a arte da gentileza

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http://www.isecretarias.com Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90100. Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90100. EMPATIA Expansão da consciência MESMO NÃO SENDO MÚSICO, uma vez tive a oportunidade de ter nas mãos um soberbo violino que datava do século XVIII. O que mais me impressionou, ainda mais do que suas linhas harmoniosas ou a beleza dos veios de sua madeira, foi que, ao segurá-lo, era possível senti-lo vibrar. Não se tratava absolutamente de um objeto inerte. Ele respondia às diversas vibrações que porventura fossem produzidas ao redor: outro violino, um bonde passando na rua, a voz de alguém. Se pegarmos um violino comum, feito em série, isso simplesmente não acontece. Pode soar qualquer som ao redor, e o instrumento permanecerá indiferente. Para obter a sensibilidade extrema e a ressonância extraordinária do antigo violino, os luthiers tiveram de lançar mão de um excepcional conhecimento da madeira e da sua maturação exata. Eles se apoiaram na tradição artística e no ofício de gerações sem conta, dotados do talento necessário para o corte preciso da madeira e o acabamento refinado do instrumento. Essa maravilhosa capacidade de responder aos estímulos externos não é em nada passiva — trata-se de uma virtude ativa. É a capacidade que o violino tem de entrar em ressonância, paralela à sua capacidade de produzir um som de extraordinária qualidade — uma música com alma, capaz de comover e inspirar. Nós, seres humanos, somos — ou pelo menos podemos ser — como esse violino. Desde o berço somos capazes de entrar em ressonância com outras pessoas. Os recém-nascidos choram quando ouvem outro bebê chorando. Pouco a pouco, a empatia, que a princípio não passa de uma simples capacidade instintiva de entrar em ressonância, se desenvolve e se toma a capacidade de compreender os sentimentos e o ponto de vista dos outros: a capacidade de nos identificarmos com nosso semelhante. Mas se essa capacidade não se desenvolver suficientemente ou for abafada, passaremos por sérias dificuldades. Se formos insensíveis às emoções alheias, cada relacionamento se tornará uma charada indecifrável. E se virmos as pessoas não como pessoas, mas como coisas, como uma geladeira ou um poste, seremos capazes de manipulá-las e até de desrespeitá-las. Mas quando, pelo contrário, a empatia se desenvolve plenamente, nossa existência se torna incomensuravelmente mais rica. Tornamo-nos capazes de sair de dentro de nós mesmos e de entrar nas pessoas. Os relacionamentos, então, tornam-se fonte de interesse e de estímulo emocional e espiritual.

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As pessoas mais gentis são mais felizes e bem-sucedidas

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Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. 

EMPATIA

Expansão da consciência

MESMO NÃO SENDO MÚSICO, uma vez tive a oportunidade de ter nas mãos um soberbo violino

que datava do século XVIII. O que mais me impressionou, ainda mais do que suas linhas

harmoniosas ou a beleza dos veios de sua madeira, foi que, ao segurá-lo, era possível senti-lo

vibrar. Não se tratava absolutamente de um objeto inerte. Ele respondia às diversas vibrações

que porventura fossem produzidas ao redor: outro violino, um bonde passando na rua, a voz de

alguém. Se pegarmos um violino comum, feito em série, isso simplesmente não acontece. Pode

soar qualquer som ao redor, e o instrumento permanecerá indiferente. Para obter a sensibilidade

extrema e a ressonância extraordinária do antigo violino, os luthiers tiveram de lançar mão de um

excepcional conhecimento da madeira e da sua maturação exata. Eles se apoiaram na tradição

artística e no ofício de gerações sem conta, dotados do talento necessário para o corte preciso da

madeira e o acabamento refinado do instrumento. Essa maravilhosa capacidade de responder

aos estímulos externos não é em nada passiva — trata-se de uma virtude ativa. É a capacidade

que o violino tem de entrar em ressonância, paralela à sua capacidade de produzir um som de

extraordinária qualidade — uma música com alma, capaz de comover e inspirar.

Nós, seres humanos, somos — ou pelo menos podemos ser — como esse violino. Desde o berço

somos capazes de entrar em ressonância com outras pessoas. Os recém-nascidos choram

quando ouvem outro bebê chorando. Pouco a pouco, a empatia, que a princípio não passa de

uma simples capacidade instintiva de entrar em ressonância, se desenvolve e se toma a

capacidade de compreender os sentimentos e o ponto de vista dos outros: a capacidade de nos

identificarmos com nosso semelhante.

Mas se essa capacidade não se desenvolver suficientemente ou for abafada, passaremos por

sérias dificuldades. Se formos insensíveis às emoções alheias, cada relacionamento se tornará

uma charada indecifrável. E se virmos as pessoas não como pessoas, mas como coisas, como

uma geladeira ou um poste, seremos capazes de manipulá-las e até de desrespeitá-las. Mas

quando, pelo contrário, a empatia se desenvolve plenamente, nossa existência se torna

incomensuravelmente mais rica. Tornamo-nos capazes de sair de dentro de nós mesmos e de

entrar nas pessoas. Os relacionamentos, então, tornam-se fonte de interesse e de estímulo

emocional e espiritual.

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Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. 

Por mais rico e vasto que seja nosso mundo interior, ele ainda é um sistema fechado, para todos

os efeitos bem delimitado e contido. Nossos pensamentos, preocupações e desejos: tudo se

limita a isso? Às vezes, é o que parece. Mas sair desse mundo e penetrar em outros — nas

paixões, medos, esperanças e sofrimentos de outros seres humanos — assemelha-se a uma

viagem interplanetária, apesar de constituir proeza muito mais simples. Se nos fechamos para os

outros, ficamos fora de equilíbrio, enquanto participar de suas vidas nos ajuda a ficar mais

saudáveis e felizes. O excesso de foco em si mesmo está correlacionado com o aumento da

depressão e da ansiedade. Sabemos com certeza o seguinte: as pessoas que se preocupam

mais consigo mesmas e menos com as outras têm maior propensão a se sentir temerosas ou

insatisfeitas.

A empatia foi sempre necessária à nossa sobrevivência desde os tempos pré-históricos: os seres

humanos só se desenvolvem plenamente em comunidade. E isso é impossível se eles não

puderem ler as emoções e intenções de seus semelhantes. Nas pequenas e corriqueiras

questões do dia-a-dia também vale o mesmo princípio: alguém que tenta furar a fila, ou joga lixo

na rua, ou faz barulho quando há gente querendo dormir, só faz isso porque é incapaz de

conceber a reação dos outros. A empatia é um pré-requisito da comunicação, da colaboração e

da coesão social. Sem ela, voltamos à barbárie — ou deixamos de existir.

A empatia é a melhor forma de melhorar qualquer relacionamento. Alguma vez você já assistiu a

uma discussão em que nenhuma das partes demonstrou a menor intenção ou capacidade de ver

as coisas do ponto de vista do outro? Que coisa dolorosa. E no entanto, isso acontece, e

podemos vê-lo diariamente no campo das relações internacionais. A empatia é a coisa que mais

falta, e a que mais ajudaria a resolver antiquíssimos e perigosos preconceitos e problemas

raciais. É por isso que ela é tão importante hoje em dia.

Devido à crescente mobilidade de um número cada vez maior de pessoas, vemo-nos cada vez

mais cara a cara com indivíduos pertencentes a outras culturas. Eles cresceram em ambientes

totalmente diferentes do nosso. Têm outra religião, aparência física diferente. Seus costumes,

comidas, roupas, seu modo de ver a sexualidade, de lidar com o tempo, suas regras de etiqueta e

sua concepção de dever, de trabalho e de dinheiro — praticamente tudo — é diferente. Nossa

primeira reação não raro é a desconfiança. Já foi demonstrado que o preconceito racial tem

raízes profundas, e que a desconfiança não é um sentimento racional, mas baseado numa reação

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Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. 

emocional imediata que está fora do nosso controle. Sendo assim, até mesmo aqueles que

afirmam não ter preconceitos na verdade os têm.

Treinar a empatia é talvez uma das necessidades mais urgentes de nossos programas

educacionais, em todos os níveis. Yehudi Menuhin, o grande violinista, certa vez declarou algo

extraordinário numa entre vista: se a juventude alemã tivesse aprendido a admirar não apenas a

música de Beethoven, mas também a cantar e a dançar a música tradicional judaica, o

Holocausto não teria acontecido.

Mas a empatia não se limita a resolver problemas; ela faz com que nos sintamos melhor. Estudos

demonstraram que as pessoas mais capazes de exercer a empatia são também mais realizadas,

mais saudáveis, menos dogmáticas e mais criativas. Apesar de todas essas vantagens, a empatia

suscita uma boa dose de resistência. A disposição de se identificar com o semelhante para

compreendê-lo é vista por alguns como uma fraqueza. Não obstante, essa é a melhor solução

para todos. No momento em que alguém se sente compreendido, e percebe que estamos

reconhecendo a validade de seu ponto de vista e a legitimidade de suas reivindicações, essa

pessoa muda. Desse modo, pode-se evitar incontáveis complicações.

Algum tempo atrás, tive de frear bruscamente para não atropelar uma criança que atravessou a

rua correndo. O carro que vinha atrás de mim não conseguiu parar a tempo de evitar a colisão.

Quando saímos do carro e nos aproximamos, eu vi que ele estava pronto para a briga. Mesmo

antes de ter proferido palavra, pude perceber que estava em modo de emergência. Mas nem o

carro dele nem o meu havia sofrido qualquer dano. Então, fui o primeiro a falar. Eu poderia ter

dito: "Eu estou certo". Isso era verdade, mas inútil, quando não danoso. Então, o que eu disse foi:

"Eu estava indo rápido e freei de repente. Você não podia adivinhar. Desculpe. Você está bem?".

Na mesma hora o sujeito mudou. Cada linha de seu rosto se alterou quase imperceptivelmente.

Numa fração de segundo, ele baixou a guarda. Sim, estava bem. Vi a surpresa em seus olhos:

seu oponente estava interessado no que ele estava sentindo. Depois disso, vi alívio: não havia

motivo para brigar. Finalmente, ele simplesmente apertou minha mão e foi embora. Admito que se

meu carro tivesse sofrido algum dano meu nível empático poderia estar bem mais baixo. Seja

como for, o que poderia ter se transformado numa discussão cheia de raiva e descontrole foi

resolvido em questão de segundos.

Ou seja, a empatia é um meio que temos ao nosso dispor de trazer alívio e satisfação a nossos

semelhantes. Não é coincidência que, de acordo com muitos psicoterapeutas, a empatia seja um

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Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. 

ingrediente essencial para o sucesso do relacionamento terapêutico. Pessoas com problemas

não precisam de diagnósticos, aconselhamento, interpretações, manipulações. Elas precisam de

total e completa empatia. Quando elas finalmente sentem que alguém compreende aquilo por que

estão passando, naquele momento se tornam capazes de se libertar de seu sofrimento, e se

curam.

Algo parecido acontece no campo da medicina. Já foi demonstrado que quanto mais empático um

médico se mostrar, mais seus pacientes o considerarão competente. Infelizmente, também já foi

demonstrado que estudantes de medicina têm maior capacidade empática no início de sua

residência do que no final. Não deveríamos esperar um pouco mais de preparo nesse aspecto

para uma profissão cujo objetivo é ajudar as pessoas?

Por outro lado, quando alguma coisa é exagerada, mesmo sendo boa, estraga. Podemos

facilmente ter uma overdose de empatia. Podemos ouvir os problemas e as angústias das outras

pessoas e nos identificar tão completamente que acabamos exauridos, arrasados, talvez até

furiosos. Podemos perder nosso centro. Vou lhes contar uma história curiosa. Já no final da vida,

minha mãe, ainda com boa saúde, algumas vezes sofria um lapso mental. Um dia, ela me disse

que, ao dirigir, às vezes punha-se de tal forma no lugar das outras pessoas que, quando o sinal

fechava para ela, pensava: "Está verde para elas", e então, colocando-se no lugar delas,

avançava o sinal vermelho. Ela só percebia o que tinha feito depois de ter avançado diversos

sinais vermelhos e de ter se surpreendido com a indignação de outros motoristas. Essa história é

simbólica. Empatia cega é um perigo. Temos primeiro de ter certeza de estarmos sintonizados

com nós mesmos e com nossas próprias necessidades, senhores de nosso próprio tempo e

espaço. Temos de ter nossa própria vida sob controle antes de tentarmos resolver o problema

dos outros. Do contrário, corremos o risco de sofrer algum acidente.

A empatia é um dos ingredientes da inteligência emocional sem o qual não é possível viver

efetiva e plenamente. Uma boa capacidade empática significa vantagens na escola, na busca de

um emprego, na conquista de relacionamentos satisfatórios e na comunicação com as crianças.

Imaginemos um publicitário incapaz de prever a reação das pessoas, um músico sem qualquer

identificação com sua plateia, um professor incapaz de entender seus alunos ou um pai

indiferente ao que seus filhos estão passando. Como eles vão enfrentar essas situações?

Um aspecto revelador da empatia, um verdadeiro teste, é quando nos alegramos com o sucesso

alheio — uma virtude que os budistas chamam de mudita. Digamos que um amigo seu conheça

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repentinamente o sucesso, ou o filho dele mostre talentos que seus filhos nem sonham ter, ou,

ainda, esteja vivendo uma nova e intensa relação, do tipo que você sempre desejou. Qual é a sua

reação? Você fica feliz por ele? Ou disfarça um íntimo desconforto porque não aconteceu com

você? Fica fazendo comparações ou imaginando por que você não teve a mesma sorte, ou sente

inveja? O contentamento empático pelo sucesso alheio é raro, a não ser talvez aquele que

sentimos por nossos filhos, que percebemos como continuações de nós mesmos. Não é fácil nos

sentirmos incondicionalmente contentes pela alegria concedida a outra pessoa e negada a nós.

Se conseguimos isso, quer dizer que percorremos um longo caminho.

Mas a empatia não é uma qualidade meramente festiva e livre de preocupações. Pelo contrário;

ela tem mais a ver com o fracasso do que com o sucesso; mais de sofrimento do que de alegria.

É exatamente quando as coisas estão indo mal que a empatia é benéfica. Sem dúvida, ficamos

satisfeitos quando alguém compartilha de nossos momentos felizes. Mas é quando estamos

sofrendo que precisamos de alguém que nos compreenda.

Para que a empatia seja plena e verdadeira, a pessoa que a sente precisa ter uma relação

saudável com o próprio sofrimento e com o de seus semelhantes. O sofrimento é, por definição,

aquilo que mais abominamos. Se pudermos, fugiremos dele. Evitar o sofrimento é na verdade o

fundamento da saúde, e reduzi-lo ao mínimo é sinal de sabedoria. Mas uma certa dose de

sofrimento é inevitável na vida. Todos somos frágeis. Mais cedo ou mais tarde, todos ficamos

doentes, todos cometemos erros, todos fracassamos, nos decepcionamos com o que a vida nos

reserva, perdemos uma pessoa amada. Todos sofremos. E temos de aceitar esse sofrimento.

Como você enfrenta o sofrimento? Não é fácil. Alguns fingem não senti-lo, sorrindo sem parar:

"Não foi nada". Alguns se orgulham dele: "Minha enxaqueca é mais forte que a sua". Alguns

gostam de ostentá-lo, descrevendo suas dores em detalhes: "Vou te contar como foi fazer cada

uma dessas obturações". Alguns culpam Deus ou o destino, acreditando-se alvo da ira divina ou

da adversidade: "Isso sempre acontece comigo!". E alguns não param de reclamar, mesmo

quando a dor já passou — e não só quanto às dores sofridas, mas também àquelas que ainda

podem vir a sofrer, como se não quisessem ser pegos de surpresa. Alguns lutam o tempo inteiro,

tenham ou não motivo para isso. E, finalmente, alguns simplesmente se deixam ficar

desesperançados e deprimidos, e renunciam à vida: "Para mim, acabou".

Tudo isso são formas ineficazes de lidar com o sofrimento. Elas podem talvez nos dar alguma

ilusão de consolo, mas, basicamente, apenas perpetuam ou aumentam o sofrimento, ao invés de

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Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. 

eliminá-lo. A melhor forma de enfrentar o sofrimento é diretamente, com sinceridade e coragem.

Para entrar nele, como num túnel, e sair do outro lado.

O mito de Quíron tem muito a nos ensinar sobre essa atitude. Quíron nasceu de um estupro: seu

pai, Cronos, o rei dos deuses, transformou-se em cavalo para perseguir uma mulher, alcançou-a

e estuprou-a. O filho que nasce é monstruoso — metade cavalo, metade homem — e é

imediatamente rejeitado por sua mãe. Assim, Quíron nasce cercado pela desonra e pelo

sofrimento. De início, ele procura negar a terrível verdade. Com a ajuda de Apolo, passa a cultivar

tudo o que é nobre e inteligente — o lado humano. Torna-se especialista na arte da medicina, das

ervas, da astrologia, do arco e flecha. Sua fama se espalha de tal forma que os reis o querem

como tutor de seus filhos e filhas. Mas, um dia, Quíron é acidentalmente ferido no joelho por uma

seta envenenada. Se fosse um simples mortal, teria morrido, mas é filho de um deus, e, portanto,

imortal. Só lhe resta sofrer.

Ele sofre em silêncio: sua capacidade de locomoção está comprometida e ele se torna

dependente de sua filha. A seta o atingiu na parte posterior do corpo, a parte em forma de animal,

da qual ele se envergonha e a qual tenta o máximo possível esquecer, uma vez que ela lhe traz a

lembrança da dolorosa rejeição sofrida. Nesse estado, Quíron não pode se tornar instrutor de

reis, mas apenas ajudar os pobres e sofredores. Ele se dedica a essa tarefa com extraordinária

competência. Por mais que tente aliviar o próprio sofrimento, não consegue. Mas com seu

conhecimento, sensibilidade e capacidade empática, adquirida por intermédio do sofrimento, ele é

bem-sucedido em aplacar o sofrimento dos outros. Ele se transformou no médico ferido.

A certa altura, Quíron fica sabendo que sua dor terminará se ele renunciar à imortalidade. Ele

deve abrir mão do último de seus privilégios. Decidido a fazer isso, ele empreende uma descida

de nove dias ao submundo. Finalmente, Júpiter o eleva até os céus, transformando-o na

constelação que ainda podemos ver nas noites claras de verão. Por fim, ele encontrou a paz e a

união com o Cosmos que sempre buscara.

Quíron não é um herói viril como Aquiles ou Hércules. É um anti-herói. Ele vence por causa, e

não apesar, de sua fragilidade. Ele se torna empático e passa a curar as pessoas somente

quando não tenta mais afirmar a todo custo seu talento e inteligência. Ele conquista a suprema

realização, a união com o Todo, somente quando, em lugar de combater a dor, ele a aceita.

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Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. 

Aqueles que têm uma relação conturbada com a dor possuem baixa capacidade de sentir

empatia. Se eu negar meu sofrimento, será difícil para mim me identificar com o sofrimento dos

outros. Se eu me gabo do meu sofrimento, verei os outros como concorrentes e provavelmente

não serei sensível a seus problemas. O sofrimento próprio é a base da empatia.

Naturalmente, nossa empatia é maior para com aqueles cujo sofrimento é semelhante ao nosso.

Alguém que foi maltratado quando criança será capaz de entender outra pessoa com o mesmo

tipo de trauma. A vítima de um acidente de carro, ou de abuso sexual, ou alguém que foi à

falência, ou que perdeu um filho, pode entender melhor outras pessoas vivendo tragédias

semelhantes. E pode ajudá-las também da melhor forma. Com efeito, o tipo de trauma sofrido se

transforma no gênero de serviço prestado.

Essa é a forma mais difícil e dolorosa de desenvolver empatia. É uma forma que não desejo a

ninguém, mesmo sabendo que, de algum modo, é o destino de todos. O sofrimento, em doses

diversas, acompanha toda a vida. Mas nem todos os seus efeitos são trágicos. Quando

enfrentado com honestidade, o sofrimento pode render frutos de imenso valor. Ele vai fundo

dentro de nós, nos abre, às vezes violentamente, nos faz amadurecer, nos faz descobrir emoções

e recursos dos quais não tínhamos ideia, desenvolve nossa sensibilidade, e talvez nossa

humildade e sensatez. Trata-se de um duro lembrete daquilo que é essencial. Ele pode nos ligar

a nossos semelhantes. Sim, é verdade que o sofrimento é capaz de nos endurecer ou de nos

deixar mais céticos, mas ele também pode nos tornar mais gentis.

Felizmente, existem outras formas além da dor para se desenvolver a empatia. O estudo e a

prática das belas-artes — literatura, pintura, e, acima de tudo, dança — sem dúvida incluem entre

seus benefícios uma maior capacidade para sentir empatia. Mas o método mais fácil e mais direto

consiste em nos colocarmos no lugar de outra pessoa. A primeira pessoa a adotar essa técnica

foi Laura Huxley em seu livro You Are Not the Target. Ela fez assim: depois de termos tido

problemas com alguém importante em nossa vida, tal como uma discussão com nosso marido ou

esposa, podemos relembrar o episódio nos identificando com o outro lado. Se conseguirmos isso,

poderemos ver o mundo, incluindo a nós mesmos, de um ponto de vista diferente, e

surpreendente. Já vi pessoas que fizeram esse exercício conseguirem coisas extraordinárias.

Elas se deram conta de que nunca haviam efetivamente conhecido o outro.

Uma vez, eu me encontrava no gabinete de Laura Huxley e o aparelho de som estava tocando

uma música magnífica, um dos concertos para piano de Mozart. Na sala ao lado, Laura estava

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Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. 

fazendo ligações para ajudar uma jovem tailandesa grávida que havia chegado recentemente aos

Estados Unidos. Eu podia ouvir a voz de Laura ao telefone, e, apesar de não poder identificar as

palavras, eu sabia sobre o que ela estava falando. Percebi em sua voz a preocupação por aquela

menina, o desejo de ajudá-la. Normalmente, prefiro ouvir música sem a interferência de outros

sons. Mas, dessa vez, as palavras de Laura se misturavam magicamente à música de Mozart. Eu

sentia que Laura havia se colocado no lugar da jovem tailandesa e compreendia como ela estava

se sentindo desprotegida, quão sozinha e desesperada estava num país estrangeiro, e, como se

não fosse o bastante, ainda por cima esperando um filho. A voz de Laura se tornou parte da

música de Mozart; era como se a música estivesse me ajudando a conhecer a beleza da

solidariedade, e a voz em busca de auxílio estivesse me ajudando a compreender a enorme

riqueza da música de Mozart. Naquele momento, eu compreendi o significado da compaixão:

participar do sofrimento de outros seres humanos com identificação intensa e sincera.

As crianças são capazes de sentir compaixão intensa e imediata, talvez até mais fortemente do

que os adultos. Nós, adultos, já passamos por muita coisa e temos nossas defesas. Quando

passamos por um bêbado dormindo na rua, ou por uma velha mendiga, talvez sequer os

notemos. Mas as crianças não estão protegidas das mazelas e do sofrimento do mundo. Lembro-

me de quando meu filho Jonathan tinha quatro ou cinco anos e viu, pela primeira vez, um sem-

teto: um farrapo humano, como se vê tantos nas grandes cidades. Para nós, isso é normal:

estamos acostumados. Mas não para uma criança. Jonathan olhou para aquele homem coberto

de farrapos, cabelo comprido e desgrenhado, o rosto amargo, murmurando qualquer coisa e

revirando o lixo. Primeiro, o rosto de Jonathan mostrou perplexidade; depois, uma expressão de

infinita piedade, misturada com indignação: como uma situação tão abjeta poderia existir? De

outra vez, Jonathan viu uma senhora decrépita, curvada e doente, subindo uma escadaria, cada

degrau custando um enorme esforço. Naquele momento, Jonathan descobriu que o sofrimento da

velhice faz parte da vida. Eu não sei o que ele estava pensando naquela hora, mas sei que seu

coração estava doído, que ele estava sentindo compaixão. Às vezes, é preciso ser criança para

redescobrir nossos sentimentos.

A compaixão é o resultado final e mais nobre da empatia. É uma virtude espiritual, porque nos

retira de nosso egoísmo e ganância. Ela inclui a todos, até mesmo os menos capazes, os menos

agradáveis, os menos inteligentes. Ela nos deixa abertos e nos une a nossos semelhantes. Ela

preenche nosso coração.

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Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. Ferrucci, Piero. A arte da gentileza. Alegro. 2004. p. 90‐100. 

Mas poderíamos definir a compaixão de outra forma: relacionamento em sua forma mais pura.

Não é raro que, em nossos relacionamentos, o ato de julgar reine soberano. Nós gostamos de

julgar: faz com que nos sintamos superiores. Ou talvez reste uma dívida antiga, ou um desejo de

vingança (prato que podemos saborear, mas não digerir). Talvez nosso mal seja a

competitividade, ou então o impulso de dar conselhos, ou ainda o gosto por fazer comparações

indevidas. Ou talvez vejamos o próximo como um meio para atingir um fim. Tudo isso são

interferências que prejudicam e distorcem os relacionamentos.

Agora, imaginemos um relacionamento, qualquer relacionamento, em seu estado puro. Vamos

imaginar que ele esteja livre de julgamento, de malícia, de comparações etc. Estamos diante do

outro sem véu nem defesa. Tornamo-nos imediatamente aptos a entrar em ressonância.

Libertados do fardo, sentimo-nos mais leves. Esquecemos nossa pressa. Estamos livres. Então a

empatia é possível. Assim como o conhecimento. Se eu e você estamos abertos um ao outro,

sem barreiras entre nós, então eu sinto o que você sente, e vice-versa. Eu me sinto

compreendido por você e você por mim. Se você está sofrendo, eu quero que seu sofrimento

termine, e se eu estou sofrendo, eu sei que você vai me oferecer o seu apoio. Se você está feliz,

eu também estou, e se as coisas estão indo bem para mim, eu sei que você também ficará

satisfeito.

E talvez não precisemos de mais nada.