o primei-ro contato será responsável pela primeira imagem.Em função deste primeiro encontro, portas se abri-rão ou se fecharão). Também aqui é preciso garantiro anonimato do entrevistado, caso seja necessário.

Vantagens do questionário

1. é menos dispendioso*,2. exige menor habilidade para a aplicação;3. pode ser enviado pelo correio ou entregue em mão;4. pode ser aplicado a um grande número de pessoas

ao mesmo tempo;5. as frases padronizadas garantem maior unifor-

midade para a mensuração1,6. os pesquisados se sentem mais livres para ex-

primir opiniões que temem ser desaprovadas ouque poderiam colocá-los em dificuldades;

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7. menor pressão para uma resposta imediata, opesquisado pode pensar com calma.

Desvantagens do questionário:

1. tem um índice baixo de resposta;2. a estrutura rígida impede a expressão de senti-

mentos;3. exige habilidade de ler e escrever e disponibili-

dade para responder.

Vantagens da entrevista:

1. pode coletar informações de pessoas que não sa-bem escrever;

2. as pessoas têm maior paciência e motivaçãopara falar do que para escrever;

3. maior flexibilidade para garantir a resposta de-sejada;

4. pode-se observar o que diz o entrevistado e comodiz, verificando as possíveis contradições;

5. instrumento mais adequado para a revelação deinformação sobre assuntos complexos, como asemoções;

6. permite uma maior profundidade;7. estabelece uma relação de confiança e amizade

entre pesquisador-pesquisado, o que propicia osurgimento de outros dados.

Desvantagens da entrevista:

1. o entrevistador afeta o entrevistado;2. pode-se perder a objetividade tornando-se amigo.

É difícil se estabelecer uma relação adequada;

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3. exige mais tempo, atenção e disponibilidade dopesquisador: a relação é construída num longoperíodo, uma pessoa de cada vez;

4. é mais difícil comparar as respostas;5. o pesquisador fica na dependência do pesquisado:

se quer ou não falar, que tipo de informação de-seja dar e o que quer ocultar.

Ao construir a entrevista ou questionário, o pes-quisador deve:

1. decidir que informação deve ser procurada (da-dos de história pessoal: idade, educação, empre-go; dados de comportamento; dados sobre outraspessoas; sentimentos, valores, razões, fatoresobjetivos e subjetivos);

2. decidir o conteúdo da pergunta (é necessária estapergunta? qual a sua utilidade? as pessoas têminformação necessária para responder à pergun-ta? deve a pergunta ser mais concreta, específi-ca e mais diretamente ligada à experiência pes-soal de quem responde?);

3. decidir como redigir a pergunta (a pergunta édifícil? exprime com clareza as ideias desejadas?deve ser mais direta?);

4. decidir o lugar na sequência apresentada (é in-fluenciada pelo conteúdo das perguntas anterio-res? deve ser apresentada mais cedo ou mais tar-de para despertar interesse e atenção?);

5. decidir que tipo de entrevista ou questionáriodeve ser usado (aberto, fechado, aberto e fecha-do);

6. redigir um primeiro rascunho;7. após a crítica de outras pessoas, reexaminar e

rever as perguntas;

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8. aplicar e discutir com os entrevistados as difi-culdades (pré-teste);

9. reelaborar a entrevista ou questionário.

Algumas "dicas" são necessárias para introduzir opesquisador na arte de elaborar um questionário e umaentrevista. Mesmo correndo o risco de repetir o já dito,eis algumas regras básicas.

Antes de mais nada, por mais que pareça óbvio, épreciso conhecer bem o assunto, examinar as pes-quisas e as reflexões já feitas sobre o tema para en-tão estabelecer um roteiro. O estudioso precisa es-tar muito bem preparado antes de abordar o grupopesquisado, saber o máximo possível e não fazer per-guntas desnecessárias, cujas respostas poderiam serencontradas em outras fontes (jornais, revistas, li-vros etc.). O pesquisador deve ser o maior conhece-dor do tema estudado. A entrevista ou questionáriosão instrumentos para conseguir respostas que opesquisador não conseguiria com outros instrumen-tos.

Como qualquer relação pessoal, a arte de uma en-trevista bem-sucedida depende fortemente da criaçãode uma atmosfera amistosa e de confiança. As caracte-rísticas pessoais do pesquisador e pesquisado são deci-sivas. É muito importante não se criar antagonismoou suspeita nas primeiras abordagens. As atitudes eopiniões do pesquisador não podem aparecer em pri-meiro plano. Ele deve tentar ser o mais neutro possí-vel, não sugerindo respostas.

É sempre útil começar com perguntas mais fáceis enão ir longe demais no início. O pesquisador precisarespeitar as limitações do pesquisado quanto ao locale ao tempo da entrevista. Deve-se ir bem preparado para

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aproveitar ao máximo a entrevista ou questionário eregistrar adequadamente. O pesquisador deverá deimediato transcrever as entrevistas a fim de, ao reali-zar novas entrevistas, não repetir questões e dominarcada vez mais o assunto.

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PENSANDO COMO UMCIENTISTA

"A ciência não tem sentido porque não respondeà nossa pergunta, a única pergunta importantepara nós: o que devemos fazer e como devemosviver?"

Tolstói

Após realizar as entrevistas ou aplicar os questioná-rios no grupo escolhido, chegou o momento de organi-zar os dados recolhidos e começar a analisar todo o ma-terial. É o ponto em que se exige muita sensibilidadepara que se aproveite o máximo possível dos dadoscoletados e da teoria estudada. Esta capacidade de arti-cular teoria e dados empíricos é uma das maiores rique-zas do cientista. Ele tem um olhar preparado para ana-lisar cada dado coletado em relação a um corpo de conhe-

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cimento acumulado por outros estudiosos. Ele podeaproveitar pequenos detalhes que passariam desperce-bidos por uma pessoa sem este preparo. Quanto maisbem-formado e informado for o pesquisador, maior a ri-queza de suas análises.

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ANÁLISE E RELATÓRIO FINAL

Chegou a hora de reunir a teoria com os dados coletadosatravés de entrevistas, questionários ou observações.Uma boa "dica" para o pesquisador não se perder nahora de reunir todo este material (às vezes coletado du-rante muitos anos) é começar a análise logo após cole-tar cada entrevista ou questionário. Deve-se analisarcomparativamente as diferentes respostas, as ideias no-vas que aparecem, o que confirma e o que rejeita as hi-póteses iniciais, o que estes dados levam a pensar demaneira mais ampla. Este momento exige muito tempode reflexão e dedicação para se tirar o máximo de ideiasde cada resposta conseguida. É o ponto em que se perce-be com mais nitidez o estilo do pesquisador: seu conhe-cimento teórico acumulado durante anos, sua criativi-dade para analisar cada dado e seu bom senso. Muitospesquisadores deixam para escrever seus relatórios pou-cos dias antes da data de entrega, o que empobrece suasanálises e conclusões. Planeje com antecedência (acre-dito que no mínimo dois meses) para não incorrer nestegrave erro.

A Arte de Pesquisar / 95

Após a análise, é preciso escrever o relatório da pes-quisa. No caso de o projeto ter sido bem construído, orelatório fluirá com facilidade, pois já existe um roteiroclaro e objetivo do que deve ser abordado.

Meus relatórios de pesquisa começam com uma intro-dução onde retomo o objetivo geral do estudo e os objeti-vos específicos a ele relacionado. Familiarizo o leitor comas minhas ideias iniciais, antes de fazer a pesquisa pro-priamente dita: o que esperava encontrar, quais ashipóteses de trabalho que me nortearam, qual o grupoque escolhi e as razões para esta escolha, quais os concei-tos principais e os autores nos quais me apoiei. É umpanorama da pesquisa.

Além disso, retomo também a justificativa, a im-portância desta pesquisa para o campo científico noqual estou inserida e para a sociedade de forma maisampla.

Em seguida, introduzo a discussão teórica com osautores que são importantes para a análise do materialcoletado. Lembro que a discussão teórica não é umamera soma de citações dos autores mas um verdadeirodiálogo com suas ideias principais. Para tornar esse di-álogo produtivo é necessário um domínio completo decada autor e não uma mera utilização de suas melhoresfrases.

Para mostrar o material empírico que recolhi, ini-cio relatando cada passo da coleta dos dados. As difi-culdades que encontrei, as pessoas que se recusarama dar entrevista ou responder ao questionário, as per-guntas que não foram respondidas, o que foi conse-guido e o que não foi, quem colaborou e quem não co-laborou com o estudo. É importante analisar tanto oque foi dito como o "não-dito" pelos pesquisados. Épreciso interpretar este "não-dito", buscar uma lógi-ca da "não-resposta" É a hora de exercitar o olhar

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crítico sobre a pesquisa e verificar quais foram osobjetivos iniciais e o que realmente foi alcançado. So-mente após explicitar o que se pretendia e os limitesdo que foi pesquisado, pode-se começar a análise domaterial coletado. Muitos relatórios de pesquisa pa-recem isentos de dificuldades porque se restringemaos resultados alcançados, sem registrar o que nãofoi conseguido. A pesquisa parece mais fácil e, tam-bém, mais pobre, ao ser isolada de todo o processofeito pelo pesquisador.

Depois da análise do material coletado, escrevo asconsiderações finais, que são uma síntese das ideiasprincipais da pesquisa e sugestões para novos estu-dos a serem realizados pelo próprio pesquisador oupor outros. Por fim, as referências bibliográficas e osanexos.

O objetivo do relatório é permitir a comunicaçãoda pesquisa para um público mais amplo, que podeser a agência que financiou o projeto, a universida-de, os colegas de profissão. É um momento difícil dapesquisa: como construir um todo desta multiplici-dade de material? Como evitar que as conclusões nãosejam meros reflexos da predisposição do pesquisa-dor e sim resultados da análise do objeto de estudo?Como impedir que se apresente um excesso de dadoscom uma escassez de análise? A quem se destina orelatório: a colegas de profissão ou ao público emgeral? O que esse público deseja ou precisa saber arespeito do estudo? Qual a melhor forma de apre-sentar essa informação? Qual a dificuldade e com-plexidade do assunto? Por que e para quem faze-mos nossas pesquisas?

A fim de dar a informação necessária, o relatóriodeve conter:

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a. apresentação do problema a que se refere o es-tudo. Para esclarecer as razões por que o pro-blema merecia ser pesquisado, deve ser apresen-tado material suficiente sobre os antecedentesdo estudo (resumo de outras pesquisas signifi-cativas), de forma que este possa ser visto numcontexto mais amplo. Devem ser apresentadasas hipóteses do estudo e as definições dos prin-cipais conceitos ou categorias.

b. os processos de pesquisa, o planejamento do es-tudo, a técnica de coleta de dados e o método deanálise empregado. O plano da pesquisa deve serapresentado em detalhes: o que realmente ocor-reu versus o que foi originalmente traçado. Osdados foram coletados através de questionáriosou entrevistas? Quais as perguntas apresenta-das? (Deve ser incluído anexo o questionário ouo roteiro de entrevista.) Quais e quantos foramos sujeitos do estudo? Como foram selecionados?

c. os resultados. O pesquisador deve evitar focali-zar só os aspectos positivos e encobrir as difi-culdades do processo de pesquisa. O relatóriodeve dar aos leitores o resultado completo doestudo, com pormenores suficientes que permi-tam compreender os dados e determinar a vali-dade das conclusões.

d. as consequências dos resultados. Perguntas quenão foram respondidas e sugestões de novas pes-quisas para respondê-las.

e. Principais conclusões.

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Em síntese, temos no relatório final da pesquisa:

1. capa(dedicatória)(agradecimentos)(resumo)(epígrafe)

2. Sumário3. Introdução4. Justificativa5. Discussão teórica6. Descrição do plano de estudo e do método de

coleta de dados7. Apresentação dos resultados8. Análise, interpretações e conclusões9. Referências bibliográficas

10. Anexos

A melhor forma de escrever bem e com clareza éreescrever muitas vezes o relatório e apresentá-lo adiferentes pessoas antes de chegar à versão definitiva.É importante lembrar que em muitos casos é necessá-ria uma revisão profissional do texto.

Em muitos círculos académicos quem tentar escre-ver de forma simplesmente inteligível pode ser acusadode ser um "simples literato" ou, pior ainda, um "merojornalista". É esta a razão do vocabulário complicado eda forma prolixa de escrever e falar dos cientistas. Acre-dito, ao contrário, que as qualidades básicas da boa re-dação científica são a exatidão e a clareza. Não se deveusar termos técnicos sem conceituá-los ou palavras di-fíceis em vez de palavras fáceis que tenham o mesmosentido.

Por fim, não posso deixar de me referir aos dilemas

A Arte de Pesquisar / 99

éticos do pesquisador ao publicar os seus resultados.O relatório não pode ser usado para prejudicar o grupoestudado. Não se deve violar confidências ou causardano às pessoas que se estuda. Para tanto, é importan-te que as propostas do pesquisador tenham ficado cla-ras desde o início da pesquisa. Quando possível, depen-dendo de cada caso, o pesquisador deve retornar ao gru-po com seus resultados. Ó pesquisador conhece bem asituação pesquisada para poder avaliar o que deve e oque não deve se tornar público.

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ALGUMAS PALAVRAS FINAIS

"Somente os homens que crêem apaixonadamen-te nos valores e põem em jogo uma vontade apai-xonada podem chegar a ser grandes cientistas."

Sombart

Quero lembrar que, apesar da aparente simplicidade dasideias colocadas e da falta de citações complicadas deautores importantes, li dezenas de livros de Metodologiade Pesquisa e dei centenas de aulas para alunos de gra-duação e pós-graduação antes de escrever este livroPortanto, coerente com tudo o que foi escrito, acreditoque ideias sérias podem ser passadas com clareza e obje-tividade. Fiz um trabalho de tradução do complexo parao simples, buscando manter as regras principais parainiciar um pesquisador no jogo científico. Em nenhummomento pretendi fazer um tratado exaustivo de Meto-dologia Científica mas apenas passar algumas "dicas"que sigo em minhas próprias pesquisas.

A Arte de Pesquisar / 101

Espero que este livro tenha sido útil e que cada lei-tor tenha adquirido uma maior confiança e autonomiana "arte de pesquisar", tornando-se capaz de exercitarum novo olhar e uma nova postura dentro de sua pro-fissão. Gostaria de encontrar, brevemente, muitos lei-tores apresentando suas pesquisas em congressos cien-tíficos nacionais e internacionais. Até lá!

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Glossário

O problema central da Metodologia de Pesquisa é a defi-nição do que é e do que não é ciência. Em função desteproblema, eis aqui alguns conceitos básicos que devemfazer parte de um dicionário de pesquisa (que poderá sermodificado e ampliado por cada pesquisador).

Ciência

A ciência é um conjunto organizado de conhecimen-tos relativos a um determinado objeto obtidos através daobservação e da experiência. Ao contrário do que muitosprofessam, a ciência não é universalmente neutra, masefeito de uma realidade particular. É um corpo de conhe-cimentos sistemáticos, adquiridos com um método pró-prio, em um determinado meio e momento. O conheci-mento de hoje pode ser negado amanhã, o que faz da ciên-cia um processo em constante criação e não uma verdadeabsoluta. A ciência dá soluções na medida em que levan-ta novos problemas. Assim, a ciência está muito maispróxima de nossa ignorância do que de nossas certezas.

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A característica que marca a diferença entre cien-tista e leigo é o processo de obtenção e transmissão deconhecimento. O conhecimento científico é organizado,crítico, claro e é submetido a uma série de controles quegarantem uma alta probabilidade de ser verdadeiro.

O estudo científico deve obedecer aos seguintes cri-térios:

a. Coerência: falta de contradição, premissas não-conflitantes e conclusões congruentes;

b. Consistência: capacidade de resistir a argumen-tações contrárias;

c. Originalidade: produção não-repetitiva, repre-sentando real contribuição para o conhecimen-to científico;

d. Objetivação: esforço controlado de conter a sub-jetividade nos limites da suposta objetividade.

Sendo a ciência um produto social, o caráter decientificidade é atribuído pela comunidade científica.É a comunidade científica quem decide as questões quesão estudadas e as que são ensinadas. É ela quem re-compensa os cientistas que têm êxito, com melhoressalários, cargos e publicação dos seus estudos, e puneos que violam as regras com o descrédito e o esqueci-mento de seus trabalhos.

Método

[Do grego méthodos = "caminho para chegar a umfim".]

Método Científico é a observação sistemática dosfenómenos da realidade através de uma sucessão de pas-sos, orientados por conhecimentos teóricos, buscando

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explicar a causa desses fenómenos, suas correlações easpectos não-revelados. É a maneira como o homem usaos instrumentos de pesquisa para desvendar o conheci-mento do mundo. É por meio do Método Científico quenovas teorias estão sendo incorporadas e que conheci-mentos anteriores são revistos, de acordo com os resul-tados de novas pesquisas.

A característica essencial do Método Científico é ainvestigação organizada, o controle rigoroso de suasobservações e a utilização de conhecimentos teóricos.

Metodologia

[Do grego méthodos + lógos.]Método significa organização. Logia quer dizer es-

tudo sistemático, pesquisa, investigação. Metodologiasignifica, etimologicamente, o estudo dos caminhos aserem seguidos, dos instrumentos usados para se fa-zer ciência. A Metodologia faz um questionamento crí-tico da construção do objeto científico, problematizandoa relação sujeito-objeto construído. Diante de uma ob-jetividade impossível, a Metodologia busca uma subje-tividade controlada por si mesma (autocrítica) e pelosoutros (crítica).

Pesquisa

Pesquisa é a construção de conhecimento original,de acordo com certas exigências científicas. É um tra-balho de produção de conhecimento sistemático, nãomeramente repetitivo mas produtivo, que faz avançara área de conhecimento a qual se dedica. Uma pesquisanecessita o cumprimento de três requisitos:

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a. a existência de uma pergunta que se deseja res-ponder;

b. a elaboração de um conjunto de passos que per-mitam chegar à resposta;

c. a indicação do grau de conflabilidade na respos-ta obtida.

O primeiro passo na pesquisa é a delimitação do pro-blema, para o qual o pesquisador recorre a um referencialteórico. É preciso ter uma atitude flexível para realizaras mudanças e ajustes necessários no decorrer do estudo.

Karl Marx dizia que os homens só se colocam osproblemas que podem resolver, constatando as cone-xões da pesquisa com os contextos sociais nos quaisela se inscreve.

De modo geral, os motivos para a proposição dequestões de pesquisa são:

• intelectuais — chamadas de pesquisas puras oubásicas, baseadas no desejo de conhecer ou com-preender, pela satisfação de conhecer ou compre-ender e

• práticos — chamadas de pesquisas aplicadas, ba-seadas no desejo de conhecer a fim de tornar-secapaz de fazer algo melhor ou de maneira maiseficiente. As pesquisas práticas buscam a solu-ção de problemas imediatos dos pesquisadores edas comunidades em que estão inseridos.

Teoria

Teoria é um conjunto de princípios e definições queservem para dar organização lógica a aspectos selecio-nados da realidade empírica. As proposições de uma

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teoria são consideradas leis se já foram suficientemen-te comprovadas e hipóteses se constituem ainda pro-blema de investigação. Na realidade, tanto leis comohipóteses estão sempre sujeitas à reformulação. A es-sência de uma teoria consiste na sua potencialidade deexplicar uma gama ampla de fenómenos através de umesquema conceituai ao mesmo tempo abrangente e sin-tético. A teoria fornece um universo vocabular cientí-fico, próprio de cada ciência, facilitando a compreen-são dos fenómenos e a comunicação entre os cientis-tas. Todas as teorias são provisórias.

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