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A ARTE DA PRECE A ARTE DA PRECE Uma Antologia Ortodoxa compilada por Igumen Chariton de Valamo Parte I

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Page 1: A Arte da Prece   Parte I

““A ARTE DA PRECEA ARTE DA PRECE””

Uma Antologia Ortodoxa compilada por

Igumen Chariton de Valamo

Parte I

Page 2: A Arte da Prece   Parte I

ÍNDICE GERAL

PREFÁCIO

I - O QUARTO INTERNO DO CORAÇÃO

II - O QUE É ORAÇÃO?

(i) O Teste de Todas as Coisas

(ii) Graus de Oração

III - A ORAÇÃO DE JESUS

(i) Meditação Secreta

(ii) Oração Incessante

(iii) A Oração de Jesus

(iv) Lembrança de Deus

IV - OS FRUTOS DA ORAÇÃO

(i) Atenção e Medo de Deus

(ii) Graça Divina e Esforço Humano

(iii) A Combustão do Espírito

V - O REINO DO CORAÇÃO

(i) O Reino dentro de nós

(ii) A União da Mente e Coração

VI - GUERRA COM AS PAIXÕES

(i) Guerra com as Paixões

(ii) Conheça a Si Mesmo

(iii) Trabalho, Interno e Externo

(iv) Solidão

(v) Tempos de Desolação

(vi) Ilusão

(vii) Humildade e Amor

VII - OS ENSINAMENTOS DO STÁRETS

DO MONASTÉRIO DE VALAMO

Page 3: A Arte da Prece   Parte I

Quanto à secreta comunhão com Deus no coração ... aqueles que apenas ouvem sobre a meditação e a oração espiritual e não têm direto conhecimento dela são como homens cegos de nascimento, que ouvem sobre o nascer do sol sem nunca saber o que ele realmente é.

A Arte da Prece

Carta ao Leitor.Terça-feira, 21 de setembro de 2010

Alguns livros editados em português como 'Relatos de um Peregrino Russo' (Ed.Vozes, 2008) e a 'Pequena Filocalia' (E. Paulus, 1985), introduzem o buscador na sabedoria dos Sábios Padres da Igreja Ortodoxa Oriental cujos escritos, acumulados desde o início do primeiro milênio, foram compilados e publicados pela primeira vez em 1782 numa versão organizada por Nicodemos de Naxos, um monge do monastério do Monte Athos. A Filocalia viria a ser traduzida para o eslavo, poucos anos mais tarde, e no decorrer dos dois séculos seguintes ganhar versões em inúmeros idiomas pelo mundo. Visto que carecemos, em língua portuguesa, de uma coletânea que possa não só inciar mas também aprofundar o conhecimento do buscador nas sabedorias contidas na Filocalia, decidi iniciar uma tradução das compilações feitas por Igumen Chariton de Valamo, este monge ortodoxo russo vivido no século passado.

O pequeno prefácio traduzido acima pareceu-me suficiente como introdução para aquilo que virá sendo, diariamente, publicado no decorrer dos próximos meses. Para uma introdução mais formal sobre o assunto, sugiro a leitura das introduções dos livros acima já citados, mas, principalmente, da leitura integral dos "Relatos de um Peregrino Russo“. .Ao mesmo tempo em que as quase 400 citações forem sendo publicadas em português, colocarei abaixo a passagem na versão inglesa, tal qual aparece no livro "The Art of Prayer" (Faber and Faber, 1997). Deste modo, caso você queira sugerir algumas correções ou modificações na tradução proposta, será muito bem vindo e agradecido pela contribuição. Caso  não queira receber, diariamente, os pequenos trechos que forem sendo traduzidos desta Antologia Ortodoxa da Igreja Oriental ; por favor, responda a esta mensagem solicitando a retirada da lista.Agradeço pela sua atenção. .

Abraços, Luiz Acesse o Link para o Blog

Page 4: A Arte da Prece   Parte I

Entre em teu quarto e feche a porta.

Existem muitos entre vocês que não têm conhecimento do trabalho interior requerido do homem que sustenta Deus na lembrança. Tais pessoas nem mesmo entendem o que a lembrança de Deus significa, ou nem mesmo sabem qualquer coisa sobre a oração espiritual, pois elas imaginam que a única maneira correta de orar é utilizando as orações que são encontradas nos livros da Igreja. Quanto à secreta comunhão com Deus no coração, elas nada sabem a respeito, nem do benefício que vem desta, nem mesmo saborearam sua doçura espiritual. Aqueles que apenas ouvem sobre a meditação e a oração espiritual e não têm direto conhecimento dela são como homens cegos de nascimento, que ouvem sobre o nascer do sol sem nunca saber o que ele realmente é.

Através desta ignorância eles perdem muitas bênçãos espirituais, e são vagarosos em chegar às virtudes que se dirigem ao cumprimento da boa vontade de Deus. Deste modo é dada aqui alguma noção do treinamento interior e da oração espiritual para a instrução de iniciantes, de modo que aqueles que desejem, com a ajuda de Deus, possam iniciar a aprender os rudimentos.

O treinamento espiritual interior inicia-se com estas palavras de Cristo: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora a teu Pai que está lá, no segredo.” (Mat. VI. 6).

1] S. Dimitri, Metropolitano de Rostov (1651-1709): um dos mais celebrados pregadores na história da Igreja Russa. Seu principal trabalho literário foi uma grande compilação das Vidas dos Santos.

 

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A dualidade do homem e os dois tipos de prece.

O homem é dual: exterior e interior, carne e espírito. O homem exterior é visível, da carne; mas o homem interior é invisível, espiritual – ou como o Apóstolo Pedro define ‘... o homem oculto no íntimo do coração, isto é, na incorruptibilidade de espírito manso e tranqüilo.’ (I Ped. iii. 4). E São Paulo se refere a esta dualidade quando diz: ‘Embora em nós, o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior se renova dia a dia’ (II Cor. iv. 16). Aqui o Apóstolo fala claramente sobre o homem exterior e o interior. O homem exterior é composto de muitos membros, mas o homem interior chega à perfeição através de sua mente – pela atenção a si mesmo, por temor do Senhor, e pela graça de Deus.

Os trabalhos do homem exterior são visíveis, mas aqueles do homem interior são invisíveis, de acordo com o Salmista: “o homem interior e o coração são muito profundos”. (Sl. lxiii.7: Septuagint) E São Paulo o Apóstolo também disse: “Quem, pois, dentre os homens conhece o que é do homem senão o espírito do homem que nele está?” (I Cor. ii. 11). Somente Aquele que experimenta os corações mais profundos e as partes internas conhece todos os segredos do homem interior. O treinamento, então, deve também ser duplicado, externo e interno: externo na leitura de livros, interno nos pensamentos de Deus; externo no amor da sabedoria, interno no amor de Deus; externo em palavras, interno em oração; externo na sutileza do intelecto, interno no calor do espírito; externo na técnica, interno na visão.

Page 6: A Arte da Prece   Parte I

A mente exterior é ‘inchada’ (I Cor. viii. 1), a interna torna-se humilde; a exterior é cheio de curiosidade, desejando conhecer tudo, a interna presta atenção a si mesma e nada deseja além de conhecer Deus, falando a Ele como David falou quando disse: “Meu coração diz a teu respeito: ‘Procura sua face!’ É tua face, Senhor, que eu procuro” (Sl xxvii. 8) E também “Como a corça bramindo por águas correntes, assim minha alma brame por ti, ó meu Deus!” (Sl xlii. 2). A oração é dupla também, exterior e interior. Existe a oração feita abertamente, e existe a oração secreta; oração com outros e a oração solitária; a oração realizada como um dever e a oração voluntariamente oferecida. A oração como dever, efetuada abertamente, de acordo com as regras da Igreja, em companhia de outros, tem seus próprios horários: o Ofício da Meia-Noite, Matinas, as Horas, a Liturgia, Vésperas e Completa. Estas orações, para as quais as pessoas são chamadas por sinos, são um tributo adequado para o Rei do Céu que deve ser pago todos os dias. A oração voluntária que é feita em segredo, por outro lado, não tem hora fixa, sendo feita quando quer que você queira, sem comando, sim-

plesmente quando o espírito o move. . O primeiro, em outras palavras: a prece da Igreja; tem um número estabelecido de Salmos, troparia, cânones [1] e outros hinos juntos com ritos executados pelo sacerdote: mas o outro tipo de prece – secreta e voluntária – desde que não possui horário definido, também não está limitada a um número definido de orações: cada um ora como quer, algumas vezes brevemente, algumas vezes longamente. O primeiro tipo é executado pelos lábios e voz, o segundo somente em espírito. O primeiro é efetuado em pé, o segundo, não só de pé ou sentado, mas também deitado, em uma palavra, sempre – quando quer que lhe ocorra de elevar sua mente a Deus. O primeiro, feito em companhia com outros, é efetuado na igreja, ou em alguma ocasião especial em uma casa onde muitas pessoas se reúnem juntas; mas o Segundo é executado quando você está fechado e sozinho no quarto de acordo com a palavra do Senhor: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora a teu Pai que está lá, no segredo.” (Mat. VI. 6).

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A oração é dupla também, exterior e interior. Existe a oração feita abertamente, e existe a oração secreta; oração com outros e a oração solitária; a oração realizada como um dever e a oração voluntariamente oferecida. A oração como dever, efetuada abertamente, de acordo com as regras da Igreja, em companhia de outros, tem seus próprios horários: o Ofício da Meia-Noite, Matinas, as Horas, a Liturgia, Vésperas e Completa. Estas orações, para as quais as pessoas são chamadas por sinos, são um tributo adequado para o Rei do Céu que deve ser pago todos os dias. A oração voluntária que é feita em segredo, por outro lado, não tem hora fixa, sendo feita quando quer que você queira, sem comando, simplesmente quando o espírito o move. O primeiro, em outras palavras: a prece da Igreja; tem um número estabelecido de Salmos, troparia, cânones [1] e outros hinos juntos com ritos executados pelo sacerdote: mas o outro tipo de prece – secreta e voluntária – desde que não possui horário definido, também não está limitada a um número definido de orações: cada um ora como quer, algumas vezes brevemente, algumas vezes longamente.

O primeiro tipo é executado pelos lábios e voz, o segundo somente em espírito. O primeiro é efetuado em pé, o segundo, não só de pé ou sentado, mas também deitado, em uma palavra, sempre – quando quer que lhe ocorra de elevar sua mente a Deus. O primeiro, feito em companhia com outros, é efetuado na igreja, ou em alguma ocasião especial em uma casa onde muitas pessoas se reúnem juntas; mas o Segundo é executado quando você está fechado e sozinho no quarto de acordo com a palavra do Senhor: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora a teu Pai que está lá, no segredo.” (Mat. VI. 6). O quarto também é duplicado, externo e interno, material e espiritual: o lugar material é de madeira ou pedra, o quarto espiritual é o coração ou a mente: S. Teofilato [2] interpreta esta frase como sendo o pensamento secreto ou a visão interna. Portanto, o quarto material permanece sempre fixo no mesmo lugar, mas o espiritual você o carrega dentro de si para onde quer que você vá. Onde quer que o homem esteja seu coração está sempre com ele, e assim, tendo recolhido seus pensamentos dentro do seu coração, ele pode fechar-se dentro e orar a Deus

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em segredo, quer ele esteja conversando ou ouvindo, quer ele esteja entre poucas ou muitas pessoas. Oração interna, se ela vem ao espírito do homem quando ele está com outras pessoas, não requer a utilização dos lábios ou de livros, nenhum movimento da língua ou som da voz: e o mesmo é verdadeiro quando você está sozinho. Tudo aquilo que é necessário é elevar sua mente a Deus, e descer profundamente em si mesmo, e isto pode ser feito em todos os lugares. O quarto material de um homem que é silencioso inclui somente o próprio homem, mas o quarto espiritual interior também contem Deus e todo o Reino do Céu, de acordo com as Próprias palavras de Cristo no Evangelho: “O reino de Deus está dentro de vós”. (Lucas xvii. 21). Explicando este texto, S. Macário do Egito [3] escreve: “O coração é um pequeno vaso, mas todas as coisas estão contidas nele; Deus está lá, os anjos estão lá, e lá também está a vida e o Reino, as cidades celestiais e os tesouros da graça.”

O homem precisa fechar-se no quarto interno de seu coração mais freqüentemente que necessita ir à igreja: e recolhendo todos os seus pensamentos lá, ele deve colocar sua mente diante de Deus, orando a Ele em segredo com todo calor do espírito e com fé viva. Ao mesmo tempo ele deve também aprender a direcionar seus pensamentos a Deus de tal modo a ser capaz de se transformar em um homem perfeito.

[1] Um 'troparion' (plural troparia) é um curto trecho de poesia religiosa – normalmente uma estrofe de aproximadamente seis linhas – utilizada nos serviços da Igreja Ortodoxa. Algumas vezes estas 'troparia' ocorrem sozinhas, algumas vezes elas são agrupadas juntas em odes. Um cânone consiste normalmente de uma série de nove de tais odes (na prática oito odes, já que a segunda é normalmente omitida). Um cânone é lido a cada dia nas Matinas; cânones também são indicados para a Completa e para o Ofício da Meia-Noite.

[2] S. 'Theophylact', Arcebispo da Bulgaria (Século XI); escritor teológico bizantino, autor de muitos comentários sobre a Sagrada Escritura.

[3] S. Macário (?300-390), um dos primeiros e maiores líderes monásticos, fundador dos ‘Scetis’ no deserto Egípcio. Os vários escritos tradicionalmente atribuídos a ele não são mais considerados como sendo seu trabalho: a exata origem destes permanece obscura, mas eles parecem ter sido escritos no Egito ou Síria durante o final do século IV ou início do século V.

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Amável união com Deus.

Antes de tudo deve ser compreendido que é o dever de todos os Cristãos – especialmente aqueles cuja vocação os faz dedicar à vida espiritual – lutar sempre e em todas as maneiras para estar unido com Deus, seu criador, amante, benfeitor, e o seu supremo bem, por quem e para que, eles foram criados. Isto é porque o centro e o propósito final da alma, que Deus criou, deve ser Deus Ele Próprio, e nada mais – Deus de quem a alma recebeu sua vida e sua natureza, e para quem ela deve eternamente viver. Pois todas as coisas visíveis na terra que são adoráveis e desejáveis – riquezas, glória, esposa, crianças, em uma palavra tudo deste mundo que é belo, doce e atrativo – não pertence à alma, mas somente ao corpo, e sendo temporário, passará tão rapidamente como uma sombra. Mas a alma, sendo eterna por sua própria natureza, pode obter descanso eterno somente no Deus Eterno: Ele é seu mais alto bem, mais perfeito que todas as belezas, doçuras, e graciosidades, e Ele é seu lar

natural, de onde ela veio e para onde deve retornar. Pois assim como a carne vinda da terra retorna para a terra, assim a alma vinda de Deus retorna a Deus e mora com Ele. Pois a alma foi criada por Deus para que habite com Ele para sempre; portanto nesta vida temporária devemos diligentemente buscar a união com Deus, para ser considerado digno de estar com Ele e Nele eternamente na vida futura.Nenhuma unidade com Deus é possível exceto por um amor extremamente grande. Isto nós podemos ver na história, nos Evangelhos, da mulher que era uma pecadora: Deus em sua grande compaixão concedeu-lhe o perdão de seus pecados e uma firme união com Ele, “porque ela demonstrou muito amor” (Lucas vii. 47). Ele ama aqueles que O amam, Ele abre caminho para aqueles que se agarram a ele, dá Si mesmo àqueles que O buscam, e abundantemente concede plenitude de alegria para aqueles que desejam desfrutar Seu amor.

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Para acender em seu coração tal amor divino, para unir-se a Deus em uma inseparável união de amor, é necessário para um homem orar freqüentemente, elevando a mente até Ele. Pois assim como uma chama aumenta quando é constantemente alimentada, assim a oração, feita freqüentemente, com a mente habitando cada vez mais profundamente em Deus, desperta o amor divino no coração. E o coração, em chamas, aquecerá o homem interno, irá iluminá-lo e ensiná-lo, revelando a ele toda sua desconhecida e oculta sabedoria, e tornando-o como um serafim em chamas, sempre de pé diante de Deus dentro de seu espírito, sempre olhando para Ele dentro de sua mente, e extraindo desta visão a doçura da felicidade espiritual.

A Oração dita pelos lábios sem a atenção da mente não é nada.

Nós faríamos bem ao aplicar a nós mesmos as palavras de S. Paulo aos Coríntios. Qual é a utilidade para vocês, oh Coríntios (assim ele

escreve), se oram somente com a voz, enquanto suas mentes não prestam nenhuma atenção à oração, mas sonham sobre alguma outra coisa? Que benefício há se a língua muito diz, mas a mente não pensa sobre o que é dito, mesmo se vocês pronunciam muitíssimas palavras? Que benefício há se vocês tivessem que cantar em plena voz, e com toda a força de seus pulmões, enquanto suas mentes não estivessem diante de Deus e não O vissem, mas vagassem por aí em pensamento para algum outro lugar? Uma oração assim não lhes trará nenhum benefício. Não será ouvida por Deus, mas permanecerá infrutífera. Bem julgou S. Cipriano [1] quando disse: “Como você pode esperar ser ouvido por Deus, quando você não se ouve? Como esperar que Deus se lembre de você quando você ora, se você não se lembra de você mesmo?

[1] S. Cipriano, Bispo de Cartago no Norte da África, morreu como um mártir em 258.

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A oração deveria ser curta, mas freqüentemente repetida.

Daqueles que têm experiência em elevar suas mentes a Deus, eu aprendi que, no caso da oração feita pela mente vinda do coração, uma prece curta, freqüentemente repetida, é mais calorosa e mais útil do que uma longa. A oração longa também é muito útil, mas somente para aqueles que estão atingindo a perfeição, não para os iniciantes. Durante a oração longa, a mente do inexperiente não pode ficar muito tempo diante de Deus, mas é geralmente dominada pela sua própria fraqueza e mutabilidade, e impelida à deriva por coisas externas, de modo que aquele calor do espírito rapidamente se esfria. Tal oração não é mais uma oração, mas somente distúrbio mental, por causa dos pensamentos que vagam de lá para cá: isto acontece tanto durante os salmos recitados na igreja, como também durante a regra das orações para a cela [1], o que toma um longo tempo.

A prece curta, mas freqüente, por outro lado, tem mais estabilidade, porque a mente, imersa por um curto tempo em Deus, pode executá-la com maior calor. Por isso o Senhor também diz: “Nas vossas orações não useis de vãs repetições” (Mat. vi. 7), pois não é pela sua prolixidade que você será ouvido. E S. João da Escada [2] também ensina: “Não tente usar muitas palavras para que sua mente não se torne distraída pela busca delas. Pois de uma curta sentença, o Publicano recebeu a misericórdia de Deus, e uma breve afirmação de crença salvou o Ladrão. Uma excessiva multidão de palavras na oração dispersa a mente em sonhos, enquanto uma única ou curta sentença ajuda a recolher a mente”. Mas alguém pode perguntar: “Por que o apóstolo diz na Epístola aos Tessalonicences: ‘Orai sem cessar’? (I Tess. V. 17). Usualmente nas Sagradas Escrituras, a palavra ‘sempre’ é usada no sentido de ‘freqüente’, por exemplo: “Os sacerdotes sempre iam à primeira tenda, para realizar o serviço a Deus” (Hb. ix. 6): isto significa que os sacerdotes iam à primeira tenda em certas horas

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fixadas, não que eles iam lá incessantemente de dia e de noite; eles iam freqüentemente, mas não ininterruptamente. Mesmo se os sacerdotes fossem todo o tempo na igreja, manter aceso o fogo que vem do céu, e adicionando óleo a ele de modo que ele não apagasse, eles não estariam fazendo isto todos no mesmo momento, mas por turnos, como vemos de S. Zacarias: “Ele desempenhou as funções sacerdotais diante de Deus, no turno de sua classe.” (Lucas i. 8). Dever-se-ia pensar na mesma maneira em relação à oração, a qual o Apóstolo ordena ser feita incessantemente, pois é impossível para o homem permanecer na oração dia e noite sem interrupção. Afinal, o tempo é também necessário para as outras coisas, para os necessários cuidados na administração da própria casa; nós precisamos de tempo para trabalhar, tempo para conversar, tempo para comer e beber; tempo para descansar e dormir. Como é possível orar incessantemente exceto através da oração freqüente? Mas a oração freqüentemente-repetida pode ser considerada oração incessante.

Conseqüentemente não permita que sua freqüentemente-repetida mas curta oração se expanda em muitas palavras. Isto é o que os Santos Padres também aconselharam.

Em seu comentário sobre o Evangelho de S. Mateus (vi. 7), S. Theophylact atesta: “Você não deveria fazer longas preces, pois é melhor orar curto e freqüentemente.” E S. João Crisóstomo [3] no seu comentário sobre as Epístolas de S. Paulo, observa: “Quem quer que fale demasiadamente na oração não ora, mas favorece a conversa indolente.” S. Theophylact também diz em sua interpretação de Mateus vi. 6: “Palavras supérfluas são conversa indolente.”

O Apostólo disse bem: “Prefiro dizer cinco palavras com minha inteligência ... a dizer dez mil palavras em línguas.” (I Cor. xiv. 19): isto é, é melhor para mim orar a Deus brevemente mas com atenção, do que pronunciar inumeráveis palavras sem atenção, preenchendo em vão o ar com ruído.

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Há também outro sentido no qual as palavras do Apóstolo devem ser interpretadas. “Ore sem cessar” (I Tess. v. 17) deve ser tomado no sentido de uma oração executada pela mente: seja lá aquilo que um homem esteja fazendo, a mente pode sempre ser dirigida a Deus, e desta maneira ela pode orar a Ele incessantemente.Portanto, inicie agora, oh minha alma, pouco a pouco, a trajetória de treinamento que lhe foi apresentada, comece em nome do Senhor, de acordo com a instrução do Apóstolo: “E tudo o que fizerdes de palavra ou ação, fazei-o em nome do senhor Jesus.” (Col. iii. 17). Faça tudo, diz ele, primariamente não para seu próprio benefício, mesmo espiritual, mas para a glória de Deus; e assim em todas as suas palavras, ações e pensamentos, o Nome do Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador, será glorificado. Mas antes que você inicie, explique brevemente a si mesmo o que é a oração. Orar é dirigir a mente e os pensamentos em direção a Deus. Orar significa permanecer diante de Deus com a mente, olhar

mentalmente para Ele de modo inabalável, e conversar com Ele com reverente medo e esperança.

E assim recolhendo todos os seus pensamentos: pondo de lado todos os externos e mundanos cuidados, dirija sua mente em direção a Deus concentrando-a inteiramente sobre Ele.

[1] Junto com os serviços litúrgicos executados na igreja, pela regra é requerido que um monge Ortodoxo recite certas orações diariamente em sua própria cela.

[2] S. João da Escada, também conhecido como João Climaco (?579-?649), do Monte Sinai, autor de A Escada da Ascenção Divina, um clássico trabalho sobre a vida espiritual e ascética que, normalmente, é lida a cada Quaresma nos monastérios Ortodoxos. Há alguns trechos em português na “Pequena Filocalia” (Paulus: São Paulo, 1985)

[3] S João Crisóstomo, Arcebispo de Constantinopla (? 344-407), ascético, orador,e escritor. De todos os Padres Gregos ele é talvez o mais amado na Igrja Ortodoxa, e um daqueles que o trabalho é mais amplamente lido.

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““A ARTE DA PRECEA ARTE DA PRECE””

Uma Antologia Ortodoxa

compilada por

Igumen Chariton de Valamo

Parte I