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Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA Série Sistematização revista XI dezembro de 2006

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Arte de ampliar cabeças:uma leitura transversal das sistematizações do PDA

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Presidência da RepúblicaPresidente: Luiz Inácio Lula da SilvaVice-presidente: José Alencar Gomes da Silva

Ministério do Meio AmbienteMinistra: Marina Silva

Secretaria de Coordenação da AmazôniaSecretária: Muriel Saragoussi

Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento SustentávelSecretário: Gilney Viana

Departamento de Agroextrativismo e Desenvolvimento SustentávelDiretor: Jorg Zimmermann

Programa Piloto para Proteção das Florestas TropicaisCoordenadora: Nazaré Soares

Catalogação na FonteInstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

T912 A Arte de Ampliar Cabeças: uma Leitura Transversal das Sistematizações do PDA / Ministério do Meio Ambiente, PDA/PPG7/SDS – Brasília: MMA, 2006.52 p. : il. color. ; 28cm. (Série Sistematização, IX)

ISBN 85-7738-071-8

1. Agroflorestais. 2. Agricultura sustentável. 3. Agricultura familiar. I. Ministério do Meio Ambiente. II. Secretaria de Desenvolvimento Sustentável – SDS. III. Subprograma Projetos Demonstrativos – PDA. IV. Programa Piloto para Conservação das Florestas Tropicais Brasileiras – PPG7. V. Título. VI. Série.

CDU (1.ed.)631:502

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Page 4: A arte de ampliar cabeças- uma leitura transversal das

EXPEDIENTE ApresentaçãoApresentamos, por meio desta série, algumas histórias que falam de

saberes, de vidas, de gente construindo formas mais sustentáveis de convivência com o meio ambiente. Essas histórias contam com o apoio do Subprograma Projetos Demonstrativos – PDA, parte do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, do Ministério do Meio Ambiente.

Ao longo de seus dez anos de vida, o PDA apoiou e apóia cerca de 320 projetos na Amazônia e na Mata Atlântica. A história do PDA – as histórias dos projetos apoiados pelo Subprograma – tem demonstrado que há um acúmulo de conhecimento sendo gerado pelas comunidades e organizações de produtores familiares, criando e testando novas tecnologias e sistemas de produção sustentável. Há um saudável diálogo entre conhecimento tradicional e novas informações, apontando perspectivas viáveis que, em alguns casos, já saem do limite do “demonstrativo” e passam a fazer parte de políticas públicas locais e regionais. Importante lembrar que, o que para o poder público é valorizado por seu potencial demonstrativo, para os produtores e comunidades envolvidos é a vida real – sua vida, sua sobrevivência.

As histórias desta série são narradas pelos próprios grupos envolvidos nos projetos apoiados pelo PDA. As narrativas são resultado de um processo de sistematização de experiências, cujo desafio maior é aprender com as práticas, fazendo, destas, objeto de conhecimento. Em um projeto piloto realizado entre julho de 2003 e março de 2004, onze iniciativas apoiadas pelo PDA sistematizaram alguns aspectos de suas práticas. O resultado são onze histórias reais, contadas por muitas vozes, tecendo narrativas cheias de vida, reflexão, descobertas, aprendizados.

Cada grupo ou comunidade contou sua história de seu jeito. Para isso, criou momentos e instrumentos, experimentou metodologias, fez caminho ao andar. Os textos da série revelam essa experimentação metodológica, mantendo as estruturas e narrativas criadas por cada grupo envolvido. Como na vida, os textos das sistematizações não seguem um único roteiro, mas inventam seus próprios mapas narrativos.

O PDA com alegria apresenta essas histórias de saberes, de gentes, de vidas, com o desejo de estar contribuindo para demonstrar caminhos possíveis para políticas públicas mais adequadas à produção familiar, às comunidades tradicionais e ao meio ambiente.

Jorg Zimmermann

Secretário Técnico PDA

Brasília, outubro de 2006

Subprograma Projetos Demonstrativos – PDA

Secretário-Técnico: Jorg Zimmermann

Secretária-Técnica Adjunta: Anna Cecília Cortines

Equipe Técnica: Demóstenes de Moraes, Elmar Castro, Isis Lustosa, Klinton Senra, Mauricio Barbosa Muniz, Odair Scatolini, Rodrigo Noleto, Silvana Bastos e Zaré Brum Soares. Estagiárias: Rafaela Silva de Carvalho e Yandra Fontes Bastos.

Equipe Financeira: Cláudia Alves, Eduardo Ganzer, Luiz Henrique Marciano e Nilson Nogueira

Equipe Administrativa: Francisca Kalidaza, Mariza Gontijo e Neide Castro

Cooperação Técnica Alemã, GTZ: Margot Gaebler e Monika Grossmann

Cooperação Financeira: República Federal da Alemanha – KfW, União Européia – CEC, Rain Forest Trust Fund – RFT, Fundo Francês para o Meio Ambiente Mundial – FFEM

Cooperação Técnica: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, Projeto BRA/03/009. Agência Alemã de Cooperação Técnica, Deustsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit (GTZ) GmbH

Agente Financeiro: Banco do Brasil

Equipe de sistematização:

Do MMA - Anna Cecília Cortines, Célia Chaves, Gilberto Nagata, Mara Vanessa F. Dutra (PDA); Denise Lima (GTZ/PDA); Alice Guimarães (AMA/Programa Piloto).

Consultoras - Elza Falkembach (Universidade de Ijuí), Ladjane Ramos e Maristela Bernardo.

Dos projetos - Adelício Jacinto, Adriana Felipim, Alexandro Chaves, Alexsandro Oliveira, Ana Bonfim, Daniela Nart, Edivânia Duarte, Elias da Silva Santos, Francisco Colli, José Domingos Barra, Joseilton Sousa, José Kuticoski, José Roberto Xavier, Luana Carvalho, Luciano Paixão, Luzia Aparecida Pinheiro, Marcelo Paranhos, Maria Bernadete Franceschini, Márcia Neves, Maria Thereza Sopena Stradmann, Marinete Silva, Raimundo Pureza.

Organização: Denise Lima, Elza Falkembach, Mara Vanessa F. Dutra

Redação: Elza Falkembach, Mara Vanessa F. Dutra

Copidesque: Mara Vanessa F. Dutra

Revisão ortográfica e gramatical: Sandra Sena

Projeto Gráfico e capa: Masanori Ohashy (Idade da Pedra Produções Gráficas)

Esta publicação foi realizada com a colaboração da Cooperação Técnica Alemã - GTZ

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Uma leitura transversal

Recuperando o processo piloto de sistematização de projetos PDA

Introdução - O PDA e alguns dos desafios da política ambiental brasileira

A sistematização: aproximação conceitual

Narração da aventura

O começo do começo

A oportunidade

O caminho

Navegando

Os projetos de sistematização

Aspectos para reflexão

A “Série Sistematização” do PDA

As práticas sistematizadas e seus núcleos de singularidade

Sumário

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Sistematização, uma arte de ampliar cabeças ...

Falando de um tempo e de espaços

Um tempo marcado por ambigüidades

A consumição progressiva do humano

Divisando espaços, gerando demandas

O que sistematização tem a ver com esses arranjos histórico-sociais?

Potenciais e limites da sistematização

Fundamentos de uma proposta

Uma proposta em 8 momentos

Vivendo uma experiência

Sistematização e políticas públicas

Sistematização, uma arte de ampliar cabeças e autorizar corpos

Referências

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Este último volume da série “Sistematização” do PDA tem sido carinhosamente chamado de “transversal” pela equipe envolvida. Isso porque não é uma narrativa de experiência sistematizada, como os demais volumes da série, mas uma reflexão sobre o conjunto e uma narrativa do caminho percorrido. De alguma forma, uma “meta-sistematização”.

Apresentamos, neste volume transversal, três textos: a narração da aventura, do ponto de vista metodológico; um olhar sobre os núcleos de singularidade das diversas experiências sistematizadas; e uma reflexão sobre o processo, em texto escrito por Elza Falkembach (“Sistematização, uma arte de ampliar cabeças...”).

Para preparar este volume, muita conversa aconteceu. Elza, Denise e Mara Vanessa encontraram-se algumas vezes ao vivo e muitas vezes de maneira virtual, conversando sobre os processos, as experiências, as descobertas, as narrativas.

Um primeiro significado que é preciso realçar é o da sistematização enquanto um objeto que une uma pluralidade de sujeitos e saberes. E que pluralidade! Onze diferentes experiências, envolvendo agricultores, pescadores, índios, técnicos, homens e mulheres em Rondônia, no Pará, na Bahia, em Pernambuco, no Maranhão, no Tocantins, em São Paulo… Em cada uma dessas experiências, um mundo distinto, rico, cheio de saberes contados por diferentes sujeitos. Polifonia profundamente melódica e harmoniosa.

Essas histórias falam do lugar das experiências enquanto possibilidade de criação de novas relações – com a produção, com o mercado, com o ambiente, com as pessoas, com a política pública. Esse é um aspecto que nunca é demais enfatizar: o caminho do fazer diferente, do novo, da experimentação, mudando as relações. São relações familiares novas, construídas em torno do conceito de sustentabilidade; novos parâmetros de saúde e de educação, novas relações de gênero, de geração, de vizinhança. Histórias de vida que são contadas a partir dessas mudanças.

A melhoria da saúde, por exemplo, aparece como um grande efeito dos projetos, sem que o PDA, ao apoiar as iniciativas, sequer tivesse pensado nessa possibilidade. Mas o novo jeito de trabalhar e produzir, em estreita aliança com a natureza, com a floresta, com as águas, traz esses presentes. São trabalhos que têm a ver com a recuperação da vida – recuperam-se áreas degradadas, recuperam-se, também, relações humanas às vezes bastante deterioradas. As pessoas mudam, mudam as situações, mudam os centros de poder, muda o jeito de olhar a natureza; muda a vida.

Importante observar, também, a mudança de paradigma no campo da produção de conhecimento. Já não se pode falar de “conhecimento e difusão”, mas de conhecimento

Uma leitura transversal

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Série Sistematização�

a partir de diversos saberes que dialogam entre si, de experimentação (lugar onde se constrói conhecimento) e de educação, como processo que transforma o sujeito e cria novas atitudes.

Há vários exemplos desse processo educativo nas narrativas sistematizadas, sempre ligados à experimentação. Tal processo configura-se como um jeito de “aprender fazendo” ou de partir de um curso como momento de trazer o novo, que gera a experimentação, e, sempre, a mudança de atitude das pessoas, transformadas no caminho.

Algumas experiências falam da figura do “agricultor técnico”, ou “agricultor experimentador”, em iniciativas horizontais de assistência técnica, do tipo “de agricultor para agricultor”. Há, ainda, aproximações com centros de educação formal, com destaque para as Escolas Família Agrícola, que vêm cumprindo um papel substantivo na vida de muitas comunidades. De uma maneira ou de outra, todos os projetos têm um forte componente de ação pedagógica, com processos educativos claramente identificáveis.

A sistematização, como espaço de registro, de memória, mexeu com as pessoas, com os indivíduos; ofereceu oportunidades de ouvir várias vozes, de parar para pensar, de colocarem-se perguntas. Foi, por tudo isso, um espaço de “empoderamento” – cada um ficou mais “dono” de sua experiência ao falar, ao ouvir, ao debater e ao refletir sobre ela. Nas palavras de Seu Adelício, da Apruram (RO), “sistematizar é registrar o passado, para refletir o presente e planejar o futuro”.

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�Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

Recuperandoo processo piloto de

sistematizaçãode projetos PDA

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Série Sistematização�

IntroduçãoO PDA e alguns dos desafios da política ambiental brasileira

O Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras (Programa Piloto) surgiu no bojo da Eco 92 como uma proposta de realizar ações de preservação das florestas tropicais, integrando diferentes doadores (inicialmente, os países do G7), em uma intervenção proporcional ao desafio e às dimensões da Amazônia. Era um momento político de crise do Estado brasileiro, com a situação do impeachment do primeiro presidente eleito de forma direta no período de redemocratização do país, quando a sociedade civil organizada buscava mecanismos de controle social das políticas públicas.

É nesse cenário que nasce, dentro do Programa Piloto, o Subprograma Projetos Demonstrativos - PDA, com o desafio de incorporar a sociedade civil à sua gestão, de forma a participar da eleição de diretrizes, da seleção de projetos e do acompanhamento e avaliação do Subprograma. Para realizar essa tarefa, a Comissão Executiva do PDA foi construída de forma paritária – Estado e sociedade civil.

“O real não está na saída nem na

chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da

travessia”.

Guimarães Rosa

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�Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

A importância do PDA como financiador dessa pesquisa prática é ressaltada quando se verifica o vazio de respostas dos setores públicos às necessidades de pesquisa geradas pelos avanços da produção familiar. Na prática, quem faz pesquisa para esse segmento é o próprio produtor, que arrisca seu sustento anual ao inovar, ao tentar caminhos diferentes. O PDA tem cumprido a função de subsidiar esse risco, porque, se do ponto de vista do poder público, projetos como estes são demonstrativos, valorizados pela inovação e pela experimentação, para os produtores é sua vida – a vida real, os problemas reais, a subsistência.

Como um programa da Diretoria de Agroextrativismo e Produção Sustentável da Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável do Ministério do Meio Ambiente, o PDA tem cada vez mais a responsabilidade e o desafio da gestão da massa de conhecimento e informação acumulada ao longo dos últimos doze anos, oportunizando o protagonismo dessas experiências na formulação de novas políticas para o desenvolvimento sustentável. O projeto piloto de sistematização, do qual trata este documento, foi um dos passos dados nessa direção.

Ao longo dos anos, o PDA consolidou-se como o componente do Programa Piloto que se relaciona mais de perto com a sociedade civil e tem, como impacto mais visível, o fortalecimento dessas organizações, aumentando sua capacidade de proposição na discussão sobre o desenvolvimento local e regional.

Os desafios do Subprograma foram, desde o início, reconhecer, valorizar e apoiar a geração de conhecimentos pelas comunidades, disseminá-los e difundi-los para outras comunidades e para os tomadores de decisão no nível governamental. Também objetivava influenciar as políticas públicas e fortalecer as organizações da sociedade civil nesse processo.

A história do PDA – as histórias dos projetos apoiados pelo Subprograma – tem demonstrado que há um acúmulo de conhecimento sendo gerado pelas comunidades e organizações de produtores familiares, criando e testando novas tecnologias e modelos de produção sustentável. Há um saudável diálogo entre conhecimento tradicional e novas informações, apontando perspectivas viáveis que, em alguns casos, já saem do limite do “demonstrativo” e passam a fazer parte de políticas públicas locais e regionais.

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Série Sistematização10

ou parâmetros iniciais – seu compromisso não é medir o que ou quanto se avançou, mas entender o que aconteceu e por quê. Com isso, abre espaço para lidar com a subjetividade da vivência.

Há diversos instrumentos que podem ser utilizados na sistematização. A flexibilidade é muito maior do que acontece com as metolodogias de planejamento, monitoria e avaliação. A partir do mesmo conceito, diferentes autores� têm formatado propostas metodológicas distintas para o processo de sistematização. Essas propostas, embora variem enquanto instrumental, seguem basicamente os mesmos passos.

Este texto busca relatar a aventura do PDA numa experiência piloto de sistematização de experiências a partir de onze projetos. Narra o caminho percorrido, a metodologia utilizada, os erros e acertos do processo.

� Especificamente: Guia Metodologico do PREVAL/FIDA para sistematização; textos de Oscar Jara e dos grupos de sistematização do Peru, do Uruguai e de outros países da América Latina, que seguem a escola de Jara; textos de Elza Falkembach.

A sistematização: aproximação conceitual

A sistematização de experiências vem sendo utilizada como metodologia para narrar vivências coletivas, recuperar aprendizados e construir conhecimentos a partir de práticas sociais. O conceito surgiu do debate sobre educação popular na América Latina, a partir de uma visão política que vê os movimentos populares como transformadores da realidade, cuja prática, embora seja muitas vezes de vanguarda, não consegue mudar os conceitos que, em última análise, fundamentam o debate social e criam as bases para formulação de políticas públicas.

Outros conceitos de sistematização também são utilizados na prática de projetos e programas. Trata-se sempre, porém, de um exercício de organizar, classificar e resumir o que foi vivido; lida com a memória, com o registro e com a história. O avanço do conceito originado da educação popular é a proposta de produção de conhecimento, de diálogo com a teoria e de reflexão sobre os aprendizados.

No ciclo de gerenciamento de projetos, a sistematização entra como um elemento a mais nos sistemas de monitoria e avaliação. Pode ser equivalente, em muitos aspectos, à avaliação participativa. Existe uma relação estreita entre monitoria, avaliação e sistematização – os resultados desses processos se alimentam reciprocamente. O que singulariza a sistematização é sua independência em relação a indicadores

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11Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

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Narração daaventuraO começo do começo

Em 200�, o PDA formulou a primeira proposta de sistematização2, a partir da constatação de que havia muito conhecimento gerado nas experiências que vinha apoiando e que isso merecia ser sistematizado. Em novembro de 200�, a proposta foi aprovada pelo Banco Mundial, mas não foram disponibilizados recursos.

O debate sobre a necessidade da sistematização ganhou, então, espaço na equipe da Secretaria Técnica do PDA, e foram feitos os primeiros contatos com a professora Elza Falkembach, do Programa de Apoio à Sistematização da Fidene/ Unijuí3. Ela demonstrou interesse em colaborar, leu os relatórios enviados, fez comentários que indicavam o sentido da sistematização e colocou questões para reflexão: que tipo de respostas o PDA busca encontrar com a realização da sistematização? Aonde quer chegar? O que busca alcançar, no campo do conhecimento, com a implementação da sistematização?

Tudo era ainda muito inicial. O conceito de sistematização não estava claro para todos, mas o debate já estava acontecendo. A proposta do PDA não foi implementada naquela época por dificuldades com o financiamento. Mas a porta havia sido aberta e o desejo dessa nova aventura já tinha sido plantado, e em terra fértil.

2 Compreendida como processo coletivo de produção de conhecimentos sobre práticas sociais singulares.3 Houve uma reunião em agosto de 2002 e uma troca de emails.

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13Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

A oportunidadeEm 2003 surgiu a oportunidade de retomar e

reconstruir a proposta de sistematização, aproveitando sobras de recursos do RFT4 e a contribuição da Cooperação Técnica Alemã - GTZ. A Secretaria Técnica estava convencida da necessidade de testar, de vivenciar o conceito e a metodologia que ganhavam mais e mais importância, sobretudo na formulação do PDA Consolidação�.

O total de recursos disponíveis era de aproximadamente R$ 2�3 mil, e o tempo para sua execução, de julho a dezembro de 2003. Foram retomados os contatos com a professora Elza Falkembach, que veio a uma reunião inicial com a Secretaria Técnica em julho de 2003. Foi estabelecido um acordo e um cronograma de trabalho. A equipe começou a entender melhor o conceito de sistematização e, embora ainda com muitas dúvidas sobre o “como fazer”, empenhou-se numa corrida para dar conta do desafio, vencer a burocracia e fazer acontecer a experiência.

4 Rain Forest Trust Fund, o fundo do Programa Piloto manejado pelo Banco Mundial. � Novo componente do PDA, com financiamento para a consolidação de experiências apoiadas pelo Subprograma. A proposta do PDA Consolidação é de apoiar um salto qualitativo desses projetos, de maneira a que se consolidem conceitualmente e vençam a barreira do “demonstrativo”, local, restrito, para uma interação regional maior. Para os projetos apoiados nesse novo compo-nente, a sistematização é condição contratual – supõe-se que há um acúmulo de vivências, de experimentos, de resultados, de erros e de acertos, e de conhe-cimentos que foram produzidos, e que todo esse acervo deve ser disponibiliza-do para além do grupo ou entidade executora do projeto. Essa seria a função da sistematização, buscando contemplar um dos objetivos do PDA: apoiar a produção e a difusão de conhecimentos sobre o desenvolvimento sustentável a partir das práticas das comunidades.

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Série Sistematização14

O caminho

a Procurando o conceito

A primeira aproximação com o conceito de sistematização de experiências como processo de aprendizagem a partir da reconstrução do vivido e da reflexão sobre essa história havia sido feita pela equipe do PDA por meio de textos pesquisados na internet, especialmente os de Oscar Jara, e na literatura sobre o ciclo de projetos. Houve também uma oportunidade, oferecida pelo Fundo Canadense de Gênero, de duas vagas para a equipe e projetos do PDA participarem de um curso sobre sistematização.

A primeira definição mais clara foi a diferença entre sistematização de dados e sistematização de experiências, entendendo esta última como processo de aprendizagem e “empoderamento”. O conceito ficou mais claro depois da primeira reunião com a professora Elza, mas o como fazer, como vivenciar isso na prática dos projetos e no ciclo de planejamento, monitoria e avaliação, ainda era uma grande dúvida.

b Buscando assessoria

Contar com a mediação da professora Elza Falkembach, da Unijuí, foi o ponto de partida do processo. Ela apresentou o conceito, indicou os rumos e ajudou a equipe da Secretaria Técnica a estruturar o que seria o projeto piloto de sistematização – os passos a serem dados.

Nesta experiência, trabalhou-se com uma seqüência de passos proposta pela assessora, em que o primeiro momento é o da identificação, caracterização e problematização da experiência a ser sistematizada, quando são revelados: �) o objeto - experiência a ser sistematizada, 2) a justificativa da sistematização, 3) um primeiro relato resumido ou esquemático do que se viveu, e 4) o contexto da experiência. O próximo passo é estabelecer o foco – que aspectos da experiência serão trabalhados – e desdobrá-lo em perguntas orientadoras.

O desenvolvimento da sistematização começa com a identificação dos registros e, com base nesses, a construção de uma primeira narrativa. Depois, a segunda narrativa incorpora as vozes das pessoas que interpretam e recontam o vivido. E aí chega o momento da análise – a identificação dos momentos significativos, os conceitos e termos utilizados, as tensões da experiência, as perguntas que podem ser feitas sobre o que se viveu, tudo isso respondendo às perguntas orientadoras. Finalmente as conclusões, em que se verifica se os objetivos da sistematização foram atingidos, se novos objetivos surgiram no processo. É nesse momento que se extraem os aprendizados e as recomendações. Como base para tudo isso, deve-se elaborar um plano de trabalho precisando os produtos a que se quer chegar com a sistematização e a previsão de atividades, com atribuição de responsáveis e planejamento de tempo, custos e metodologias.

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15Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

Nesse período de preparação, a Secretaria Técnica também estava muito empenhada em consolidar um sistema de monitoria e avaliação do PDA, e havia avançado bastante na discussão da monitoria como aprendizagem e na elaboração de roteiros de observação de campo e indicadores para avaliação de impacto dos projetos, testando esses instrumentos em campo, nas visitas, para realizar dois estudos: de �2 projetos na Mata Atlântica e de 20 na Amazônia6. A premência de se terem dados e reflexões disponíveis sobre a riqueza das experiências estava clara para toda a equipe e muito esforço estava sendo dirigido para isso. A sistematização entrava como mais um conceito no ciclo de planejamento, monitoria e avaliação, num lugar ainda pouco definido, mas esbarrando com a comunicação e difusão de resultados e de aprendizados.

6 Estudos realizados em 2002 e 2003, respectivamente, e publicados pelo PDA em 2004, na série “Experiências do PDA”. São avaliações de um conjunto de 32 projetos, selecionados por tipologia (temas) e por abrangência geográfica nas áreas de atua-ção do Subprograma.

c Convidando os parceiros

Como o total de recursos era limitado, e considerando os aspectos que esses recursos teriam que cobrir – basicamente, o pagamento de duas pessoas por projeto, para se responsabilizarem pela condução do processo; custos de reuniões, encontros, e outros momentos coletivos de cada projeto – a Secretaria Técnica considerou um valor médio de R$ 20 mil por projeto, o que daria para apoiar entre �0 e �2 iniciativas.

A partir dessa limitação, a Secretaria Técnica ponderou alguns critérios para convidar os projetos a embarcar na aventura: manifestação de interesse já demonstrado pelo tema; processos com riqueza de experiência acumulada; diversidade temática e de públicos; representação da Amazônia e da Mata Atlântica, considerando alguma proximidade geográfica entre os projetos, uma vez que se pensava em seminários regionais como parte do processo.

Com base nesses critérios, a Secretaria Técnica convidou �� projetos para participarem da experiência. Todos aceitaram o convite, o que foi um indicador muito importante, pois significava trabalho adicional, em tempo curto e com recursos limitados. Os projetos desejavam fazer a experiência, gastar tempo e energia recuperando sua história e refletindo sobre ela.

As organizações convidadas foram: Associação dos Produtores Alternativos - APA (RO), Associação dos Produtores Rurais Rolimourenses para Ajuda Mútua - Apruram (RO), Grupo Ambientalista da Bahia - Gambá (BA), Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais - SASOP (BA), Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Sul da Bahia - Terra Viva (BA), Centro de Trabalho Indigenista - CTI e Comunidade Guarani do Aguapeú (SP), Associação Wyty Catë das Comunidades Timbira (MA e TO), Fundação Viver, Produzir e Preservar - FVPP (PA), Colônia de Pescadores Z-�� de Igarapé Miri (PA), Colônia de Pescadores Z-�6 de Cametá (PA) e Centro Agroecológico Sabiá (PE).

Ficou também decidido que cada projeto destacaria duas pessoas para serem as encarregadas da sistematização. Essas pessoas teriam que ter um perfil complementar, considerando-se os aspectos técnicos e políticos – garantindo a articulação interna do processo e a execução dos passos e atividades, os registros e a construção da narrativa.

Page 18: A arte de ampliar cabeças- uma leitura transversal das

Série Sistematização1�

e Assessoria em metodologias

participativas

O “como fazer” continuava sendo a grande dúvida de todos; muitos dos “sistematizadores” sentiam-se pouco à vontade na condução do processo, sobretudo na realização de momentos coletivos de reconstrução da história e de análise do que foi vivido e narrado.

A assessoria da professora Elza, rica e profunda nos aspectos conceituais e de reflexão, não cobria essa necessidade mais instrumental dos projetos. Como dar, na prática, os passos da sistematização? Como garantir a pluralidade de vozes na narrativa? Como enfrentar situações de conflito ou tensão internos? Como fazer uma reflexão coletiva?

Para apoiar nesse aspecto mais instrumental, o PDA buscou outra assessora, Ladjane Ramos, especialista em metodologias participativas. Ela acompanhou o processo, participou da segunda oficina, oferecendo algumas ferramentas para trabalho participativo, e visitou aqueles projetos que tinham maior necessidade de apoio metodológico na condução do trabalho.

d A organização interna do PDA para o processo

Para viabilizar o processo em tão curto tempo, a equipe do PDA trabalhou em sistema de “mutirão”, com muita coordenação e solidariedade interna. A equipe financeira encarregou-se de deixar os contratos preparados em tempo hábil e de fazer todos os contatos com o Banco do Brasil de forma a agilizar as aprovações e repasses de recursos. A equipe técnica dividiu a responsabilidade pelo acompanhamento dos projetos de sistematização, ficando cada técnico responsável por um ou mais projetos.

O que significou acompanhar cada projeto de sistematização? Agilizar e/ou intermediar, sempre que necessário, os aspectos burocráticos e contratuais junto à equipe financeira; ser o ponto de referência para os responsáveis, no projeto, por qualquer dúvida ou dificuldade; visitar os projetos, se necessário, para orientar a realização da sistematização; recorrer à professora Elza para esclarecimentos de que o projeto necessitasse; ler criticamente os relatos e apoiar os projetos na reflexão sobre seus processos e produtos.

A princípio, pensou-se numa equipe de assessores ad hoc – especialistas em diversos temas de interesse dos projetos – que poderiam ser acionados, se necessário, para ajudar no processo de reconstrução histórica e reflexão, mas, na prática, essa proposta não funcionou.

A professora Elza preparou alguns textos de suporte que serviram de “guia” para os aventureiros: “Para sistematizar experiências demonstrativas”; “Sistematização: fundamentos de uma proposta”; “O projeto de sistematização e seus momentos”; e o “Formulário de recuperação de experiências”.

Page 19: A arte de ampliar cabeças- uma leitura transversal das

1�Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

f A metodologia: marcando os momentos

O processo foi marcado por três momentos coletivos:

uma primeira oficina, de �� a �8 de julho de 2003, em Brasília, para os entendimentos iniciais – conceito de sistematização, plano de trabalho de cada projeto e acordos entre projetos e Secretaria Técnica;

uma segunda oficina, nos dias 4 e � de novembro de 2003, também em Brasília, para primeira apreciação dos produtos e reflexão sobre os processos, procurando indicar o que fazer para superar dificuldades e terminar o processo com qualidade refletida no produto. Nessa oficina, também foram oferecidas ferramentas para trabalho em grupo, buscando suprir uma necessidade dos projetos. Inicialmente, pensava-se em oficinas regionais, reunindo grupos de projetos com temáticas afins. No entanto, por uma questão de recursos e de tempo, essa idéia foi transformada em uma oficina de meio-termo para monitorar o processo, contando com a professora Elza e a consultora Ladjane;

uma terceira e última oficina, nos dias �8 e �9 de dezembro de 2003, para apreciação dos produtos finais e reflexão sobre sua utilização tanto pelos projetos como pelo PDA.

Entre as oficinas, cada dupla de “sistematizadores” voltava para suas bases e fazia o trabalho de reunir informações, recuperar a história, analisar as informações coletadas, promover momentos coletivos de debate, entrevistas e oficinas, e, ao final, produzir a narrativa.

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Série Sistematização1�

a Primeira oficina: acordos iniciais

A aventura começou para valer na primeira oficina: entender o que era esse negócio de sistematização, o que exatamente estava sendo proposto, discutir o conceito, a metodologia, construir as propostas iniciais e debater as questões práticas do processo.

A preparação da oficina envolveu intensamente a equipe do PDA, que desenhou uma matriz relacionando temas de interesse do programa que poderiam subsidiar a escolha dos focos ou eixos temáticos de sistematização dos projetos. De um lado, os seguintes temas: experiências adaptativas de modelos de Sistemas Agroflorestais/SAFs; apicultura/meliponicultura; manejo de recursos aquáticos; manejo florestal não-madeireiro; recuperação de reservas legais/RL, de áreas de proteção permanente/APP e de áreas alteradas. Do outro, os seguintes componentes: fortalecimento organizacional, beneficiamento, comercialização, gênero e geração, viabilidade econômica, segurança alimentar, fogo, instrumentos inovadores de assistência técnica, participação, estratégias de disseminação/difusão, políticas públicas, integração de atividades na propriedade (visão sistêmica). Esses componentes foram pensados a partir dos indicadores elaborados para o estudo da Amazônia. O exercício de preparar essa

Navegando matriz foi um importante passo para a elaboração do sistema de monitoria do PDA, que corria paralelo à experiência piloto de sistematização.

O tipo de sistematização que se estava propondo incluía suscitar uma problematização das experiências para possibilitar avanços. Problematização não tanto com ênfase nos resultados alcançados, mas na compreensão do caminho percorrido – como e por que foram alcançados esses resultados, como eles se constituíram, como foram se formando no bojo da experiência.

As pessoas embarcaram na aventura de se debruçar sobre suas práticas, narrá-las criando um “conto coletivo” feito de muitas vozes, e buscar entender o que estavam produzindo com essa prática. Pareceu a todos que a oportunidade da sistematização gerava possibilidade de crescimento pessoal e coletivo, na relação de “agonismo” no sentido usado por Michel Focault: provocação e acolhimento ao outro. Um estado que joga o sujeito a experimentar, a não ter medo do ainda não vivido. Enquanto espaço democrático, a sistematização serviria para também deixar vir à tona as tensões da experiência e trabalhá-las. E ficou clara a importância de deixar que as coisas se revelem, e que o façam em linguagem própria – porque é um processo de revelação do sujeito.

Esse primeiro encontro entre as pessoas dos projetos, com suas práticas e vivências, e a professora Elza, com sua análise teórica dessas práticas, foi muito rico para os dois lados. Era incrível ouvir, na mesma sala e sobre a mesma fala, citações de Gramsci e palavras de Raimundo Pureza, da colônia de pescadores Z-�� de Igarapé Miri: “a

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1�Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

potencialidade está no conhecimento das pessoas que fazem a experiência”.

A proposta metodológica previa a contextualização da experiência; a definição dos objetivos da sistematização e sua utilidade; a delimitação do foco a ser trabalhado e seu detalhamento em perguntas orientadoras; a relação das fontes e registros disponíveis; e a descrição dos passos concretos para se fazer a reconstrução histórica, a análise e reflexão do vivido, criando, para isso, momentos coletivos. Todo esse trabalho deveria ser feito em quatro meses, gerando produtos finais de cada experiência que poderiam tomar formas diferentes, embora todos tivessem que entregar um relatório final. Os processos de sistematização estariam se dando em torno da construção de “narrativas polifônicas”, que recuperassem as experiências do ponto de vista do coletivo que as viveu. No processo, haveria um primeiro momento para apresentação da primeira narrativa, para submetê-la à leitura crítica da professora Elza e dos demais companheiros de aventura; e um segundo momento, para apresentação da segunda versão da narrativa e nova rodada crítica que deveria subsidiar a construção das narrativas finais.

Para os processos de análise das experiências, a recomendação foi buscar identificar seus momentos significativos, conceitos que deveriam ser explicitados, problemas, tensões e potencialidades. Esses elementos poderiam permitir “abrir” a experiência para compreendê-la em sua complexidade real.

b Intermezzo: a primeira narrativa

Entre a primeira e a segunda oficinas, as duplas de “sistematizadores” produziram suas primeiras narrativas. Definidos o foco, com seus eixos e componentes, e as perguntas orientadoras, cada grupo delimitou exatamente o período da experiência que seria sistematizado. O caminho que cada projeto percorreu para elaborar a primeira narrativa foi diferente – uns fizeram linhas do tempo, outros, diagramas de Venn, a maioria fez entrevistas, porém todos trabalharam na ordenação de documentos relativos ao período definido e, por fim, estruturaram um primeiro documento.

Havia muita insegurança das duplas de “sistematizadores” sobre o que fazer exatamente, por onde começar, como estruturar o documento… Nesse período houve visitas da consultora em metodologias participativas a alguns grupos e muita interação com os técnicos do PDA encarregados do acompanhamento, incluindo algumas visitas e oficinas. A orientação da professora Elza era a de se montar a reconstrução histórica da experiência vivida e analisá-la buscando identificar as mudanças significativas, os conceitos por trás das ações e das escolhas feitas, e as tensões da experiência. Cada grupo organizou sua narrativa inicial de uma forma diferente.

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Série Sistematização20

c Segunda oficina: observando o rumo

Na avaliação dos “sistematizadores” dos distintos projetos, o processo estava trazendo muita riqueza, gerando mobilização, visibilidade para o projeto, despertando a curiosidade e aumentando a auto-estima dos grupos envolvidos. O fato de se resgatar a história e valorizar os registros também foi importante para todos. As dificuldades estavam mais centradas no “como fazer” – como contemplar todas as vozes na narrativa, como dar forma a todas as informações coletadas, como trabalhar o produto final… Os “sistematizadores” perceberam a necessidade de mais instrumentos para trabalhar nos coletivos, ferramentas de educação popular, de dinâmicas de grupo, que auxiliassem na tarefa. O processo de análise da história reconstruída também apresentava dificuldades. E o tempo corria contra todos, como um fator limitante e ao mesmo tempo instigador. Entre as oportunidades possibilitadas pela sistematização destacavam-se o crescimento individual e institucional de cada organização ou grupo, o “empoderamento” e a reorientação da prática.

A sistematização mobiliza e possibilita ao sujeito condições de expressão; contribui para o desenvolvimento de sua visão crítica quando situa a experiência no contexto e historicamente. Esse conhecimento contamina indivíduo e coletivo, possibilita o desenvolvimento de uma atitude reflexiva e, ao mesmo tempo, provoca a ação. Gera curiosidade quanto às coisas, às relações, aos fatores que as provocam. Curiosidade epistêmica,

segundo Paulo Freire. E possibilita a formação continuada dos sujeitos que reúne. Formação pela experiência que, para ser apreendida, demanda relação entre conhecimento teórico e conhecimento prático.

Para aproveitar ao máximo os debates sobre a análise de cada narrativa, a estrutura da oficina contemplou um primeiro momento coletivo, de avaliação do processo; e, no segundo momento, um agrupamento das experiências por similitude, formando “blocos” de narrativas cujos responsáveis se reuniam com a professora Elza para revisão das narrativas e teorização7, enquanto os demais trabalhavam técnicas e metodologias participativas para trabalho em grupos com Ladjane Ramos.

Os “sistematizadores” das experiências da APA, da Apruram, de Igarapé Miri e de Cametá formaram um grupo de trabalho, sendo que as duas primeiras tratam de SAFs, e, as duas últimas, de acordos de pesca e manejo de açaizais, todas na Amazônia. O público das duas primeiras é de agricultores familiares e, das outras, pescadores artesanais. Um outro grupo reuniu as experiências indígenas – dos Guarani e da Wyty Catë (Timbira), ambos assessorados pelo Centro de Trabalho Indigenista, e a Fundação Viver, Produzir e Preservar, da Transamazônica. As experiências da Mata Atlântica formaram o outro grupo - Gambá, Sabiá, Terra Viva e Sasop.

Escutar a análise das outras narrativas foi muito rico para cada participante dos grupos – todos queriam ouvir as experiências dos demais. O próximo encontro deveria tentar apresentar uma estrutura que facilitasse esse intercâmbio.

7 As narrativas haviam sido enviadas com antecedên-cia para análise e sugestões.

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d Intermezzo: segunda narrativa

O tempo entre a segunda e a terceira oficinas foi utilizado pelos “sistematizadores” para reelaborar as narrativas de acordo com os comentários e sugestões resultantes do momento coletivo de análise da primeira narrativa. Em alguns casos, foram feitos novos momentos coletivos, novas análises. Contudo, todos trabalharam na elaboração da segunda narrativa.

e Terceira oficina: e agora?

O último encontro foi em dezembro e teve dois momentos. O primeiro tratou da apresentação sucinta das narrativas, pelas duplas sistematizadoras, e da análise da professora Elza sobre cada uma, pontuando o que ainda precisaria ser melhorado. Para ser considerado finalizado, cada produto deveria ter, ainda, uma terceira versão, burilada sobre os comentários finais da consultora e do grupo envolvido no processo. Ou seja, os produtos “finais” levados para a última oficina eram ainda apenas a “segunda versão”, necessitando mais um tempo para sua revisão e acabamento.

A segunda parte da oficina tratou da questão da comunicação – o que fazer com esses produtos? Como convidada do PDA para o tema de uso da informação, Maristela Bernardo, especialista no assunto, falou sobre a necessidade de se definir comunicação de forma estratégica, pensando o que se quer comunicar, para quem, e só aí definindo a forma. Para cada tema e para cada público pode haver uma forma diferente de comunicar. Isso inverte a tendência geral de pensar primeiro num formato (publicação, vídeo…) e, depois, tentar que esses produtos cheguem até um público geralmente difuso, pouco definido.

À luz desse debate, a equipe do PDA e as duplas de “sistematizadores” ficaram com o desafio de buscar esclarecer o que se quer comunicar a quem, para precisar uma estratégia de finalização dos produtos da sistematização. O PDA, como parceiro dos projetos,

afirmou seu compromisso de buscar apoio para a realização dessas estratégias. Ficou clara a importância de se definir a própria estratégia de comunicação do PDA, o que se queria comunicar desse processo de sistematização, para quem e com que finalidade.

As pessoas que se reuniram na aventura da sistematização haviam chegado a bom porto e era hora de se despedir – fim de ano, fim de um ciclo, começo de outros. O clima de alegria dava o tom da oficina – as pessoas falaram da valorização de si mesmas e dos outros, da elevação da auto-estima e das descobertas que tinham feito ao longo do caminho.

E, para completar, houve toda uma aventura na volta da oficina – um caminhão com problemas havia “fechado” a estrada de Pirenópolis a Brasília, o que provocou atraso na viagem e perda do vôo por alguns dos participantes e pela consultora. Quase Natal, o aeroporto de Brasília era uma loucura – como todos do país, nessa data – e foram montadas várias estratégias para se tentar resolver a situação. Um momento de ansiedade inesperado, que de alguma forma mostrou a união e a solidariedade do grupo de amigos que se formou no processo de sistematização. Finalmente, todos conseguiram chegar em paz a suas casas, mesmo com um certo atraso, mas a tempo para as comemorações e para o descanso do Natal.

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Os projetos de sistematizaçãoForam onze projetos, abaixo listados, com o foco estabelecido em cada caso e a dupla encarregada da sistematização.

Projeto Recomposição Florestal em Áreas Rurais- Reflorar, do Grupo Ambientalista da Bahia – Gambá

Objetivo do projeto: recuperar áreas degradadas de Mata Atlântica na região do recôncavo sul da Bahia. Tempo de execução: apoio do PDA de �999 a 2003 (financiamento e refinanciamento).Equipe de sistematização: Márcia Neves, responsável pela estratégia de educação ambiental e articulação regional do Projeto Reflorar, e Maria Tereza, técnica do Gambá.Foco: inicialmente, seria a estratégia de difusão e disseminação utilizada pelo projeto. Posteriormente alterado para o conceito de relações de parceria.

Projeto Promover o Estímulo ao Desenvolvimento Sócio Econômico e Cultural das Famílias Rurais, da Associação dos Produtores Rurais para Ajuda Mútua – Apruram.

Foco: beneficiamento, comercialização e gênero.Equipe de sistematização: Adelício Jacinto, presidente da Apruram e liderança reconhecida na região, e Marinete Silva, da equipe técnica da Associação.

Projeto Desenvolvimento Sustentável para Agricultores da Amazônia Ocidental - Fase II, da Associação dos Produtores Alternativos – APA

Objetivo do projeto: produção, beneficiamento e comercialização dos produtos dos SAFs e de outros produtos florestais não madeireiros, especialmente o mel.Foco da sistematização: Inicialmente, beneficiamento, comercialização e gênero. Posteriormente alterado para a relação entre a organização do trabalho da família e os sistemas de produção agroflorestais.Equipe de sistematização: José Kuticoski, presidente da APA na época, e Alexsandro Oliveira, técnico da Associação.

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23Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

Projeto de Educação Agroecológica e Disseminação de Sistemas Agroflorestais do Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Sul da Bahia – Terra Viva

Foco da sistematização: as estratégias de difusão e disseminação da agroecologia utilizadas pelo Centro - estratégias de disseminação de SAFs e aspectos mais relevantes nos processos de introdução de uma nova matriz produtiva de desenvolvimento para comunidades rurais da região.Equipe de sistematização: Alexandro Chaves e Francisco Colli.

Projeto de Continuidade do Trabalho de Difusão de Sistemas Agroflorestais, do Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá

Focos: a comercialização agroecológica dos produtos dos SAFs e a estratégia de difusão utilizada pela instituição. Equipe de sistematização: Joseilton Sousa e Daniela Nart.

Projeto de Apoio a Iniciativas Comunitárias: Preservação de Recursos Aquáticos; Manejo Florestal, da Colônia de Pescadores Z-16, de Cametá

Foco da sistematização: acordos de pesca como alternativa econômica, alimentar e organizacional para os pescadores artesanais de Cametá.Equipe de sistematização: José Domingos Fernandes Barra e José Roberto Gomes Xavier.

Projeto Apoio a Iniciativas de Gestão Comunitária de Recursos Aquáticos, da Colônia de Pescadores Z-15, de Igarapé Miri

Foco: acordos de pesca como alternativa econômica, alimentar e organizacional para os pescadores artesanais de Igarapé Miri.Equipe de sistematização: Raimundo Pureza, presidente da Colônia, e Elias da Silva Santos, técnico.

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Projeto Valorização e Conservação das Reservas Florestais nos Lotes dos Pequenos Produtores Rurais de Medicilândia e Pacajá, da Fundação Viver, Produzir e Preservar

Objetivo do projeto: valorização das áreas de reserva legal.Foco da sistematização: a relação entre o fortalecimento organizacional, a comercialização e a visão sistêmica da propriedade. Equipe de sistematização: Luzia Aparecida Pinheiro e Edvânia Duarte.

Projeto Jaguatarei Nhemboé - Caminhando e Conhecendo, do Centro de Trabalho Indigenista – CTI e Comunidade Guarani do Aguapeú

Objetivo do projeto: ordenar a visitação turística à aldeia.Foco da sistematização: participação da comunidade e incidência do projeto sobre políticas públicas. Posteriormente alterado para compreensão do processo organizativo da comunidade ao redor do projeto. Equipe de sistematização: Maria Bernadete Franceschini e Adriana Felipim, ambas do quadro técnico do CTI.

Projeto Consolidação das Práticas Agroextrativistas e Beneficiamento de Frutas nas Aldeias, da Associação Wyty Catë das Comunidades Timbira do Maranhão e Tocantins

Foco da sistematização: desenvolvimento da organização indígena, destacando os aspectos das relações de geração e das relações interétnicas Equipe de Sistematização: Andréia Bavaresco, técnica do CTI, e Jonas Gavião, da diretoria da Wyty Catë.

Projeto Manejo de Sistemas Agroflorestais: Conservação do Bioma Mata Atlântica no Contexto da Agricultura Familiar, do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais/Sasop

Foco da sistematização: as estratégias de disseminação implementadas pela entidade e pelos agricultores para a adoção de práticas e princípios de manejo sustentável de sistemas agroflorestais no Baixo Sul da Bahia. Equipe de sistematização: Marcelo Paranhos (coordenador), Ana Bonfim, Luana Carvalho e Luciano Paixão.

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25Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

Aspectos para reflexão

a Alguns erros e acertos do processo

A orientação oferecida às equipes de “sistematizadores” foi mais conceitual e teórica e pouco instrumental. Para recuperar essa lacuna, foi contratada uma consultora em metodologias participativas. No entanto, a inserção de ferramentas de trabalho em grupo nos processos de sistematização, muitas delas originadas da tradição da educação popular, ficou pouco definida. Seria importante uma capacitação mais vivencial e um tipo de guia metodológico mais prático, com instrumental para o trabalho de campo.

O diálogo entre os representantes de projetos e a professora Elza, que trazia elementos da teoria para o debate, revelou-se profundamente rico.

Poucos projetos conseguiram, até a segunda narrativa, chegar à formulação de conclusões – lições aprendidas e recomendações. É importante ter uma orientação metodológica clara sobre como fazer esse momento coletivo. Em vários dos projetos sistematizados, houve uma última oficina local, quase dois anos depois, com apoio do PDA, para fechar o processo e finalizar a narrativa.

É necessário contar com apoio para a construção das narrativas, valorizando as gravações e as filmagens. Dotar todos os projetos com gravadores foi uma iniciativa muito adequada.

Formar grupos de discussão (internet, encontros) mostrou-se produtivo e integrador. Outro aspecto importante a ressaltar foi a proposição de uma matriz com eixos e componentes para orientar os projetos nas escolhas dos seus focos de sistematização, apesar de muitos terem mudado os focos ao longo do processo. O fato de haver projetos com focos semelhantes é recomendável para o programa, porque permite o intercâmbio, propicia análises comparativas e amplia a aprendizagem.

Finalmente, é fundamental considerar que o processo não termina com a produção de um documento final, mas que é necessário pensar na comunicação do aprendizado. Cada projeto tem uma proposta local para uso de seu produto da sistematização. Em praticamente todos os casos, isso significou retrabalhar as narrativas, seja para finalizar melhor a versão existente, seja para “trocar de forma” o material produzido – transformar linguagem oral ou linguagem audiovisual em linguagem escrita, por exemplo. Esse foi o grande desafio na finalização das narrativas, publicadas pela parceria do PDA com a Fundação Banco do Brasil, com apoio da Cooperação Técnica Alemã (GTZ).

b Tropeços, aprendizados, novas perguntas

As equipes de sistematização apontaram muitos aprendizados e dificuldades encontrados no processo.

Para o Centro Sabiá, o processo permitiu conhecer melhor as experiências em que atua e resgatar elementos que contribuem para repensar o trabalho da instituição. Uma das reflexões da equipe é que a sistematização garante que a história das experiências e o conhecimento acumulado possam ser repassados a outras pessoas que venham a somar-se à dinâmica institucional. “O método utilizado proporcionou maior interação com as comunidades”, afirmou Joseilton Sousa.

Arnaldo Fernandes, conselheiro do Terra Viva, afirmou que “é importante refletir sobre nosso processo e sobre nossa história e mostrar isso, assim a sociedade pode espelhar em nós, pois tudo que dá certo é copiado. Essa reflexão e comunicação podem despertar o interesse”.

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Para a equipe do Gambá, a sistematização revelou e potencializou um aprendizado que ocorreu na prática, criando espaço para a discussão entre os integrantes da experiência, e oportunizou uma reflexão importante para o futuro do projeto e da instituição proponente. A equipe constatou, ainda, que, contrariamente à idéia inicial de que todas as relações desenvolvidas pelo projeto eram de parceria, estas só se estabeleceram com os proprietários rurais.

A importância do registro organizado de tudo que se faz, foi também um aprendizado. “Se a gente pensa que pode vir a utilizar esse registro mais adiante, ele ganha maior significado”, explica Márcia Neves.

De uma forma geral, a avaliação das equipes envolvidas é de que foi um processo muito rico. O presidente da APA afirmou que “o projeto de sistematização deu uma sacudida na Associação”.

Em termos das dificuldades encontradas, as equipes concordaram que, embora a fase de coleta de informações tenha apresentado momentos difíceis, o desafio maior foi mesmo o de elaborar as narrativas. Dedicar tempo ao estudo, à reflexão e ao ato de escrever, encontrar a linguagem adequada, escolher o formato e a estrutura dos documentos foram algumas das dificuldades reiteradas pelos “sistematizadores”.

Além da dinâmica e da rotina de escrever, que necessita de uma disciplina própria, muitos enfatizaram também a necessidade de aprofundar-se no conhecimento dos métodos e instrumentos que possam ser trabalhados na sistematização.

Para a Secretaria Técnica do PDA, a experiência piloto traz uma série de aprendizados e coloca questões. Ficou claro que a sistematização de experiências, com essa metodologia, é um processo muito rico, que gera “empoderamento” das pessoas e organizações, mas que tem um custo que deve ser considerado nos orçamentos dos projetos, e que demanda muito tempo e dedicação, sobretudo na fase de escrever/descrever as narrativas. Talvez se pudesse pensar em produtos “parcelados”, menores, que fossem sendo realizados ao longo da execução do projeto, tirando o “peso” de se ter que escrever uma narrativa final, que tende a se tornar grande e, às vezes, muito exaustiva.

Um desafio que ainda permanece é como casar melhor a proposta de sistematização com a monitoria do projeto de maneira que esta gere registros interessantes, que possam ser consolidados em documentos, narrativas ou produtos “parcelados” de sistematização.

Uma coisa certa é que as organizações carecem de mais formação na área de metodologias e de ferramentas para o trabalho participativo. E, ainda, que as estratégias de difusão e disseminação dos projetos devem estar também casadas com os produtos da sistematização, definindo claramente os públicos que se quer alcançar e as mudanças que se quer promover a partir dos processos de comunicação.

Criar um padrão metodológico de sistematização para os projetos PDA a partir desse piloto implicaria rever alguns aspectos, retrabalhar a proposta indicando

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2�Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

A “Série Sistematização” do PDA

Em 200�, o PDA firmou uma parceria com a Fundação Banco do Brasil para publicação das narrativas de sistematização dos onze projetos. Nascia a “Série Sistematização: Comunidades construindo sua sustentabilidade”. Para finalizar os processos e as narrativas, nova consultoria foi contratada pelo PDA; foram realizadas oficinas em alguns dos projetos, para tirar lições, recomendações, conclusões, e também para completar aspectos que houvessem faltado na narrativa anterior.

Foi feito todo um trabalho de edição dos textos e, em alguns casos, de nova formatação – transposição de uma linguagem a outra, de um suporte a outro. Assim, a fita gravada pelos Guarani virou um livrinho, da mesma forma que o vídeo dos Timbira. Além disso, foi preparado um último volume da série, com uma visão geral da metodologia utilizada e uma reflexão sobre o processo, os temas e conceitos que emergiram ao longo do trabalho.

As narrativas já começaram a ganhar o mundo, servindo para o que nasceram, afinal: contar a história de uns para outros, para muitos outros, em diferentes lugares. Que sirvam para jogar mais luz sobre tantas lindas iniciativas que existem neste País. Como dizem as três ceguinhas de Campina Grande8, “a pessoa é para o que nasce”; e a aventura da sistematização só se completa com a serventia da comunicação. Correr mundo é uma das funções para as quais nascem as narrativas.

8 Três irmãs cegas de Campina Grande, protagonistas do docu-mentário “A pessoa é para o que nasce”.

instrumentos simples e concretos de forma a auxiliar os projetos na reconstituição da história vivida, em sua análise e na preparação de produtos interessantes e úteis para seus propósitos e para suas estratégias de disseminação.

Alguns pontos de estrangulamento são facilmente identificáveis. Um deles é o aspecto financeiro – o projeto piloto de sistematização só pôde acontecer conforme o previsto porque mais recursos foram injetados, cobrindo os custos das oficinas em Brasília e em Pirenópolis. Também foram recursos adicionais (da GTZ) que pagaram as consultorias de Elza Falkembach e de Ladjane Ramos.

Uma outra questão que ficou para a reflexão do PDA é como manter a qualidade de um processo de sistematização sem contar com uma assessoria externa que traga aportes, sobretudo nos momentos de análise das reconstruções históricas. No caso do projeto piloto, as condições foram próximas do ideal, com a equipe técnica totalmente dedicada, visitando os projetos quando necessário, com as duas consultoras permanentemente apoiando o trabalho, com a realização de três oficinas e com a produção de material de suporte e leitura. Na prática dos projetos, de uma forma geral, essas condições não estão presentes.

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Série Sistematização2�

Neste texto procuramos apresentar o significado que atribuímos à expressão “núcleo de singularidade” ao trabalhar a sistematização de práticas sociais. Procuramos, também, apresentar os “núcleos de singularidade” que identificamos em cada uma das �� práticas sociais sistematizadas mediante apoio do PDA/MMA e que compuseram a “Série sistematização: comunidades construindo sua sustentabilidade”.

Quando falamos em “núcleo de singularidade” de uma prática social, não estamos nos referindo a algo fixo ou estrutural, mas a um conjunto de elementos – coisas, pessoas, idéias, significados, relações – que, ao se combinarem em um dado tempo e espaço, produzem certas configurações que tornam esta mesma prática distinta de outras, inclusive daquelas com as quais compartilha um mesmo ambiente ou campo de manifestação e um mesmo momento de expressão. Um “núcleo de singularidade” acolhe significados culturais e revela a produção de conhecimentos, atos e relações que sobre eles se tornam possíveis em um momento da prática. Em razão disso, acaba atuando como motivação interna para que os integrantes da sistematização reflitam sobre as peculiaridades do então criado e apresentado.

As práticas

sistematizadas e seusnúcleos de singularidade

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2�Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

Centro SabiáO núcleo de singularidade da prática

sistematizada pelo Centro Sabiá situa-se sobre as relações de amizade construídas entre produtores e entre estes e os consumidores: os produtores que participam dos “espaços agroecológicos” comercializam produtos próprios e de outros produtores. Essa forma de agir, ao mesmo tempo que dá volume à produção, viabilidade aos “espaços agroecológicos” e objetiva propósitos de solidariedade entre companheiros, cria tensões, uma vez que as responsabilidades e gastos de comercialização acabam recaindo apenas sobre os produtores presentes nas feiras. Com isso, pudemos identificar, então, o confronto entre os novos valores que a convivência demanda e aqueles do mercado capitalista – tensão que a prática terá que administrar.

Por outro lado, os produtores que têm acesso aos “espaços” acumulam ganhos secundários (nem todos e nem por todos reconhecidos), pois ampliam sua sociabilidade (passam a freqüentar a cidade e a ter acesso a instituições por ela oferecidas, como: bancos, secretarias municipais, entre outros), e expandem suas capacidades de comunicação (na relação com o consumidor, além de oferecer produtos, desempenham o trabalho educativo de argumentar sobre o significado do produto agroecológico para a sustentabilidade do indivíduo e do seu meio natural e social). Com isso criam valores (valorização da vida), relativizam normas e suscitam a constituição de outras novas (insurgem-se, com o apoio dos consumidores, contra a proibição de utilização de praças públicas para a realização de feiras). Há, ainda, a valorização da mulher e de seu trabalho, enquanto cidadã e trabalhadora, na medida em que esta também passa a ter presença nos espaços públicos (dentre outros, os de comercialização).

FVPPA sistematização da prática da Fundação

mostra como um movimento social preocupado com a sobrevivência de produtores rurais que vivem a agressão constante do meio natural e social, colocando em risco vidas e ideais, consegue constituir-se como uma prática de resistência aos processos sociais dominantes que tendem a inviabilizá-los como trabalhadores e mesmo como cidadãos. Mostra como, a partir das lutas desenvolvidas, o movimento que protagoniza consegue expandir-se e tornar-se complexo, chegando a ser propositivo em suas ações – da sobrevivência ao desenvolvimento da região. Utilizando-se de estratégias diversificadas, cria formas novas de mobilização (os “Gritos”) e propõe novas formas de relação com a vida, com a produção, com o trabalho e com o ambiente: “viver, produzir, preservar”. Mostra à sociedade brasileira, a setores das populações de outros países e a instituições nacionais e estrangeiras os problemas da Transamazônica. Utiliza-se, também, da representação indireta, elegendo vereadores e deputados para pressionar órgãos governamentais no sentido de preservar as riquezas regionais e de criar políticas que viabilizem a região. Em relação ao Estado, percebe as suas diferentes políticas e estratégias, assume atitude reivindicativa e propositiva, alia-se, quando possível, mas sem se deixar cooptar, e ainda força o Governo à tomada de posição e à ação quanto às lutas do movimento. Atua na promoção do desenvolvimento regional, abrindo frentes diversas de proposição e ação nos âmbitos da produção, meio ambiente, educação, saúde e qualidade de vida.

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Apruram“Solidariedade”, “descentralização

do poder” e “visão empreendedora” são expressões que definem a prática da Apruram, associação de produtores pautada por uma organização de tipo familiar, cujos diretores e funcionários que desempenham funções burocráticas não perdem o vínculo com a terra.

Há na Apruram uma tradição de expressão oral, associada a uma capacidade muito grande de reflexão das suas vivências, das políticas agrícolas que enfrentaram e dos desafios da conjuntura, o que possibilita clareza de objetivos, rapidez na orientação e reorientação de metas sem haver, contudo, perda de prioridades e desconhecimento dos princípios do processo associativo. Essas características têm fortalecido tanto a “Central”, como as “associações filiadas” e as “famílias dos associados” que participam com seus diversos integrantes da vida da Apruram – produzindo, refletindo, tomando decisões e confraternizando. Com isso, há grande transparência administrativa, minimização do desperdício (não perdem produto na roça), cuidado com os recursos tecnológicos e ambientais (não depredam, recuperam o perdido e consideram parte dos recursos como poupança da família) e preservação da vida (cuidado com a alimentação, saúde, bem-estar e relações de amizade). Mesmo que a maior escolarização seja um privilégio ao qual só tem acesso a nova geração (filhos que freqüentam as Escolas Familiares Rurais), há uma intuição e austeridade administrativa (capacidade de avaliação de riscos, aprendizado com os próprios erros, perseverança no trabalho) que fazem a Apruram superar deficiências teóricas e técnicas, além de constituir-se como uma central de associações dirigida à comercialização de produtos agrícolas ágil, comprometida com os associados e com grande visão empreendedora.

APAEmbora constitua sua estrutura administrativa

de forma mais institucional e burocrática do que a de um movimento social, a prática da APA apresenta algumas características comuns a esse tipo de movimento: trabalho de base, forma de militância em torno do tema da agroecologia, e conquista de espaços alternativos e não-alternativos para a comercialização dos seus produtos. Sua grande frente de luta e ação está situada na produção agroecológica (SAFs). A apicultura, por exemplo, é um elemento desencadeador das transformações introduzidas no processo produtivo das propriedades familiares: repovoamento da floresta, diversificação, eliminação total de agrotóxicos, racionalização e aproveitamento, ao máximo, do produzido.

A construção da agroindústria foi uma das formas de viabilizar as mudanças, seguida de formas diversificadas e audazes de comercialização. A nova forma de orientar a produção provocou a reorganização do trabalho na propriedade (incorporação do trabalho das mulheres e dos jovens), transformações nas relações familiares (relações de gênero e de geração), novos modos de formação e solidariedade (trabalho educativo que incorporou a figura do agricultor técnico e o monitoramento das atividades para garantir a adoção de práticas sustentáveis) e maior empenho na qualidade e orientação da educação das crianças e jovens (Escolas Familiares Rurais).

Desde sua constituição, a APA mantém relações com as pastorais da saúde e da terra e, por essas vias, incorporou o trabalho à saúde da família, o que resultou em melhor qualidade de vida, tanto objetiva quanto subjetivamente. Esse é o grande elemento motivador da ação institucional e aglutinador das famílias associadas.

A sistematização não chegou a expor como o grupo de mulheres tem contribuído para as mudanças verificadas, e também não explorou o processo migratório das famílias, que parece tensionar subjetivamente a qualidade de vida, principalmente entre as mulheres da Associação.

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31Arte de ampliar cabeças: uma leitura transversal das sistematizações do PDA

Terra VivaA sistematização do Terra Viva mostra

uma prática institucional que tem no educativo seu ponto forte. A singularidade dessa prática revela-se em dois pontos. O primeiro corresponde à maneira como o processo educativo é mediado pelos técnicos-experimentadores-educadores. São técnicos militantes e, ao mesmo tempo, qualificados e preocupados em qualificar-se teórica e pedagogicamente. Assumem, em sua prática, uma atitude investigativa e dispõem de ferramentas pedagógicas diversificadas e “adaptadas” aos grupos que atingem, tornando a entidade viva e ativa. O segundo, decorrente do primeiro, está associado ao “estalo” (diagnosticado pelos técnicos) pelo qual passam os agricultores com quem a instituição interage. Esse “estalo” é o momento da mudança do agricultor, momento em que o mesmo vê que a sua sustentabilidade e a do planeta envolvem nova forma de relação consigo, com o ambiente e com o social. Essa mudança tem também dois componentes: é uma mudança de paradigma no produtivo (da agricultura dos pacotes tecnológicos para a agroecologia) e no processo educativo (virada pedagógica do ensino para a aprendizagem).

SasopNo processo de sistematização desenvolvido

pelo Sasop ficaram evidentes duas coisas. Primeiramente a preocupação com o processo educativo, em especial o empenho em encontrar ferramentas que permitissem à prática institucional romper com o paradigma difusionista. Ainda no processo educativo, destacou-se o uso de ferramentas diversas para facilitar a comunicação com o produtor: boletins, trabalho com imagens, técnicas participativas. Em segundo lugar, a mudança de paradigma na produção: a coragem de abandonar um modelo de SAFs prestigiado, porém não situado culturalmente, e a criação, em parceria com os produtores, de uma proposta experimentalmente construída, mais flexível, culturalmente situada, sem desconhecer o mérito do modelo anterior. Houve a incorporação e ressignificação de práticas tradicionais, como o mutirão, para o desenvolvimento da nova proposta.

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GambáO núcleo de

singularidade da prática do Gambá – as relações de parceria na educação ambiental – foi brotando à medida em que o grupo foi se tornando mais reflexivo, recorrendo à teoria e à criação e ao uso de técnicas participativas para compreender a prática. Ficou “explicado” que a interinstitucionalidade criada no início do trabalho e mantida na sistematização consistia em uma forma de construir relações de parceria plurais sem, contudo, afetar os princípios que a organização se propunha a colocar em pauta por meio da educação ambiental.

GuaraniA sistematização desenvolvida pelos índios Guarani que

vivem em uma pequena aldeia nas cercanias da Grande São Paulo (Comunidade Mbyá de Aguapeú) passou por significativas mudanças. Foi iniciada com a pretensão de acompanhar a implantação e o funcionamento de um projeto de recebimento de turistas e moradores da cidade praiana de Monguaguá, da qual a aldeia se separa por um pequeno rio. O projeto previa a construção de uma “Casa da Cultura” e de um roteiro de visita pela aldeia – parte pelo rio e parte por terra – o que levou à aquisição de equipamento de navegação e construção de uma “trilha” para acesso à floresta.

Com o projeto, os Guarani pretendiam receber os visitantes de forma organizada, evitando a invasão dos brancos na aldeia (o que vinha comprometendo a privacidade das famílias); dar informações sobre a cultura mediante a abertura da Casa da Cultura ao acesso dos brancos e apresentação de cantos, danças, mostra e comercialização de artesanato; “educar os brancos para o silêncio, para ouvir a natureza, para compreender um pouco, um pouquinho só, da cultura guarani”; e gerar renda para a comunidade.

Contudo, o projeto não chegou a deslanchar como previsto por “problemas de percurso” (dificuldade de parceria com a Prefeitura, em razão do conflito dos tempos culturais de brancos e índios, burocracia do setor público e outros). Poucas visitas foram realizadas. Porém, a preparação para a implantação do projeto foi uma caminhada de aprendizagens, com acertos e erros de tal ordem que acabou se constituindo em objeto de sistematização.

O objeto de sistematização converteu-se, então, no processo de preparação para a implantação do projeto, que exigiu, dos moradores da aldeia e de seus assessores, debates e reflexões intensas. O núcleo de singularidade da sistematização recaiu sobre as questões em pauta: os diversos papéis e comportamentos a serem desempenhados pelos índios no projeto – barqueiro, guia, integrantes de grupos de dança, canto, venda de artesanato; a educação dos visitantes quanto à relação com a natureza; o destino a ser dado ao lixo produzido pelos turistas; os preços dos ingressos; a distribuição e o uso dos recursos financeiros a serem gerados pelas visitações; treinamentos internos realizados para viabilizar a implantação do projeto.

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Wyty CatëNeste caso, o núcleo de singularidade

decorre do confronto das lógicas com as quais a prática sistematizada trabalha: a da cultura e a do mercado; o uso de um modelo de associação, cuja figura jurídica é própria do mundo dos brancos e que foi utilizada pelos índios Timbira, com toda a diversidade étnica que congrega – Krahô, Gavião, Apinayé, Krikati, Canela Ramkomekra – e ainda a diversidade geracional – papel dos jovens, papel dos velhos no empreendimento. Trata também do papel do sócio não-indígena, que é a organização de assessoria aos Timbira, o CTI.

A estratégia de valorização dos frutos nativos como forma de proteger o cerrado da devastação provocada pelo avanço da frente sojeira levou à criação da indústria de polpas de fruta, que se estruturou de forma a concorrer no mercado, ou seja, passou a demandar regularidade e volume de matéria-prima para tornar-se competitiva. No entanto, sua inserção no mercado foi feita a favor da cultura indígena, sem pressionar os índios a entrarem na roda viva da produção para suprir as exigências do empreendimento. A sistematização mostra que foi necessário, então, criar alianças, primeiro com os agroextrativistas da região, e depois com a Rede Solidária do Araguaia Tocantins, de forma a assegurar o funcionamento regular da indústria. Sobre esse núcleo de construções, ações e relações, a sistematização foi apontando criações, estratégias, tensões, superações e novos problemas a serem enfrentados pela prática.

Igarapé-Miri e CametáSob o eixo temático “acordos de pesca”, as duas experiências

sistematizadas tratam da prática social das comunidades de pescadores artesanais das regiões de Cametá e Igarapé-Miri, estado do Pará, áreas de atuação das Colônias de Pescadores Z-�6 e Z-��, respectivamente. Falam da saga das populações locais – “tanto as urbanas (consumidores) como as ribeirinhas (pescadores artesanais) e os mercadores (atravessadores)” – frente ao desastre ambiental decorrente da implantação de usinas hidrelétricas no rio Tocantins, no estado do Pará, que precedeu os referidos acordos. Resgatam as iniciativas e lutas que possibilitaram à população ribeirinha romper com as relações escravizantes que viviam até as proximidades dos anos 80 e pactuar acordos de pesca que reconfiguraram o uso de recursos ambientais e econômicos: organização em movimentos sociais, construção de alianças com outros movimentos que resultaram em “unidades de mobilização”, e apoio de uma pastoral social ligada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), conquistas das Colônias de Pescadores.

Os “acordos de pesca” se estabeleceram no bojo de uma luta que buscou, portanto, resgatar condições de vida para essa população atingida pelos danos sociais e ambientais decorrentes de projetos culturalmente invasivos, socialmente excludentes e politicamente antidemocráticos. Podem ser caracterizados como uma prática de resistência: são propositivos, inovadores, culturalmente situados e repactuados continuamente. Seus protagonistas são as comunidades.

Pressionado pela demanda dos ribeirinhos organizados, o Estado tem reconhecido e fortalecido os acordos e, com isso, as comunidades têm também conquistado mais força e reconhecimento. Por sua vez, o Estado se aproveita e transfere à população algumas de suas funções, como a de fiscalização. Isso tem gerado tensões nas relações comunitárias e familiares, bem como nas relações entre comunidade e Estado, pois há a delegação de funções que não é acompanhada das condições necessárias – respaldo e preparo dos agentes – ao seu desempenho. Essa descentralização intensifica o poder das comunidades, mas lhe atribui “um novo peso”, uma maior responsabilidade.

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Sistematização,uma arte de

ampliarcabeças...

Elza Maria Fonseca Falkembach, 2006

O objetivo deste texto é apresentar a proposta teórico-metodológica que orientou o desenvolvimento da sistematização de �� experiências, apoiadas pelo PDA, e cujos produtos vieram a compor a Série Sistematização: comunidades construindo sua sustentabilidade, iniciativa viabilizada pelo mesmo programa. Esses escritos apresentam ao leitor reflexões sobre a contemporaneidade e argumentam sobre a possibilidade de a sistematização constituir-se em um instrumental pedagógico que instiga coletivos humanos à produção de conhecimentos e aprendizagens. Procuram mostrar como a sistematização contribui para a formação de sujeitos, de pensamento e ação, que fazem de suas práticas oportunidades de estar no mundo de forma reflexiva e, ao mesmo tempo, propositiva; como contribui para que espaços de práticas sociais produtivas, organizativas, educativas e culturais se constituam em oportunidades de viver “experiência”.

O texto apresenta os fundamentos, os limites e as potencialidades de uma “proposta de sistematização de práticas sociais”, cujos procedimentos foram traçados para serem vividos em 8 atos. Foi produzido com o objetivo de proporcionar maior visibilidade a uma lógica metodológica reconstruída, mediante �� estilos – das �� experiências apoiadas pelo PDA – e desafiar a novas vivências e reconstruções.

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Falando de um tempo e de espaços

Não é fácil, para nós, humanos, estarmos no mundo, nos vermos em um tempo e em um espaço e decidirmos como vivê-los. Até porque esse tipo de decisão exige capacidade e habilidade para divisar as fissuras que intercalam os condicionamentos e as determinações dos processos sociais dominantes que, sem grande esforço, as encobrem. Requer a concentração de forças do intelecto para compreendê-las e perceber que os processos sociais dominantes são capazes de gerir, ao seu modo, os espaços onde se expressam as vidas humanas, mas nem sempre conseguem transformar homens e mulheres em simples marionetes. Deixam fissuras ou vazios que poderão constituir caminhos para que os sujeitos escapem dos referidos condicionamentos e determinações, vazios que podem ser preenchidos por práticas sociais que experimentam modos de viver inusitados, espaços em que a liberdade se apresenta como um valor que instiga à criação. Demanda, então, o deslocamento do foco da curiosidade e da ação humanas para questões e dinâmicas que definem rumos tanto para a vida social como para as vidas dos indivíduos.

Decidir implica, portanto, divisar possibilidades e impossibilidades e com elas poder conflitar. Leva-nos a identificar territórios

a serem conquistados, não para simplesmente reproduzir, em outros lugares, ações já realizadas, mas para reconhecer os caminhos que se abrem e as portas que se fecham ao que fazemos, pensamos e queremos. Convoca-nos a nos capacitarmos para criar novas estratégias e implementar ações que nos permitam abrir portas, adentrar caminhos, construir saídas. Incita-nos a fabricar o novo.

Decidir pressupõe também a capacitação de cada um de nós para “dispor de si mesmo” e organizar relações pessoais e sociais em tempos e espaços de convivência. Envolve o reconhecimento dos saberes em circulação nesses espaços-tempo, acompanhar o empalidecimento de algumas afirmações ou verdades com as quais tais saberes operam, e o florescimento de outras. Requer escolhas. Não dá descanso ao sujeito que a isso se predispõe e que emerge nessas relações, relações de poder associadas a saberes que as alimentam e nelas se apóiam. Chega a atordoar muitos de nós, envolvendo-nos em ações que configuram séries mecanicamente conduzidas. Pode nos levar ao limite da renúncia “do eu”, isto é, da subtração dos espaços que poderiam alojar as motivações pessoais para o “governo de si próprio”, para a conquista de formas de vida mais autônomas. Com isso, abre portas a um sofrimento que contamina os espaços de convívio, põe em risco a sustentabilidade do indivíduo e das organizações sociais que integra.

Cada momento na história da humanidade apresenta, então, às mulheres e aos homens que reúne, desafios singulares, que se manifestam recobertos por uma pluralidade de formas. Desencadeiam as mais diversas (re)ações sobre aqueles que reúne, dentre elas e para alguns, a necessidade e a disposição de pensar sobre o vivido e sobre o viver.

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Conviver com ambigüidades é uma das marcas do nosso tempo. E saber identificá-las é uma das capacidades que nos são requeridas para que possamos fazer escolhas e tomar decisões. E também para que essas decisões não aconteçam de forma mecânica, ingênua e/ou submissa, se nosso desejo é mudar as nossas formas de estar no mundo até para manter vivo o planeta e as espécies que o povoam.

Vivemos, hoje, sob a expansão do capitalismo em sua forma neoliberal e globalizada. Por um lado, essa expansão nos apresenta uma infinidade de descobertas, o desenvolvimento de novos produtos, condições e procedimentos para tornar menos trabalhosos os nossos cotidianos. Como afirma o estudioso Tomás Tadeu da Silva, “Vivemos num tempo em que vemos nossas capacidades ampliadas e intensificadas, em que, potencialmente, se estendem nossas possibilidades vitais: de conhecimento, de comunicação, de movimento, de diminuição da dor e de aumento do prazer, de sustentação da vida” (200�, p. 7). Contudo, segue o pensador, essa mesma expansão está contribuindo para o aumento do “espaço da destruição, da exclusão e da privação, da exploração do outro e da terra”; não está conseguindo enfrentar “a dimensão objetiva da desigualdade social, a dimensão ética da injustiça e a dimensão subjetiva do sofrimento”, é o que afirma Bader Sawaia (�999, p. 8), ao discutir as artimanhas da exclusão nas condições concretas da vida social na contemporaneidade.

Um tempo marcado por ambigüidades

A desigualdade social, hoje, pode advir da forma como nos inserimos nos ambíguos circuitos econômico-produtivos das sociedades contemporâneas. Mas, não é só. Desdobra-se, de forma não menos excludente, sobre os circuitos reprodutivos que abrangem relações de gênero, geração, relações raciais, étnicas, religiosas, dentre outras. Em tais circuitos, desenvolvem-se mecanismos que monitoram a exclusão e produzem a inserção social, porém de forma excludente. Tais mecanismos são abrangentes, complexos, sutis e eficazes, pois não criam apenas as formas objetivas de inserção “assujeitada” de nossos corpos nos circuitos da produção e da reprodução. Atuam também no plano subjetivo, isto é, no plano da relação do sujeito consigo mesmo, na constituição do “eu”. Fabricam a imagem do “igual” - do bem sucedido, conforme os padrões do mercado - e do “não igual”. A este último inferiorizam, culpabilizam por não conseguir ser “um igual”. Com isso, marcam individual e socialmente as subjetividades, o jeito de pensar, de sentir, de ser de cada um, individualmente e também dos coletivos sociais.

O excluído, hoje, não é somente o pobre, aquele que não consegue ter acesso aos bens materiais e culturais produzidos socialmente. É o pobre e também todos aqueles sobre os quais atuam mecanismos como o preconceito, a intolerância, a incapacidade de admitir a diferença - o “não igual”. Há uma nova ética, que encobre e banaliza o direito de ter direitos, dirigida a regular essas vidas.

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Dany-Robert Dufour (200�, p. �0) identifica, em concomitância com a expansão do capitalismo, mundialmente, a consumição progressiva do humano: se antes eram os “corpos produtivos” que se esvaíam no trabalho para colocar a máquina produtiva em movimento e viabilizar a acumulação do capital, chegamos a um tempo em que a “redução das cabeças” também se torna necessária para introduzir e manter a lógica do mercado e da mercadoria nas sociedades contemporâneas, afirma o pensador. Mas, o que significa isso?

Significa que um novo homem está sendo produzido nos tempos atuais: um homem-mercadoria, plástico, adequado ao mercado. “Os homens não devem mais entrar em acordo com os valores simbólicos transcendentes, simplesmente devem se dobrar ao jogo da circulação infinita e expandida da mercadoria.” (Dufour, 200�, p.�3). Se, em gerações anteriores, cada um de nós crescia e se constituía orientado pela referência a alguma “entidade” religiosa, filosófica, política, educativa, jurídica ou a uma tradição, o novo espírito do capitalismo atua na direção de livrar-se de valores culturais, de distanciar o indivíduo de referências fundantes, de coordenadas que possam insinuar uma herança. Atua também de forma a erradicar os elementos das culturas que singularizam esse mesmo indivíduo.

Daí o sentimento de insegurança profunda, a avidez por encontrar algo que aponte para um futuro e o desânimo frente aos sonhos desfeitos. Nós, humanos, estamos nos sentindo frágeis e sós, mesmo nos acotovelando em multidões, onde somos apenas mais um. O “ser-si” (ser pessoa, construir uma identidade, ser reconhecido) e o “ser-junto” (participar de um coletivo, agir em conjunto, integrar uma organização, ter

A consumição progressiva do humano

amigos), expressões do pensador citado (200�, p. �89), estão em desordem. O mercado os faz dependentes, pois o que lhes oferece e demanda amanhã não é o mesmo que apresenta e requer hoje. Ao mesmo tempo é predatório e facilmente estende essa característica às expressões e interações humanas com os outros da espécie, com as sociedades e com a natureza.

Os pacotes tecnológicos, de duração efêmera, chegam ao mercado para substituir formas culturais de produção. Os sistemas, formas e rotinas adotados para gerir a produção, são, em sua maioria, predatórios ao ambiente natural e social. Os mecanismos adotados para apresentar os produtos ao consumidor fazem-no presa do mercado. As formas de expressão, as atitudes desenvolvidas e os valores transmitidos pelos diversos dispositivos da educação e da comunicação massificam e controlam o indivíduo. Esse conjunto de dispositivos é incompatível com qualquer propósito de sustentabilidade que queiramos afirmar. Sustentabilidade vista como relações do indivíduo consigo próprio, com os outros e com o meio ambiente natural e social, relações que implicam transformação, criação e, ao mesmo tempo, preservação e cuidado, que se apresentam em oposição a qualquer tipo de destruição esterilizante.

Deslocar-se dessa roda-viva talvez se constitua, hoje, a forma mais madura de fortalecimento do sujeito. Deslocar-se sem, contudo, desconhecê-la. Deslocar-se reconhecendo a singularidade das condições sociais que possibilitaram a emergência desse novo modo de alienação do sujeito - sujeito/mercadoria - e dispor-se a experimentar

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outras formas de “estar-no-mundo-ambiente”. Isso significa: atuar sobre o homem, vivente e convivente neste momento da história da humanidade, mas também construir uma forma nova de conceber a condição humana. Requer a construção de vontade e de capacidade para demandar e fazer uso da liberdade, valor com o qual a humanidade sempre se envolveu no desenrolar da sua história e que a ideologia do mercado “super-explora”, banalizando o seu significado. Implica dispor da liberdade, porém atribuindo-lhe um novo significado. Conceber a liberdade como forma de relação consigo e com a vida, aberta à experimentação. Forma de relação capaz de tornar o “ser-si” (sustentabilidade da pessoa), o “ser-junto” (sustentabilidade grupal) e o “ser-relação” (sustentabilidade social e ambiental) objeto de reflexão; arte de “ampliar as cabeças” e “autorizar os corpos” a expandir sua expressividade; atitude, nova forma de presença na “sociedade ultraliberal”9

9 Plagiando Dufour (200�), às avessas.

Divisando espaços, gerando demandas

A dinâmica de produção de mercadorias, em especial a roda-viva do consumo a ela associado, destrói recursos e potenciais da natureza, controla interesses, vontades e a criatividade dos indivíduos. Um dos mecanismos que utiliza é a inumerável variedade de formas, capacidades, funções e quantidades de objetos que põe em movimento. Essa dinâmica, por um lado, torna os indivíduos cada vez mais dependentes dos estímulos do mercado e mais ansiosos, por não terem a capacidade infinita de consumo que lhes é sugerida. Por outro lado, gera uma sensação de saturação que convoca muitos deles a problematizar as relações que os envolvem.

As mesmas forças que conduzem indivíduos e produtos ao mercado não dão conta, contudo, de acomodá-los de modo a impedir a constituição das já referidas fissuras ou aberturas ao novo, que ficarão localizadas no âmbito objetivo dos processos sociais (sempre haverá a necessidade de novos produtos) e no plano das subjetividades (o sujeito é mais do que consumo). Poderão, também, escapar dos comandos da dinâmica do mercado e acolher construções sociais e culturais que fogem a sua determinação. Essas construções, ainda que possíveis, encontrarão dificuldades para serem socialmente legitimadas.

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Dentre as dificuldades possíveis, podemos divisar: iniciativas de sobrevivência e reprodução de experiências produtivas (agricultura familiar, práticas produtivas sustentáveis, empreendimentos de economia solidária), processos participativos de educação e de tomada de decisões (pedagogias alternativas, negociação e criação de políticas públicas), e iniciativas inovadoras de produção artística, científica e cultural (experimentos de campo, pontos de cultura, exposições).

Essas iniciativas sociais, ao mesmo tempo em que experimentam novos produtos, conhecimentos, valores e relações, estão gerando novas demandas teóricas, metodológicas e técnicas a partir de suas próprias produções, dada a necessidade de controlá-las e avaliar seus efeitos e impactos sobre a natureza, as sociedades e as populações. São reivindicativas, mas também propositivas. Precisam de conhecimentos novos e de espaços para produzi-los, mas se colocam também na perspectiva de criar alternativas sustentáveis que venham a subsidiar necessidades, ressignificar outras e criar novas. Geram, ainda, a necessidade de comunicar o que foi criado. Configuram-se como iniciativas e práticas de resistência que alimentam e tendem a transformar as relações de poder vigentes. Podem “atropelar” inclusive o Estado. Essas iniciativas, dependendo das forças político-sociais que aglutinam e das capacidades que conseguem forjar ao se expressar, ora têm seus espaços de expansão alargados, ora diminuídos.

O que sistematização tem a ver com esses arranjos histórico-sociais?

A convergência de demandas e potenciais humanos e sociais, anteriormente descrita, pode ser “costurada” por meio da sistematização de práticas sociais estratégicas. A sistematização possibilita, a partir dos lugares que ocupamos e dos tempos em que vivemos, transformar nossas práticas sociais em objeto de reflexão, produção de conhecimentos e aprendizagens. O que foi feito/vivido? Quem o fez/viveu? Onde? Quando? Como?

Já nas primeiras propostas teórico-metodológicas de sistematização, construídas e socialmente divulgadas, verificamos que os processos investigativos que ela desencadeia, ao transformá-las em objeto de reflexão, tornam transparentes as iniciativas e práticas de indivíduos e coletivos sociais para eles próprios e para aqueles com quem se comunicam. Para que isso aconteça, além de resgatá-las, situam-nas historicamente e percorrem com o pensamento as condições externas associadas ao seu surgimento e desenrolar. Esse recorrido histórico ajuda a compreender a singularidade das configurações internas atuais das práticas e do conjunto de elementos que possibilitaram a sua emergência. Propicia, também, o diagnóstico dos problemas com os quais se debatem, dos seus potenciais e das construções realizadas a partir delas - aprendizagens, conhecimentos e ações.

A sistematização transforma práticas sociais em objetos para o pensamento. Com isso, possibilita que os seus integrantes, sem se distanciarem da singularidade do seu mundo cultural, consigam vê-lo e dêem conta da sua relação com um exterior. Permite que percebam, ainda, que a complexidade das coisas com as quais se debatem para realizar ações, produzir conhecimentos e aprendizagens advém também desse “pertencer” a algo mais amplo.

Um processo de sistematização concentra-se, portanto, em um objeto – prática social - porém o faz desde espaços-tempo que o significam. Essa condição de objeto histórico, social e culturalmente situado assegura-lhe potenciais, mas também limitações. É sobre isso que trataremos a seguir.

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A sistematização constitui-se, então, em um processo de produção de conhecimentos cultural e socialmente situados. Ocorre a partir de práticas sociais que, conforme expressão de Oscar Jara (�996, p. 2�), configuram-se como “experiências vitais, carregadas de uma enorme riqueza acumulada de elementos que, em cada caso, representam processos inéditos e irrepetíveis”. Dota as práticas e os sujeitos de um conjunto de capacidades, abre possibilidades novas de conhecimento, aprendizagens e relações. Contudo, apresenta limitações.

Potenciais e limites da sistematização

a Transforma as práticas sociais em objeto de investigação - objeto construído; problematiza essas práticas, recorta-as e as trata a partir de um foco e mediante: a) a escolha de uma abordagem teórica; b) a opção quanto a uma referência empírica; c) decisões quanto aos procedimentos – métodos e técnicas – a serem adotados ao investigá-las. Não tem a pretensão de apreender toda a complexidade e diversidade das manifestações dessas práticas. Pretende, contudo, desde um foco, transformá-las em objeto para o pensamento, isto é, propiciar aos seus integrantes a tomada de distância crítica e identificar as relações que elas configuram, o que elas produzem e as verdades que afirmam. Com isto, evita que as relações dos sujeitos das práticas com as suas verdades se tornem fixas e incita-os a submetê-las ao jogo do falso e do verdadeiro. Esta é uma relação entre teoria e prática que não separa uma da outra.

b Intensifica a vivência coletiva no interior da prática social em estudo. Procura fazer com que os processos instalados afetem e convoquem seus integrantes a narrá-la, sob o foco definido, marcando essas narrativas com significados diversos, como são diversas as vozes que narram. Esses significados são dinâmicos, passam por mudanças ou “deslocamentos” em razão das interações e jogos de verdades que ocorrem no interior da prática em estudo. Costumamos dizer que a sistematização incentiva a construção de uma narrativa que contempla “olhares singulares, plurais e sensíveis às mudanças”.

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d Faz da prática experiência, isto é, vivência refletida e, para melhor compreendê-la, complementa a narrativa com a descrição das condições sociais e políticas que possibilitaram sua emergência. Orienta a identificação das marcas que imprimiu sobre os seus integrantes. Com isso, a sistematização intensifica a relação dos participantes com a “prática-experiência”, e se faz mediadora também no plano da ética: afeta o “ser-si”, o “ser-junto” e, ainda, o “ser em relação” com o ambiente natural e social do seu tempo, edificando novos valores e sentimentos como a solidariedade, a amizade, o reconhecimento e a liberdade.

c Ao transformar a prática em objeto de reflexão, constitui-se um espaço investigativo e educativo; faz-se mediadora entre a formação de sujeitos de pensamento e ação - investigadores, avaliadores, planejadores, atores - por meio de um processo de produção de conhecimentos que se desdobra em desencadeador de aprendizagens. Com isso, poderá tratar a aprendizagem como uma dinâmica que alia o “aprender-a-fazer” fazendo; o “aprender-a-pensar” pensando e o “aprender-a-ser” sendo.

e Trabalha com os conflitos, transformando-os em objeto de reflexão. Procura identificar os conflitos vivenciados objetivamente desde as práticas, como os desentendimentos e as lutas sociais contra o Estado, instituições e outras práticas e sujeitos sociais. Da mesma forma, procura problematizar os conflitos que se instalam no plano das subjetividades. Neste âmbito, enfrenta, sem dúvida, o sofrimento do “sujeito-de-ação”, trata-o como tensão, sem, contudo, banalizá-lo. A sistematização não foge da tematização da relação moral dos sujeitos consigo mesmos, com os outros e com a sociedade. Não se propõe, contudo, a construir heróis, mas a potencializar a formação de homens e mulheres “bem resolvidos” quanto à aventura humana para a qual as práticas sociais os convocam.

f Instiga e prepara os sujeitos da prática para, a partir dela e das aprendizagens possibilitadas pela sistematização, assumir atitude de experimentação desde os seus cotidianos: criação de novas formas de organização, gestão e participação de empreendimentos produtivos, processos organizativos, educativos e de promoção social.

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h Possibilita divisar aspectos e caminhos a serem erradicados, reconstruídos e/ou reforçados para orientar ou reorientar a prática: criar novas estratégias de relação com a sociedade civil e com o Estado, inclusive no âmbito da negociação e criação de políticas públicas. Potencializa, portanto, a dimensão política das práticas sociais.

g Produz, a partir do trabalho desencadeado juntamente com os sujeitos da prática (narrativas, reflexões, negociações e ressignificações), instrumentos de comunicação, dando visibilidade para: O que foi feito/vivido? Quem o fez/viveu? Onde? Quando? Como? Por quê? Para quê?

i Dá espaço para a maturação dos sujeitos, na medida em que amplia o seu universo de comunicação, de sociabilidade e a sua reflexibilidade.

Não descartamos a possibilidade de ocorrer a frustração de expectativas e equívocos de construção em processos de sistematização, levando a interrupções ou a opções por outras formas de intervenção sobre as práticas sociais - como as avaliações e outras abordagens investigativas - embora não sejam freqüentes esses tipos de ocorrência. Pelo contrário, a sistematização tende a desencadear, entre os participantes, uma série de disposições capazes de entrelaçar motivações, vontades, reflexibilidade, relações, necessidades, compromisso e ação social.

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Fundamentos de uma proposta

A proposta metodológica de sistematização com a qual trabalhamos tem sido pautada pelos seguintes fundamentos:

Considera o sujeito como resultado de um processo de produção cultural e social. Esse processo implica relações de poder e, com isso, afirma uma lógica não unitária, acidentada, por vezes surpreendida pelo acaso. Pode ser caracterizado como campo de lutas. Na atualidade, os sujeitos que emergem desses campos de lutas assumem uma forma-sujeito fragmentada. Em sua busca de um auto-governo, de desatar amarras para construir autonomia, está sempre se debatendo com os mecanismos que atuam na direção de assujeitá-lo.

Vê as relações sociais como complexas e múltiplas. Leva em conta que não são apenas as relações econômicas que regem as ações humanas e as subjetividades dos indivíduos, embora elas assumam um grande peso, especialmente em uma sociedade globalizada, como a contemporânea. Há, contudo, questões raciais, de gênero, étnicas, de geração, parentais que atravessam os processos sociais e marcam os indivíduos e as sociedades. Elas se apresentam ora declaradas, ora encobertas. Nem sempre se revelam numa primeira observação ou narrativa das vivências dos indivíduos e do movimento de suas práticas na sociedade.

Como parte de processos e práticas sociais, os sujeitos produzem conhecimentos e se empenham para que os mesmos sejam reconhecidos e legitimados socialmente. Esses conhecimentos não são, portanto, naturais, nem fixos. Há diferentes formas de conhecer, de integrar a luta em torno da

verdade. Verdade tida como um conjunto de afirmações sobre a prática, à qual associamos um certo efeito de poder, como trata a obra de Michel Foucault (�990, p. �3-�4). As fronteiras entre as formas de conhecer não são fixas. Os saberes da experiência e o conhecimento acadêmico são formas de produzir conhecimento que se distinguem pela menor ou maior capacidade de sustentar a crítica sistemática, a argumentação e a contra-argumentação. A sistematização, na sua diversidade de propostas metodológicas, apóia-se em ambos, procura mantê-los em diálogo e romper com a hierarquia que desqualifica os primeiros.

A sistematização, ao recuperar as práticas que transforma em objeto de conhecimento, apóia-se em narrativas acompanhadas de análises e interpretações. Considera que essas narrativas já se constroem mediante as interpretações que os sujeitos das práticas formulam sobre elas. Pontua, contudo, aspectos que serão refletidos mais detidamente, que passarão por uma sistemática de interpretação da interpretação. Há, portanto, em nossa proposta de sistematização, momentos em que privilegiamos a construção de narrativas, outros em que a reflexão sobre elas ocorre com maior intensidade. São diferentes os movimentos do pensamento que estão por trás de tais procedimentos. O primeiro narra o vivido, faz uso da memória, remexe heranças, atribui significados às coisas e às relações. O segundo lê e interpreta o que o descrito “tem a dizer” e “como o faz”. Procura estabelecer um afastamento que assegure condições de crítica ao vivido e ao narrado.

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Nossa proposta de sistematização lida, portanto, com práticas sociais, discursos e interpretações. Oportuniza que estes tomem forma e se constituam em objeto de crítica e argumentação.

A sistematização não parte de elaborações teóricas, previamente feitas, às quais serão submetidas práticas e discursos. Utiliza elaborações teóricas de campos disciplinares diversos como a economia, a sociologia, a antropologia, a educação, a ecologia, a arte, a literatura, a biologia, a psicologia, entre outros, dependendo das demandas de conhecimento pontuadas sobre as práticas que transforma em objeto de reflexão. Ao situar tais demandas no vivido e nas narrativas que o significam, tende a inter-relacionar campos disciplinares, a produzir interdisciplinaridade. Recorre a esses campos teóricos de tal forma que, ao utilizar-se de um deles, em resposta a uma demanda de conhecimento, dá entrada a outras demandas e campos. Cria uma relação de provocação e acolhimento com diversos campos disciplinares e, assim, vai rompendo com hierarquias e fazendo uma entrada mais integrada e solidária nos jogos de verdade.

O espaço educativo propiciado pela sistematização é um espaço de expressão e interação de uma pluralidade de vozes (que admite encontros e desencontros, coerções e reconhecimentos solidários). A sistematização concebe a educação como diálogo ampliado, polifonia. Convoca o sujeito a integrar “jogos de verdade”, ou seja, a revelar os significados que atribui à prática

e a confrontar-se com outros significados também a ela atribuídos, com produções teóricas produzidas historicamente e com os diferentes procedimentos utilizados nessas produções. A sistematização é, ainda, um espaço de subjetivação: possibilidade do sujeito ressignificar um “ser-si” (o seu eu, a sua relação consigo), um “ser-junto” (as relações com os outros), um “ser-relação” (sua relação com a natureza e com a sociedade do seu tempo). Propicia aprendizagem e formação. A dinâmica educativa, que aporta, acontece mediada por “educadores/investigadores” – internos e/ou externos à prática. Está, contudo, de tal forma centrada nos sujeitos da prática, que os faz “educandos/investigadores”. Realiza a virada pedagógica, do ensino para a aprendizagem, como já sugeria Paulo Freire (�983).

A sistematização da qual falamos não é isenta de caráter político, não é neutra. Propõe-se a apreender as relações de poder, que afirmam verdades “históricas”, “culturalmente situadas”, “predispostas à contestação e à ressignificação”, nos âmbitos das práticas, das sociedades e dos sujeitos. Atua no sentido da integração entre teoria e prática. Desconfia, portanto, de abordagens que não estão atentas para as inversões e interseções de forças conjunturalmente produzidas em razão dos jogos de poder que constituem os diversos espaços da vida social.

Ao incentivar que se manifestem os significados atribuídos pelos sujeitos as suas práticas, a sistematização vai possibilitando que as singularidades destas sejam apreendidas.

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Uma proposta em 8 momentos

Ao realizar a sistematização de uma prática social, trabalhamos a partir de três frentes:

os processos e vivências: atos cotidianos, acontecimentos, ações estratégicas, instituições, sujeitos (suas relações e condutas), procedimentos e técnicas;

os significados atribuídos pelos sujeitos aos processos e vivências, que configuram a prática social em questão: atos de fala que expressam os saberes que eles aportam e manifestam ao atribuir significados a esses processos e vivências;

as construções teóricas que buscamos, criamos e recriamos na medida em que delas precisamos para subsidiar as análises e interpretações pretendidas: discursos das ciências naturais e, principalmente, das ciências humanas.

Ao recuperar a prática mediante perspectivas diversas, estaremos problematizando-a, interrogando-a sobre sua forma de se apresentar em uma determinada época e em um lugar mediante um foco que será uma espécie de trilha pela qual andará o nosso pensamento questionador. Se, anteriormente, a nós, integrantes dessa prática, cabia vivê-la, planejá-la, administrá-la e até mesmo avaliá-la, com a sistematização vamos refletir sobre a forma historicamente própria com que essa prática, em um tempo e em um lugar, está dando “um certo tipo de resposta a um certo tipo de problema” (Revel, p.200�, p. 70).

Nossa proposta prevê 8 momentos nos processos de sistematização:

1 Aproximação dos sujeitos da sistematização

Como são diversos os sujeitos, os lugares que eles ocupam na prática e as tarefas que assumem na sistematização, há necessidade de que exponham e justifiquem as motivações, interesses e objetivos que têm com a sistematização. Por que sistematizar? Para que sistematizar?

É fundamental, também, que comecem a identificar o foco para o qual vão dirigir o pensamento, que esclareçam quais os problemas da prática estão mobilizando os seus saberes a formular perguntas e a esperar respostas. O que sistematizar?

Começamos, com isso, a explorar o jeito de cada participante da sistematização ver a prática e expor a multiplicidade de significados que a ela conferem. Iniciamos trocas, negociações e novas construções no plano dos significados, incentivando a polifonia, ou seja, que o coletivo da sistematização venha a falar a prática por meio de uma diversidade de vozes em interação. Damos início a um tipo de investigação que deverá se desenvolver concomitantemente a um processo educativo, que se proporá a desencadear novas interpretações e aprendizagens sobre a prática.

A proposta de sistematização com a qual trabalhamos, como as demais que estão vinculadas à educação popular, não simpatiza com a idéia de um sujeito externo realizar a sistematização (Jara, �996, p. 86). Tem como característica criar um “ambiente” no qual são os integrantes da prática, dispostos em grupos, que realizam a problematização e a delimitação do objeto, o traçado e o desenvolvimento do processo de sistematização. Consideramos, contudo, que nem todos participarão da mesma forma nesse processo, como também nem todos desempenham as mesmas funções na prática.

Reconhecemos que há necessidade de sujeitos externos mediarem tanto os processos investigativos como as ações pedagógicas que preparam e alimentam a sistematização. São diversas as demandas de conhecimentos e as aprendizagens que uma prática social demanda e suporta no momento em que é transformada em objeto para o pensamento.

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3 Viabilidade da sistematização

Realizado o projeto, vamos discutir sua viabilidade.

a) há registros sobre a constituição e o desenrolar da prática?

b) há recursos materiais, humanos e financeiros disponíveis ou a serem disponibilizados para que a sistematização ocorra?

c) há vontade política entre os integrantes da prática para transformá-la em objeto de reflexão?

d) o eixo da sistematização e os objetivos previstos podem ser atingidos com os recursos disponíveis?

e) cronograma de atividades – prevê tempos, atividades, recursos, definição de responsabilidades não somente para a realização da sistematização, mas também para o retorno do processo desencadeado, à prática, e para a comunicação deste, externamente.

2 Elaboração do projeto

Realizados os primeiros ensaios e aproximações, elaboramos o projeto da sistematização, isto é, definimos:

a) um objeto: qual a prática a ser trabalhada e qual o recorte empírico (no tempo e no espaço) que faremos para resgatá-la, acompanhá-la e significá-la? O que sistematizar?

b) uma justificativa: quais as razões que temos para sistematizá-la? Por que sistematizar?

c) um conjunto de objetivos: o que pretendemos com o processo e os produtos da sistematização? Para que sistematizar?

d) um eixo temático e perguntas orientadoras: qual a pergunta ou hipótese (afirmação antecipada) que guiará os resgates e os ordenamentos que vão compor as narrativas e garantir as reflexões? Vamos, também, desdobrar esta pergunta ou hipótese em outras para “abrir”, ainda que limitando, o nosso foco de pensamento nos aspectos sobre os quais pretendemos produzir conhecimentos. Sob qual foco realizar a sistematização?

e) uma metodologia: qual o jeito previsto para abordar o objeto da sistematização de forma a apreender os processos, as vivências e os significados a ele associados; qual o desenho dos procedimentos a serem seguidos e das técnicas a serem utilizadas para abordá-lo? Como dispor e acessar registros sobre a prática? Como animar as falas para construir as narrativas dos processos vividos? Como construir instrumentos para isso?

f) para quem vamos dirigir os produtos da sistematização, com quem vamos trocar esses produtos, como vamos “utilizá-los”?

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4 Registros e informações

Vamos identificar os registros existentes sobre a prática. Estes, além de possibilitar o resgate do que “aconteceu”, e das formas como os fatos, atos, relações se objetivaram em um tempo e lugar, contribuem para que seja maior a pluralidade de significados com os quais a sistematização vai trabalhar. Trazem as visões de outros sujeitos que se relacionaram com a prática em outros momentos e desde outros lugares.

As fontes existentes podem ser relatórios, produtos de avaliações e planejamentos, atas, diários de campo, memórias de oficinas, de seminários, de dias de campo e de outros percursos de ação relacionados à prática, materiais de divulgação, relatórios de pesquisas, fotos, vídeos, gravações.

Podemos, também, trabalhar sobre “as memórias” dos integrantes da prática, mobilizando novas fontes de informação, como: oficinas, reuniões, vivências, entrevistas; construir linhas de tempo, mapas, diagramas, jogos dramáticos, dias de campo e outros instrumentos e técnicas usados em diagnósticos, pesquisas, avaliações e planejamentos participativos; construir e fazer uso de roteiros de perguntas, protocolos de discussão, listagens de itens.

Há uma infinidade de instrumentos e técnicas que intensificam a participação dos integrantes da prática na construção das informações demandadas pela sistematização e que viabilizam a reconstrução da prática. É importante definir participativamente quais utilizar.

5 Construção das narrativas

A narrativa – reconstrução da prática mediante o eixo temático definido pela sistematização – vai passar por construções e reconstruções. Uma primeira versão se fará com base especialmente nos registros e documentos já existentes e identificados pela sistematização. A coordenação da sistematização poderá responsabilizar-se por esta elaboração, que poderá ser construída de forma esquemática, explorando a cronologia da prática e possibilitando o ordenamento das buscas seguintes. Digamos que será uma narrativa em “branco e preto”.

Este primeiro resgate, se pedagogicamente trabalhado, tornar-se-á instrumento de motivação para que outros integrantes da prática ocupem-se da sistematização como portadores de saberes e significados que estarão em debate e contribuirão para que a narrativa da prática ocorra mediante a já referida polifonia.

Uma segunda versão da narrativa já estará juntando as diferentes vozes e os significados diversos que estas aportam à prática. O que os integrantes da prática sabem sobre ela? Como a vêem e a sentem? Suas vozes pintarão com diferentes cores o que foi resgatado da prática na primeira narrativa. O processo será mediado por uma equipe de coordenação (educadores, pesquisadores e animadores internos e externos à prática) que ajudará o grupo a não perder o foco da sistematização e a alcançar formas democráticas de viver a experiência de sistematizar e de fazer da prática experiência, ou seja, objeto refletido.

Essa segunda narrativa integrará interpretações da prática que estarão ocorrendo coletivamente no desenrolar da sistematização, mas é o momento seguinte – reflexão e teorização – que privilegia esse movimento do pensamento do coletivo organizado para a sistematização, como trataremos a seguir.

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6 Reflexão e teorização

Primeiramente faremos uma “exegese” da segunda narrativa construída, isto é, uma “revisão crítica” da mesma. Há maneiras diversas de organizar este momento que procura adensar a dinâmica reflexiva sobre a prática, especialmente com o auxílio de teorias já legitimadas socialmente que nos ajudarão a construir e a responder questões, a partir do que foi vivido e do que foi narrado, orientando nosso pensamento.

A narrativa foi guiada pelo eixo temático e responde às perguntas orientadoras da sistematização? Há lacunas? Há repetições? Quais? Vamos acrescentar o que falta e retirar o que sobra na narrativa.

A narrativa permite identificarmos alguns momentos significativos da prática sob sistematização? Em caso positivo, quais são eles? O que os define? Quais são os “marcadores” desses momentos significativos? Uma ruptura, crises ou tensões, conquistas, mudanças de estratégia, mudanças nas relações de poder, a incorporação de novos significados dando conteúdo à prática?

A narrativa oferece elementos para localizarmos algum “núcleo de singularidade” na prática, nas

construções e relações que esta realiza? Algo que a faz diferente das demais e que motiva os participantes da sistematização a explorarem os conhecimentos e aprendizagens que ali estão sendo gerados? Algo que revele como os sujeitos da prática vivem com intensidade uma situação ou que aponte as interpretações que os levam ao debate, os conceitos com os quais operam, os significados novos atribuídos a esses conceitos e as repercussões desses movimentos sobre a prática?

Um “núcleo de singularidade” pode corresponder à forma como se apresenta e/ou se organiza um conjunto de fenômenos como: relações econômicas (produtor-mercado, produtor-órgãos estatais), relações sociais e culturais (de classe, de gênero, entre gerações), relações entre sujeitos e instituições (parcerias, cooperação, concorrências, acordos), lutas sociais (pela terra, por organização, pela produção, pela comercialização), processos de educação (aprendizagem) e formação (construção de subjetividades), comunicação e difusão (enfoques e formas), entre outros. Geralmente, aparece sobre o eixo temático da sistematização, mas não são raros os casos em que desponta e produz desvios no trabalho de construção e crítica das narrativas gerando, inclusive, sub-eixos na sistematização ou temas para a construção de objetos para a investigação.

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A narrativa permite localizarmos problemas e tensões da prática? Quais são os elementos que se apresentam em tensão? Houve possibilidade de superar as tensões e problemas identificados no desenrolar da prática ou eles seguem demandando esforços para que possam ser administrados? Como isso está ocorrendo?

Quais foram as potencialidades identificadas na prática em estudo e como atuaram no amadurecimento ou consolidação da prática? Há como atuar no sentido de direcioná-las para a superação das tensões e problemas identificados? Como?

Quais foram as aprendizagens e conhecimentos mais relevantes construídos nas vivências propiciadas pela prática e potencializadas pela sistematização?

A produção teórica “acontecida” durante a sistematização vem sendo incorporada à prática? Como? O grupo que a integra está operando com novos conceitos? Quais? Já há indícios de a sistematização estar criando atitudes mais reflexivas entre os sujeitos da prática? Como isso se verifica?

No plano dos valores, podemos identificar mudanças nas relações dos sujeitos da prática consigo-mesmos (no “ser-si”), com os outros (no “ser-junto”), com a prática e com o meio ambiente (no “ser-relação”)? Quais as mudanças?

Procuramos, então, dar resposta a estas perguntas, situá-las, detalhá-las e ampliá-las sem, contudo, perder de vista o eixo temático da sistematização. Para dar seguimento à “reflexão e teorização” lançamos mão da oportuna pergunta formulada por Oscar Jara ao tratar o tema da sistematização (�996, p. �0�): “Por que aconteceu o que aconteceu?”; ou, mais explicitamente: Quais as condições internas e externas à prática que concorreram para que acontecesse o que aconteceu? Como atuaram?

Neste momento, a equipe de coordenação da sistematização orienta a identificação de formulações teóricas que possam ser dirigidas aos aspectos da prática que estão demandando compreensão, às perguntas que estão esperando por esclarecimentos.

Uma terceira versão da narrativa da sistematização estará então se construindo com a incorporação dessas reflexões e teorizações. A narrativa tornar-se-á mais viva e complexa ao sobrepor, aos relatos dos processos e vivências e aos significados conferidos à prática, as construções teóricas então encetadas.

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7 Reconstruções

Este é um momento de grande relevância, pois é a hora de lançar mão daquilo que foi produzido, aprendido e vivenciado, de forma reflexiva, e incorporá-lo objetivamente à prática. É o momento de sugerir mudanças quanto aos saberes em circulação (conteúdos temáticos, formas de tratá-los, procedimentos e técnicas para implementá-los), quanto às relações de poder (objetivos, estratégias, relações) e quanto aos sujeitos das práticas (relação consigo, convivência, participação social).

A sistematização tem esse caráter pragmático de subsidiar o desenrolar das práticas e de se constituir formadora para aqueles que dela participam. Há, contudo, como desenvolver essas tarefas de forma reflexiva. Não tratamos, na sistematização, de abordar as práticas a partir da relação “problema-solução”, mas sim de trabalhar sobre as mesmas mediante a relação “problema-reflexão-aprendizagem”, “mudanças na prática” e “formação de sujeitos”.

Por sua vez, a sistematização atua sobre dinâmicas de complexidade muito grande. Por esta razão, não é simples chegar democraticamente a proposições de mudanças e reconstruções e de fato objetivá-las. É importante que a sistematização crie espaços para que essa diversidade se manifeste, para que os confrontos dela decorrentes se explicitem, para que negociações se estabeleçam e seja possível consensar estratégias.

8 Produtos para a comunicação

Além das construções e reconstruções propostas e possibilitadas, a sistematização gera produtos de comunicação, que poderão desempenhar funções relevantes juntamente com os integrantes das práticas, e externamente, uma vez que retomam e narram processos, pontuam problemas e tensões, expõem construções, aprendizagens e revelam verdades que passam a ser afirmadas a partir da oportunidade assumida por um coletivo de voltar-se sobre vivências compartilhadas, culturalmente situadas, problematizá-las e analisá-las.

Há uma grande variedade de produtos que vêm sendo construídos para comunicar os processos e resultados da sistematização de práticas sociais. Oscar Jara (�996, p. ��0) lembra que devemos “levar em conta a quem é dirigido esse material e para que ele é produzido”. Assim saberemos extrair do produzido – além de um relatório detalhando o processo da sistematização – produtos diversos e adequados a funções e públicos diversos: livros, cadernos, artigos para periódicos, cartazes, fotografias, exposições orais, músicas, peças de teatro, filmes, novelas etc.

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Vivendo uma experiência

Freqüentemente acompanhamos avaliações sobre os processos de sistematização dos quais participamos. Sem surpresa, deparamo-nos com depoimentos que aliam sofrimento e prazer a essa aventura coletiva que coloca sob crítica vivências tão caras a muitos de nós. “São processos trabalhosos, nada fáceis de realizar”, ouvimos. Fazer sistematização exige tempo, recuperação de informações, demanda reconstruções, provoca insatisfações, testa nossas capacidades de suportar constatações como “não é sempre que conseguimos realizar o que planejamos”. Ouvimos, por outro lado, que é instigante a aventura, pois a sistematização leva-nos a constatar “que produzimos”, a identificar “o que produzimos” e a nos darmos conta de “como produzimos”. São oportunidades muito ricas, pois experimentamos novas relações com as pessoas, com o conhecimento, com as próprias práticas e com nosso “eu”. Os processos vividos são densos; chegam a ser “mais significativos” do que os produtos gerados. Muitas vezes “nos desestruturam”, também ouvimos. Geralmente, constituem-se em “experiências que a gente não esquece”...

Ao relembrar esses depoimentos, sem dúvida, nos fixamos no último deles: “experiências que a gente não esquece”, e passamos a desdobrá-lo, em especial o termo “experiência”, em perguntas e conjecturas que nos auxiliam a explorá-lo: são oportunidades de “viver uma experiência”, oportunidades de vivência e de experiência. O que significa viver uma experiência? O que é uma experiência? Participar de uma prática social é participar de uma experiência? A sistematização possibilita-nos viver uma experiência?

A noção de experiência, através dos tempos, tem sido discutida por diversos pensadores e mediante perspectivas diversas. Na obra do pensador francês Michel Foucault, podemos encontrá-la em distintos momentos. Constatamos, também, os deslocamentos de significados pelos quais o termo passa ao longo da produção do referido pensador. Contudo, a conotação de “intensidade” reincide nos diferentes momentos em que se refere ao termo. Experiência é vivência intensa, é algo que impacta o indivíduo, que o leva a situações-limite: “a experiência é alguma coisa da qual saímos transformados” (Revel, 200�, p. 47).

Por sua vez, Marie-Cristhine Josso, interessada em compreender e teorizar sobre “experiências de vida e formação do sujeito”, chegou a constatações, como a de que experiências são vivências particulares que assumem um status diferenciado “a partir do momento que fazemos um certo trabalho reflexivo sobre o que se passou e sobre o que foi observado, percebido e sentido” (2004, p. 48). A experiência combina vivência e reflexão. Possibilita que singulares vivências se constituam em objeto para o pensamento dos sujeitos que as experimentam, mas toca também seus sentimentos, suas sensibilidades, suas capacidades de ação, de jogar para frente o vivido como ideação. Contamina a complexidade do sujeito e, fazendo isso, dá a ele condições de intensificar suas relações com o vivido.

Ao serem problematizadas e apresentadas pela sistematização como objeto para o pensamento, as práticas sociais e as vivências que elas oportunizam aos seus sujeitos vão se configurando como experiências. A sistematização, ao interrogá-las mediante um

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eixo temático, estará possibilitando que se exponham, em suas formas historicamente singulares de se objetivarem, e permitindo que mostrem como estão dando respostas aos problemas, tensões e desafios com os quais estão convivendo.

Trabalhamos, na sistematização, a construção de narrativas. Ao fazê-lo, orientamos os sujeitos das práticas a priorizarem uma construção coletiva que transforma “o que se passou”, “o que se viveu” e “o como se viveu” em um discurso articulado a partir de um eixo temático e de análises e interpretações. Como mencionamos anteriormente, trabalhamos sistematização em três frentes: com documentos que nos apresentam processos e vivências; com atos de fala que revelam significados atribuídos pelos sujeitos das práticas a esses processos e vivências e, ainda, com construções teóricas que permitem realizar as referidas análises e interpretações, que não resultarão, portanto, em um simples narrar, mas em narrativas refletidas.

Ao trabalhar sobre tais narrativas, experimentamos o trânsito de nossas forças potencializadoras de processos e vivências em direção a um discurso articulado que expõe significados, promove debates, favorece integração, passa por análises e interpretações

e reconstruções. Há, nesse percurso, um movimento de articulação de saberes e poderes e abertura de espaço para que os indivíduos se autorizem a assumir a palavra e se revelem como sujeitos de linguagem. No momento em que, do interior de uma prática social e cultural, esses sujeitos se autorizam a articular discursos, afirmando algumas verdades e infirmando outras, eles estão também se enunciando. Estão se apresentando como sujeitos de um espaço-tempo e também se assumindo em sua historicidade, revelando-se sujeitos de experiência, ativamente envolvidos, por meio de seus pensamentos, atitudes, comportamentos, sentimentos, saber-fazer, com suas vivências, e, por sua vez, forjando condições para apresentar propostas, traçar estratégias, implementar projetos no âmbito de suas práticas e para além delas.

Para que tudo isso seja possível, atravessam situações-limite que os demandam, como sujeitos inteiros, a suportar o vazio de ver sua obra posta à crítica e a ter que enfrentar exigências de criação para recompô-la em seus significados, estratégias, ações e relações. Estarão “juntando cacos e construindo vitrais” (Prado, �99�). Podemos dizer que isso é viver “experiência”, é fazer, tanto da prática social como do processo de sistematização, “experiência”. É, também, caminhar na direção de uma sustentabilidade ampliada daquilo e daqueles que estão implicados com a sistematização; da prática social transformada em objeto de reflexão e do “ser-si” (sustentabilidade pessoal), do “ser-junto” (sustentabilidade grupal) e do “ser-relação” (sustentabilidade social e ambiental) que ela acolhe e provoca.

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Sistematização e políticas públicas

Vimos que a sistematização desenvolve a capacidade propositiva do indivíduo, no momento em que o situa em um espaço-tempo e assegura um lugar a partir do qual ele poderá revelar as verdades que suas práticas afirmam e as suas verdades como sujeito histórico, de discurso. Forma, portanto, esse indivíduo para integrar debates como o das políticas públicas, assumindo, quanto a estas, perspectiva crítico-propositiva, desafio da contemporaneidade, quando os condicionamentos e determinações dos processos sociais dominantes - densos e sutis - reduzem as possibilidades humanas de criar.

Como vimos, a sistematização desenvolve potencial e prepara o indivíduo para divisar fissuras no emaranhado social, desde suas práticas, e traçar estratégias que coloquem a plasticidade humana a serviço dessa sustentabilidade ampliada a que vimos nos referindo.

O fato de lidar com práticas social e culturalmente situadas (locais, regionais), transformando-as em objeto de reflexão e produção de conhecimentos, localiza o indivíduo nos espaços que percorre (extrapolando, inclusive, os recortes locais e regionais de suas práticas); favorece a compreensão das relações de poder que o definem e facilita o seu auto-conhecimento como integrante desses espaços. Contextualiza o seu potencial propositivo, na medida em que amplia a sua sensação de “pertencer” a um coletivo real, a uma prática social e cultural, que é parte de processos de maior amplitude. Realça suas capacidades, como sujeito de conhecimento, moral e político, de produzir conhecimentos, valores e ações estratégicas.

No caso das políticas públicas e, na atualidade, capacita-se este mesmo indivíduo para uma participação social ativa, apontando para a viabilidade de criar possibilidades de ação e reforçar tendências, como a descentralização do Estado, dotando-as de caráter participativo. Possibilita aprendizagens e força para tratar questões como a descentralização das responsabilidades sociais do Estado, institucionalizada por meio de políticas públicas, como conquista das municipalidades, do cidadão e da cidadã, para entrar nesse debate, que é público, concebendo a descentralização não apenas como um mecanismo de substituição de responsabilidades, deveres e tarefas de uma instância estatal mais ampla (União e Estados) para outra de âmbito mais restrito (municípios e voluntariado), mas como uma nova configuração de “formatos institucionais” que tenha capacidade de ampliar “as arenas públicas para a explicitação dos conflitos e demandas sociais” (Seibel, �999, p. 7).

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Sistematização, uma arte de ampliar cabeças e autorizar corpos

A reflexibilidade que a sistematização exige dos sujeitos, ao promover a análise e reconstrução dos significados, relações e ações que dão identidade as suas práticas, estará, sem dúvida, ampliando a capacidade crítica dos mesmos e as suas percepções sobre o que vem se passando em outras esferas do social. Poderá tornar complexas necessidades, sentimentos, vontades, valores e significados, esclarecer os nexos entre os movimentos de práticas singulares e as dinâmicas da sociedade, e, ainda, potencializar a criatividade e a sociabilidade individuais e também dos coletivos que as práticas representam.

Viver, conviver, viver bem... são sentimentos, expectativas e desejos presentes nas vidas humanas: perpassam o “ser-si”, o “ser-junto” e o “ser-relação” nas diversas escalas do social. São sentimentos que podem estar objetivados em nossas práticas, mas, na concretude delas, nem sempre cabem tais expectativas e desejos nas proporções e grandezas que imaginamos. Portanto, o que se nos apresenta como “movimento em vida e vida em movimento”, quando problematizamos nossas práticas e as abrimos à reflexão, é a capacidade de “divisar possibilidades e conflitar com impossibilidades”; abrir portas, traçar rumos para nossas práticas e para a vida social. E resistir a nos assujeitarmos a uma forma-sujeito reduzida a mercadoria.

Se a sistematização leva a isso, podemos concluir que há razões para considerá-la uma arte de ampliar cabeças e de autorizar corpos a expressar necessidades, expectativas e vontades – movimento de adequação entre discursos e ações. Movimento que solidifica os nexos entre reflexão e ação, teoria e prática; que cria identificações e dá sentido às vidas humanas, mas que, sem dúvida, exige muito trabalho.

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REVEL, Judith. Foucault, conceitos essenciais. São Paulo: Claraluz, 200�.

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Série Sistematização5�

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