a arábia saudita, o irão e o preço do petróleo · eliminaram do livro sagrado a o alcorão...

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O PAÍS Sexta-feira, 15 de Janeiro de 2016 45 A Arábia Saudita, o Irão e o Preço do Petróleo SEBASTIÃO MARTINS* A quando da passagem de ano, o mundo foi confrontado com a notícia do corte das relações diplomáticas entre a Arábia Saudita e o Irão, como consequência da tensão gerada pela execução de um clérigo xiita, Nimr Baqer al-Nimr. O conflito entre os dois países, a agravar-se, irá redefinir a estratégia geopolí- tica da comunidade internacional para as guerras que emergiram das Primaveras Árabes. O foco está na divisão entre sunitas e xiitas, que mais do que um problema religioso é, acima de tudo, um problema político, devido à vontade que ambos têm em obter uma supremacia regional. Tanto o Irão (xiitas) como a Arábia Saudita (sunitas) pretendem ser os países líderes do mundo árabe. Entendo que existe uma grande dificuldade da opinião pública nacional em compreender e tornar compreensíveis os fenómenos do mundo árabe e, especialmente, os que afectam as relações político- económicas do nosso continente africano. Isto deve-se, em grande medida, a um insuficiente conhecimento da realidade histórica do mundo islâmico, do seu tecido social e dos valores que defende. O recente conflito diplomático não pode, mais uma vez, ser interpretado através de analogias com a história europeia. A complexidade do Islão merece uma nota teológica, para que possamos compreender exacta- mente quais os valores e quais os princípios que se confrontam. A grande questão que divide os dois ramos do Islão prende-se com a sucessão de Maomé. Os sunitas defendem que ninguém lhe pode suceder, uma vez que o Alcorão apresenta-o como o último profeta de Deus. Por este motivo, o líder dos sunitas será um califa, um defensor do legado, responsá- vel apenas pela administração dos assuntos da comunidade. O líder é então escolhido de um grupo de homens, membros da tribo Ouraish, à qual pertenceu Maomé. Os sunitas representam a maioria da população muçulmana (90%). Por sua vez, para os xiitas, de acor- do com a interpretação dos textos sagrados, existe a possibilidade de haver um sucessor de Maomé, que será o imã. O primeiro imã foi Ali, primo, filho adoptivo e genro do referido profeta. Os xiitas acreditam que Ali tem a mesma dimensão espiritual de Maomé e que a sua interpretação do Alcorão é a mais correcta. As qualidades de Ali teriam passado para os seus filhos, Hassan e Hussein, que as transmitiram a todos os seus descendentes. Os xiitas acusam os sunitas de adulterarem o Alcorão, uma vez que alegadamente eliminaram do livro sagrado a O Alcorão contém cer- ca de no- venta ver- sículos que abordam especifica- mente questões de Direito referência que indicava a possibili- dade de sucessão de Maomé. A maioria dos xiitas são os imamis e estão, maioritariamente, no Irão. Os imamis acreditam que o último imã é o décimo segundo, Muhammad al-Mahdi, e que este está oculto desde o século III. As interpretações do décimo segundo imã são reveladas pelos mujtahid. No Irão, os mujtahid mais importantes são os aiatolas, que interpretam a sharia e estabele- cem as regras religiosas. A sharia constitui a lei islâmica e resulta da vontade imutável de Deus para a humanidade, que está expressa no Alcorão e nos exemplos do profeta Maomé (presentes na Sunnah). Estes elementos têm de ser obriga- toriamente seguidos por todos os crentes. O Alcorão contém cerca de noventa versículos que abordam especificamente questões de Direito. As relações entre a Arábia Saudita e o Irão não são amistosas desde a Revolução Iraniana de 1979, que levou ao poder os xiitas. O conflito entre os dois países tem marcado alguns dos acontecimentos mais importantes das Relações Internacionais, nomeadamente: o derrube do regime instituído por Saddam Hussein no Iraque e a Guerra Civil que se seguiu, dividindo o país entre o Norte, de maioria sunita, e o Sul, de maioria xiita; e a Guerra Civil na Síria, após a revolta da população de maioria sunita, que era governada por uma minoria xiita, os alauitas. O Governo do país foi apoiado pelo Irão e a população revoltosa pela Turquia e pela Arábia Saudita. Na guerra libanesa, a Arábia Saudita apoia o Governo e o Irão financia as milícias do Hezbollah (xiitas). O conflito entre a Arábia Saudita e o Irão está presente, também, nas negociações da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP). O Governo de Teerão pre- tende retomar o seu antigo papel enquanto líder desta organização. A imposição de sanções ao Irão pela comunidade internacional (em retaliação pelas actividades de enriquecimento de urânio, desenvolvidas de acordo com o seu programa nuclear) provocou uma redução abrupta da produção de petróleo. Actualmente, uma vez eliminadas estas sanções (e após a celebração de um acordo internacional), o aumento da produção iraniana de petróleo provocará uma acentuada descida do seu preço nos mercados. É preciso, no entanto, recordar que a Arábia Saudita tem um antigo aliado muito importante: os Estados Unidos da América. Este país deverá reafirmar o seu apoio aos sauditas, apesar da política económica hostil do Governo de Riade, que mantém uma elevada produção de petróleo dentro da OPEP e, consequentemente, preços baixos, conquistando uma importante quota de mercado petrolífera, que pertence aos EUA. Esta posição incongruente baseia-se no receio que os EUA têm em relação ao Irão, opositor das políticas estado-unidenses. De facto, a presente situação de conflitualidade preocupa os investidores. Os territórios da Arábia Saudita e do Irão estendem- se por todo o Golfo Pérsico e através deste são transportados os fluxos de petróleo provenientes do Irão, da Arábia Saudita, do Kuwait e de parte do Iraque. Se existir um confronto bélico, haverá a possibilidade de se fechar o estreito de Ormuz, por onde passa um terço do petróleo mundial. Até ao recente conflito diplomático, existia a eventualidade de os dois países celebrarem um acordo para estabelecer uma diminuição da extracção e da comercialização do crude. No entanto, perante o reacender do conflito, a probabili- dade de um dos países abdicar da sua quota de produção é mínima, o que agravará a actual tendência de descida dos preços. Quem sofrerá as consequências de uma guerra económica entre o Irão e a Arábia Saudita serão, na verdade, todos os países emergen- tes produtores de petróleo que não têm um poder negocial no seio do cartel da OPEP e que dependem deste recurso para promover o seu desenvolvimento. Assim, os factos expostos e a correspondente inter- pretação não são boas notícias para a República de Angola. Estando consciente da difícil conjuntura económica que vivemos e da importância que, no imediato, a subida do preço do petróleo representa para o crescimento económico no país, defendo que a nossa pátria deveria repensar a estratégia diplomática. Regis- tamos intenções de cooperação económica entre Angola e a Arábia Saudita que versam, sobretudo, na necessidade de diversificar a economia – objectivo de ambos os países – e referenciadas no acto de entrega das cartas credenciais do Embaixador angolano em Riad, José Andrade de Lemos. Porém, apesar de não menospre- zar qualquer aliança estratégica, que existe hoje essencialmente no contexto multilateral da OPEP, devemos (enquanto país) consi- derar a necessidade de contrariar as pretensões sauditas, para que exista uma diminuição das quotas de produção, um consequente aumento do preço do barril de petróleo e, ademais, para prevenir a influência da corrente islâmica do Wahhabismo nos países da África subsariana – a principal responsável pela maioria dos movimentos terroristas islâmicos. Voltaremos. *Mestre em Estratégia e Doutoran- do em Ciência Política e Leigo Católico www.sebsatiaomartins.org

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O PAÍS Sexta-feira, 15 de Janeiro de 2016 45

A Arábia Saudita, o Irão e o Preço do Petróleo

SEBASTIÃO MARTINS*

A quando da passagem de ano, o mundo foi confrontado com a notícia do corte das

relações diplomáticas entre a Arábia Saudita e o Irão, como consequência da tensão gerada pela execução de um clérigo xiita, Nimr Baqer al-Nimr. O conflito entre os dois países, a agravar-se, irá redefinir a estratégia geopolí-tica da comunidade internacional para as guerras que emergiram das Primaveras Árabes. O foco está na divisão entre sunitas e xiitas, que mais do que um problema religioso é, acima de tudo, um problema político, devido à vontade que ambos têm em obter uma supremacia regional. Tanto o Irão (xiitas) como a Arábia Saudita (sunitas) pretendem ser os países líderes do mundo árabe.Entendo que existe uma grande dificuldade da opinião pública nacional em compreender e tornar compreensíveis os fenómenos do mundo árabe e, especialmente, os que afectam as relações político-económicas do nosso continente africano. Isto deve-se, em grande medida, a um insuficiente conhecimento da realidade histórica do mundo islâmico, do seu tecido social e dos valores que defende. O recente conflito diplomático não pode, mais uma vez, ser interpretado através de analogias com a história europeia. A complexidade do Islão merece uma nota teológica, para que possamos compreender exacta-mente quais os valores e quais os princípios que se confrontam.A grande questão que divide os dois ramos do Islão prende-se com a sucessão de Maomé. Os sunitas defendem que ninguém lhe pode suceder, uma vez que o Alcorão apresenta-o como o último profeta de Deus. Por este motivo, o líder dos sunitas será um califa, um defensor do legado, responsá-

vel apenas pela administração dos assuntos da comunidade. O líder é então escolhido de um grupo de homens, membros da tribo Ouraish, à qual pertenceu Maomé. Os sunitas representam a maioria da população muçulmana (90%).Por sua vez, para os xiitas, de acor-do com a interpretação dos textos sagrados, existe a possibilidade de haver um sucessor de Maomé, que será o imã. O primeiro imã foi Ali, primo, filho adoptivo e genro do referido profeta. Os xiitas acreditam que Ali tem a mesma dimensão espiritual de Maomé e que a sua interpretação do Alcorão é a mais correcta. As qualidades de Ali teriam passado para os seus filhos, Hassan e Hussein, que as transmitiram a todos os seus descendentes. Os xiitas acusam os sunitas de adulterarem o Alcorão, uma vez que alegadamente eliminaram do livro sagrado a

O Alcorão contém cer-ca de no-venta ver-sículos que abordam especifica-mente questões de Direito

referência que indicava a possibili-dade de sucessão de Maomé.A maioria dos xiitas são os imamis e estão, maioritariamente, no Irão. Os imamis acreditam que o último imã é o décimo segundo, Muhammad al-Mahdi, e que este está oculto desde o século III. As interpretações do décimo segundo imã são reveladas pelos mujtahid. No Irão, os mujtahid mais importantes são os aiatolas, que interpretam a sharia e estabele-cem as regras religiosas. A sharia constitui a lei islâmica e resulta da vontade imutável de Deus para a humanidade, que está expressa no Alcorão e nos exemplos do profeta Maomé (presentes na Sunnah). Estes elementos têm de ser obriga-toriamente seguidos por todos os crentes. O Alcorão contém cerca de noventa versículos que abordam especificamente questões de Direito.As relações entre a Arábia Saudita e o Irão não são amistosas desde a Revolução Iraniana de 1979, que levou ao poder os xiitas. O conflito entre os dois países tem marcado alguns dos acontecimentos mais importantes das Relações Internacionais, nomeadamente: o derrube do regime instituído por Saddam Hussein no Iraque e a Guerra Civil que se seguiu, dividindo o país entre o Norte, de maioria sunita, e o Sul, de maioria xiita; e a Guerra Civil na Síria, após a revolta da população de maioria sunita, que era governada por uma minoria xiita, os alauitas. O Governo do país foi apoiado pelo Irão e a população revoltosa pela Turquia e pela Arábia Saudita. Na guerra libanesa, a Arábia Saudita apoia o Governo e o Irão financia as milícias do Hezbollah (xiitas).O conflito entre a Arábia Saudita e o Irão está presente, também, nas negociações da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP). O Governo de Teerão pre-

tende retomar o seu antigo papel enquanto líder desta organização. A imposição de sanções ao Irão pela comunidade internacional (em retaliação pelas actividades de enriquecimento de urânio, desenvolvidas de acordo com o seu programa nuclear) provocou uma redução abrupta da produção de petróleo. Actualmente, uma vez eliminadas estas sanções (e após a celebração de um acordo internacional), o aumento da produção iraniana de petróleo provocará uma acentuada descida do seu preço nos mercados. É preciso, no entanto, recordar que a Arábia Saudita tem um antigo aliado muito importante: os Estados Unidos da América. Este país deverá reafirmar o seu apoio aos sauditas, apesar da política económica hostil do Governo de Riade, que mantém uma elevada produção de petróleo dentro da OPEP e, consequentemente, preços baixos, conquistando uma importante quota de mercado petrolífera, que pertence aos EUA. Esta posição incongruente baseia-se no receio que os EUA têm em relação ao Irão, opositor das políticas estado-unidenses. De facto, a presente situação de conflitualidade preocupa os investidores. Os territórios da Arábia Saudita e do Irão estendem-se por todo o Golfo Pérsico e através deste são transportados os fluxos de petróleo provenientes do Irão, da Arábia Saudita, do Kuwait e de parte do Iraque. Se existir um confronto bélico, haverá a possibilidade de se fechar o estreito de Ormuz, por onde passa um terço do petróleo mundial. Até ao recente conflito diplomático, existia a eventualidade de os dois países celebrarem um acordo para estabelecer uma diminuição da extracção e da comercialização do crude. No entanto, perante o reacender do conflito, a probabili-dade de um dos países abdicar da

sua quota de produção é mínima, o que agravará a actual tendência de descida dos preços.Quem sofrerá as consequências de uma guerra económica entre o Irão e a Arábia Saudita serão, na verdade, todos os países emergen-tes produtores de petróleo que não têm um poder negocial no seio do cartel da OPEP e que dependem deste recurso para promover o seu desenvolvimento. Assim, os factos expostos e a correspondente inter-pretação não são boas notícias para a República de Angola. Estando consciente da difícil conjuntura económica que vivemos e da importância que, no imediato, a subida do preço do petróleo representa para o crescimento económico no país, defendo que a nossa pátria deveria repensar a estratégia diplomática. Regis-tamos intenções de cooperação económica entre Angola e a Arábia Saudita que versam, sobretudo, na necessidade de diversificar a economia – objectivo de ambos os países – e referenciadas no acto de entrega das cartas credenciais do Embaixador angolano em Riad, José Andrade de Lemos. Porém, apesar de não menospre-zar qualquer aliança estratégica, que existe hoje essencialmente no contexto multilateral da OPEP, devemos (enquanto país) consi-derar a necessidade de contrariar as pretensões sauditas, para que exista uma diminuição das quotas de produção, um consequente aumento do preço do barril de petróleo e, ademais, para prevenir a influência da corrente islâmica do Wahhabismo nos países da África subsariana – a principal responsável pela maioria dos movimentos terroristas islâmicos. Voltaremos.

*Mestre em Estratégia e Doutoran-

do em Ciência Política e Leigo Católico

www.sebsatiaomartins.org