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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA A ANÁLISE DA MENTIRA EM AGOSTINHO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Lisiane Sabala Blans Santa Maria, RS, Brasil 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

A ANÁLISE DA MENTIRA EM AGOSTINHO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Lisiane Sabala Blans

Santa Maria, RS, Brasil

2012

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A ANÁLISE DA MENTIRA EM AGOSTINHO

Lisiane Sabala Blans

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Área de Concentração em Filosofias Continental e Analítica, linha de pesquisa Análise da Linguagem e Justificação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS),

como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Frank Thomas Sautter

Santa Maria, RS, Brasil

2012

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Ficha catalográfica elaborada através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Central da UFSM, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Sabala Blans, Lisiane A ANÁLISE DA MENTIRA EM AGOSTINHO / Lisiane SabalaBlans.-2012. 154 p.; 30cm

Orientador: Frank Thomas Sautter Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de SantaMaria, Centro de Ciências Sociais e Humanas, Programa dePós-Graduação em Filosofia, RS, 2012

1. Mendacidade 2. Veracidade 3. Agostinho 4. Definição5. Ato de Fala I. Thomas Sautter, Frank II. Título.

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Universidade Federal de Santa Maria Centro de Ciências Sociais e Humanas

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado

A ANÁLISE DA MENTIRA EM AGOSTINHO

elaborada por

Lisiane Sabala Blans

como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia

COMISSÃO EXAMINADORA:

Frank Thomas Sautter, Dr. (Presidente/Orientador)

Noeli Dutra Rossatto, Dr. (UFSM)

Élsio José Corá, Dr. (UFFS/SC)

Santa Maria, 28 de agosto de 2012.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente pela orientação promovida pelo professor Frank Thomas

Sautter, e por ter me presenteado com a elaboração de um projeto que pra mim foi tão

importante. Agradeço pelo aceite na orientação, pelas críticas, sugestões, conversas e

conselhos que ajudaram na elaboração desse trabalho, bem como, na minha formação

acadêmica.

Agradeço também aos professores Noeli Dutra Rossatto e Élsio José Corá por

aceitarem participar da banca examinadora, assim como o professor Ricardo Bins Di Napoli

pela disponibilidade em caso de suplência.

Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia e a todos os professores do curso. Em

especial, aos professores Rogério Passos Severo, José Lourenço Pereira da Silva, Flavio

Williges, Christian Viktor Hamm, pelo empréstimo de livros, fornecimento de material

suplementar e troca de ideias.

Aos amigos, colegas e família, pelo apoio, pela troca de informações e discussões que

ajudaram a ampliar meu trabalho.

À Universidade Federal de Santa Maria pela qualidade do ensino público.

Por fim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

pelo financiamento da pesquisa.

E, também a todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a realização deste

trabalho, e não estão nominalmente citados.

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EPIGRAFE

“O principal é não mentir para si mesmo. Quem mente para si mesmo e dá ouvidos à própria

mentira chega a um ponto em que não distingue nenhuma verdade nem em si, nem nos outros

e, portanto, passa a desrespeitar a si mesmo e aos demais. Sem respeitar ninguém, deixa de

amar e, sem ter amor, para se ocupar e se distrair entrega-se a paixões e a prazeres grosseiros

e acaba na total bestialidade em seus vícios, e tudo isso movido pela contínua mentira para os

outros e para si mesmo.”

(Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov)

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RESUMO

Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Universidade Federal de Santa Maria

A ANÁLISE DA MENTIRA EM AGOSTINHO AUTORA: LISIANE SABALA BLANS

ORIENTADOR: FRANK THOMAS SAUTTER Data e Local da Defesa: Santa Maria, 28 de agosto de 2012.

A mentira é um tema perene de filosofia moral. Devido à sua prática frequente no cotidiano das pessoas e instituições, e o seu grande impacto, uma reflexão filosófica sobre a mentira adquire grande importância. Entretanto, sua exata função nas relações interpessoais e institucionais, sua caracterização e sua legitimidade apresentam-se como um desafio filosófico, como questões filosóficas não triviais. Desde os primórdios da filosofia houve opiniões discordantes sobre a questão de saber se mentir é sempre admissível, pois, se ser veraz não requer explicação, ser mendaz o exige. Se, por um lado, Agostinho e Kant rejeitam todo e qualquer tipo de mentira, considerando-as como uma prática imoral, Platão e Benjamin Constant aceitaram certos tipos de mentira, desde que justificadas pelo contexto. Isto significa dizer que, mesmo aqueles que se mostraram dispostos a aceitar determinadas exceções à prática de ser veraz, procuraram oferecer boas razões para as referidas exceções. No interior da tradição cristã, Agostinho rejeitou todo e qualquer tipo de mentira, não aceitando nenhuma justificativa para a sua prática. Foi um dos primeiros pensadores a se aproximar de uma definição e sistematizar o tema da mentira. Ele desenvolveu o tema da mentira em dois tratados, um deles intitulado “Sobre a Mentira” (De Mendacio, 395 D.C.), e o outro “Contra a Mentira” (Contra Mendacium, 420 D.C.). A partir de tais tratados propõe-se uma análise da caracterização agostiniana da mentira. Agostinho adota como ponto de partida, a dúvida e mediante um percurso dialético e retórico nos conduz a uma proposta abrangente sobre o tema. Sua obra foi composta na esperança de encontrar características necessárias e suficientes de uma noção objetiva de mentira, para além de toda e qualquer provável refutação. Elucidar-se-á a análise de Agostinho sobre a mentira, e, a partir disso, explorar-se-ão casos práticos em seus diferentes graus de complexidade. Examinam-se outros pensadores que também se ocuparam do tema e demais questões relacionadas à definição, como é o caso da doutrina do duplo coração, bem como temas correlatos como a sorte moral, o caso da eloquência do silêncio, e a aplicação da falácia da ladeira escorregadia e da quebra de confiança ao tema da mentira. Palavras-chave: Mendacidade. Veracidade. Agostinho. Definição. Ato de Fala.

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ABSTRACT

Master Thesis Postgraduate Program in Philosophy Federal University of Santa Maria

THE ANALYSIS OF LYING IN AUGUSTINE

AUTHOR: LISIANE SABALA BLANS ADVISOR: FRANK THOMAS SAUTTER

Date and Place of the Defense: Santa Maria, 28th of August, 2012.

Lying is a perennial theme of moral philosophy. Due to its frequent practice in the routine of people and institutions, and to its great impact, a philosophical reflection about lying acquires great importance. However, its exact function in the interpersonal and institutional relations, its characterization and legitimacy present themselves as a philosophical challenge, as non trivial philosophical issues. Since the origin of philosophy there were disagreeing opinions about the question of knowing if the act of lying is always acceptable, because, if being veracious does not require explanation, being mendacious does. If, on one hand, Augustine and Kant reject each and every type of lie, considering them as an immoral practice, Plato and Benjamin Constant accepted certain types of lie, since these lies are justified by the context. It means that, even those who show themselves as disposed to accept defined exceptions to the practice of being veracious looked for offering good reasons for the aforesaid exceptions. In the interior of Christian tradition, Augustine rejected each and every kind of lie, not accepting any justification for its practice. Was one of the first thinkers to get closer of a definition and to systematize the lie theme. He developed the lie theme in two treaties, one of them titled “On Lying” (De Mendacio, 395 D.C.), and the other “Against Lying” (Contra Mendacium, 420 D.C.). From such treaties it is proposed an analysis of the Augustinian characterization of lie. Augustine adopts as a starting point, the doubt and by the aid of a dialectic and rhetorical route conducts us to a wide ranging proposal about the theme. His work was composed with the hope of finding necessary and enough characteristics of an objective notion of lie, for beyond each and every probable denial. The Augustine analysis about lie will be enlightened, and, from this, practical cases will be explored in their different levels of complexity. Other thinkers who also use the theme and other issues related to the definition are examined, as the case of the double heart doctrine, as well as correlative themes as the moral luck, the case of silence eloquence, and the application of the fallacy of the slippery slope and the crash of faith in the lie theme. Key-words: Mendacity. Veracity. Augustine. Definition. Speech Act.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Exemplo de estruturação na seleção de variáveis ..........................................Quadro 2 – Método agostiniano de listagem de casos ......................................................Quadro 3 – Fator confiança (desconfiança) na possibilidade de uma mentira ................. Quadro 4 – Casos de mentir ..............................................................................................Quadro 5 – Contextualização da mentira no ambiente jurídico de um tribunal ............... Quadro 6 – Divisão quadripartite da mentira ....................................................................Quadro 7 – A hierarquia da mentira ................................................................................. Quadro 8 – Análise das mentiras de tipo 2 e de tipo 6 ..................................................... Quadro 9 – Simulação da influência da mentira em relação ao ouvinte ...........................Quadro 10 – Fator confiança/desconfiança no comportamento de B em relação a A ......

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CIC Catequismo da Igreja Católica CM Contra Mendacium CCEL Christian Classics Ethereal Library DM De Mendacio FMC Fundamentação da metafísica dos costumes IEP Internet Encyclopedia of Philosophy MDC A Metafísica dos Costumes ODP Oxford Dictionary of Philosophy RA As Razões de Aristóteles

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................1 PERSPECTIVAS FILOSÓFICAS SOBRE A MENTIRA.......................1.1 Questões Conceituais ................................................................................................ 1.1.1 Propedêutica à definição ..........................................................................................1.1.2 Definição geral da mentira .......................................................................................1.1.3 Definições alternativas de mentira ...........................................................................1.2 Questões Históricas ...................................................................................................1.2.1 Breve histórico da mentira .......................................................................................1.3 O tratamento filosófico da mentira antes de Agostinho ........................................1.3.1 Platão ........................................................................................................................1.3.1.1 O problema do juízo falso no Teeteto ................................................................. 1.3.1.2 O problema da mentira na República .................................................................1.3.1.3 A mentira em Hípias Menor .................................................................................1.3.2 Aristóteles ................................................................................................................ 1.4 O tratamento filosófico da mentira depois de Agostinho ......................................1.4.1 Immanuel Kant .........................................................................................................1.4.2 O direito de mentir: a discussão entre Benjamim Constant e Immanuel Kant ........ 2 A ANÁLISE AGOSTINIANA DA MENTIRA .....................................2.1 As obras de Agostinho sobre a mentira .................................................................. 2.2 Caracterização agostiniana da mentira .................................................................. 2.2.1 A caracterização da mentira .....................................................................................2.2.2 Comentários à proposta agostiniana ........................................................................ 2.2.3 A Análise de Matthews ............................................................................................2.3 A doutrina do duplo coração ................................................................................... 2.3.1 Duplo coração ..........................................................................................................2.3.2 A doutrina do duplo coração e a análise padrão ...................................................... 2.4 Sorte Moral ................................................................................................................2.4.1 Concepção de sorte moral ........................................................................................2.4.2 A sorte moral no contexto da mentira ......................................................................2.5 O silêncio eloquente .................................................................................................. 2.6 Análise de casos práticos .......................................................................................... 3 A AVALIAÇÃO AGOSTINIANA DA MENTIRA...............................3.1 A moralidade da mentira ......................................................................................... 3.2 Classificação da mentira ...........................................................................................3.2.1 A proposta de Agostinho ......................................................................................... 3.2.2 Interpretação e avaliação da proposta ......................................................................3.3 A ladeira escorregadia da mentira .......................................................................... 3.3.1 Caracterização da falácia da ladeira escorregadia ....................................................3.3.2 A mentira e a ladeira escorregadia ...........................................................................3.4 O argumento da quebra de confiança .....................................................................3.4.1 A relação de confiança entre emissor e receptor ......................................................3.4.2 Considerações de Agostinho e outros autores a respeito da confiança ....................CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................REFERÊNCIAS ..............................................................................................................

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INTRODUÇÃO

A mentira é um tema perene de filosofia moral as pesquisas e estudos a seu respeito,

assim como as tentativas de explicá-la e procurar sua função, apresentam-se sempre como um

desafio filosófico. A prática da mentira é algo corriqueiro na sociedade em geral, e sendo

assim, faz-se necessário sua problematização e reflexão, pois se mostra presente no cotidiano

das pessoas e das instituições. O problema da mentira é uma questão filosófica não trivial.

Nos dias atuais, a mentira é vista como algo recorrente na sociedade, ela se manifesta

usualmente desde os falsos elogios até as mentiras despudoradas. A maioria das pessoas não

acredita na gravidade do mentir e não adota a mentira como algo preocupante em relação às

suas consequências. Seu cálculo mental dispõe que se com uma mentira podemos ser

poupados de uma consequência negativa, porque não mentir se não haverá grandes

repercussões na própria vida ou na dos que nos cercam? O comportamento das pessoas

pressupõe admitirem a mentira como algo benéfico, mentir é um comportamento praticamente

esperado da interação social, é uma prática considerada regular em sociedade. É freqüente

escolher contar uma mentira quando achar que ela trará resultados mais favoráveis do que

dizer a verdade, enquanto causam pouco ou nenhum mal a alguém. Para explicar como

ocorrem situações de mentira no âmbito das interações sociais, das instituições, e no campo

político e moral, utilizaremos a doutrina filosófica de Agostinho em torno do que consiste

uma mentira, e se a mentira é uma ação admissível ou não e em quais circunstâncias. Ainda

que o principal propósito da mentira é o engano, podem ocorrer casos extremos em que o

ludibriar baseia-se no amor, na piedade e nos atos heróicos para proteger alguém.

A mentira geralmente é conjugada às citações, provérbios, parábolas e ficções, sendo

relatada como parte da capacidade de criar e utilizar a fantasia. Quanto a utilização criativa da

mentira podemos citar alguns exemplos na literatura, no cinema e na ciência médica. Na

literatura citamos o clássico infantil “Pinóquio”, que conta a estória do boneco de madeira que

queria se tornar humano, ele se envolve em várias circunstâncias perigosas, condutas anti-

sociais e mentiras, tornando-se um modelo de conduta moral para as crianças, que desde cedo

mediante tal estória aprendem o quão errado pode vir a ser uma mentira. No cinema

destacamos o filme “O primeiro mentiroso” (2009), onde narra-se um mundo que não

conhece a mentira, apenas a verdade e nada mais que a verdade é dito, até que o protagonista

“inventa” a mentira e começa a tirar proveitos financeiros, amorosos e profissionais, e, por

consequência, se vê num dilema entre continuar mentindo ou ser aclamado mundialmente

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como um profeta. No campo da ciência médica lembramos da síndrome de transtorno fictício

chamada “Síndrome de Münchausen”: tal denominação é uma “homenagem” ao “Barão de

Münchausen”, famoso por suas “estórias” inverossímeis. Os portadores desta síndrome se

caracterizam por mentiras patológicas, mentem compulsivamente e frequentemente fingem

doenças das quais não estão acometidos.

Na Grécia antiga a mentira era relacionada ao termo pseudos, que pode significar tanto

a mentira quanto a falsidade, o ardil ou o erro, o engano propositado, a fraude, assim como a

invenção poética. Os sofistas, considerados especialistas na arte de bem falar, tinham como

profissão a preparação do homem grego para ser cidadão político, isto é, um habitante da

pólis, capaz de argumentar e defender seus pontos de vista, no exercício cotidiano da

democracia grega. Eles ensinavam a arte de falar bem, independentemente da verdade ou

falsidade de suas afirmações, e com isto, sugeriam que a verdade é relativa. Com o

surgimento do pensamento sofista e sua problematização por Platão (em A República e Hipias

Menor), e por Aristóteles (em Ética a Nicômaco) surge o questionamento sobre o conflito

entre linguagem e realidade, e a partir de então a filosofia não mais deixou de se ocupar da

questão da mentira, abordando-a principalmente pelo viés da moral e considerando-a, em

geral, um desvio de conduta.

A condenação moral da mentira é um princípio ético tradicional na cultura religiosa.

Na tradição cristã, Agostinho rejeitou todo e qualquer tipo de mentira, não aceitando nenhuma

justificativa para tal coisa. Nessa questão, ao contrário de tantas outras, ele não seguiu os

ensinamentos de Platão. Agostinho foi um dos primeiros pensadores a se aproximar de uma

definição e sistematizar o tema da mentira, que passou a ser amplamente discutido entre

teólogos, filósofos, cientistas políticos, e psicólogos, porque o tema envolve sua legitimidade

no campo moral e político, bem como sua caracterização adequada. O pensamento de

Agostinho trata de diversos temas proeminentes na filosofia ocidental contemporânea. Sua

vida, bem como seu legado espiritual, teológico e filosófico deixaram vigorosas contribuições

à cultura humana, sob a forma de respostas às questões perenes dos homens. Sem dúvida a

definição da mentira mais difundida em nossa cultura é a de Agostinho. Agostinho achava o

conceito de mentira filosoficamente desconcertante, sendo o primeiro filósofo a aperceber-se

de quanto é problemática a noção de dizer uma mentira. Sendo assim, desenvolveu o tema da

mentira em dois tratados, um deles intitulado “Sobre a Mentira” (De Mendacio, 395 D.C.), e o

outro “Contra a Mentira” (Contra Mendacium, 420 D.C.). A partir de tais tratados propõe-se

uma análise agostiniana da mentira. O objetivo geral desta dissertação é examinar a

caracterização da mentira segundo o pensamento filosófico de Agostinho, tendo como auxílio

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autores que também se ocuparam da temática da mentira e podem ajudar na elucidação do

próprio argumento agostiniano. Para tanto, dividimos nosso estudo em três capítulos.

O primeiro capítulo prevê os aspectos gerais ligados às perspectivas filosóficas da

mentira, consistindo em questões conceituais e históricas. Nas questões conceituais serão

abordados temas fundamentais sobre como é realizado o processo definitório de qualquer

objeto, bem como uma noção geral da definição da mentira e de análises alternativas. Nas

questões históricas estipulamos os principais autores que influenciaram a teoria agostiniana

(Platão, Aristóteles), ou que de algum modo tomaram o posicionamento de Agostinho na

rejeição de toda e qualquer mentira (Kant). Este capítulo servirá para guiar a problemática da

mentira a partir de temas basilares a respeito de um procedimento definitório. Assim, o

primeiro capítulo não pretende aprofundar o tema, mas destacar teorias basilares que ensejam

uma discussão mais aprimorada sobre a mentira. Desta forma, tem por objetivo principal

clarificar quais foram as primeiras noções propostas sobre uma possível interpretação da

mentira na visão dos filósofos antigos. Tal problemática inicial originou novas questões

posteriores e que mais tarde foram reinterpretadas por filósofos modernos e contemporâneos.

O segundo capítulo apresenta a análise agostiniana da mentira problematizando

propriamente o tema. Destaca a influência que os problemas vividos na época exerceram

sobre Agostinho na realização de várias de suas obras, e sua constante preocupação com o

tema da mentira. Salienta-se também que Agostinho, por metodologia, adota como ponto de

partida a dúvida e mediante um percurso dialético e retórico nos leva a algumas certezas. Sua

obra foi composta pela esperança de buscar evidências que suficiente e necessariamente

elucidasse uma noção objetiva de mentira, para além de toda e qualquer provável refutação.

Assim, para adentrar aos elementos suficientes da questão central, se elucidará a análise de

Agostinho sobre a mentira, e, a partir disso, se explorarão casos práticos em seus diferentes

graus de complexidade. Para complementar o capítulo também serão abordadas questões

oriundas da proposta de definição, como é o caso da doutrina do duplo coração, bem como

temas correlatos como a sorte moral e o caso da eloquência do silêncio.

O terceiro capítulo versa sobre a avaliação agostiniana da mentira, aprofundando

algumas questões relacionadas ao segundo capítulo. Embora neste estudo o objetivo principal

não seja apresentar a mentira em termos morais, mas analíticos, se faz vital apresentar os

aspectos morais que ensejam a motivação para Agostinho estabelecer uma classificação da

mentira em diferentes tipos. Por fim, são expostos alguns argumentos correlacionados à

sistemática da mentira, como é o caso do argumento da falácia da ladeira escorregadia e o

argumento da quebra de confiança.

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1 PERSPECTIVAS FILOSÓFICAS SOBRE A MENTIRA

1.1 Questões Conceituais

O discurso científico difere da linguagem cotidiana na medida em que procura

restringir a vagueza e a ambiguidade, e para isso, entre outros expedientes, recorre a

definições mais precisas na medida do possível, o discurso filosófico deveria seguir o modelo

de discurso científico, a bem da clareza. Definir é antes de tudo, delimitar o significado de um

termo, e não envolve fazer quaisquer declarações sobre a realidade. Em outras palavras, ao

definir, esclarecemos o significado de um termo, e não de uma coisa. Sob tal prisma

conceitual, para contribuir na construção de uma teoria geral de definição é importante

demarcar a estrutura do processo da própria definição. A partir disso, teremos condições

suficientes para realizar uma análise satisfatória da definição agostiniana de mentira. Assim

na subseção 1.1.1 realizar-se-á um esboço da estrutura de uma definição, na subseção 1.1.2

uma definição geral de mentira e na subseção 1.1.3 uma análise das definições alternativas de

mentira.

1.1.1 Propedêutica à definição

O filósofo sueco Sven Ove Hansson (2006) em seu artigo “How to define – a tutorial”

(Como definir – um tutorial), apresenta métodos práticos para estruturar as definições, tais

métodos podem ser aplicados tanto para fins filosóficos quanto em outras disciplinas. No

campo filosófico uma boa definição pode fazer toda a diferença entre uma tese instigante e

uma tese desinteressante, e entre um argumento plausível e um argumento simplesmente

inaceitável.

Primeiramente o autor especifica que há duas formas de realizar o ato de definir, a

forma léxica (descritiva) e a estipulativa. A definição léxica reporta o uso atual da linguagem

utilizada, logo ela é correta ou incorreta, ou seja, verdadeira ou falsa. A definição estipulativa

reporta como o “definidor” está usando o termo, ou como recomenda que outros o usem.

(HANSSON, 2006, p.6). Definições lexicais e estipulativas tendem a diferir na forma como a

tratam as ambiguidades e obscuridades da linguagem cotidiana. Enquanto a definição léxical

deve, pelo menos em princípio, exibir usos reais, quando esses usos não são claros ou quando

são confusos. A definição estipulativa é normalmente desenvolvida de tal modo a eliminar a

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ambiguidade e imprecisão (vagueza). (HANSSON, 2006, p.7). Para ter sucesso, uma

definição estipulativa deve corresponder às necessidades de precisão e clareza entre aqueles

que usam o termo em questão. Então um definidor estipulativo pode tomar três diferentes

caminhos para suprir a falta de clareza na linguagem comum: 1- optar por aceitar, mas

esclarecer, o que está confuso ou obscuro no uso comum 2- restringir o significado do termo1,

3- dividir o conceito através da introdução de novos termos que se distinguem pelos diferentes

significados da palavra em análise (HANSSON,2006, p.7).

As definições podem se apresentar como condições prévias para um estudo, ou podem

ser o assunto principal de uma investigação que tem o desenvolvimento de uma definição

como finalidade. Essas definições devem ser apresentadas na parte introdutória do texto ou

introduzida quando o termo em questão é utilizado pela primeira vez (HANSSON, 2006, p.8).

A partir desse comprometimento terminológico extraímos definições completas ou

incompletas. 2 Elas explicam como um termo será usado como referência para a definição de

outros termos, ou para um uso particular, mais conhecido, do termo.

Segundo Hansson (2006) a estrutura de uma definição é constituída de três partes: o

definiendum, o definiens e o conetivo da definição. O definiendum é o termo (s) que está

sendo definido (o que é para ser definido). O definiens é o(s) termo(s) que define(m) (é o que

se define, a definição em si), é um conjunto de termos que são utilizados para clarificar o

significado do definiendum. Por exemplo: “ser humano é correspondente a ser um animal

racional”. O definiendum ‘ser humano’ é definido pelo definiens ‘animal racional’. Hansson

em seu tutorial transmite o seguinte exemplo: “solteiro é um homem não casado”; ‘solteiro’ é

o definiendum,‘um homem não casado’ é o definiens e ‘é’ o conetivo da definição

(HANSSON, 2006, p.9).

O desenvolvimento de uma definição deve começar com a escolha de um definiendum,

seguido da seleção de variáveis apropriadas para a definição. Tal escolha deve seguir uma

forma considerada mais conveniente, ou seja, trabalhar a definição de um termo de modo a

relacionarmos com outros a partir do qual poderá ser definido e não necessariamente da

maneira como se apresenta. Assim, se quisermos definir “estabilidade”, é aconselhável não

prosseguir na forma: “estabilidade é...”. É muito mais fácil, neste caso, começar a definir a

1 Hansson ao mencionar a segunda alternativa (restringir o significado do termo) aplica o seguinte exemplo: “Com o termo ‘pessoa’, vamos dizer aqui um ser humano que é consciente ou capaz de ganhar consciência”. Esta definição exclui pessoas jurídicas. Tal restrição ao termo ‘pessoa’ pode ser útil, na filosofia moral, mas provavelmente não é útil na filosofia do direito ou em contextos jurídicos gerais (HANSSON, 2006, p.7). 2 O problema sobre definição revela que em alguns casos ou a definição é muito ampla ou a definição é muito estreita. Significa que ou ela incluiu menos do que deveria incluir, ou incluiu mais do que deveria incluir, por isso, o sentido ou muito amplo ou muito estreito.

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estabilidade como a “propriedade de ser estável”, e, em seguida, focar no processo de

definição sobre o termo “estável”. Um formato (preliminar) para essa definição é: “X é

estável se e somente se...” (HANSSON, 2006, p.12). Portanto, para definir algo,

primeiramente escolhemos um definiendum e posteriormente determinamos uma seleção de

variáveis apropriadas para dar continuidade ao processo definitório. Essas variáveis devem

reaparecer no definiens e por isso o definiendum deve ser escolhido com cuidado. A definição

de “estável” é muito ampla, e será mais difícil definir desse modo, por isso, uma variável deve

ser adicionada, o objeto ou entidade que é estável (se e somente se...). Adicionando variáveis

e reformulando o definiendum chegaremos com maior facilidade ao definiens. Também é

conveniente usar símbolos como letras para manter o controle das variáveis, isso agilizará o

processo de reconhecimento das variáveis ao verificar que as mesmas variáveis aparecem no

definiens e no definiendum, conforme o quadro abaixo:

Seleção de variáveis

Variável menos precisa Variável mais precisa

Um primo é uma pessoa com quem se tem pelo menos um avô em comum, mas nenhum pai em comum. (HANSSON, 2006, p.16)

Pessoa A é prima da pessoa B se e somente se (1) quando alguém é avô de ambos A e B, e (2) quando ninguém é pai de ambos A e B. (HANSSON, 2006, p.16)

Quadro 01 – Exemplo de estruturação na seleção de variáveis

As variáveis são importantes, pois delimitam o objeto da definição. Assim, quanto

mais informações e variáveis são adicionadas ou excluídas mais se clarificam os conteúdos

das definições. Muitas vezes esse processo de inclusão ou exclusão de variáveis não parece

tão óbvio. Caso haja dúvida, uma das regras a seguir é incluir e não excluir uma variável, mas

se mais tarde, se descobre que a variável não tem utilidade, então esta poderá ser removida.

Após a escolha do definiendum e da seleção de variáveis, partimos para a construção

do definiens, e para tanto se propõem dois métodos: o método da enumeração de casos e o

método do aperfeiçoamento sucessivo.

Conforme Hansson (2006), os dicionários costumam fornecer boas definições lexicais

que podem ser usadas como ponto de partida, assim como, é igualmente útil consultar

definições no dicionário de termos relacionados em outras línguas. Para obter definições

lexicais adequadas o método mais apropriado é de enumeração ou listagem de casos. Tal

método apresenta duas listas distintas, uma contém os casos que devem ser abrangidos pela

definição, e a outra os casos que não deverão ser abrangidos (HANSSON, 2006, p.18). A

função de ambas as listas é incluir e limitar casos, ao determinar, por exemplo, o que pode ser

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X, e o que não pode ser X. O processo da listagem de casos ocorre da seguinte forma:

primeiro a definição preliminar é verificada a partir das duas listas, e depois a definição é

ajustada a fim de cumprir melhor o propósito envolvido. Isto é repetido até que a definição

resultante conforme-se completamente com as duas listas. Se as listas são representativas do

uso comum, então a definição resultante será uma adequada definição lexical do termo em

questão (HANSSON, 2006, p.18).

O método da enumeração de casos também pode ser aplicado na definição

estipulativa, porém, facilmente leva a definições emaranhadas com muitas cláusulas de

exceção. A fim de alcançar uma definição estipulativa que seja relativamente simples, o

método de melhorias sucessivas é geralmente preferível. Neste método, usa-se uma definição

preliminar que pode ter sua origem em um dicionário ou em algum outro relatório de uso

comum. Se essa definição não é considerada satisfatória, identificamos a sua maior

deficiência ou a mais óbvia. O próximo passo é determinar como esta deficiência pode ser

evitada, e se a melhoria compensa outros inconvenientes possíveis, tais como fazer a

definição mais complexa. A definição resultante é avaliada, discutida e eventualmente

alterada. Desta forma, aproximamos-nos de uma nova definição através de uma série de

melhorias sucessivas (HANSSON, 2006, p.20).

Ao examinar o método de enumeração ou listagem de casos constatamos uma forte

tendência dessa metodologia aplicada por Agostinho na elaboração da sua definição de

mentira. No desenvolvimento da teoria agostiniana são apresentados uma série de listas de

casos, e a partir dessa lista de casos Agostinho chega a uma definição satisfatória para ele do

que é a mentira. Para isso ele realiza o seguinte raciocínio: se não sei bem o que é tal coisa,

então como posso obter a definição daquela coisa? Para resolver esse impasse Agostinho

busca inúmeras situações em que “tal coisa” (neste caso, a mentira) é empregada de modo

significativo, e a partir desses casos tentar fazer emergir uma definição que os englobe.

A partir da conceituação do método da listagem de casos podemos adaptar tal

metodologia empregada por Agostinho ao demonstrar sua definição de mentira. No mesmo

intuito, qual seja o de buscar uma definição, ele faz uma listagem primeiramente do que não é

mentira e parte sistematicamente para o que pode vir a ser uma mentira.

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Listagem negativa e positiva em relação à mentira3

Lista Negativa – (O que não é mentira) Lista Positiva + (O que é potencialmente mentira) Os chistes, as brincadeiras (DM, II, 2) Dizer algo distinto do que pensa (DM,III,3) Dizer uma coisa falsa4 (DM,III,3) A verdade pensada falsamente pelo falante (DM,III,3) Dizer um erro5 (DM,III,3) Dizer algo com intenção de enganar (DM, IV,4) Embustes6 (DM, V, 7) Falsear a doutrina religiosa (DM, X, 17) Engano7 (DM, V, 8) Falsa promessa 8 (DM, XV, 28) Fábulas e ficções (CM, XIV,28) A omissão e o silêncio 9(DM, XIII, 24) Quadro 02 - Método agostiniano de listagem de casos

Em toda sua eloquência, Agostinho vai além das definições usuais da sua época, à

medida que adquire algumas definições sobre certos termos através da listagem de casos

(método por enumeração de casos), ele irá acrescentar novas variáveis, outros elementos de

forma sucessiva (método por aperfeiçoamento sucessivo) para elucidar a problemática da

mentira, em grau crescente de dificuldade.

Observe-se que Agostinho não utiliza um método puramente de exclusão negativa, ele

busca através dos exemplos que nos traz, meios de descrever positivamente o que pretende

definir. Ele parte de duas listagens distintas, ao dizer em um primeiro momento o que não é a

mentira e em um segundo momento o que ela pode vir a ser. Na primeira etapa a listagem se

relaciona a outras noções, e a segunda etapa serve para delimitar o mais relevante dentro da

listagem daquilo que a mentira é: por um sistema de aproximação tenta-se agrupar tudo o que

é potencialmente mentir. Após obter uma definição preliminar usa-se ou não o

aperfeiçoamento sucessivo. Por meio desse método será investigado o conjunto “do que é”,

retirando ou adicionando variáveis em um processo de melhoria gradual, para que dentre

esses elementos se possa chegar a uma delimitação precisa do que é a mentira.

3 Os exemplos aqui listados são apresentados em contextos específicos mencionados por Agostinho em sua obra, conforme referência disposta ao lado de cada caso. Salientamos que em outros contextos as situações descritas no quadro podem mudar o sentido, mudando também seu conceito em relação a ser ou não ser uma mentira. Os exemplos contidos nesse quadro serão analisados nos capítulos 2 e 3 de maneira mais detalhada. 4 A falsidade não é condição suficiente para a mentira. 5 Aquele que diz um erro não mente se ao enunciar pensa que é da forma como o disse. 6 Agostinho expõe que quem está acostumado a mentir para fazer o mal, se mente com a intenção de fazer o bem, já faz um grande progresso. Assim o embuste está inserido nesta condição, considerada a natureza desse avanço, um elogio para o seu progresso, olhando sob o ponto de vista do conteúdo simbólico de sua significância. 7 Neste trecho é apresentado um longo exemplo em que há uma aparente afirmação, e uma interpretação diferente do que São Paulo diz, segundo a qual não foi uma mentira, mas um engano que São Pedro admitiu. 8 Agostinho demonstra entender o juramento como uma fonte potencial de mentira ao não ser cumprido. 9 A mentira é possível tanto através da ação quanto da omissão, de gestos ou até mesmo do silêncio. Questão que merecerá maiores considerações em seção própria no capítulo a seguir.

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1.1.2 Definição geral de mentira

Esta subseção traz uma breve reflexão sobre a definição da mentira em diferentes

contextos, estabelecendo os principais conceitos da mentira como objeto de relação entre

pensamento e linguagem. Para isso, é importante primeiramente delimitar seu significado

como termo, pois, as palavras podem às vezes ser ambíguas, isto é, ter mais de um

significado. Além disso, o sentido pode ser vago ou obscuro, a clarificação dos conceitos

impõe o exame de casos limítrofes para estabelecer a definição do que algo pode ser.

Quanto à etimologia, mentira e mentir originam-se do latim mentice, que quer dizer

“mentir”, “imaginar”, “inventar”, de mens, mentis. Mens, mentis, é termo geral da raiz men –

pensar – e que designa, por oposição a corpus, “o princípio pensante, a atividade de pensar”

(LAFER, 1995, p.321).

Mentir intrinsecamente é querer enganar, há uma perversidade inata na mentira ela é

algo extremamente negativo. É interessante notar que em nossa língua portuguesa temos

muitas palavras para designar a mentira como: burla, aleive, falsidade, ludíbrio, charlatanice,

impostura, mendacidade, engodo, tapeação, engano, embuste, logro, calúnia, endrômina,

lorota, inverdade. 10

Conforme a definição geral de mentira, o mentiroso sabe a verdade (se não toda a

verdade, pelo menos a verdade daquilo que pensa), afirma o que ele quer dizer, sabendo a

diferença entre aquilo que pensa e aquilo que diz. Logo, ele sabe que mente, pois, há uma

contradição consciente entre o pensamento e sua manifestação.

Segundo “The Oxford Dictionary of Philosophy” mentir é: Deliberadamente declarar uma falsidade com intenção de enganar ou induzir ao erro. Dizer algo falso sabendo que o ouvinte irá interpretar como algo que é de fato verdadeiro. Simplesmente proferir falsos elogios ou brincadeiras sem surgir a questão da intenção, no entanto, não são casos de mentir. (ODP, 2005, p.218) 11

De acordo com a definição padrão contida no dicionário percebemos primeiramente a

exigência de uma condição de falsidade para configurar uma mentira. Estabelecida essa

assertiva, outras indagações podem surgir, pois, todas as mentiras são declarações falsas, mas

nem todas as falsas declarações são mentiras, a exemplo das brincadeiras que não se destinam

a serem levadas a sério. Do mesmo modo, que os chistes, os erros, enganos propositados,

falsos testemunhos ou perjúrios, são costumeiramente confundidos com a mentira, no entanto

10 Dicionário online de português e sinônimos, disponível em: http://www.dicio.com.br/mentira/ 11 Simon Blackburn. The Oxford dictionary of Philosophy. 2005, p.218.

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não são mentiras. Na literatura a confusão ocorre em relação às ficções e fábulas, que não

consistem em histórias mentirosas, mas em discursos inventivos, provenientes da imaginação.

Provavelmente baseando-se na definição padrão (mentir é dizer algo falso com

intenção de enganar), Jacques DERRIDA (1996) faz as seguintes considerações sobre os

aspectos definitórios da mentira:

Na sua figura prevalente e reconhecida por todos, a mentira não é um fato ou um estado, é um ato intencional, um mentir – não existe a mentira, há este dizer ou este querer-dizer que se chama mentir: mentir seria dirigir a outrem (pois não se mente senão ao outro, não se pode mentir a si mesmo, a não ser a si mesmo enquanto outro) um ou mais de um enunciado, uma série de enunciados (constativos ou performativos) cujo mentiroso sabe, em consciência, em consciência explícita, temática, atual, que eles formam asserções total ou parcialmente falsas; é preciso insistir desde já nessa pluralidade e complexidade, até mesmo heterogeneidade. (DERRIDA, 1996, p.09)

Segundo Derrida não existe propriamente uma mentira, mas um ato intencional que

envolve um mentir, que é um dizer ou um querer dizer, e esse dizer intencional

necessariamente deve ser dirigido ao outro. Na mesma linha, tantos outros autores retiraram

suas definições pessoais de mentira baseadas na definição padrão. Tal definição tem

influência notória da caracterização agostiniana de mentira.

Agostinho fundamentou sua rejeição radical da mentira principalmente através de

passagens bíblicas, e, seguindo a tradição cristã, a Igreja Católica também forneceu a sua

própria definição de mentira. Para a Igreja mentir é a privação direta e deliberada da verdade

de uma afirmação, é a escolha intencional de um ato dirigido a uma afirmação falsa. Mentir é

intrinsecamente ruim e sempre imoral.

Definição Católica: 12 2482. «A mentira consiste em dizer o que é falso com a intenção de enganar» (CIC, 2482) 2483. A mentira é a ofensa mais direta à verdade. Mentir é falar ou agir contrariamente à verdade, para induzir em erro. Lesando a relação do homem com a verdade e com o próximo, a mentira ofende a relação fundamental do homem e da sua palavra com o Senhor. (CIC, 2483)

Segundo essa definição tradicional católica a mentira está constituída por duas partes:

1) falar ou agir contra a verdade

2) a fim de levar alguém ao erro

12 Catecismo da igreja católica, obra pertencente ao Vaticano (online) disponível em: http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/prima-pagina-cic_po.html

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Em termos de moralidade a Igreja determina como primeira fonte a intenção ou o

propósito para que se destina a ação (para levar alguém ao erro) e como segunda fonte o ato

em si (a natureza moral da ação), conforme determinado pelo objeto moral (falar ou agir

contra a verdade). O Catolicismo define a mentira pela natureza da ação (segunda fonte), para

falar ou agir contrariamente à verdade, e a intenção (primeira fonte), para induzir ao erro. No

entanto, isso não implica que uma mentira contada com uma intenção diferente seja moral ou

que não seja uma mentira. Agostinho, assim como o catolicismo, ensina que os atos

intrinsecamente maus, são sempre imorais, independente da intenção ou circunstância, em

razão de sua própria natureza. A mesma doutrina sobre a maldade intrínseca vale para a

mentira, mentir é sempre um ato intrinsecamente ruim (mau) e errado.

A mentira em termos definitórios pode ser estabelecida sob uma perspectiva muito

restrita, em termos morais é vista como algo em princípio condenável, e de outra sorte como

uma afirmação contrária à verdade. Essas reflexões nos levam à conclusão de que a essência

da mentira tem raízes bem mais profundas do que a simples contradição entre pensar e falar, e

como é difícil na trama da linguagem desatar os nós das mentiras. Em razão de tais nuances

que envolvem a mentira, torna-se evidente o quão difícil é dizer o que, afinal, é mentira. Não

basta apenas apresentar as condições necessárias e suficientes para uma definição mais

comum do mentir, é preciso também explicar as objeções a esta definição padrão, e a partir

disso, definições alternativas de mentira também poderão ser consideradas.

1.1.3 Definições alternativas de mentira

Alguns filósofos sugerem análises alternativas de mentira porque não se satisfazem

com a definição padrão, e discutem soluções mais adequadas para solucionar o problema da

definição da mentira. Assim, para demonstrar as diversas interpretações e alternativas a

respeito da definição da mentira, primeiramente estabelecemos a definição filosófica padrão, e

a partir disso apontaremos alguns tipos de definições alternativas que estão sendo analisadas

por autores da atualidade.

Definição padrão de mentira Y mente para X se, e somente se: 1. Y diz p para X 2. Y acredita que p é falso 3. Ao dizer que p, Y pretende enganar X

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Enquanto a mentira frequentemente envolve a intenção de enganar, alguns filósofos

(Sorensen (2010), Carson (2006), Fallis (2009)) argumentam que a intenção de enganar não é

uma condição necessária da mentira.

a) Roy Sorensen

De acordo com a definição padrão as mentiras são essencialmente ataques às crenças

de uma pessoa. Sorensen (2010) em seu artigo “Knowledge-lies” afirma que algumas

mentiras são ataques ao conhecimento de uma pessoa e não diretamente às suas crenças. Sua

interpretação surge porque uma vez que a crença é um componente necessário do

conhecimento, pois, se não acredita, logo não sabe, então os ataques as crenças são

tipicamente ataques ao conhecimento. 13 (SORENSEN, 2010, p.03). Assim, há um sentido no

qual qualquer afirmação de que satisfaz a análise filosófica padrão de definição é

“knowledge-lie” 14. O interessante da posição de Sorensen é que ele afirma existir mentiras

que atacam o conhecimento sem, entretanto, atacar a crença.

Segundo Sorensen “uma afirmação de que p é “knowledge-lie” é exatamente quando

se pretende com ela impedir o destinatário de saber que p é falso, mas não a intenção de

enganar o destinatário a acreditar que p” (SORENSEN, 2010, p.04). Então as “knowledge-lie”

são uma categoria distinta de mentiras, oriundas das mentiras acreditáveis (por crenças) que

satisfazem a definição filosófica padrão. Para mentir, o agente tem que acreditar que o que

afirma é falso. Isso está implícito na definição de Sorensen de “knowledge-lies”. Não há

como ter a intenção de impedir que alguém saiba que p é falso, a menos que o emissor

acredite que p é falso.

A discussão de Sorensen é apenas uma parte de um grande projeto que visa mostrar

que a definição padrão de mentira é demasiadamente restritiva. Porém sua resposta não se

mostra a mais apropriada, a solução mais adequada seria rever a definição de modo a tratar

aspectos doxásticos mais amplos e não apenas crenças categóricas sobre o que é dito. É

possível construir exemplos de “knowledge-lies” que atacam o conhecimento sem atacar as

crenças em um todo. Ao contar esse tipo de mentira, elas podem não ter efeito sobre o

13 Um ataque à crença de alguém não é um ataque ao seu conhecimento se o mentiroso acredita que a sua crença atual é falsa (que não sabe). Além disso, não é um ataque contra o conhecimento, se o mentiroso nega que o conhecimento de p exige uma crença de p. 14 Preferimos manter o termo original por não achar uma tradução mais adequada à ideia trazida pelo texto. Embora o termo comporte “mentira epistêmica”.

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comportamento de ninguém, assim Sorensen parece não ter descoberto uma categoria mais

ampla de mentira.

b) Thomas Carson

Carson (2006) em seu artigo “The Definition of Lying” propõe uma definição de

mentira que difere da maioria das outras definições na medida em que não inclui a intenção de

enganar. De acordo com Carson, é mentira contanto que uma declaração seja falsa-

acreditável, ou provavelmente falsa acreditável, ou simplesmente não verdadeira acreditável,

e que seja feita em um contexto em que a pessoa não possa, por esse meio, garantir a verdade

da declaração para seu público-alvo. Se ao fazer a declaração essa pessoa não conseguir

garantir a veracidade de sua afirmação, ela estará mentindo. (CARSON, 2006, p.294-296).

Sua proposta:

S mente para S1 se: 1. S faz uma declaração falsa X para S1 2. S acredita que X é falso ou provavelmente falso (ou alternativamente, S não

acredita que X é verdadeiro) 3. S declara X em um contexto em que S garanta a verdade de X para S1, e 4. Não se acredita em S a não ser que garanta a verdade do que diz para S1

A primeira condição diz que a declaração deve ser falsa, a fim de ser uma mentira.

Para contarmos uma declaração como verdadeira ou falsa às vezes dependerá dos padrões de

precisão e exatidão que empregamos. Carson afirma que precisamos relativizar nosso

conceito de mentira e permitir a possibilidade de que, ao fazer uma determinada declaração ou

enunciado em certa ocasião especial, posso estar mentindo para alguns membros, mas não

para outros. (CARSON, 2006, p. 298).

Carson fornece o seguinte exemplo de um caso em que não há intenção de enganar, e

ainda que, segundo ele, é um caso de mentir: Suponha que eu testemunhe um crime e claramente veja que um determinado indivíduo cometeu o crime. Mais tarde, a mesma pessoa é acusada do crime e, como testemunha no tribunal, me perguntam se eu vi ou não o réu cometer o crime. Eu faço a declaração falsa de que eu não vi o réu cometer o crime, por medo de ser prejudicado ou morto por ele. Não necessariamente pretendo que minhas declarações falsas enganem alguém. (Eu poderia esperar que ninguém acreditasse em meu testemunho e que ele será condenado apesar disso.) Enganando o júri não significa que preservarei minha vida. Prestar falso testemunho é necessário para salvar minha vida, mas não é para enganar os outros, a intenção é meramente um não intencional “efeito colateral”. Eu não tenho a intenção de enganar o júri neste caso, mas parece claro que o meu falso testemunho constitui uma mentira. (CARSON, 2006, p.289)

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No exemplo mencionado acima, ressalta-se que a alegação proferida por ele poderia

ser interpretada como um perjúrio, mas nesse caso o autor afirma que poderia se tratar de uma

mentira. Segundo ele poderia estar mentindo, embora não houvesse qualquer intenção de

enganar alguém. Essa noção seria facilmente rejeitada por outras correntes teóricas porque

não requer a falsidade. Argumenta-se que a falta de crença na verdade ou falsidade da

declaração que se faz é insuficiente para mentir, pois isso implica que uma pessoa pode estar

mentindo, mesmo que alguém não acredita que a declaração que se faz é falsa, e para mentir,

é preciso acreditar que a declaração feita é falsa. Parece inapropriado aceitar uma definição de

mentira ao qual dependeria da sorte, seria errado dizer que ele está mentindo simplesmente

porque a sua declaração passa a ser verdade.

Carson em conclusão, aduz que sua definição ajuda a iluminar questões morais através

da identificação de características moralmente relevantes nas ações. A virtude final da sua

análise faz sentido do ponto de vista comum no qual a mentira envolve uma quebra de

confiança. Para mentir, em sua opinião, é preciso convidar outras pessoas a confiar no que se

diz, para, então trair essa confiança com declarações falsas que são acreditadas. (CARSON,

2006, p.302).

c) Don Fallis

Fallis (2009) no artigo “What is Lying” faz uma demonstração através de diferentes

casos de mentira em que nem sempre há a intenção de enganar.15 Para ele normalmente,

mentimos para enganar outras pessoas, e ao enganar, servimos aos nossos propósitos de

alguma maneira. E queremos que essas outras pessoas a serem enganados, porque isso serve

os nossos propósitos, de alguma forma. Fallis afirma: “Eu acho que se mente ao afirmar algo

que acredita ser falso. Você afirma algo quando: (a) diz alguma coisa e (b) acredita que está

em uma situação onde não deveria dizer aquilo que crê como falso”. (FALLIS, 2009, 06).

Precisamente é afirmar algo que acredita estar em vigor como uma norma de conversação. 16

(FALLIS, 2009, p.06).

15 Embora exemplifique situações de mentira em que não há a intenção de enganar, Fallis também admite a possibilidade da condição intenção, e traz exemplos de casos também nesse sentido. Veremos apenas os casos em que ele não admite a intenção. 16 Nesse ponto, Fallis se refere à primeira máxima conversacional de Paul Grice, a máxima da qualidade (não diga o que acredita ser falso). As máximas conversacionais de Grice serão analisadas em seção própria, no capítulo II.

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A definição de Fallis 17

Você mente para X se, e somente se: 1. Afirma que p para X 2. Acredita que faz essa afirmação no contexto da seguinte norma de conversação:

Não faça declarações que você acredita serem falsas 3. Acredita que p é falso Para o autor esta definição de mentira estabelece corretamente regras para muitos

casos prototípicos de mentir. De acordo com Fallis, será considerada mentira a declaração

feita para outra pessoa em um contexto em que quem fez a declaração considera que a norma

conversacional de veracidade está em vigor, logo, o proferidor estará mentindo.

Conforme a definição padrão de mentira mente aquele que faz uma declaração que

acredita ser falsa com a intenção de enganar. Fallis aduz que essa definição padrão possui um

conceito muito amplo, porque tal estrutura pode aparecer em situações em que não são

mentiras. Assim, fornece o seguinte exemplo: Suponha que eu decida tentar convencer um recente conhecido em uma festa elegante que sou um ator (ao invés de realeza). Então, eu tomo uma pose teatral e entono: ‘Eu sou o príncipe da Dinamarca.’ Embora eu tenha feito uma declaração que eu acredito ser falsa com a intenção de enganar (sobre a minha profissão), eu não menti (por exemplo, sobre ser realeza). Eu só falsamente impliquei que sou um ator. (FALLIS, 2009, p.14)

A partir deste e de demais exemplos, Fallis sugere existir situações que envolvem

falsidade e intenção de enganar, mas não é mentira, bem como situações envolvendo a

mentira nas quais a intenção de enganar não é uma condição necessária para mentir.

1.2 Questões Históricas

Nesta seção procuramos expor alguns pontos relevantes sobre a história da reflexão

sobre a mentira, no sentido de compreender a evolução de sua elucidação e as mudanças

conceituais ocorridas. A compreensão de tais avanços teóricos e metodológicos relacionados à

mentira é significativo, pois estes norteiam uma série de correntes teóricas a respeito de

diferentes tipos de suas notas definitórias. A partir do entendimento desses mecanismos

estaremos aptos a analisar, além da caracterização, a função prática da mentira em diferentes

contextos como, por exemplo, na política, na moralidade, ou conforme a teoria da linguagem.

17 FALLIS, 2009, p.06-07.

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1.2.1 Breve histórico da mentira

A mentira é parte inerente à natureza humana e por vezes se confunde com a própria

história do homem em virtude de que se fez presente por toda a história da humanidade.

Desde as primeiras citações bíblicas a mentira é vista como algo ruim, como a culpada por

uma gama de sofrimentos, visto que se trata de um pecado. De acordo com os ensinamentos

religiosos, “Satanás” enganou os primeiros seres humanos através da mentira, e, portanto é

considerado o “pai da mentira”. 18

Kant (2003) em uma observação à parte afirma que: É de se notar que a Bíblia situa o primeiro crime, através do qual o mal ingressou no mundo, não a partir do fratricídio (de Caim), mas a partir da primeira mentira (pois até mesmo a natureza se ergue contra o fraticídio) e classifica o autor de todo o mal como um mentiroso desde o início e como o pai das mentiras. (MDC, 2003, p.273)

A Bíblia nos oferece inúmeras citações, provérbios e parábolas envolvendo a mentira.

O Nono Mandamento: “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êxodo, 20:16) é

entendido como uma proibição da mentira. O Velho Testamento é enfático em condenar a

mentira, talvez seja esse o motivo para que Agostinho o utilize na maioria de seus exemplos.

Conforme o Velho Testamento, mentir é proibido por Deus no livro do Levítico (19:11), e no

Novo Testamento na carta aos Efésios: “Por isso, deixando a mentira de lado, fale cada um a

verdade com o seu próximo.” (Efésios, 4:25)

Se a mentira, na teologia ocidental, é tida como algo vergonhoso na atitude do homem,

na teologia judaica, no “Talmude”, é considerada o pior dos roubos. Os muçulmanos em seu

livro sagrado “Alcorão” também rejeitam inúmeras vezes a mentira. Há milhares de anos o

filósofo chinês Confúcio (551- 479 A.C.) recomendava que se apelasse para o recurso da

mentira apenas quando a verdade prejudicasse uma família ou a nação (TIEPOLO;

GREGOLIN; MEDEIROS; 1999, p.113). Contudo, o ato de mentir tem seu nível de

tolerância estabelecido conforme os valores de cada povo e cada época. Até mesmo dentro de

uma mesma classe social ou sociedade podem coexistir graus diferentes de aceitação ou

reprovação da mentira, isso varia de acordo com as expectativas individuais em relação aos

demais membros. Os povos antigos, de maneira geral, condenavam a mentira, mas podiam

mudar de opinião a partir do contato com outras culturas. Os povos da velha Índia tinham o

preceito de só mentir para salvar um hóspede. No mais, os budistas pregavam que mentir 18 A referência a esta denominação encontra-se nas Escrituras Sagradas no livro de Jó: "Vós sois do Diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira. Mas, porque eu digo a verdade, não me credes" (Jó 8.44-45).

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equivalia a matar dez homens. Porém, após a chegada dos colonizadores ingleses, a mentira

passou a ser aceita com naturalidade pelos indianos, que a ela recorriam até para salvar a

própria vida (TIEPOLO; GREGOLIN; MEDEIROS; 1999, p.113).

Desde a antiguidade a mentira foi usada como propaganda política e religiosa. Por

exemplo, no Egito antigo, a mentira foi um instrumento importante para a manutenção do

poder do faraó Ramsés II, que em meados do século XIII A.C. liderou as tropas egípcias

contra outra potência da época, o Império Hitita, tornando-se o maior confronto envolvendo

carruagens da história (cerca de 5 mil). O combate terminou sem vencedor, mas Ramsés II ao

voltar para casa relatou sua suposta vitória contra o inimigo. (GAN, 2005, p.12). Outro

comandante que soube manipular os fatos sobre suas vitórias foi Napoleão Bonaparte, que

habilmente utilizou-se da imprensa da época para narrar suas “fantásticas vitórias” no Oriente.

Ao retornar à França, Napoleão foi recebido como vitorioso e, em meio às convulsões sociais

que atingiam o país, tomou o poder. (GAN, 2005, p.13)

A modernidade confere um estatuto secundário à verdade, diferentemente do sentido

dado pelos filósofos antigos que a relacionavam à virtude. Os conceitos sobre a mentira estão

nitidamente relacionados aos acontecimentos de cada época e a evolução do pensamento

humano no uso da linguagem, na capacidade de criar ou desconstituir os fatos. Isso significa

que o conceito da mentira muda conforme o ambiente e a época; além dos conceitos gerais é

preciso considerar certos fatores particulares da prática social, política, tecnológica. Uma

cultura específica pode avaliar a mentira de forma diferente de outras, e isso poderá

influenciar na prática da mentira nos quesitos motivação, forma, efeitos e aceitação.

1.3 O tratamento filosófico da mentira antes de Agostinho

Frequentemente a mentira tem sido utilizada, na sociedade, como um instrumento de

manipulação do homem pelo homem. Desde Platão e Aristóteles até Hannah Arendt, vários

autores em diferentes momentos históricos deram ênfase a essa manipulação da ordem

pública. Nesta Seção iremos abordar o pensamento de alguns importantes teóricos da política

e destacar sua influência sobre Agostinho na elaboração da sua caracterização da mentira.

Para tanto serão examinadas algumas posições em relação ao uso da mentira para a

administração do Estado, na Subseção 1.3.1 conforme Platão e na Subseção 1.3.2 de acordo

com Aristóteles.

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1.3.1 Platão (427 - 347 A.C.)

Em grego a mentira está associada ao termo pseudos, que pode significar

simplesmente o discurso ficcional, assim como se relaciona à invenção poética. Os sofistas,

considerados especialistas na arte de bem falar, tinham como profissão a preparação do

homem grego para ser cidadão político, isto é, um habitante da polis, capaz de argumentar e

defender seus pontos de vista, no exercício cotidiano da democracia grega. Eles ensinavam a

arte de falar bem, independentemente da verdade ou falsidade de suas afirmações, e com isto,

sugeriam que a verdade é relativa. A verdade parece relativa no sentido em que eu posso

inferir outras realidades ou sentidos para uma expressão em diferentes situações,

ocasionando uma troca de realidade/sentido no entendimento do ouvinte em relação ao

falante. Apropriando-se dessa problemática, analisaremos a posição de Platão quanto ao tema

do juízo falso e da mentira e sua influência sobre Agostinho.

1.3.1.1 O problema do juízo falso no Teeteto de Platão

Dentre a abundante variedade de temas nos quais Platão se interessou, encontra-se a

problemática ligada à forma como se deve explicar a relação entre a alma e os objetos

conhecidos por ela, e dentre tantas questões envolvidas para solucionar essa aporia, u m a

delas é o problema da falsidade, e os estudos dos argumentos que perfazem a discussão da

opinião falsa. Nesse particular Agostinho desenvolveu uma teoria a respeito da insuficiência

da linguagem, onde expressa reflexões sobre a natureza dos signos, suas categorias funcionais

no universo das palavras e o modo como funcionam nos processos do entendimento das

mensagens. (De Magistro, X-XIII). Contudo, tanto em Platão como em Agostinho há uma

clara demonstração de que existem certos princípios a serem observados para que haja uma

boa transmissão da mensagem, por exemplo, o receptor deve entender o que o emissor

pretende transmitir: seja na questão do conhecimento do transmissor ao receptor (que precisa

ser suficiente para evitar que o sujeito adquira opiniões equivocadas ou falsas sobre o objeto),

seja na questão da linguagem em que há diferença entre o que se diz e o que se pensa, fazendo

com que igualmente o receptor possa acolher conclusões equivocadas ou falsas a respeito do

que se pretende enunciar. Para elucidar este ponto, será realizada em particular uma breve

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análise dos diálogos aporéticos de Platão no “Teeteto” (187b-190d) (SANTOS, 2005)19, no

tocante a posição do falso tanto em relação à construção do conhecimento quanto na formação

da linguagem.

As possibilidades do juízo falso são discutidas no Teeteto 187c-201d (SANTOS,

2005). Nesse trecho do diálogo Platão demonstra uma percepção apurada da insuficiência das

posições que procuram descrever a estrutura do falso, sobretudo das posições que negam sua

existência. Segundo a tese que trata o referente do falso, o que corresponde ao que é expresso

pela sentença falsa, não existe. Se não há um referente que corresponda ao que a sentença

falsa expressa, não há um conteúdo, ou, pelo menos, um agrupamento de aspectos que possam

ser identificados por meio dos termos que exprimem o erro. (Cornford, 1991, p.110-111).

Na segunda parte do Teeteto a discussão da opinião falsa é inteiramente marcada por

um princípio ao qual sugere a impossibilidade de não se conhecer aquilo que se conhece. O

conhecimento é uma relação entre a mente e o item cognoscível regrada pela disjunção: deve-

se possuir ou não possuir o conhecimento daquilo que está sob exame na alma ou que figura

como objeto de um juízo de conhecimento. A possibilidade dos juízos falsos parece nos trazer

o problema de que alguém possa saber e não saber a mesma coisa ao mesmo tempo, ou ser ou

não ser sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, sendo, portanto, objeto de uma contradição.

Conforme Santos (2005) há apenas quatro possibilidades em que a opinião falsa

poderá surgir na confusão: 20

a) de duas coisas que se sabem; b) que se não sabem; c) de uma que se sabe com outra que não se sabe; d) de uma que se não sabe com outra que se sabe. Mas todas se mostram impossíveis, se saber e não saber são as únicas possibilidades, e

são inconfundíveis um com o outro. Entretanto, talvez haja uma possibilidade de dizer que é

impossível opinar que as coisas que alguém sabe são as que não sabe. (SANTOS, 2005,

p.280-281, 191b). Então, quem pensa, pensa em alguma coisa, em algo que existe. E, desta

maneira, quem pensa no que não existe, pensa em nada, que corresponde ao não pensar.

Assim, uma opinião falsa não pode ser algo que não existe, ela é algo que existe, no entanto é

falsa. Por conseguinte, uma opinião falsa consiste na confusão que há entre coisas existentes,

colocando uma coisa no lugar da outra, visando outra coisa. (SANTOS, 2005, p.277, 189c). O

falso é dizer o que não é, é dizer o ser enquanto não ser. 19 A versão do Teeteto utilizada é a tradução para o português por Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri, com introdução e notas de José Trindade dos Santos (Org.) Lisboa: Gulbenkian, 2005. 20 Adaptação da estrutura retirada dos comentários ao diálogo Teeteto, (SANTOS, 2005, p.43).

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A percepção sensorial mostra-se em constante transição, ela nos é revelada como um

elemento particular, porque para cada indivíduo é particular, e em cada ocasião é singular, ou

seja, não se pode comparar minha percepção àquela de algum outro nem mesmo àquela que

eu poderia ter em um outro momento ou em um outro estado diferente daquele no qual

estou.21 E ainda podemos dizer que, mesmo quando não há interlocutor, sempre existe um,

pois o ato de pensar não é nada outro senão um diálogo interior e silencioso da alma consigo

próprio. (SANTOS, 2005, p.278, 189e-190a). A estrutura de nossas opiniões segue o esquema

de nossas sensações; a crença/opinião tem essa estrutura porque as informações que

adquirimos mediante opinião se mantêm apenas até que outra sensação, mais forte ou mais

adequada, substitua a sensação anterior que nos fazia emitir aquela opinião.

Desta forma como é possível a opinião expressar o ser de p, de modo satisfatório, sem

cair no não-ser e sem oferecer descrições incompletas? O conhecimento de S sobre p precisa

ser suficiente para evitar que o sujeito “A” adquira opiniões equivocadas sobre p. Assim, o

ideal de uma definição de saber deve também considerar o aspecto psicológico que define a

relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Expressamos isso da seguinte forma:

Condições para emitir um juízo falso

Ao dizer a A que p, S diz algo falso se, e unicamente se (i) conhece que p; (S deve conhecer o objeto) (ii) S acredita/opina que X e Y não são iguais;

(iii) ao dizer a A que p, S troca X por Y em relação a p. (há uma troca de representação em relação ao objeto).

A troca de opiniões a respeito de um objeto consiste na afirmação de que “uma coisa é

outra” (SANTOS, 2005, p.278, 190a). A allodoxia22 em Platão afirma que um agente não

pode julgar (pensar, afirmar) que uma coisa é outra (por exemplo, que o feio é bonito) uma

vez que isso equivaleria a dizer que uma coisa é outra quando um agente sabe que eles não

são idênticos. (SANTOS, 2005, p.276-277, 189b-c). Levantando a questão, ainda, de como

um agente pode pensar sobre o que não é qualquer uma das coisas que são (por exemplo, a

julgar que Sócrates é bonito quando ele na verdade é feio) ou puramente em relação a

inexistência de certos objetos (por exemplo, a julgar que um unicórnio é um cavalo com um

chifre). Esse processo de troca de representação pode imprimir no campo visual de um objeto

a marca do outro, é como se o sujeito fosse vitima da ilusão dos espelhos, em que fica de um

21 Tal interpretação supõe dois indivíduos ou um indivíduo em dois momentos diferentes. (TEETETO, 188e-189a apud SANTOS, 2005, p.129-130). 22 A allodoxia é a opinião de outra coisa. Tal termo contribui para reforçar a via da alteridade, expressa pela possibilidade da “outra opinião”, (SANTOS, 2005, p.129-130 e p.276-277, 189b-d).

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lado o que está no outro (lado direito e lado esquerdo). Nesses casos pode tomar-se uma coisa

por outra e haver um juízo (opinião) falso (a).

Platão ao explicar como pode haver juízos verdadeiros e falsos passa a estar muito

mais perto de encontrar uma definição adequada do conhecimento. Admitindo a existência de

juízos verdadeiros e de juízos falsos, ele os explica como resultados de decisões, por vezes,

erradas quando não se escolhe um ou outro objeto por referência, resultando na troca de

representação de uma coisa por outra coisa, ainda que o conhecimento não resida nas

impressões sensoriais, mas na reflexão que a alma faz sobre elas. Sócrates, portanto, no

Teeteto, procura colocar ordem no saber, caracterizando a opinião como aparência e o saber

como verdade, sendo a primeira atingida pelos sentidos e a segunda pela razão.

Por seu turno, Agostinho ao fazer uma relação entre signo e conhecimento, em sua

análise quanto à linguagem e suas possibilidades, parece chegar à conclusão de a linguagem

não nos leva a conhecer. Para ele, a linguagem é instrumento de comunicação e tem um papel

secundário no conhecimento, não participando da essência deste. Segundo Agostinho, aquele

que procura conhecer um dos objetos da inteligência ou dos sentidos, ou seja, qualquer forma

de conhecimento, opera na interioridade. O único papel da linguagem é que ao notar (ouvir,

ver, ler) um signo, este estimula o homem a procurar o conhecimento, o estimula a aprender.

“Se o que foi dito é verdade ou não, cabe somente a Cristo, que é o nosso Mestre Interior, nos

ensinar”. (De Magistro, XII, p. 401-402).

1.3.1.2 O problema da mentira na obra República de Platão

O título “República” é originário da tradução do latim para “res pública” (coisa

pública) e do grego “Politéια”, termo que relaciona a forma de governo, a composição,

organização, e a origem e leis da Pólis. A “República” é uma obra composta por dez livros,

sendo que a mentira é abordada brevemente nos Livros II (337 d-e e 382 a-e) e III (389 b-d e

414 b-e). Essencialmente a problemática da obra concentra-se na discussão da justiça como

virtude maior para a constituição de um Estado perfeito e para a formação grega em torno da

Paidéia. 23 Além disto, Platão dedica-se em segundo plano a criticar a carreira que os sofistas

estavam criando como educadores, porque com sua retórica preparavam os cidadãos para

desenvolver a argumentação, mas somente mediante remuneração. Isso demonstrava que eles

23 Platão parece reconhecer ao final de sua obra que a idealização de um Estado ideal tem um caráter utópico e possivelmente não seria algo fácil de realizar.

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não mantinham um compromisso com a verdade, mas com a recompensa que exigiam em

troca, e dessa forma seus argumentos baseavam-se apenas nas percepções, opiniões e crenças

que os Sofistas estabeleciam aos que lhe pagavam.

Apesar da argumentação não ser o ponto central da obra (como o é estipular a

República ideal), Platão destaca o tema como um ponto importante, pois, era uma prática que

estava em expansão na época. Nos livros II e III a poesia é destinada aos guardiões da cidade

como parte da educação, e refere-se aos mitos ou as histórias sobre os deuses. Sócrates irá

dizer em relação à tragédia e a comédia que “das fábulas” que agora se contam, a maioria

deve rejeitar-se” (PLATÃO, 1996, p.87, 377c), pois para ele elas estão cheias de mentiras e

não deveriam mostrar os seres mais elevados lutando e se odiando uns aos outros. Salienta-se

ainda que a obra seja proeminente na atualidade, principalmente em razão da “alegoria da

caverna”, que trata dos níveis do conhecimento humano, alertando para a percepção parcial de

mundo a que estamos sujeitos. “Para que o guardião, futuro filósofo-rei, atinja o Bem, é

preciso sair da caverna e contemplar o Sol” (PLATÃO, 1996, VII, 514-a e 519-b).

Platão, no Livro II da República, exemplifica situações em que a mentira não é vista

como algo odioso, mas útil. — E quanto à mentira por palavras? Quando e a quem é útil, a ponto de não merecer desprezo? Não será em relação aos inimigos e aos chamados amigos, quando, devido a um delírio ou qualquer loucura, intentam praticar má ação, que ela se torna útil como um remédio, a fim de desviar? E, na composição de fábulas que ainda há pouco referíamos, por não sabermos onde está a verdade relativamente ao passado, ao acomodar o mais possível a mentira à verdade, não estamos a tornar útil a mentira? (PLATÃO, 1996, p. 97-98, 382 c-d).

Posteriormente no Livro III, Platão retorna a questão ao indagar se a verdade deve ser

estimada sobre todas as coisas. — Mas é que, realmente, deve ter-se em alto apreço a verdade. Se, de fato, dissemos bem há pouco, se na realidade, a mentira é inútil aos deuses, mas útil aos homens sob a forma de remédio, é evidente que tal remédio se deve dar aos médicos, mas os particulares não devem tocar-lhe. (PLATÃO, 1996, p. 107, 389 b).

Sua resposta a essa questão é positiva, devemos apreciar a verdade, enquanto a

mentira somente é algo útil em certas circunstâncias e para certas pessoas. A mentira poderá

ser útil aos humanos sob a forma de uma espécie de medicamento, mas se restringirá aos

médicos e não aos particulares, (nessa metáfora, os governantes são os médicos da pólis). “Se

um particular mentir a tais chefes, diremos que isso é um erro da mesma espécie, mas maior

ainda do que se um doente não dissesse a verdade ao médico, [...]” (PLATÃO, 1996, p.108,

389 c).

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Para Platão, o bom governante, deve governar com autoridade, virtude, ciência,

imparcialidade, justiça e equidade. Aquele que domina a ciência da política dotado na arte de

conduzir os homens ao ser falso e criador das piores ilusões deve ser repelido (como seria o

caso dos Sofistas). Platão estipula que a mentira é permitida por algumas pessoas em razão

de sua categoria: “ — Portanto, se a alguém compete mentir, é aos chefes da cidade, por causa

dos inimigos ou dos cidadãos, para benefício da cidade; todas as restantes pessoas não devem

provar deste recurso” (PLATÃO, 1996, p.107, 389 b). Esse tipo de mentira ficou conhecido

como a “nobre mentira”, por se tratar de uma prerrogativa exclusiva de uma determinada

classe de pessoas a exemplo dos governantes. Nesse caso, para eles, a mentira se justificaria

nas situações em que a verdade pode ser mais dura ou sempre que estiverem em jogo os

interesses ou a sobrevivência dos poderosos. Nesse prisma a mentira é um artifício permitido

desde que utilizado pelos governantes, e nenhuma outra pessoa está autorizada a fazê-lo.

Vejamos que essa autorização para mentir resultou em algo unilateral apenas, pois, o

governante ao exigir direitos muitas vezes se esquece de seus deveres em relação aos seus

governados. Essa exceção à mentira importa no direito de mentir do governante, enquanto o

governado tem o dever de ser veraz. Primeiramente esse tipo de mentira teria como motivação

proporcionar um benefício futuro para a comunidade. Ao abrir exceções, isso proporciona ao

governante o uso desmedido da mentira, sendo esta utilizada como elemento habitual na

argumentação política, ou como desculpa para mentir, ao afirmarem, por exemplo: “se menti

foi pelo bem de meu povo”. Tem-se ideia de que tal argumento do “benefício para a

comunidade” foi muito usado na Revolução Francesa, onde muitos discursos citaram as

palavras e as recomendações de Platão como justificativas para a mendacidade.

Agostinho é contrário à ideia de aceitabilidade da mentira no meio governamental,

especialmente estabelecida por Platão em “A República”, visto que para ele a mentira não

comporta nenhuma exceção. Nesse aspecto em particular Agostinho não sofreu a menor

influência da teoria platônica.

1.3.1.3 A mentira em Hípias Menor

Hípias Menor24 (Sobre a Mentira) é um diálogo que faz parte dos escritos juvenis de

Platão. Neste diálogo Sócrates e o sofista Hípias, discutem os poemas de Homero, nos quais

24 Utilizarei, no presente trabalho, a tradução do grego para o português de André Malta contida em Platão: Sobre a inspiração poética (Íon) & Sobre a mentira (Hípias Menor). Porto Alegre, Coleção L&PM Pocket, vol. 620, 2008.

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Ulisses e Aquiles são protagonistas. 25 Hípias destacava-se na época (século V A.C.) como

retórico, e também é protagonista na obra platônica Hípias Maior. Esse sofista era versado

em diversas áreas de conhecimento e detinha um extraordinário poder de comunicação, e,

portanto normalmente cobrava altos preços pelo ensinamento de suas habilidades (MALTA,

2008, p.13). Durante o diálogo ocorrem demonstrações sutis a respeito dos temas abordados

pelos participantes, como a tese socrática de que o mal não é voluntário, e a despeito de

construir literalmente um discurso mentiroso, que a capacidade de inventar fatos é em si algo

positivo.

O início do diálogo ocorre logo após Hípias discursar nas Olimpíadas sobre o caráter

dos principais heróis homéricos. Sócrates, ciente desse discurso, questiona: “— Qual a

opinião dele a respeito desses dois homens [Ulisses e Aquiles] e qual ele afirma ser melhor,

uma vez que tem demonstrado para nós muitas outras coisas de todo tipo” (MALTA, 2008,

p.58). Conforme Hípias e o poeta Homero, em relação aos dois protagonistas Aquiles e

Ulisses26, o primeiro é considerado o melhor dos guerreiros, simples e verdadeiro, tido como

um homem sincero e incapaz de promover o engano voluntariamente a alguém. Enquanto o

segundo é mentiroso, provedor da intriga, é aquele homem que não tem escrúpulos em

mentir visando um determinado fim. A partir dessa distinção Sócrates pergunta a Hípias se é

possível serem a mesma pessoa, o verdadeiro e o mentiroso; quanto a isso a resposta é

negativa porque se tratam de duas pessoas opostas. Sócrates então baseia a sua argumentação

na afirmação de que o mesmo que diz a verdade é aquele que mente, e, assim não há

diferença entre aqueles dois heróis. Mentir em todas as áreas implica em ter capacidade e

sabedoria, e por conseqüência implica saber a verdade (MALTA, 2008, p.14). Conforme

consta no trecho abaixo: Sócrates: — Você está dizendo que os mentirosos são, por exemplo, incapazes de fazer algo (como os doentes) ou capazes de fazer algo? Hípias: — Capazes — digo eu —, e como! Entre muitas outras coisas, de enganar os homens! (MALTA, 2008, p.64-65, grifos do tradutor).

Segundo Sócrates, para ter a capacidade de mentir o emissor deve possuir

previamente a capacidade de enganar, aquele que é mais instruído tem maior habilidade na

mentira do que aquele que mente sem saber mentir, ou seja, o que mente sem desejar fazê-lo.

25 São protagonistas de dois poemas de Homero: Ilíada que narra os acontecimentos do nono ano da guerra contra Tróia e tem como protagonista Aquiles; e Odisséia que narra o retorno de Ulisses para sua casa na ilha de Ítaca. 26 Ulisses também é conhecido pelo nome Odisseu.

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“Então um varão incapaz de mentir e ignorante não poderia ser mentiroso...” (MALTA,

2008, p.65). Assim, o mentiroso é considerado capaz e inteligente. Sócrates: — Devemos então estabelecer isto também, Hípias: que em cálculo e número há um homem mentiroso. Hípias: — Sim. Sócrates: — E quem seria esse? Não é preciso haver nele — se vai mesmo ser um mentiroso — a capacidade de mentir, como você mesmo há pouco reconhecia? Pois estava sendo dito por você, se está lembrando, que o incapaz de mentir jamais se tornaria um mentiroso... (MALTA, 2008, p.67, grifos do tradutor).

Logo, a capacidade de enganar estaria ligada à astúcia como um produto da

inteligência. Sócrates também postula que “capaz é todo aquele que faz o que quer, quando

quer” (MALTA, 2008, p.65) esse indivíduo age conforme a sua vontade.

Após ser feita a distinção entre indivíduos capazes e incapazes de mentir, Sócrates

estabelece que aquele que engana pode, dizer a verdade e a mentira. Então aquele que diz a

verdade pode ser aquele que mente, e tanto o verídico quanto o enganador sabem a

verdade.27 Sócrates: — Você não vê então que uma mesma pessoa é mentirosa e verdadeira nisso, e que o verdadeiro não é em nada melhor que o mentiroso? Pois são certamente uma mesma pessoa e não se contrapõem, conforme você achava há pouco [...] (MALTA, 2008, p.68).

Para complementar sua argumentação Sócrates analisa outros casos, como: se um

geômetra é capaz de mentir e dizer a verdade sobre os diagramas (MALTA, 2008, p.69), ou

se na astronomia uma mesma pessoa poderá ser verdadeira e mentirosa (MALTA, 2008,

p.70). Hípias parece não conseguir encontrar dentre tantas áreas de conhecimento um caso

sequer em que ocorra alguma exceção aos exemplos de Sócrates. Mas também não parece

ainda estar convencido de que o mentiroso e o veraz são a mesma pessoa. 28

Na sequência Sócrates questiona se, quando Aquiles ou Ulisses dizem mentiras, o

fazem de forma voluntária ou involuntária? Aquiles o faria involuntariamente enquanto

Ulisses voluntariamente, porque esse é o sábio, e não o ignorante (MALTA, 2008, p.15). A

condição necessária para um bom mentiroso seria a instrução, o instruído teria maiores

27 Neste ponto lembramos Agostinho. O veraz sabe ou opina saber que expressa uma veracidade, e o mendaz sabe ou opina saber que aquilo que pensa é verdade, mas expressa algo diferente do que tem em mente. Ambos conhecem ou acreditam conhecer a verdade. E por conhecer a verdade interiormente e expressar algo diverso do que se tem em mente o falante terá mentido. (DM, III, 03). Nesse argumento em particular do diálogo Agostinho parece concordar com Sócrates, ou seja, tanto o mentiroso quanto o veraz sabem a verdade. 28 O veraz e o mendaz são considerados a “mesma pessoa” no sentido de dizer que o indivíduo é veraz ou é mendaz em um dado instante de tempo. O veraz e o mendaz reúnem as mesmas características para exercer a veracidade e a mendacidade, ou seja, tem que ser inteligente, por exemplo, ou pelo menos a ter a inteligência em comum. São a mesma pessoa, o mesmo tipo de indivíduo na medida em que ambos devem ser inteligentes, e conhecedores da verdade.

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chances de sucesso em ser mendaz, por demonstrar conhecimento de causa. Assim, o mentir

voluntário é realizado por quem é mais hábil, enquanto o mentir involuntário, é realizado por

desconhecimento ou ignorância. O sábio age voluntariamente (por vontade), sendo superior

ao ignorante que age involuntariamente (sem saber ou sem querer). O conhecimento

adquirido pelo sábio lhe possibilita maior capacidade de mentir ou de dizer a verdade

conforme a sua vontade. Nisso o ignorante estaria restrito, pois, as suas ações decorrem da

ignorância e não da sua vontade, então se ele mente ou diz a verdade não é por vontade, mas

por falta de instrução.

Não só o saber dos agentes é diferente como as duas ações são distintas. Então disso

auferimos que mentir voluntariamente envolve uma duplicidade enquanto o mentir

involuntário não, porque não haveria a intenção, o agente o faz por ignorância. Para

Agostinho a duplicidade reside no próprio agente independente do saber dele, é algo que está

contido em seu interior e o processo de exteriorizar o falso, crendo em algo diverso, é mentir.

Caso se admita o “mentir sem querer”, isso impossibilitaria o julgamento da intenção real do

agente, e o peso moral da sua ação poderia sempre ser amenizado pelo desconhecimento.

Esses dois tipos de emissores (voluntário e involuntário) diferem não só na sua capacidade

de compreensão e julgamento, mas também em seu desejo de deturpar ou mascarar o seu

pensamento em palavras. Quanto a isso, para Agostinho o ponto principal está na intenção do

falante, a falsidade não é suficiente para a mentira, porque de acordo com a sua teoria: “Nem

todo aquele que diz uma coisa falsa mente, se acredita ou opina ser verdade o que diz” (DM,

III, 03). Neste caso, o mentiroso voluntário é aquele que intencionalmente fala o falso e sabe

disso, e o mentiroso involuntário é aquele que comete um erro porque acredita sinceramente

estar falando algo verdadeiro quando na realidade não o faz. Nesse sentido Agostinho parece

discordar das teses do diálogo platônico, porque aquele que diz algo falso por

desconhecimento não seria um mentiroso; ainda que seja um erro ele não mente, pois

expressou o que acreditava ser verdadeiro.

Portanto, não há diferença entre o mentiroso (voluntário) e o veraz (voluntário),

ambos sabem igualmente a verdade, posto que o primeiro dissimula a verdade (sabendo) e o

segundo sabe a verdade e a diz. Sócrates e Hípias concluem ao final do diálogo que saber

mentir exige mais que dizer a verdade. A manipulação da mentira exige o envolvimento de

técnica, astúcia e inteligência, capacidades que nem todos possuem. Aquele que mente bem

tem todas as características que o veraz tem e mais algumas, como a capacidade de enganar.

Trata-se de um paradoxo, para exercitar bem uma ação ruim, são necessárias características

boas e desejáveis como a inteligência e a astúcia.

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1.3.2 Aristóteles (384-322 A.C.)

Aristóteles estava ciente da atenção e do espaço que a retórica tem no meio social, e

procurou realizar críticas a esse respeito, nas repercussões que o discurso proporciona aos

membros da sociedade. O discurso desempenhou e ainda desempenha um papel importante na

formação de organizações políticas, e na humanidade com particular ênfase para os núcleos

organizados em tribos e estados. A mentira também se insere nesse contexto o seu papel nas

questões relativas à vida do homem em sociedade não é algo novo.

Ainda que muitos tenham escrito sobre o tema, Aristóteles parece ser um dos

primeiros a questioná-la, indagando se a sua presença é mesmo necessária no discurso, como

forma de convencimento. Agostinho na sua obra De Magistro também analisa o caráter do

discurso, por exemplo, na definição da palavra como sinal, onde estão envolvidos o emissor e

o receptor. É através do sinal linguístico que o falante expressa algo ao ouvinte. Para que haja

um bom entendimento entre as partes ambos devem entender o sinal da palavra. Mas pode

bem haver casos em que o falante deseja enganar o ouvinte através dos sinais apontando-os

para outra coisa. (De Magistro, I-II, p.328-332). O retórico pode manipular o discurso de

acordo com a sua vontade, transmitindo uma falsa ou verdadeira percepção da realidade aos

seus ouvintes. Ainda que, não seja marcante a influência de Aristóteles nas obras de

Agostinho, como o foi em relação a Tomás de Aquino, tanto Aristóteles quanto Agostinho

rejeitam a mentira, para ambos nunca é licito mentir. Para Aristóteles a mentira é demonstrada

como uma disposição de caráter _a verdade é um princípio de caráter e a mentira um desvio

de caráter_ enquanto para Agostinho como um pecado que não deve ser cometido.

Aristóteles analisa o tema da mentira na obra “Ética a Nicômaco” no Livro IV (1127a,

15-30 e 1127b, 5-30), como uma condenação por violar um princípio ético, a verdade é nobre

e merece elogio e a mentira é desprezível. E a falsidade é em si mesma vil e culpável; e a verdade, nobre e digna de louvor. Portanto, o homem veraz é mais um exemplo daqueles que, conservando-se no meio-termo, merecem louvor; e ambas as formas de homem inverídico são censuráveis, mas particularmente o jactancioso. (ARISTÓTELES, 1979, p.114, 1127a-30, grifos do tradutor).

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No capítulo IV, seção 7, Aristóteles distingue o homem jactancioso29 do homem

falsamente modesto, mediante o modo como buscam a verdade ou falsidade tanto em atos

como em palavras, bem como mediante o modo como tratam suas pretensões

(ARISTÓTELES, 1979, p.114, 1127a- 20). O jactancioso se glorifica daquilo que não possui

ou enfatiza o que possui, enquanto o falsamente modesto, ao contrário, nega ou amesquinha o

que possui (ARISTÓTELES, 1979, p.114, 1127a- 20).

Aristóteles aceitava duas maneiras de mentir: a que diminui a verdade e a que aumenta

a verdade. Sob esse pensamento estipula duas espécies principais de mentira: a jactância (o

exagero da verdade) e a ironia (a diminuição da verdade). Essas duas categorias de mentiras

não se referem, no entanto, as relações de negócios ou de justiça. Nesses casos, não se

tratariam de mentiras, mas de defeitos graves como a traição e a fraude. (Abbagnano, 1974,

p.775). O homem veraz tem em si a verdade como princípio de caráter, ele é veraz tanto em

palavras como na vida que leva. Esse homem é digno de louvor, pois ele evita a falsidade.

Neste caso não se refere a alguém que é verdadeiro no que diz respeito a matéria de justiça ou

injustiça, uma vez que estes se enquadram em uma virtude diferente, mas de quem é

verdadeiro na fala e na forma como ele vive porque faz parte de seu caráter. Não estamos falando daquele que cumpre a sua palavra nas coisas que dizem respeito à justiça ou à injustiça (pois isso pertence a outra virtude), mas do homem que, em assuntos onde nada disso está em jogo, é veraz tanto em palavras como na vida que leva, porque tal é o seu caráter. Sem embargo, uma pessoa dessa espécie será naturalmente equitativa, porquanto o homem que é veraz e ama a verdade quando não há nada em jogo deve sê-lo ainda mais quando vai nisso uma questão de justiça. Evitará a falsidade em tais casos como algo de ignóbil, visto que a evitava por si mesma; e tal homem é digno de louvor. E inclina-se mais a atenuar a verdade isso lhe parece de mais bom gosto, porquanto os exageros são tediosos. (ARISTÓTELES, 1979, p.114, 1127b-5).

As virtudes de caráter são aquelas que predispõem o homem para expressar a verdade

através do raciocínio, fazendo com que esse homem virtuoso rejeite as mentiras e enganos.

Essas são virtudes que anseiam o que é razoável, integrando sabedoria teórica e sabedoria

prática. Aquele que é virtuoso tem senso de justiça e coragem para enfrentar a verdade. O

homem virtuoso é sincero nas relações com as demais pessoas e estas o estimam por suas

qualidades. Esse homem veraz não mente e diz a verdade como ela realmente é, porque seu

caráter é assim, e este não recomenda a mentira.

29 Aristóteles na Ética a Nicômacos utiliza muito a expressão “jactancioso”, no Dicionário Online Priberam da Língua Portuguesa o termo “jactância” define-se por: bazófia; vanglória; soberba; ufania; arrogância; amor-próprio. Fonte: http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=jact%C3%A2ncia.

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Para Aristóteles o homem é jactancioso em razão do propósito a que ele se presta, é

uma disposição de caráter que o faz como o é. Do mesmo modo, os mentirosos, porque eles

mentem pelo prazer de mentir e não necessariamente por algum benefício ou lucro, trata-se de

algo intrínseco a eles, como definidor de caráter. Com efeito, não é a capacidade que faz o jactancioso, mas o propósito, pois é em virtude dessa disposição de caráter e por ser um homem de determinada espécie que ele é jactancioso; assim como um homem é mentiroso porque se deleita com a mentira em si mesma e não porque deseje a reputação ou o lucro. (ARISTÓTELES, 1979, p.114, 1127b-15). ... enquanto os que visam ao proveito se atribuem qualidades valiosas para os outros, mas cuja inexistência não é fácil descobrir, como as de um vidente, de um sábio ou de um médico. (ARISTÓTELES, 1979, p.114, 1127b-20).

Compreendemos por esses dois fragmentos do texto aristotélico a existência de dois

significados para homem falso. No primeiro vemos aquele homem que diz o falso pelo falso,

simplesmente por amor ao falso. No segundo refere-se a aquele homem que produz imagens

falsas, ele deseja que os outros creiam nas suas falsidades e que as adotem como verdade.

Conforme Aristóteles mentir é errado, mas mesmo esse erro pode ser abrandado. “Se,

porém, o faz com um fim qualquer, aquele que o faz visando à boa reputação ou à honra não é

(para um jactancioso) digno de grande censura; mas o que o faz por dinheiro, ou pelas coisas

que levam à aquisição de dinheiro, é um caráter detestável.” (ARISTÓTELES, 1979, p.114,

1127b-10). Não ser digno de grande censura não é a mesma coisa que ser tolerável.30 Nesse

sentido ele estipula uma gradação para a mentira conforme a sua gravidade e distingue as

mentiras em duas espécies, as menos censuráveis e as mais censuráveis. As mentiras do tipo

menos censurável são aquelas que a intenção visa à honra ou boa reputação. As mentiras do

tipo mais censurável têm em vista alguma vantagem pecuniária ou envolvem dinheiro. Para

Aristóteles embora os dois tipos se diferenciem na gravidade, não deixam de ser mentira,

sendo sempre recrimináveis. A gradação se apresenta quanto ao propósito da mentira se é para

angariar reputação ou honra é menos grave do que para angariar dinheiro, por exemplo. As

pessoas que são satisfeitas com a falsidade (como meio) o fazem em razão de seus propósitos

(os fins) e não da potencialidade. Uma pessoa é jactanciosa em virtude da disposição de sua

alma, da mesma forma que algumas pessoas são mentirosas simplesmente porque gostam de

mentir. Aqueles que mentem o fazem por diversas razões, alguns em seu próprio benefício ou

30 A respeito do termo tolerável e intolerável, em um ambiente jurídico o tolerável pode ser admitido a exemplo das contravenções, são erradas, mas não são crimes (é uma infração penal), uma espécie mais tolerável e, portanto sua pena é diferenciada. A contravenção é tolerável, mas censurável, os termos são compatíveis, no texto aristotélico os termos parecem ser incompatíveis, a mentira é intolerável e censurável.

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quando exageram sem motivo, outros por causa da popularidade de honra ou do ganho (não

monetário), mas a mentira mais reprovável é aquela que envolve o dinheiro. Todos os

mentirosos são viciosos e repreensíveis, mas os vaidosos e os prepotentes são piores. O

modesto, que esconde ou diminui suas qualidades, parece simpático, pois, ele mente para

fugir do exagero, já o jactancioso prefere a mentira à verdade. (ARISTÓTELES, 1979, p.114,

1127b-30). 31

A mentira ainda que seja repreensível somente e não digna de maior censura, ainda

assim é intolerável para Aristóteles. Diante disso parece não haver diferença definitória, pois

ambas as situações (mais ou menos censuráveis) tratam-se de mentiras, embora um tipo seja

mais grave e o outro tipo mais leve, igualmente são mentiras e logo dignas de censura. Assim,

tanto para Aristóteles quanto para Agostinho, mentir é sempre ruim.

1.4 O tratamento filosófico da mentira depois de Agostinho

Diversos filósofos contemporâneos referem-se a Agostinho ao tratar do tema da

mentira, e utilizam suas obras como fonte de referência. Porém, nenhum deles aprofunda e

analisa de forma tão exaustiva e detalhada tal assunto quanto Agostinho o fez. Enquanto que é

visível a influência de Platão sobre seu trabalho, as obras de Agostinho, por seu turno,

inspiraram autores de renome no mundo moderno, por exemplo, Kant. Sobre esse assunto

lembramos ainda autores contemporâneos que citam Agostinho ou que notavelmente sofreram

influência de suas ideias, tais como Jacques Derrida e Sissela Bok. A influência da teoria

agostiniana não se deu sempre, por exemplo, Kant e Benjamim Constant protagonistas de

uma célebre disputa em torno da moralidade da mentira, são tais que um deles bane toda e

qualquer mentira enquanto o outro a aceita exceções considerando-as benéficas ou toleráveis

em determinadas situações.

Kant foi o autor moderno que mais se aproximou da doutrina agostiniana da mentira,

pois ambos rejeitam todo e qualquer tipo de mentira considerando-a como uma prática imoral,

e por tal motivo que as ideias de Kant ganharão destaque na presente seção. Assim,

trataremos a seguir na Subseção 1.4.1, da análise da mentira a partir da teoria kantiana, e na

Subseção 1.4.2, da polêmica discussão entre Kant e Benjamim Constant a respeito do direito

de mentir.

31 Para Aristóteles as pessoas sinceras somente irão divergir da verdade se for para atenuá-la, nunca como uma forma de exagero, pois todo exagero é desagradável.

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1.4.1 Immanuel Kant

Kant manteve uma constante preocupação com a ética e a tratou como uma questão

fundamental, abordada ao longo de toda a sua trajetória filosófica. Segundo Loparic (2006) a

discussão kantiana da mentira no contexto da filosofia prática a priori iniciou-se em 1785,

com a publicação da obra “Fundamentação da metafísica dos costumes”. Depois, ele se

manifesta sobre a questão em várias de suas obras como, por exemplo: “Sobre o fracasso de

todas as tentativas filosóficas na teodicéia” (1791) “A Paz Perpétua” (1795), “Princípios

Metafísicos da Doutrina da Virtude” (1797), além do opúsculo “Sobre um pretenso direito de

mentir por amor aos homens” (1797).

Vejamos um breve prospecto de cada obra supracitada:

1. Fundamentação da metafísica dos costumes: Nesta obra Kant enuncia a lei moral a qual especifica o nosso dever fundamental, na forma do seguinte imperativo: eu não devo jamais proceder nas minhas ações a não ser de modo a poder querer que a minha máxima deva tornar-se lei universal, mandamento dirigido por mim mesmo (enquanto ser racional-prático, numenal) a mim mesmo (enquanto ser sensível-prático, fenomenal). (Kant 1785, p. 18 apud Loparic 2006, p.57).

À enunciação dessa meta regra seguem-se vários exemplos de regras (máximas) não

obedecem a esse imperativo, devendo, portanto, ser consideradas imorais e rejeitadas, entre

elas está a que diz ser permitido fazer uma promessa mentirosa, ou seja, aquela promessa feita

com o propósito de não ser cumprida.

2. Sobre o fracasso de todas as tentativas filosóficas na teodicéia. Neste pequeno tratado, Kant afirma que resistir ao pendor de defender Deus por meio de uma teodicéia é exigir “a sinceridade no reconhecimento da incapacidade da nossa razão, bem como a probidade para não falsificar os pensamentos em enunciados, mesmo quando isso acontece na mais piedosa das intenções”. A sinceridade deve ser vista como “a exigência principal nos assuntos da fé, em contraposição ao pendor para a falsidade e a impureza, que é o principal crime da natureza humana” (Kant 1791, p.218 apud Loparic 2006, p.58). Mente aquele que aceita como verdadeiro aquilo que não é objeto da sua consciência intelectual. Também mente quem diz aos outros que acredita em algo assim. Tal espécie de mentira é a mais criminosa de todas, “visto que solapa o fundamento de todo e qualquer propósito virtuoso, a sinceridade”. (Kant 1791, p.221 apud Loparic 2006, p.58).

Kant procura nesse texto argumentar sobre a “defesa de Deus”, ou seja, a defesa de

Deus diante da constatação do mal no mundo, e para isso supõe uma necessidade moral e

realiza uma série de críticas à teologia racional.32 Para ele a doutrina do livre-arbítrio implica

no distanciamento da obediência a uma lei outorgada ao homem externamente. E, portanto,

32 Para fundamentar sua argumentação Kant utiliza por base uma sequência de três perguntas: “O que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar?”.

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baseia a liberdade em uma suposta auto legislação da razão, e, assim, afasta a necessidade de

uma autoridade transcendente (incognoscível), como fundamento da moral. 3. À paz perpétua: A condição prática moral para a paz perpétua na república das letras é a aceitação universal do princípio da veracidade ou, inversamente, a proibição total da mentira em assuntos teóricos: “Tu não deves mentir (nem mesmo na mais piedosa das intenções)” (Kant 1795, p. 504 apud Loparic, 2006, p.60).

Neste ponto em particular, Kant demonstra que não se deve mentir sobre o supra sensível.

E em continuidade retoma sua tese exposta em “Sobre o fracasso de todas as tentativas filosóficas

na teodicéia” ao dizer que a mentira é o “crime principal” afirmando ser ela “a mancha podre da

natureza humana”. (Kant 1791, p.218 apud Loparic, 2006, p.60). Em “A paz perpétua”, Kant

reflete sobre a mentira na política e objetiva proibir a restrição da aplicabilidade de um tratado

de paz pelas condições factuais, ou seja, não permitir a falta de sinceridade quanto à intenção dos

regentes ao buscarem o bem político supremo, e assim evitar guerras, sejam elas internas ou

externas. 4. Princípios metafísicos da doutrina da virtude:33 Mas a comunicação dos próprios pensamentos a alguém mediante palavras que, entretanto (intencionalmente), contêm o contrário daquilo que pensa o discursador34 sobre o assunto, constitui um fim diretamente oposto ao natural propósito da faculdade do discursador de comunicar seus pensamentos e constitui, assim, uma renúncia por parte dele à sua personalidade, e um tal discursador é uma mera aparência enganosa de um ser humano, não um ser humano ele próprio. (MDC, 2003, p.271).

É nesta obra que Kant irá determinar com toda clareza o lugar sistemático dos

conceitos de veracidade e de mendacidade na sua filosofia prática. A veracidade das

declarações é definida como dever de virtude de um ser humano consigo mesmo e este dever

se opõe aos vícios da mentira, avareza e falsa humildade (MDC, 2003, p. 270). A maior

violação desse dever é a mentira considerada no sentido moral, isto é, como um vício moral, e

definida como “inverdade intencional na manifestação dos pensamentos”. (MDC, 2003, p. 271).

Quem se deixa dominar por esse vício rejeita e, por conseguinte, aniquila a dignidade da

humanidade da própria pessoa, porque um homem que “não crê ele próprio no que diz ao outro

(mesmo que o outro seja uma pessoa simplesmente ideal) tem menos valor do que se fosse uma

mera coisa” (MDC, 2003, p. 271).

5. Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens: A mentira, portanto, simplesmente definida como uma declaração deliberadamente não-verdadeira feita a um outro homem, não precisa do suplemento que teria de prejudicar a outrem, como os juristas o exigem para sua definição (mendacium est falsiloquium in praeiudicium alterius). Pois, ela sempre prejudica outrem, mesmo que não a um outro homem,

33 Esse título é parte da obra kantiana “A Metafísica dos Costumes” ao qual está dividida em duas grandes partes, a parte primeira referente aos “Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito”, e a parte segunda referente aos “Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude”. 34 Neste ponto admitimos que uma tradução mais acertada fosse o termo “falante” e não “discursador”.

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pelo menos sim a humanidade em geral, na medida em que torna inutilizável a fonte do direito. (PUENTE, 2008, p.74)

Em 1797 Constant, no capítulo 8 do seu livro “Des réactions politiques” (Das reações

políticas) propõe, de maneira indicativa, princípios da política e da moral. E no decorrer de sua

obra apresenta uma crítica à concepção kantiana do princípio da veracidade. A objeção principal

era a de que se adotássemos o dever de dizer a verdade como um dever absoluto,

incondicional, a sociedade humana tornar-se-ia simplesmente impossível. Em contrapartida no

mesmo ano, Kant escreve uma resposta para as críticas de Constant no artigo “Sobre um pretenso

direito de mentir por amor aos homens” 35. Nesse texto ele sustenta em especial a tese de que

dizer a verdade em todas as asserções é um sagrado mandamento da razão, e um dever ético

que não comporta nenhuma exceção à regra.

Após apresentar uma breve menção das obras kantianas na referência à mentira

depreendemos que para Kant a mentira foi uma questão recorrente e relevante em suas obras.

Ao longo dos séculos, o problema ético da mentira recebeu diferentes tratamentos no

pensamento ocidental. Representante exemplar da tradição católica, Agostinho rejeitou todo e

qualquer tipo de mentira, não aceitando nenhuma justificativa para tal coisa. Tanto Agostinho

quanto Kant examinam a mentira no âmbito da ética de princípios. Agostinho afirma que usar

a palavra para enganar outros homens através da mentira e não para transmitir seus

pensamentos é um uso condenável do dom da palavra. Enquanto Kant vai além dizendo que a

mentira leva ao aniquilamento da dignidade humana.

A ética deontológica concentra-se no cumprimento de uma norma justa de conduta e

Kant seguia uma visão ética rigidamente deontológica. Ele sustentava que temos deveres

incondicionados, entre os quais o de não mentir em nenhuma circunstância, ainda que as

consequências de dizer a verdade sejam, aparentemente, piores. A veracidade é um dever

absoluto que deve ser aplicado em todas as circunstâncias, pois é totalmente incondicionado,

e não pode admitir a menor exceção, ou seja, é uma regra que, por sua própria essência, não

tolera nenhuma exceção. Sabemos que existe uma hierarquia de valores em que a vida é

considerada um bem maior, tanto do ponto de vista ético quanto jurídico. Nesse sentido Kant

parece não considerar essa hierarquia na sua concepção de deveres incondicionados, porque

aduz não haver exceções a uma regra absoluta de que não devemos jamais mentir seja por

qualquer questão ou hipótese. Assim sendo, de igual forma não se deve matar, mesmo que

35 KANT. [1797]. “Über ein vermeintliches Recht aus Menschenliebe zu Lügen”. Tradução para o português in: Puente 2002, pp. 71-81.

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seja para evitar que outro o mate. Isso seria admitir até que a legítima defesa não seria válida,

caso se siga essa consequência lógica inevitável.

É nesse contexto que Kant apresenta o seguinte exemplo envolvendo a mentira:

Um dono de casa ordena ao seu criado que diga “ele não está em casa”, se um certo indivíduo perguntar por ele. O criado assim procede e, como resultado, seu senhor sai furtivamente de casa e comete um grave crime que, de outra maneira, teria sido impedido pelo policial enviado para prendê-lo. Quem (de acordo com princípios éticos) é culpado neste caso? Certamente também sobre o criado, que violou um dever para consigo mesmo por meio de uma mentira, cujos resultados sua própria consciência lhe imputa. (MDC, 2003, p.273, grifo nosso) 36.

No entendimento de Kant a mentira do criado, ilustrada no exemplo acima, demonstra

uma violação de um dever moral básico e não uma infração jurídica especificando, inclusive,

que a punição adequada para ele é, o remorso em primeiro lugar, e não uma perseguição

judicial. A punição para a mentira tomada no sentido moral é o auto desprezo e o desprezo

dos outros. Já no sentido jurídico, a punição da mentira restaria a termos da lei do direito civil,

que no campo jurídico consiste em uma espécie de compensação ou ressarcimento dos danos

causados. Conforme Kant o conceito de mentira é sinônimo de um vício moral, e pertence à

doutrina da virtude e não à doutrina do direito. Ela denota um crime contra a humanidade na

própria pessoa, e contra os direitos de outras pessoas. Assim sendo, a mentira não apenas

nunca é uma virtude, como é sempre uma falta, sempre um crime, sempre uma indignidade.

Para Kant, deve-se zelar pelo cumprimento do dever de veracidade. Admitir como regra a

permissão de mentir seria entrar no jogo do mentiroso, e no caso de mentir por um assassino,

pior ainda, seria cometer um crime antes mesmo de ele cometer o dele. Quem coage de

maneira ilegal a fazer declarações deve ser punido em termos de lei e não enganado por meio

de mentira, isto é, por meio de outro crime. 37

36 É notável a semelhança do exemplo adotado por Kant com os exemplos fornecidos por Agostinho. A provável inspiração para tal exemplo estaria no De Mendacio, Capítulo XIV, Seção 23. 37 Tomada essa noção, notamos que o entendimento kantiano a respeito da mentira também serviu de base norteadora para o desenvolvimento de preceitos éticos inseridos na legislação brasileira. Colacionamos por exemplo o decreto nº 1.171/94 que aprova o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal: “Capítulo I - Seção I - Das Regras Deontológicas - VIII - Toda pessoa tem direito à verdade. O servidor não pode omiti-la ou falseá-la, ainda que contrária aos interesses da própria pessoa interessada ou da Administração Pública. Nenhum Estado pode crescer ou estabilizar-se sobre o poder corruptivo do hábito do erro, da opressão ou da mentira, que sempre aniquilam até mesmo a dignidade humana quanto mais a de uma Nação.” O dispositivo demonstra a observância de um princípio ético em relação à obrigação da veracidade, ou seja, de não faltar com a verdade, falsear ou omitir a verdade em ambiente público. Isso ocorre devido ao motivo de que todas as pessoas possuem o direito à verdade de forma igualitária, mesmo que não seja do interesse do agente público dizer a verdade ou até mesmo quando este deseja induzir alguém a erro, ele terá o dever para com o público em geral ou com a Administração Pública que o remunera. Esse dever como prescrevia Kant existe pela razão de que ao deixar de cumpri-lo tal fato resultará na corrupção não só da pessoa envolvida, mas da dignidade humana como um todo, alcançando até mesmo a Nação.

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Segundo Kant, um indivíduo não deve mentir em hipótese alguma, pois a mentira

pode induzir o ouvinte a praticar determinada ação que não corresponde à sua vontade e sim à

vontade daquele que proferiu a sentença não verdadeira, privando o ouvinte de fazer uso da

sua total liberdade de ação, isto é, violando o conceito de direito como um todo e violando o

direito do ouvinte de saber a verdade. Verdade é sempre pensar de acordo consigo próprio, e

mentir é entrar em desacordo consigo mesmo. Esse desacordo promove o rebaixamento da

dignidade humana. Portanto em Kant, a ideia de verdade está ligada à ideia de dignidade, e

esta à ideia de autonomia, à disposição de sempre entender e se colocar na posição do outro.

1.4.2 O direito de mentir: a discussão entre Benjamim Constant e Immanuel Kant

Constant, no seu livro “Das reações políticas” (Des réactions politiques) (1797), no

capítulo 8 escreveu “Dos princípios” 38, e Immanuel Kant, em contrapartida respondeu com

um ensaio intitulado “Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens” 39 (Über ein

vermeintliches Recht aus Menschenliebe zu Lügen) (1797). É interessante notar que a referida

polêmica destaca naquele dado momento histórico a problematização de um assunto posto até

então em segundo plano. Antes não se discutira a posição tradicional do pensamento

ocidental, a qual somente Agostinho e Kant haviam sustentado, a saber, aquela que observava

sem qualquer inconsistência o dever absoluto da veracidade. Constant ao se referir

provavelmente a Kant ao mencionar em seu texto “um filósofo alemão” (PUENTE, 2002,

p.78), desenvolve seus argumentos contra tal dever. Kant ao tornar-se ciente disso, parece ter

considerado que a menção feita por Constant dispensava qualquer referência nominal, sendo

dirigida a ele. 40

Como vimos Kant é rígido ao recriminar a mentira em todas as suas formas, não

restando qualquer brecha ou exceção à regra, mínima que seja. A mentira de qualquer tipo não

é tolerada, seja em benefício próprio, seja em favor de terceiros. Constant ao escrever sua

crítica, ataca diretamente a esse princípio moral de dizer a verdade, de forma absoluta,

estabelecendo que a sociedade se tornaria impossível caso essa regra fosse estabelecida. A

principal objeção de Constant é justamente a questão da relativização da veracidade, e é nisso

que ele baseia toda a sua argumentação, na crítica direta ao dever de dizer a verdade como um

dever absoluto e incondicional, culminando na opinião de que se tal princípio fosse seguido a 38 CONSTANT, B. [1797]. Des principes. In: Boituzat, F. Un droit de mentir? Constant ou Kant. Paris: PUF, 1993, pp. 102-112. Tradução brasileira in: Puente 2002, pp. 59-70. 39 KANT. [1797]. “Über ein vermeintliches Recht aus Menschenliebe zu Lügen”. Tradução brasileira in: Puente 2002, pp. 71-81. 40 Há interpretações segundo as quais a crítica não era dirigida a Kant.

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sociedade tornar-se-ia simplesmente impossível. Isso significaria dizer que as exceções feitas

ao dever de veracidade constituem uma, entre outras, condições necessárias da sociabilidade.

Ele também considerava um absurdo a ideia de que nunca seria possível mentir, nem para

proteger a vida de alguém. Partindo desse pressuposto Constant não só contraria totalmente a

doutrina kantiana como a agostiniana a respeito da mentira. Assim como Kant, Agostinho

rejeita a todo e qualquer tipo de mentira, não aceitando nenhuma justificativa ou exceção para

tal coisa, pois, considera que os mentirosos põem em perigo suas almas imortais.

Ao divergir quanto a seguir um princípio de veracidade ou a um suposto direito de

mentir, cada autor defende uma maneira através das quais os indivíduos poderiam praticar

ações moralmente boas. Enquanto Kant acredita que os indivíduos não têm direito de mentir,

Constant defende que devemos dizer a verdade quando o ouvinte tiver direito a ela. As

argumentações de cada um deles são baseadas na concepção que cada um deles têm da

natureza do direito, isto é, a questão que se discute é se o indivíduo tem ou não o direito de

mentir.

Neste sentido Constant afirma que "Dizer a verdade só é, portanto, um dever, em

relação àqueles que têm direito à verdade. Ora, nenhum homem que prejudica os outros tem

direito à verdade." (PUENTE, 2002, p.68). Isso faz com que Constant restrinja a obrigação

moral de que alguém só diga a verdade em relação à determinadas pessoas. Assim, considera

que a verdade torna-se algo moralmente indesejável quando sua enunciação é capaz de trazer

consequências ruins a alguém, vindo a prejudicar quem a proferiu ou ao próximo. Trata-se das

situações em que o ato de dizer a verdade pode favorecer a ocorrência de um mal que a

mentira poderia ter evitado. Conforme Constant, um princípio para se tornar aplicável tem

que ser estar vinculado à outro princípio, o vínculo que o unia a um outro princípio, e a

reunião dos dois princípios nos fornecer a solução do problema, o que exige em tese uma

modificação do princípio da verdade no que tange à especificação de casos de exceção, isto é,

de combinações de fatos às quais esse princípio não se aplica. Kant contrapõe que a expressão

ter "direito à verdade" é desprovida de sentido, e seria melhor substituí-la por "todo homem

tem direito à sua própria veracidade" ou verdade em sentido subjetivo. (PUENTE, 2002,

p.73). Dessa forma, toda pessoa que mente deve trazer para si as consequências boas ou más

que seu ato possa provocar, seja moral ou juridicamente.

A partir disso, Kant suscita outras duas questões:

1. A primeira questão é se o homem, nos casos em que não pode se abster de responder com “sim” ou com “não”, tem a autorização (o direito) de ser inverídico.

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2. A segunda questão é se ele não estaria mesmo obrigado a ser inverídico, em uma certa declaração a que é forçado, por uma violência ilegítima, a fim de impedir um crime ameaçador para ele ou para um outro. (PUENTE, 2002, p.73)

Para Kant não pode haver uma particularização, todos indistintamente têm um direito

à verdade. A moralidade kantiana não discrimina pessoas, tudo o que nós é moralmente

exigido em relação a uma pessoa, em uma dada circunstância, também é moralmente exigido

em relação a qualquer outra pessoa na mesma circunstância. Até mesmo um criminoso prestes

a cometer um crime que poderia ter sido evitado ou ao menos não favorecido, caso alguém lhe

dissesse um mentira (PUENTE, 2002, p.75). Primeiro, porque se trata aí de uma formulação imprecisa, na medida em que a verdade não é um bem ao qual o direito possa ser outorgado a alguém, mas negado a um outro, e, sobretudo, porque o dever de veracidade (já que é só dele que tratamos aqui) não faz nenhuma distinção entre pessoas em relação às quais se tem esse dever, ou em relação às quais também se pudesse isentar dele, isso porque é um dever incondicional, válido em todas as circunstâncias. (PUENTE, 2002, p.78).

De acordo com Kant, o erro de Constant estaria em atribuir ao indivíduo um suposto

direito à verdade, pois a verdade é uma questão lógica e objetiva e não psicológica e

subjetiva, isto é, a verdade não é algo subjetivo que pode pertencer ou não a determinado

indivíduo, ela é por si própria. Para Kant a mentira, enquanto violação do dever ético é um ato

indigno, merecendo desprezo e, no sentido jurídico ela deve e pode ser punida pela lei. A

mentira é sempre algo ruim, “Pois, ela sempre prejudica outrem, mesmo que não a um outro

homem, pelo menos sim a humanidade em geral” (PUENTE, 2002, p.74). Por pior que seja o

dano que a verdade causará, ela terá que ser dita mesmo em uma situação de risco ou

necessidade. Caso após ser proferida a verdade ocorra um dano, este será resultante do acaso e

não por causa do veraz, a responsabilidade pelo ato nunca cairá sobre quem foi verdadeiro. Da

mesma forma opina Agostinho sobre o assunto, se não for possível se calar ou abster-se de

uma resposta, diga a verdade, porque quem comete o assassinato ou o mal maior não é o

delator que proferiu a verdade, sob quem é verdadeiro não recairá punição.

Ao contrário da ética deontológica kantiana, Constant, em sua visão ética teleológica,

acredita não haver deveres éticos ou jurídicos incondicionados. Não devemos mentir por

apenas uma questão de honra, mas quando o ato de “dizer a verdade” afetar gravemente um

valor mais elevado do que a honra. A exemplo, podemos citar que, se dizer a verdade

acarretasse a nossa própria morte ou a de outra pessoa, nesse caso seria moralmente

compreensível segundo Constant a exceção à verdade. Na medida em que Constant aceita

uma regra de conduta universal, ele também admite exceções em que a mentira é moralmente

aceitável. Não há uma rejeição do princípio moral da veracidade, mas uma demonstração de

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que há casos que poderão ocorrer exceções. Essas exceções devem ser admitidas para que não

se torne inviável a sociabilidade, fazendo com que seja evitada essa consequência indesejável.

Os juristas afirmam que não há princípio que não esteja sujeito a algum tipo de

exceção, como bem diz a conhecida frase no meio jurídico: “para cada regra há a sua

exceção”. Esse campo em específico baseia-se principalmente pela experiência prática na

aplicação de certos casos concretos. Na axiologia jurídica há uma hierarquia de bens jurídicos

em que um está em patamar mais elevado do que outro, como o caso entre o direito à honra e

o direito à vida. Constant parece fundamentar suas objeções numa ponderação de

consequências das ações, onde o princípio de veracidade comporta exceções sempre que dizer

a verdade acarreta consequências mais danosas e indesejáveis do que dizer uma mentira. Ao

julgar que a violação desse princípio fosse realizada sob determinadas circunstâncias,

provavelmente a idealizou na tentativa de reduzir efeitos maléficos futuros, porque manter

neste caso tal princípio da veracidade significaria produzir um mal maior do que mentir.

No direito brasileiro, tanto na esfera penal quanto na civil a todos são assegurados o

acesso à ampla defesa41, este princípio ampara a possibilidade de se defender e a de recorrer.

O chamado “direito de mentir”, mais especificamente tratado na matéria processual penal,

permite que o acusado tenha assegurada à ampla defesa, por isso, ao permanecer calado em

juízo, ocultando informações, está exercendo seu direito de defesa e, assim, não pode ser

punido. Conjuntamente é aplicado o princípio "nemo tenetur se detegere" que é o direito de

não produzir prova contra si mesmo e está consagrado pela Constituição Federal, assim como

pela legislação internacional na convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto de São

José de Costa Rica42, que assegura “o direito de não depor contra si mesmo, e não confessar-

se culpado”. Ambos se apresentam como um direito mínimo do acusado, sendo de

fundamental importância seu cumprimento, pois este é um direito fundamental do cidadão. A

problemática sobre a natureza do ato de mentir em juízo, como meio de autodefesa,

permanece quando o acusado é interrogado em processo-crime, e encontra-se amparado no

princípio da não auto incriminação. Assim, a mentira seria legitimada pelo direito da ampla

defesa, e equivaleria a dizer que o acusado teria o “direito de mentir”, mesmo que nós

saibamos que a mentira nunca poderia ser elevada a classe de direito, no máximo seria dito

41 Art.5º,LV, CF/88: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”. 42 A Convenção Americana de Direitos Humanos, de 22/11/1969, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, foi ratificada pelo Brasil em 25/09/1992 e promulgada por esse mesmo país através do Decreto nº 678, de 06/11/1992. O direito de não produzir provas contra si mesmo está disposto no art. 14. 3, g, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no art. 8º, 2, g, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

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um falso direito. Todos têm direito à verdade, essa exclui, de forma absoluta, a mentira, não

permitindo que esta seja alçada à condição de direito.

Assim, após serem tecidas as primeiras considerações a respeito das noções iniciais

propostas a partir de uma possível interpretação da mentira na visão dos filósofos antigos e

por consequencia das questões posteriores que foram ensejadas ou reinterpretadas por

filósofos modernos e contemporâneos, passamos a tratar propriamente da noção agostiniana

de mentira.

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2 A ANÁLISE AGOSTINIANA DA MENTIRA

2.1 As obras de Agostinho sobre a mentira

Em razão de sua notável arte retórica e seu estilo filosófico, Agostinho desenvolveu

uma forma especial de examinar tanto a caracterização quanto a moralidade da mentira

realizando o que talvez nenhum autor tenha feito antes dele e poucos o tenham feito depois

dele. Agostinho, embora mencione a mentira em algumas de suas obras tais como Confissões,

Solilóquios, Retratações e De Magistro (Do Mestre), trata particularmente do referido tema

nos opúsculos De Mendacio (Sobre a Mentira) e Contra Mendacium (Contra a Mentira).

a) A mentira nos Solilóquios (387)

Agostinho, nas suas reflexões, percebe no interior de sua alma uma dualidade e se

submete como discípulo da razão a buscar as verdades que anseia. Nos “Solilóquios”,

sustenta, com insistência e de maneira argumentativa, tanto a existência da verdade como a

nossa capacidade de alcançá-la.

Já ao discorrer sobre a falsidade, ele proporá que o engano não se encontra nas coisas,

mas na adesão da alma ao aparente. “São as imaginações que devem ser evitadas com grande

precaução; elas resultam enganosas, variando conforme se mude o espelho do pensamento, ao

passo que a face da verdade permanece una e imutável”. (Solilóquios, II, XX, 35, p.105). A

alma daquele que mente não é íntegra. “Coragem. Como já sentimos, Deus estará presente

conosco que procuramos, o qual promete sem mentira alguma, para depois deste corpo, outro

felicíssimo e pleníssimo da verdade” (Solilóquios, II XX, 36, p. 106). Quem concorda com a

percepção enganosa é a alma ao atuar através dos sentidos. Aquele que é enganado, não é

quem não vê coisas falsas, mas quem aprova coisas falsas. (Solilóquios, II, III, 03, p.61). — R. Mas se dizes que nada é verdadeiro por si, não temes que disso se conclua que nada existe por si? Assim como isto é madeira, assim também é verdadeira madeira. Nem pode ser que seja madeira por si mesma, isto é, que seja madeira e não o seja de verdade, se não houver quem a conheça. — A. Então, assim afirmo e defino — nem temo que minha definição seja tachada de demasiado breve: na minha opinião, verdade é aquilo que é. — R. Portanto, nada será falso, porque aquilo que é, é verdadeiro (Solilóquios, II, V, 8, p.67).

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O homem deve admitir a verdade; para Agostinho a verdade pertence à natureza do

homem, à sua essência. Mas pode haver casos em que incorremos no engano confundindo o

verossímil, que é assemelhado do verdadeiro, com o próprio verdadeiro.

b) A mentira no De Magistro (389)

Na obra De Magistro (Do Mestre) Agostinho destaca o verbo “ensinar”, alegando que

o mesmo possui um claro significado de comunicar um conhecimento. Para elucidar sua

proposta, no capítulo X ele destaca três interrogações que dão embasamento para a discussão

do ensinar/aprender:43

a) se é possível ensinar algo sem sinais; b) se havia sinais preferíveis às coisas que expressam; c) se o conhecimento das coisas pode ser melhor que os sinais. A partir de tais questionamentos Agostinho parece concluir que nada pode ser

ensinado claramente sem palavras. Ele mostra que nem mesmo o ensinar e o aprender podem

ser indicados pelo mero desempenho desses, mas só por alguma expressão. Para os estóicos

todas as palavras são ambíguas, pois eles viam que tinham significados variáveis de acordo

com o contexto e, por isso, elas não podem ser o elemento de junção entre o significante e o

significável, ou seja, as palavras em si não possuem um significado a não ser quando

constituem um enunciado. (Neves, 2005, p.90-93). Para Agostinho, ao contrário, aquela

junção ocorre sim na palavra. Há, portanto, uma mudança no foco da análise, passando do

enunciado para a palavra.

O papel da palavra é realizar, assim como faz o enunciado, uma junção entre o

significado e o significante quando apontado para um referente (objeto), mas se há uma

distância entre eles, não podemos, ao utilizar as palavras, expressar realmente aquela coisa,

mas outra. Iremos indicar um outro signo, ou talvez, uma outra realidade. Agostinho então

realiza uma adaptação do esquema estóico, reinterpretando a noção da palavra, como uma

portadora de sentido, mas incompleto. Assim todas as palavras são signos, já que “com as

palavras nada mais fazemos do que chamar a atenção” (De Magistro, I, p. 324).

A palavra vira então signo de algo, deixa de ser uma relação de substituição entre

palavra e coisa, e torna-se uma relação de indicação, como por exemplo, se alguém diz para

mim: “vejo fumaça!”, logo penso que essa expressão implica ou indica a presença do fogo.

Segundo Agostinho, as palavras não nos mostram as coisas de modo a possibilitar o nosso 43 Isso constitui o esquema da proposta de Agostinho para o ensinar/aprender a partir do De Magistro, p. 348.

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aprendizado, mas elas advertem ou nos lembram que busquemos a realidade. 44 As palavras,

em si mesmas e enquanto sinais, nada nos dizem. Elas cobram a referência à alguma

experiência pré-existente ou mesmo a intervenção de um processo intelectivo em busca de um

entendimento daquilo que é dito. (De Magistro, XII, p.350-351).

A mentira origina-se no conflito entre o conteúdo veiculado pelo signo e a intenção do

transmissor. O mentiroso tem uma ideia na mente que não corresponde ao que é expresso em

palavras ou outros signos. A mentira é mais que uma afirmação que não corresponde à

realidade. Conforme Agostinho, “Acrescenta o caso dos mentirosos e enganadores e

facilmente compreenderás que, com as palavras, eles não só não revelam, mas até ocultam o

pensamento”. (De Magistro, XIII, p. 354). No entendimento de Agostinho, qualquer forma de

comportamento, cuja função é fazer que outros formem crenças falsas ou privá-los de crenças

verdadeiras, caracteriza uma mentira.

c) A mentira nas Confissões (397-400)

No livro IX das Confissões, paradigmático quanto ao modo como entendia as relações

entre o discurso e a persuasão, Agostinho descreve como, após sua conversão, decide

abandonar a retórica como profissão por ser incompatível com sua nova crença religiosa. Ele

estava descontente por ser um “vendedor de frases”, e por consequência tal fato estava

comprometendo sua saúde (Confissões, IX, V, 13, p. 192-193).

Agostinho preconiza que a felicidade vem da verdade, e questiona o porquê dos

homens adotarem a verdade como algo que gera ódio, e o porquê eles têm inimizade com

aqueles que pregam a verdade, sem dissimular as palavras. Tais homens odeiam a verdade por

causa daquilo que amam em vez da verdade. Assim, odeiam a verdade, por causa daquilo que amam em vez da verdade. Amam-na quando os ilumina, e odeiam-na quando os repreende.45 Não querendo ser enganados e desejando enganar, amam-na quando ela se manifesta e odeiam-na quando os descobre. Porém a verdade castigá-los-á, denunciando todos os que não quiserem ser manifestados por ela. Mas nem por isso ela se lhes há de mostrar (Confissões, X, XXIII, 34, p.230, grifos do autor).

Para Agostinho a verdade está em Deus, para obter a verdade a mentira deve ser

afastada, pois as duas não podem coexistir. “Purificai os meus lábios46 e o meu coração de

44 Nesse ponto, Agostinho se valerá da influência do pensamento platônico, por exemplo, no Mênon, isto é, da questão da reminiscência (aprendizagem por meio da recordação). 45 Agostinho refere-se à passagem bíblica Jó 5, 35; 3, 20. 46 Êxodo 6:12.

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toda temeridade e mentira. Sejam as Sagradas Escrituras as minhas castas delícias. Que eu

não seja enganado nelas, nem com elas engane os outros”. (Confissões, XI, III, 3, p.255-256)

Ao examinar suas fraquezas e pecados, Agostinho presencia o esplendor da Verdade,

ao qual a humanidade tende a ofuscar com a mentira. Assim, percebe que o mediador para

conseguir reconciliar-se com Deus é Jesus Cristo. Na continuidade de seu processo crescente

de cristianização Agostinho, parece cada vez mais abominar o hábito dos cristãos usarem a

mentira para arrecadarem fiéis o que ele consideraria mais tarde a pior espécie de mentira. É

notável como as questões inquietantes a Agostinho se entrelacem no desenvolvimento de suas

obras, como a questão da mentira e a do mal e suas consequências. Após essas considerações

escreveria anos depois a obra “Cidade de Deus” (413-426) onde discorre dentre outros temas,

sobre as cidades dominadas pelo mal, na figura da mentira, desconfiança e engodo.

d) Tratados específicos sobre a mentira: De Mendacio e Contra Mendacium 47

A primeira obra exclusivamente referente à temática da mentira a ser escrita foi “De

Mendacio” (Sobre a Mentira), em 395, e vinte e cinco anos após “Contra Mendacium”

(Contra a Mentira), em 420. Um aspecto curioso na trajetória dos escritos sobre a mentira é

que Agostinho primeiramente mostrou-se insatisfeito com o resultado final do De Mendacio e

ordenou que fosse destruído. Felizmente sua ordem não foi cumprida e anos mais tarde após

uma nova revisão, julgou que possuía alguns aspectos relevantes e optou por conservá-la. 48

O tratado De Mendacio divide-se em duas partes: a primeira intitulada “Natureza e

malícia da mentira” (seções 2-17), e a segunda “Classificação das Mentiras”, (seções 18-43).

Em De Mendacio, Agostinho argumenta a impossibilidade em qualquer ocasião de uma

declaração conscientemente falsa não ser uma mentira. Para demonstrar seu argumento ele

inicia seu tratado desenvolvendo uma definição de mentira, e identifica no que ela consiste.

Após determinar que mentir é proferir uma falsidade com o propósito de enganar, ele parte

para questões mais complexas analisando se existem casos em que a mentira pode ter fins

nobres. Revela-se como uma tentativa de compreensão do estatuto moral da mentira, no que

tange a situações sobre a vantagem ou desvantagem em realizar o pecado da mentira em

oposição a evitar um sofrimento maior. A questão, então, exige uma exposição para saber se a 47 Há uma edição bilíngue latim-espanhol das duas obras no tomo XII – Escritos Morales – das Obras Completas de Sto. Agustín, pela Biblioteca de Autores Cristianos. Também há uma tradução inglesa das duas obras no sítio The Fathers of the Church, localizadas no endereço eletrônico: On Lying – De Mendacio: http://www.newadvent.org/fathers/1312.htm; To Consentius, Against Lying – Contra Mendacium: http://www.newadvent.org/fathers/1313.htm 48 Agostinho relata tal informação em sua obra “Retratações” (426-427). Livro I, XXVII (XXVI).

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mentira poderá ser utilizada como artifício para um propósito nobre, sem colher a condenação

bíblica. Embora muitos acreditem que é possível produzir engano a outro com a intenção de

alcançar um bem de tal forma que a falsidade mereça aceitação, nesse ponto Agostinho é

enfático na sua objeção e oferece diversos exemplos para demonstrar essa oposição. A partir

disso, conclui então que todas as declarações enganosas são mentiras, e, que não há casos em

que a mentira não seja um pecado, pois para ele uma mentira não resulta nunca um bem, mas

sempre um mal. A mentira é sempre pecado, o que seria variável é a gravidade desse pecado.

Para demonstrar essa gradação de gravidade ele divide a mentira em uma classificação de oito

diferentes tipos, das mais graves as menos graves. Agostinho recomenda que todos os tipos de

mentira devem ser evitados, e considera os enganos ocasionados em relação à doutrina

religiosa o mais hediondo tipo de mentira.

No tratado Contra Mendacium Agostinho expõe uma específica questão religiosa

doutrinária colocada por certos católicos espanhóis os quais estavam tendo problemas com

uma seita herética chamada de priscilianismo49. A crítica de Agostinho direcionava-se a esse

grupo que considerava a mentira como laudatória se usada para ocultar a verdadeira fé das

pessoas, e ao grupo católico que recorria a mentiras para procurar e capturar aqueles

considerados hereges. Seria o enredador caso de querer mentir com a finalidade de que o

mentiroso caia em sua armadilha.

Por outro lado Agostinho ao escrever De Mendacio objetivava refutar os padres da

Igreja que consideravam certos tipos de mentira como algo lícito e moralmente aceitável. Em

ambas as obras a intenção era de provar que a mentira não é justificável em nenhuma

circunstância, apresentando tentativas de refutar as crenças destes grupos heréticos. À

primeira vista as duas obras parecem demonstrar um foco principalmente teológico e

doutrinário, porém, cada uma delas possui suas questões delimitadas distintamente: De

Mendacio a partir de uma análise mais apurada mostra-se uma obra mais filosófica de

Agostinho a respeito da mentira, composta por uma fatigante exploração e sondagem sobre o

assunto, bem como aborda exemplos práticos com sutis nuances (os chamados casos de

mentir), enquanto Contra Mendacio se mostra mais simples e direta.

49 Segundo Jacinto Rodrigues professor da Universidade do Porto, o priscilianismo se desenvolveu no final do séc. IV, sendo um movimento interno ao Cristianismo, e foi considerado heterodoxo, por se relacionar com as heresias, e continha uma série de princípios que contrariavam a tendência hegemônica da submissão do Cristianismo ao poder político. Esta submissão concretizou-se com a oficialização do catolicismo, primeiramente pelo impulso de Constantino, em 325, no Concílio de Nicéia e mais tarde com Teodósio, em 380. Esse movimento herético priscilianista desenvolveu-se principalmente no Noroeste da Ibéria e no Sul da Gália. Para maiores informações ver seu blog pessoal em http://jacintorodrigues.blogspot.com/2007/05/o-priscilianismo-mitos-e-factos-numa.html

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e) Retratações (426-427) 50

A obra “Retratações” está dividida em dois livros. Foi escrita quando Agostinho já

contava com idade avançada e próximo ao final de sua vida, quando intensificou sua

produção filosófica. Neste escrito realiza um rememoramento de seus trabalhos anteriores,

fazendo uma revisão geral em ordem cronológica sobre alguns pontos que julgou relevante

trazer ao conhecimento dos leitores. Ele admite, inclusive, que em alguns de seus escritos

juvenis poderia ter mencionado certos assuntos sob uma outra abordagem; isso demonstra seu

desenvolvimento como escritor e ser humano em seus pensamentos finais. A exemplo disso

revela no livro I, o caso já mencionado anteriormente sobre a desconsideração inicial do

tratado “De Mendacio” e sua reconsideração vinte e cinco anos mais tarde ao escrever o

“Contra Mendacium”. No livro II, as razões citadas por Agostinho para a necessidade que

sentiu ao produzir o “Contra Mendacium” possuem um tom repetitivo, é a necessidade que

sentia em dar uma resposta a certo grupo que vinha desafiando a verdade, os chamados

priscilianos.

2.2 Caracterização agostiniana da mentira

A respeito da caracterização da mentira em Agostinho, nossa fonte principal de

referência será o tratado “De Mendacio” em razão da riqueza conceitual em relação a tal

tema. Em “Contra Mendacium” Agostinho é muito mais sucinto, restringindo-se apenas em

mencionar que “a mentira é uma significação falsa unida à vontade de enganar” (CM, XII,

26). Nessa obra ele concentra sua atenção no problema da moralidade da mentira, e, portanto,

a discussão sobre a caracterização da mentira fica em segundo plano. Assim, para elucidar a

problemática envolvendo a definição da mentira, pretende-se na subseção 2.2.1 apresentar a

caracterização da mentira desenvolvida por Agostinho, na subseção 2.2.2 efetuar uma análise

da proposta agostiniana e, por último na subseção 2.2.3 expor a reconstrução de Matthews da

da noção de Agostinho, apontando algumas críticas em relação à estruturação dessa

reconstrução.

50 A versão utilizada desta obra está na língua italiana e encontra-se em Sant´Agostino – Augustinus Hipponensis. Tutte le opere. Livro I, XXVII (XXVI) - La menzogna e Livro II, LX (LXXXVII) - Contro la menzogna. Consultada através do endereço eletrônico: http://www.augustinus.it/italiano/ritrattazioni/index.htm

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2.2.1 A caracterização da mentira

A definição adotada atualmente tem por base a definição clássica de mentira que se

originou em Agostinho. Veremos o quão árdua foi essa tarefa desempenhada por ele, na

trajetória de seus dois tratados, nos quais houve uma constante busca por uma definição que

estabelecesse um conceito de forma abrangente. À primeira vista, sua definição seria restrita

de modo que não despertasse dúvidas sobre o mentir, ou seja, uma caracterização estreita de

conceito teria por intuito evitar a possibilidade de alguém que não chegou propriamente a

dizer uma mentira fosse culpado por este pecado, em razão de uma definição mais ampla.

Porém, a preocupação com a mentira foi um ponto importante em sua vida, como bem

demonstra através de suas obras. Em razão dessa importância dada à mentira, Agostinho

dificilmente proporia uma definição que não se adaptasse a uma maior gama de situações

possíveis. Tanto que para colocar à prova a utilidade prática de sua definição lança uma série

do que chama “casos de mentir”.

Agostinho, como exímio exegeta que era, inicia sua análise da mentira fornecendo ao

leitor informações que o permitam reconhecer quais são os casos em que claramente não há

mentira dos que podem ser. Para tanto, ele começa sua obra (De Mendacio) primeiramente

estabelecendo condições de reconhecimento de casos em que não há uma mentira, para depois

iniciar uma caracterização propriamente dita de mentira.

Desta forma, Agostinho ao tratar da natureza da mentira informa o leitor o que não é

uma mentira. Excetuamos desde logo, as brincadeiras, que nunca podem ser consideradas mentiras, porque possuem uma clara significação pela maneira de falar e atitude de quem brinca em não querer enganar, ainda que não digam coisas verdadeiras. Sobre se as almas perfeitas podem fazer uso dessas graciosidades, é uma outra questão que não vamos resolver agora. (DM, II, 2)

As brincadeiras e os gracejos não são considerados mentiras. 51 A justificativa para

essa declaração tem por base dois argumentos: 1) As “mentiras jocosas” estão excluídas de

serem mentiras por causa da falta de um elemento importante para a constituição da mentira,

qual seja, a intenção de enganar. A intenção de enganar o receptor é uma condição necessária

para mentir e, neste caso, as brincadeiras, piadas e chistes não enganam realmente, visto seu

caráter de jocosidade em que o receptor reconhece a declaração feita como algo de que não

deveria levar tão a sério. Se as brincadeiras enganassem não poderiam ser reconhecidas como

51 As brincadeiras podem ser boas fontes de subterfúgios para o mentiroso. Se alguém é acusado de mentir, dificilmente dirá: “Eu não tinha a intenção”. Mas poderia se eximir de estar mentindo simplesmente dizendo, “Não sabia que você iria acreditar que no que eu disse, achei que não levaria tão a sério, foi uma brincadeira”.

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tal; 2) A mentira deve ser distinguida da declaração falsa que é acreditada ou assumida pelo

falante como verdade, apenas algo falso tratar-se-ia de um “erro” e não de uma mentira.

Há uma distinção categórica entre um dito engraçado e a mentira; Agostinho parece

ter uma compreensão bastante precisa do que exatamente constitui um chiste. De acordo com

a sua concepção; o chiste deve envolver necessariamente uma falsidade, tanto as que

envolvem coisas que não são possíveis (inacreditáveis) quanto as que embora possíveis não

existam (imaginárias). Uma anedota envolve por natureza um significar diferente do que o

narrador acredita ser real, ela tem mais proximidade com a simulação e ficção do que com a

mentira. Aqueles que brincam não dizem o que eles acreditam ser a verdade, assim como não

pretendem enganar. Logo, apenas uma das condições necessárias para mentir é cumprida,

tem-se apenas uma consideração preliminar de mentira, de modo que quem não fala algo a

sério não pode ser chamado adequadamente de mentiroso. O entendimento de uma declaração

como chiste dependerá da significação convencional, uma vez que ocorre com o propósito

expresso de transferir para outra mente a ação produzida na mente da pessoa que faz a

declaração ou o sinal. 52 Os gracejos envolvem um reconhecimento mútuo, ainda que o

ouvinte não ache graça, toda brincadeira é baseada na suposição de que o público vai associar

corretamente o cenário fictício à piada. As fábulas e as ficções também estão inseridas nessa

categoria, embora contenham falsidades: não são mentiras.

Agostinho estipula que as piadas envolvem a falsidade, porque elas contêm uma

duplicidade em que os fatos narrados não condizem com a realidade. As histórias reais não

podem ser piadas, elas são narrações precisas de acontecimentos reais que se concretizaram

de fato. O narrador humorístico (piadista) sabe presumidamente que relata uma série de

eventos irreais, esperando envolver o público para promover a alegria. Em contrapartida o

público sabe que a história é recheada de falsidades, mas as adota conscientemente como

verdade, como forma de diversão.

Formuladas as suas ponderações sobre os chistes, a partir do que claramente não é

uma mentira, Agostinho passará a analisar o que potencialmente pode vir a ser uma mentira.

“Excetuadas, então, os chistes, vamos tratar, em primeiro lugar, que não se deve julgar que

mente aquele que não mente. Para tanto devemos saber o que é a mentira.” (DM, II-III, 02-

03).

52 Nos sinais convencionais a prevalência é principalmente através da linguagem falada, mas também poderá ser por escrito, por música, ou vários outros sistemas que envolvam símbolos.

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Agostinho em pelo menos três passagens (DM, III, 03; DM, IV, 05; CM, XII, 26)

relata o que pode ser uma mentira: 53 1- “Quem expressa o que crê ou opina interiormente, ainda que seja um erro, não mente. Crê que é assim como enuncia e, levado por essa crença, expressa o que sente”. (DM, III, 03) 2- “Ninguém poderá duvidar que mente aquele que com ânimo deliberado diz algo falso com intenção de enganar” (DM, IV, 05) 3- Mentira é: “uma significação falsa unida à vontade de enganar” (CM, XII, 26)

Para ordenar a teoria agostiniana organizamos suas propostas da seguinte maneira:

X mente se, e somente se;

(i) X afirma uma falsidade;

(ii) X acredita que p, e deliberadamente 54 afirma ~p;

(iii) X tem a intenção de enganar (para que acreditem que ~p é verdadeiro)

Conforme (i), X pode sinceramente acreditar que algo é falso, e passar essa

informação adiante por pura inocência, X inadvertidamente poderá fazer com que alguém

acredite nele, mas, mesmo X dizendo uma falsidade, não mentiu. No entanto, se X não

afirmou algo falso por inocência ou desconhecimento, mas por deliberação, ele mente. A

mentira envolve nuances, é mais do que meramente enunciar uma falsidade, é fazer com que o

receptor acredite no que o agente afirmou como verdadeiro enquanto este agente sabia ser

falso. Desta forma, de acordo com (i), X diz algo que sabe ser falso e o faz deliberadamente, o

que torna mais provável ser uma mentira Agostinho dá um passo a mais na direção de sua

definição, porém nos alerta que a falsidade por si só não abrange um caso de mentira. Por

exemplo, se alguém erroneamente acredita que o jogo será transmitido na televisão no sábado

quando na verdade será no domingo, e diz para seu amigo que o jogo será transmitido no

domingo enquanto acredita que é no sábado. Segundo Agostinho ele mentiu, porque quis

despistar o amigo embora não tenha dito uma falsidade. Neste caso, o importante não é o

valor de verdade ou falsidade da proposição, mas o que o mentiroso toma como verdadeiro ou

falso, o mentir é uma questão de crença e não de realidade, refere-se ao que o mentiroso

acredita e não ao que realmente é como nos casos em que se pode mentir mesmo dizendo a

verdade.

53 Há um importante destaque nas passagens 2 e 3 na questão da intenção, talvez por Agostinho pensar que o mentir é julgado pela intenção contida na alma e não pela verdade ou falsidade dos pensamentos. Aquele que diz o falso não mente se acredita sinceramente que o que diz é verdade. 54 O propósito da inserção do termo “deliberadamente” é diferenciar alguns nuances existentes de quando consta ou não esse termo, o que será melhor contextualizado na continuidade.

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Na linha (ii) a palavra “deliberadamente” foi inserida para salientar que a afirmação de

X foi deliberada, embora para Agostinho não seja relevante para a mentira que X saiba que é

falso, apenas que ele transmita o contrário do que acredita. Esse entendimento responde pelo

que aconteceria no caso das afirmações acidentais em que não há de fato uma crença

estabelecida pelo agente, mas uma opinião. “Entre crer e opinar há esta diferença: aquele que

crê, sente às vezes que ignora o que crê, ainda que não duvide de modo algum disso se é o que

crê firmemente, mas o que opina, pensa saber o que efetivamente ignora”. (DM, III, 03).

Assim, se o agente afirma algo “sem pensar” ou acidentalmente, ele apenas opina sobre o

assunto, ele não acredita realmente no que está falando, seria apenas um “falar por falar” sem

medir as consequências do que fala nem ao menos intencionar algo a partir do que está

falando. Isso seria um erro e não uma mentira, embora o erro possa abranger tanto o “crer”

quanto o “opinar”: “Quem expressa o que crê ou opina interiormente, ainda que seja um erro,

não mente”. (DM, III, 03). Assim; “Nem todos os que dizem uma coisa falsa mentem, se

acreditam ou opinam ser verdade o que dizem.” (DM, III, 03). Portanto, para Agostinho a

falsidade não é uma condição necessária para a mentira.

A segunda proposta (ii) baseia-se na tentativa de dispensar o que não é mentira das

possíveis “verdadeiras mentiras”. Em (i) Agostinho admite que a falsidade não é uma

condição suficiente para a mentira, em (ii) ele irá acrescentar uma cláusula de crença, em que

X deve acreditar em uma coisa, mas afirmar outra diversa. De acordo com (ii), a mentira é

uma ação linguística específica guiada por uma atitude mental subjacente ao qual Agostinho

chama de “duplo coração”: Por conseguinte, dirá uma mentira aquele que, tendo algo na mente, expressa algo distinto com palavras ou outro signo qualquer. Por isso se diz que o mentiroso tem um duplo coração: aquele que sabe ou opina que é verdade e se cala, e outro, aquele que diz pensando ou sabendo que é falso. Pode-se dizer um erro sem mentir se quem o enuncia pensa que é como disse, e se pode dizer uma verdade mentindo se quem a expressa pensa que diz uma falsidade e quer fazer passar por verdade, ainda que efetivamente não seja. (DM, III, 03)

Logo, a mentira é uma expressão clara de um conflito entre o que se pensa e o que se

fala. O conflito entre a crença e a afirmação do agente de p e ~p em (ii) impede o erro e

concentra-se na opinião do mentiroso aprofundando as dificuldades associadas à (i). Porém

Agostinho reconhece que ainda falta algum elemento nessa estrutura, há uma necessidade de

estipular algo que delimite esse processo, pois não é qualquer ação linguística que pode ser

censurável como sendo uma mentira. Não basta somente que o emissor afirme coisas que não

acredite ou que acredita ser de outro modo.

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As mentiras, diferentemente das brincadeiras, são algo que o receptor leva a sério, ele

acredita na declaração do emissor, ele retém uma falsa percepção da realidade acreditada pelo

emissor. Além disso, a brincadeira é inserida em um contexto tal que é facilmente

identificada, o contexto da mentira prevê uma presunção da crença do emissor fazendo com

que sua identificação seja incerta (porque dependerá da interpretação do receptor). Talvez por

essa razão Agostinho acrescente em (iii) a intenção de enganar na sua definição de mentira.

“Ao fiel e ao mentiroso os julgamos não pela verdade ou falsidade das coisas, senão pela

intenção em sua mente.” (DM, III,03) Desta forma, após afirmar que a falsidade não é uma

condição necessária para caracterizar uma mentira, e que a mentira envolve crenças como

condição necessária, Agostinho questiona se a intenção é uma cláusula necessária ou não;

“Ainda podem perguntar – apurando sutilmente essa análise – se sempre que falta a intenção

de enganar não existe de modo algum a mentira”. (DM, III, 04).

A mentira pode ser apresentada tanto na forma verbal de engano quanto não-verbal,

nesses casos, o importante será a intenção. O engano intencional é uma espécie de

manipulação em que o agente deliberadamente provoca no outro, falsas crenças. De acordo

com (iii), a mentira envolve uma intenção em que o agente pretende fazer com que alguém

acredite em algo que ele próprio não acredita. Agostinho ao acrescentar mais um item à sua

análise de mentira é cuidadoso o suficiente para admitir que alguns problemas filosóficos

persistirão, uma vez que, quanto mais itens são acrescentados mais difícil será atendê-los. No

capítulo IV, apresenta alguns casos em que potencialmente são casos de mentira, mas não

satisfazem a cláusula (iii), pois tratam de casos em que a crença do receptor depende do nível

de confiança que ele tem em relação ao emissor. Ser mentira não é uma propriedade da

proposição, mas da proposição em determinado contexto de enunciação, pois aquele que a

enuncia sabe que é uma falsidade. Agostinho estava ciente que a cláusula (iii) é a que mais

devemos ter cautela porque é o caso digamos mais “viável” de mentir, pois até com um aceno

de cabeça podemos mentir sem dificuldades, mas nem por isso se mostra menos complexa.

Conforme Agostinho não é a ação de contar uma mentira que a define como tal, mas a

atitude interior de conscientemente afirmar algo com a intenção de enganar. A mentira

depende do dizer e do querer dizer, do ato de dizer, ela "permanece independente da verdade

ou falsidade do conteúdo", ou seja, "daquilo que é dito". Referimo-nos, neste caso, aos

enunciados e, portanto, àquilo que é verdadeiro ou falso. Mas se o enunciado é acoplado a

uma intenção, desejo, ou da tentativa de enganar outrem, então o enunciado pode ser mendaz

ou veraz. Pois, mentira não é o mesmo que falsidade, assim como, veracidade não é o mesmo

que verdade. Assim por equiparação, uma afirmação pode ser verdadeira, mas não ser veraz, e

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vice-versa, de modo que a veracidade não se confunde com a verdade. Há uma oposição entre

verdade e falsidade, bem como entre veracidade e mendacidade. Na mentira a veracidade é

contrária a mendacidade e não a verdade, a verdade é contrária à falsidade. Agostinho ao

desenvolver sua definição de mentira parece antecipar que alguns termos filosóficos estão

propensos a gerar confusões semânticas, pois, parecem não reconhecer a importante diferença

entre “falsidade” e “mentira” e, por extensão, a não menos importante diferença entre

“enunciar uma proposição falsa” e “enunciar uma mentira”. Como em relação ao “jogo da

mentira”, por exemplo, mentir dizendo a verdade é diferente de mentir, bem como, acreditar

que algo é verdade é diferente de ser verdadeiro.

Em conclusão a sua análise inicial, Agostinho termina os quatro primeiros capítulos do

“De Mendacio” afirmando que: Podemos duvidar se mente aquele que com propósito de enganar afirma uma coisa verdadeira. Mas ninguém poderá duvidar que mente quem com ânimo deliberado diz alguma coisa falsa com intenção de enganar. Portanto, dizer uma coisa falsa com determinada intenção de enganar, é manifestamente uma mentira. (DM, IV, 05)

Em razão disso, Agostinho determina que a mentira é uma declaração falsa com

intenção de enganar, logo, a mentira é o conjunto das condições (i, ii, iii), agora resta saber se

as condições (i, ii, iii) isoladamente também constituem casos de mentira. Para isso,

Agostinho irá desenvolver os chamados “casos de mentir” 55 que consistem uma série de

experimentos de pensamentos realizados por ele na busca por uma explicação se sua definição

também acolheria diferentes tipos de mentira em razão de diferentes contextos e situações

adversas. Agostinho é cauteloso ao expor uma definição, ele analisa seus primeiros casos e, os

segundos, e, por extensão acrescenta casos mais complexos que envolvem a aquisição de

crenças e não apenas a intenção de enganar. A problemática da mentira será lançada a um

paradigma de extensa discussão para saber se por si só essas cláusulas bastam para

caracterizar uma mentira. “Outro problema é saber se apenas há mentira quando existem tais

condições”. (DM, IV, 05)

Gabriele Greggersen (2005) ao se referir a Agostinho menciona que: [...] poderiam até valer-lhe o mérito o de ser inaugurador da “Teologia da Verdade”. Para evitarmos esse equívoco, é preciso deixar claro que Agostinho não se propõe a definir o que seja mentira, mas somente o que ela não é, numa espécie de teologia negativa anti-essencialista”. (GREGGERSEN, 2005, p.52, grifos da autora)

Neste ponto discordamos da autora, Agostinho diz sim o que “ela é”, ele constrói uma

estrutura para a definição de mentira em que há pelo menos três condições suficientes para 55 Serão analisados alguns dos casos de mentir no final desse capítulo, em seção própria.

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caracterizar uma mentira. A questão que ele deixa em aberto é se as três condições devem

conjugar-se para que haja uma mentira. Neste particular é que considera o quão problemática

é a noção de dizer uma mentira.

Em “Contra Mendacium” Agostinho deixa a questão analítica da mentira em segundo

plano para buscar uma forma de evitar o pecado direcionando-se para o viés da moralidade da

mentira. Ele sentia-se compelido a dar uma resposta a todos aqueles que aceitavam certos

tipos de mentira como sendo legítima. Para manifestar sua contrariedade à mentira, condena

veementemente a sua prática e recomenda que é preciso dizer apenas o que realmente se

acredita porque se acredita e quer que alguém acredite, ou seja, o conselho de Agostinho é de

sempre dizer a verdade e esforçar-se para que o outro não tenha motivos para desconfiar

daquilo que afirmamos.

2.2.2 Comentários à proposta agostiniana

Como resultado inicial de sua análise meticulosa, Agostinho define a mentira como

“uma declaração falsa, feita com o desejo de enganar” (DM, IV, 05). A partir de tal definição

destacamos alguns pontos relativos às peculiaridades subjacentes à mentira.

a) Ato Jocoso

Na sua comparação entre brincar e mentir Agostinho analisa que as piadas e atos

jocosos em geral não são mentiras, porque não há uma intenção de realmente enganar. 56 Esta

análise representa uma preocupação com os fins últimos, tanto que Agostinho diferencia as

declarações cujo único objetivo é o engano, daquelas que não possuem o engano como

objetivo final. Posto isto, nos perguntamos: pode uma piada ser enganosa? Se por exemplo,

alguém no decurso da mentira for desmascarado, este provavelmente tentará exonerar-se

apelando à jocosidade. Agostinho responderia tal questão observando que se a mentira

“original” foi dita com a intenção final de enganar, logo o recurso (mentiroso) interposto a

jocosidade apenas aumenta as mentiras contadas. Este é um dos casos em que a dita “piada

enganosa” perde seu status de simples gracejo transformando-se em uma mentira. Agostinho

nunca chegou a considerar que certos tipos de piadas podem ter múltiplas intenções e que esta

pluralidade de intenções podem se aproximar do engano. Porém, dadas as condições 56 Ainda que uma brincadeira não seja avaliada como uma mentira em termos definitórios, ela pode ser considerada censurável em termos morais, em razão de seu conteúdo, contexto ou intenção do narrador.

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necessárias em sua definição de mentira, parece que Agostinho poderia muito bem ter

considerado certos tipos de piadas como mentiras.

Outro ponto que salientamos é que nas brincadeiras pode até não haver uma intenção

do engano, mas há uma intencionalidade implícita. Agostinho parece supor existir um traço

característico nas piadas, uma parcela implícita de intencionalidade, pois o ato de significar

falsamente algo sem a intenção final de engano não pode ser feito involuntariamente. Por

exemplo, ao assistir um evento humorístico, existem atores que fazem parte daquele show e

que ensaiaram para esse fim, se não fosse dessa maneira o evento não constituiria uma

comédia, o evento tem por intencionalidade fazer com que o público ria, visa promover a

graça. Caso fosse outra situação, por exemplo, alguém escorrega na rua e cai acidentalmente

seu intuito não era de fazer graça, o evento não seria uma piada, embora quem visualizasse a

queda achasse graça. Este não seria um caso de piada, dada a finalidade da piada, assim como

nem a ironia, nem a paródia, nem a sátira podem ser precisamente classificadas como piadas.

b) Embuste

Agostinho distingue o mentiroso (mendax) do embusteiro (mentiens). O embusteiro é

aquele que mente as vezes sem querer, mas o mentiroso é aquele que mente sem motivo, que

lhe agrada o mentir e vive interiormente com o prazer da mentira. (DM, XI, 18). O

interessante é que o embuste não é propriamente uma mentira. O embusteiro no decorrer de

uma conversação utiliza de sua imaginação para intercalar informações de todo verdadeira

com outras de todo falso, ou seja, ele mescla coisas falsas com as verdadeiras para tornar seu

discurso mais atrativo. Se analisarmos a estrutura da definição de mentira, que cláusulas

devemos retirar para que permaneça somente o embuste ao invés da mentira? Parece-nos a

terceira cláusula, o ponto da diferença é que no embuste não há a intenção propriamente de

enganar. Algo falso foi dito em virtude de um erro, ou sem querer, na medida em que

ilustrava sua narrativa. As outras duas primeiras cláusulas permaneceriam, por exemplo, A

acredita que ~p, e ~p é verdadeira, é a única maneira que é possível enganar dizendo o falso p

e enganando sem que seja mentira. Apesar de Agostinho afirmar que o embuste não seja

propriamente uma mentira, especialmente por não alojar a terceira cláusula da mentira (a

intenção de enganar), precisamos ser cuidadosos com tal afirmação, pois, o contexto em que

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se deu o proferimento do embuste deve ser observado. Assim, dependendo do contexto o

embuste poderá ser avaliado como uma mentira. 57

c) Figuras de Linguagem

Em “Contra Mendacium” Agostinho não se refere muito a uma caracterização

proposital de mentira, mas seguindo a mesma linha de pensamento, complementa o que já

havia relatado em “De Mendacio” a respeito do que não é uma mentira. Não podem ser

tomadas como mentiras as figuras de linguagem e as parábolas. “As figuras e parábolas não

podem ser tomadas como se significassem propriamente o que dizem, mas o que deve ser

entendido em um sentido que envolva transferência. Se diz uma coisa apontando para a

compreensão de outra”. (CM, X, 24) Caso esses tipos fossem mentiras, teríamos que abranger

também a todos os tipos de figuras de linguagem, bem como a metáfora, que é a transposição

de um vocábulo de seu significado próprio a outro figurado. O mesmo deveria ser adaptado

para diferentes tipos de discursos como a dramatização e a linguagem figurada. O comediante,

por exemplo, não é obrigado a dizer somente o que ele acredita, e não se espera que seu

público acredite no que ele diz, as convenções que regem o ato dele contar suas piadas

indicam que o falante não pode ser levado a sério. Como o próprio Agostinho nos lembra “há

uma clara significação pela maneira de falar e no comportamento de quem brinca” (DM, II,

02), e, acrescentamos de quem representa, ou seja, do ator.

d) Engano

O engano é um artifício envolvido na mentira, mas nem sempre necessário como a

crença, ou seja, a declaração envolvida no engano não é p, mas o que o emissor acredita ser p.

Mas na maioria dos contextos, no entanto, o emissor está interessado em obter do receptor

que este adote a sua crença sobre p, de modo que a intenção de enganar sobre o valor de

verdade de p faça parte da mentira. A mentira não requer que p seja falso, apenas que o

falante acredite que seja falso. Em termos agostinianos a mentira é explicada pelo contraste

entre o que S diz, no que S acredita, e o comportamento de A em relação a S, presumido por

S. A mentira não precisa ser bem-sucedida para ser uma mentira, ou seja, o que S diz para A

pode ser uma mentira mesmo se S não enganar a A. Uma tentativa de homicídio não equivale

57 O mesmo vale para a mentira do tipo jocosa.

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a matar alguém, assim como uma intenção de mentir não significa ter sucesso em mentir.58 A

mentira envolve muito mais do que a simples intenção do agente em enganar. Mas, embora

não precise ser bem-sucedida para constituir-se em mentira, ela precisa ter a possibilidade de

ser bem-sucedida. Essa possibilidade depende da crença de S em relação à confiança que A

deposita nele, ou seja, é preciso que S creia que, em geral, A confia nele ou, ao menos, no

contexto de proferimento de p A confia nele, ou que S creia que, em geral, A desconfia dele

ou, ao menos, no contexto de proferimento de p A desconfia dele.

e) Gestos e Sinais

Agostinho no decorrer de sua obra aprofunda sua análise, observando que a

manifestação verbal não é a única fonte potencial de mentira. Podem ser utilizados outros

artifícios como o tom da voz, gestos, linguagem corporal. A força enunciativa de uma

asserção faz parte das estratégias de convencimento. Um dos pontos importantes refere-se a o

que aquela asserção significou para o ouvinte, porque a asserção feita pelo emissor poderia

não coincidir com a interpretação do ouvinte, o ouvinte pode inferir algo diverso do que o

emissor pretendia dizer. “Evitaremos um e outros riscos se com inteira consciência

expressamos o que sabemos ou opinamos e cremos que é verdade e procuramos fazer com

que creiam tal como enunciamos” (DM, IV, 04) Esta observação de Agostinho permite com

mais precisão distinguir, quando necessário, a mentira de outras formas de engano que por

vezes se apresentam menos claras.

Agostinho é convincente ao dizer que ainda que se diga a verdade, o agente pode vir a

mentir. O mentir não está baseado no sentido literal das palavras, é uma questão que faz parte

de um conjunto de crenças e intenções, é uma interação entre diferentes tipos de signos

linguísticos, não tem uma linguagem em particular. Nem todas as mentiras são atos de fala,

mas podem ser também atos de cala, realizados por meio de gestos ou sinais. Por exemplo, se

o meu vizinho com a clara intenção de enganar coloca várias malas em seu carro,

provavelmente quem assistir tal situação pensará que ele viajará, mas não é verdade, ele só

quer que todos pensem que a casa estará vazia. Embora não tenha havido comunicação oral o

vizinho inferiu uma crença falsa. As estratégias manipuladores da informação não são

falsificações diretas da realidade, mas manipulações através de uma pluralidade de modos

58 Agostinho provavelmente entenderia a tentativa de mentir per si como uma mentira, primeiro porque houve uma intenção de engano, e segundo porque Agostinho não estava preocupado com o sucesso da mentira, mas com o pecado que representava o mentir. Não importando, portanto, se a mentira era em prol de um bem maior ou se foi bem sucedida, a mentira é intrinsecamente ruim e imoral e por bem é melhor evitá-la.

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indiretos de transmitir significados. Outro exemplo que podemos citar é quando Judas

identifica Jesus com um beijo59, se por acaso ele quisesse mentir, bem poderia beijar a pessoa

errada e fazer com que os guardas pensassem que aquele terceiro era Jesus. Essa é uma das

alternativas em que é possível mentir até mesmo por gestos ou sinais, como convincentemente

apresenta Agostinho.

2.2.3 A Análise de Matthews

Gareth Matthews é um autor muito conhecido no campo da educação, pois escreveu

vários livros sobre a filosofia na infância. Dentre seus trabalhos publicou dois livros

referentes a Agostinho, nosso foco de estudo será o livro “Santo Agostinho: a vida e as idéias

de um filósofo adiante de seu tempo” (2007). Nesta obra Matthews analisa temas centrais da

obra filosófica de Agostinho como: o problema do mal, o livre-arbítrio, o tempo e a criação,

ceticismo, linguagem, felicidade e a mentira. No capítulo 14 intitulado “Mentir”, Matthews

discute a análise-padrão e quatro análises alternativas da mentira, onde se encontram casos em

que embora sejam aceitos pela ampla maioria como casos claros de mentira, não se adaptam à

análise-padrão.

A análise de Matthews baseia-se nos quatro primeiros capítulos do tratado agostiniano

“De Mendacio”, assim, primeiramente propõe a sua análise padrão e a partir disso, as demais

variantes, como veremos a seguir:

Análise-padrão da mentira: 60 Ao dizer a A que p, S diz uma mentira se, e unicamente se (i) é falso que p; (ii) S acredita que é falso que p; e (iii) ao dizer a A que p, S pretende enganar A em relação a p.

Conforme a denominação estabelecida por Matthews, a condição (i) é “condição de

falsidade”, a condição (ii) “condição falsa-acreditável”, e a condição (iii) “condição de logro”

(MATTHEWS, 2007, p.195).

59 O exemplo tem por base a seguinte passagem bíblica: “Jesus ainda falava, quando veio Judas, um dos Doze, e com ele uma multidão de gente armada de espadas e cacetes, enviada pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo. O traidor combinara com eles este sinal: Aquele que eu beijar, é ele. Prendei-o! Aproximou-se imediatamente de Jesus e disse: Salve, Mestre. E beijou-o. Disse-lhe Jesus: É, então, para isso que vens aqui?” (Mt 26, 47-50) 60 MATTHEWS, 2007, p.195.

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Primeira análise alternativa da mentira:61 Ao dizer a A que p, S diz uma mentira se, e unicamente se (i) S acredita que é falso que p; e (ii) ao dizer a A que p, S pretende enganar A.

Segunda análise alternativa da mentira: 62 Ao dizer a A que p, S diz uma mentira se, e unicamente se (i) é falso que p; e (ii) S acredita ser falso que p.

Terceira análise alternativa da mentira: 63 Ao dizer a A que p, S mente se, e unicamente se ao dizer a A que p, S pretende enganar A sobre se p.

Quarta análise alternativa da mentira: 64

Ao dizer a A que p S mente se, e unicamente se (i) S acredita que é falso que p; e (ii) ao dizer a A que p, S pretende enganar A sobre se p.

Ainda que a mentira não tenha uma univocidade em sua definição, a noção de

definição empregada por Matthews gera uma leitura errônea da caracterização agostiniana de

mentira. Tal aspecto é decorrente de uma concepção demasiadamente estreita do que é uma

definição. Ele analisa o assunto de tal modo como se as três cláusulas fossem notas distintas

umas das outras e não dependentes uma das outras.

1. p é falso; 2. A acredita que p é falso; e 3. A tem a intenção de enganar B Essa é a análise “Standard”, com as três cláusulas. Se tais cláusulas forem

independendentes em algumas análises alternativas simplesmente se eliminaria um desses

itens. Como é o caso do tentar enganar, inclusive temos o caso de uma análise que tem

somente a falsidade e o acreditar que é falso, nem ao menos precisa enganar. De acordo com

Matthews (2007) essas três cláusulas seriam dependentes entre si, porém, a necessidade de

dependência se dá apenas entre a cláusula inicial e a cláusula final. A dependência a que

Matthews se refere é como se as cláusulas fossem cumulativas, em que uma se soma a outra,

no entanto, tais cláusulas se mostram mais aproximadas das cláusulas explicativas do que

propriamente adicionais.

61 Ibid., p.197. 62 Ibid., p.199. 63 Ibid., p. 200. 64 Ibid., p. 201.

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Para destacar a limitação da reconstrução de Matthews vejamos os seguintes trechos: Por vezes, eu peço aos alunos em uma aula de filosofia que me ajudem a analisar o conceito de dizer uma mentira. Escrevo no quadro-negro o que deve ser analisado, a saber: “Ao dizer que p a A, S diz uma mentira se, e unicamente se...” “Quais são”, pergunto aos meus alunos, “as condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para S mentir a A dizendo-lhe que p?”. (MATTHEWS, 2007, p. 194). Ao dizer a A que p, S diz uma mentira se, e unicamente se; (i) é falso que p; (ii) S acredita que é falso que p; e (iii) ao dizer a A que p, S pretende enganar A em relação a p. Estas condições pretendem ser individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que haja um caso genuíno de dizer uma mentira. (MATTHEWS,2007, p.195).

Em ambos os trechos Matthews utiliza a expressão “condições individualmente

necessárias e conjuntamente suficientes”, o problema com a expressão “condições

individualmente necessárias” é que ela limita as possibilidades de definição aos definienda

cujos definientia se conformam a uma estrutura de uma conjunção de condições. (SAUTTER,

2011) 65.

Embora Matthews pareça se dar conta, no final do capítulo, da necessidade de uma

estrutura definicional mais rica, isso não acontece. Em uma notável conclusão para um não menos notável estudo de possíveis casos de mentira, santo Agostinho afirma que as três condições da Análise-Padrão fornecem-nos pelo menos condições suficientes para dizer uma mentira. Mas parece relutante em sustentar que todas as três condições devem conjugar-se para que haja uma mentira. (MATTHEWS,2007, p.202)

A construção de uma estrutura definicional mais rica nunca se concretiza e Matthews

conclui seu capítulo comparando a obra “De Mendacio” de Agostinho aos diálogos de Platão:

“Creio que esse tratado seja como um dos diálogos aporéticos de Platão – os chamados

‘aporéticos’ porque terminam em aporia, isto é, em perplexidade.” (MATTHEWS, 2007,

p.202).

Matthews em seu sistema definicional apresenta uma conjunção de condições tal como

o faz na análise padrão, por exemplo, temos o item 1 - é falso que p; item 2 - S acredita que é

falso que p; e o item 3 - ao dizer a A que p, S pretende enganar A em relação a p. Mas uma

definição nem sempre é uma conjunção de condições, ela não precisa necessariamente seguir

essa forma, há casos em que o definientia (notas simples) não podem ser expressos como

conjunção de condições. Para clarificar tal afirmação utilizaremos o exemplo clássico – Tû-Tû

– do jusfilósofo dinamarquês Alf Ross. (cf. SAUTTER, 2011) 65 SAUTTER, F.T., Sobre mentira e equívocos: a definição agostiniana da mentira. Comunicação oral. IV Colóquio de Ética e Ética Aplicada: Naturalismo Moral e Direito dos Animais (II International Colloquium on Ethics and Applied Ethics). 2011.

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Ross (2004) em sua breve obra “Tû-Tû” apresenta um estudo sobre como estabelecer

uma definição jurídica, ou melhor dizendo, sobre a existência de referência semântica para

expressões jurídicas. Segundo o autor “Tû-Tû” pode ser definido da seguinte maneira: Essa tribo [Aisat-naf], de acordo com Meugnin, acredita que se um determinado tabu é violado – por exemplo, se um homem encontra-se com sua sogra, ou se mata um animal totêmico, ou se alguém ingere alimento preparado pelo chefe – surge o que é denominado “tû-tû”. Os membros da tribo dizem, ademais, que quem comete a infração se investe de “tû-tû”. É muito difícil explicar o que significa isso. (ROSS, 2004, p.13-14)

Como veremos a seguir a definição de “tû-tû” não se adapta à estrutura de uma

conjunção de condições:

A definição de tû-tû tem a forma:

X é tû-tû se, e unicamente se (i) X encontra-se com sua sogra; ou (ii) X mata um animal totêmico; ou (ii) X ingere alimento preparado pelo chefe.

O tû-tû como um exemplo fictício criado por Alf Ross demonstra que naquela

comunidade primitiva certos comportamentos são tabus e não podem ser realizados senão

algo ruim vai sobrevir a pessoa que realizar aqueles comportamentos. Para saber o que não

pode ou não ser feito, precisamos saber o que é tû-tû, então a definição irá ter a seguinte

fórmula: X é tû-tû (um comportamento x é tû-tû); se e somente se, (encontra-se com a sogra

ou matar um animal totêmico ou ingerir alimento preparado pelo chefe). Logo tal definição é

uma coisa ou outra, e não uma coisa e outra (X é tal coisa se, e unicamente se; ...ou; ...ou; e

não se, e unicamente se;...e;...e;). A definição proposta se conforma à estrutura de uma

disjunção de condições, uma disjunção não é, em geral, equivalente a uma conjunção, pois

uma proposição da forma “A ou B” é equivalente à negação da proposição da forma “não-A e

não-B”. (SAUTTER, 2011). Essa definição é uma série de casos isolados que não tem como

encontrar algo em comum nesses comportamentos, são comportamentos que devem ser

evitados, mas não há nada em comum entre eles que se possa utilizar uma definição usando

“e”, há um “ou” ou é isso ou é isso. Então claramente são casos mais raros de definição, mas

são situações em que não se encontram elementos em comum de tal modo que possa construir

o definiens como se fosse uma conjunção de notas de condições de cláusulas. Apesar de

apresentar apenas um exemplo nesse sentido em que esse tipo de definição não se amolda na

forma de conjunção, poderíamos achar outras operações lógicas mais complexas que também

não se adaptariam a essa forma de definição.

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Além disso, mesmo que o definiens da mentira não se assemelhe ao definiens de tû-tû,

as propostas interpretativas de Matthews sugerem um definiens cuja estrutura lógica é a de

uma conjunção de condições elementares, e isso é exatamente o que dificulta a acomodação

dos vários experimentos de pensamento fornecidos por Agostinho sob uma única definição.

(SAUTTER, 2011).

Assim Matthews ao utilizar sistematicamente a expressão “individualmente” ele revela

uma concepção estreita do que é uma definição, em que somente está considerando esse tipo

de definição como se fosse um erro. O resultado dessa leitura estreita é que ele irá opinar que

Agostinho não determina uma definição, mas fica relutante entre várias. Agostinho mostra

que de fato não existe um fator comum que se possa dizer: mentir é Y e Z, mas mentir é Y ou

Z.

Por exemplo:

X mente se, e unicamente se: (i) X diz a verdade quando o outro desacredita; ou (ii) X diz o falso quando o outro acredita.

Ao fazer uso de um instrumento de análise limitado não se tem condições suficientes

para dar conta do conteúdo que está sendo analisado. Embora não seja possível achar uma

nota que seja comum às três cláusulas da análise padrão, pois, entre as cláusulas cada uma

delas tem uma diferença específica, nada impede que cada um dos casos seja mentira, porque

tem distinções por casos, por situações. A definição da mentira para Agostinho não é mera

exegese, ele pensou seriamente o problema em si, talvez realmente não exista um fator em

comum a todas as mentiras e tenhamos que definir por casos. Além de Matthews definir a

mentira como uma conjunção de notas, ele soma todas as notas como se cada uma fosse

independente da outra. A melhor solução seria trabalhar um conjunto de casos, até porque

algumas notas são explicações de outras.

Concluímos assim que tanto a análise-padrão da mentira como as quatro análises

alternativas por ele fornecidas não fazem justiça à interdependência das condições definitórias

da mentira. Além do mais em sua análise-padrão da mentira Matthews utiliza erroneamente a

palavra “dizer”, para caracterizar uma mentira, não basta apenas dizer, mas afirmar, a

expressão tem que ter força assertórica. Não é suficiente apenas S dizer que p para A. Com

base nisso o próprio Agostinho elimina primeiramente de sua definição os chistes e as

brincadeiras. Outra questão é que Matthews tende a relacionar a mentira às proposições e não

às elocuções. As proposições são verdadeiras ou falsas, logo, uma proposição não pode ser

mentirosa, portanto, a elocução está relacionada à mentira. A mentira tem a ver com

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elocuções, ou seja, elocuções em dados contextos ditas por um determinado indivíduo, e

necessariamente o indivíduo tem que estar envolvido, aquele que emite a elocução, porque a

intenção faz parte integral da definição de mentira. Sem uma intenção de enganar não há

mentira, seria simplesmente algo falso. A investigação agostiniana da mentira envolve muito

mais do que apenas a busca por uma definição de mentira, mas constitui um exame

pertencente à pragmática filosófica.

2.3 A Doutrina do Duplo Coração

A doutrina do duplo coração é um aspecto importante na definição agostiniana da

mentira. É a partir dela que Agostinho baseia toda a sua teoria do que potencialmente pode ou

não ser uma mentira. Para esclarecer a relevância de tal questão na Subseção 2.3.1 será feita

uma elucidação da doutrina do duplo coração e na Subseção 2.3.2 será exposta a correlação

entre a doutrina do duplo coração e a análise padrão sobre a mentira.

2.3.1 Duplo Coração

O duplo coração está no cerne das considerações de Agostinho sobre a mentira. Por

conseguinte toda a leitura dos tratados “De Mendacio” e “Contra Mendacium” deve ser

realizada sob a ótica de tal doutrina para que se possa obter uma correta interpretação da

definição agostiniana. A doutrina do duplo coração encontra-se em partes específicas do

tratado “De Mendacio” no Capítulo III, (03), Capítulo XVI (31-34), Capítulo XVII (35-36) e

do “Contra Mendacium” no Capítulo II (02-03), Capítulo VI (13). 66

Segundo a doutrina do duplo coração há um contraste entre aquilo que se crê

interiormente e aquilo que se professa exteriormente. Por conseguinte, dirá uma mentira aquele que, tendo algo na mente, expressa algo distinto com palavras ou outro signo qualquer. Por isso se diz que o mentiroso tem um duplo coração: aquele que sabe ou opina que é verdade e se cala, e outro, aquele que diz pensando ou sabendo que é falso. (DM, III,03)

A estrutura da caracterização da mentira segue exatamente tal doutrina do duplo

coração, estabelece uma oposição entre o que se fala (expressão) e o que se pensa (crença),

refere-se a “dois corações”, o coração interior e o exterior.

66 Agostinho usa a terminologia “duplo coração” principalmente no tratado “De Mendacio”. Em “Contra Mendacium” apesar de não utilizar tal expressão mantém a mesma ideia com outros termos.

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Coração Interior - Cláusula de crença

(ii) A acredita ser falso que p ( A crê que ~p)

Coração Exterior - Cláusula de intenção 67

(iii) ao dizer a B que p, A pretende enganar B em relação a p.

No coração interior está a crença, o que A acredita ser o valor de verdade de p, e no

coração exterior o que A diz para B. Essa relação de conflito entre o coração externo e o

interno, ou seja, entre o que é proferido e a crença é o que se denomina duplo coração. Assim,

aquele que está equivocado afirma um erro pensando ser verdade, ele não é mentiroso, pois,

não possui o coração duplo, nem ao menos a intenção de enganar, apenas ele próprio se

engana. Aquele que mente, possui a clara intenção de enganar. O pecado do mentiroso está no

apetite e na intenção de enganar (DM, III,03).

Na parte inicial do primeiro tratado Agostinho conceitua a doutrina do duplo coração e

após estabelecer o que é esse movimento entre os dois corações, ele aprimora sua

interpretação dando ênfase à doutrina do duplo coração sobre outras perspectivas; tal

dinâmica está presente ao longo de sua exposição na medida em que ele aprofunda suas

ideias. No Capítulo XV, Seção 27, Agostinho começa a organizar seus argumentos sobre a

recusa da mentira, alegando que esse processo não é algo superficial, algo que se revela

somente no exterior, mas que ocorre no próprio coração (interior). O homem deve se educar a

partir de seu interior, se convencer de que mentir é errado, não apenas deixar de mentir

porque assim está ordenado ou porque reconhece que é errado. “Sentia profundamente que o

sacerdócio dos judeus havia chegado a se converter em um brilho nominal e exterior,

enquanto que no interior fervia em sórdidos desejos” (DM, XV, 27). Agostinho alerta que de

nada adianta exteriormente tomar certa atitude se interiormente pensa distintamente, a

incorreção da mentira não deve ser apenas um sinal externo, mas uma coisa à qual o homem

deve se convencer em seu interior.

Em diversas passagens Agostinho repete a mesma opinião, sendo incisivo ao concluir

que mentir é errado. Para tanto, ele procura amparar seus argumentos a partir da doutrina do

duplo coração, como veremos nos fragmentos a seguir:

Temos também no Evangelho claramente expressada a boca do coração, e em um mesmo lugar cita o Senhor a boca do coração e a do corpo, dizendo: Você ainda não compreendeu? Bem não sabe que tudo o que entra pela boca vai para o ventre e se põe em locais secretos? Mas o que sai da boca vem do coração, e é isso que

67 A cláusula em si é de intenção, embora o coração exterior esteja relacionado à expressão.

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contamina o homem. Porque do coração saem maus pensamentos, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias, e estas são as coisas que contaminam o homem. (DM, XVI, 32).

A boca que mente mata a alma, podemos investigar agora de que se trata a mentira. Parece que se fala propriamente da mentira que detrata alguém. Pois diz: Cuidado com as murmurações que nada se aproveitam e freie a língua na detração. Esta detração é causada pela malevolência quando alguém expressa com a boca e com a voz do corpo o que havia inventado contra alguém e quer interiormente que creiam tal como disse, o que é caluniar com a boca do coração (DM, XVI, 33).

E outro comenta: “Ao dizer a frase não queira mentir com nenhuma classe de mentira, significa que teria que exterminar e afastar a mentira da boca do coração” Quanto a boca corporal, terá que abster-se de certas classes de mentira, principalmente as que se referem a doutrina da religião; em outros casos, contudo, não há porque abster-se, sempre que necessário pelo motivo de evitar um mal maior (DM, XVI, 34).

O mesmo também cada dizer da frase “Perderão todos aqueles que falam mentiras”. Uns dizem que amaldiçoa toda a mentira sem exceções. Outros dizem que se trata daqueles que mentem no coração, segundo o que foi discutido anteriormente; porque quem se perturba com a mentira e a considera como um castigo dessa vida mortal, diz a verdade em seu coração (DM, XVII, 35).

Quando falamos com Deus, basta abraçar a verdade em nosso coração, mas quando falamos aos homens é preciso também dizer a verdade com as palavras de nossos lábios porque o homem não perscruta o coração (DM, XVII, 36).

Em tais fragmentos Agostinho destaca fervorosamente que todas as classes de mentira

são erradas, ou seja, mentir é sempre errado. A mentira, como outros malefícios, é algo que

contamina o homem, porque este é responsável por tudo o que profere com a boca do corpo.

Por conseguinte essa mesma boca que profere a mentira mata a alma, porque para Agostinho

devemos manter a pureza da alma, sua prioridade é proteger o espiritual e não o corporal.

Com certeza não é ao acaso que Agostinho menciona inúmeras vezes que “a boca que mente

mata a alma” (DM, XVI, 31). No seu pensamento o coração tem uma boca, que deve estar

comprometida com a verdade, afirmando que “com a boca do coração devemos nos abster de

proferir qualquer mentira” (DM, XVI, 34). Assim, segundo Agostinho, teremos até mesmo de

nos abster de desejar proferir qualquer mentira. Devemos manter a verdade no coração

(interior) e nas palavras que saem de nossos lábios (exterior).

Ainda no que diz respeito à doutrina do duplo coração, na relação entre a boca do

corpo e a boca do coração encontramos uma peculiar interpretação sobre o mentir

interiormente. Porque no coração sempre temos que dizer a verdade, mas nem sempre teremos que dizer com a boca do corpo quando o motivo de evitar um mal maior nos força a dizer com palavras outra coisa do que temos em nosso interior. E é a boca do coração, como podemos entender, porque onde há locução tem que haver, boca; e assim, não se diria diretamente “Quem fala em seu coração” se não desse a entender justamente que existe essa boca do coração. Ademais citamos: A boca que mente

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mata a alma, levando em conta o contexto da frase, talvez não possa entender além da boca do coração. Aos homens podemos oferecer uma resposta obscura, já que não podem ouvir a palavra do coração se não está em consonância com a do corpo. Mas a palavra da boca que cita as Sagradas Escrituras é a que chega aos ouvidos do Espírito do Senhor que completa o mundo universo, citando no lugar dos lábios, a voz e a língua. Tudo o qual não se possa entender além do coração, porque nada se oculta ao Senhor. Se tratasse desse som exterior que chega aos nossos ouvidos, tampouco se ocultaria aos homens. (DM, XVI, 31)

Embora Matthews (2007) alegue que Agostinho não se preocupou em tratar da

possibilidade do “mentir para si mesmo”, nos parece que na Seção 31 do Capítulo XVI do

“De Mendacio” Agostinho aborda tal questão, pois, é metafórico ao discutir se a boca do

coração pode interiormente mentir. A discussão sobre o mentir interiormente reside na relação

entre a boca do coração e a boca do corpo seguindo a linha da doutrina do duplo coração. Ao

falar com a boca do coração, embora o semelhante não possa ouvir, é ouvido pelo Espírito do

Senhor. Seria possível mentir para Deus? Então alguém que ouve a sua voz interior que não é

ele mesmo, pode mentir para esse alguém mesmo sem dizer palavra nenhuma. Isso

dependeria muito da visão acerca da realidade que o indivíduo assume, porque dependendo da

concepção que temos da mentira seria difícil aceitar a possibilidade de mentir para si

mesmo.68 Por exemplo, se alguém adotar a concepção de que o mentir é direcionado a outra

pessoa, e caso esse alguém tenha uma teoria da realidade em que não crê em seres espirituais

(imateriais), a única maneira de mentir seria expressando algo distinto com palavras ou outro

signo qualquer. Lembramos que Agostinho menciona que é possível mentir pela emissão de

um sinal ou comportamento corporal, sem necessariamente usar da palavra, mas até mesmo

nesses casos há a presença do outro, a figura do outro é importante para o mentir. Nesse

prisma a interpretação dessas passagens é a de que não se pode contar uma mentira no seu

interior, porque tem-se a presença do outro que é o Espírito do Senhor. Sendo assim, tal

hipótese não fere a regra de que é preciso de um outro para mentir, e logo, mentir nunca é

mentir para si mesmo. Tal qual a questão da promessa, não é possível prometer algo a si

mesmo e não vir a cumprir, até mesmo porque não se trataria de uma promessa, mas de uma

simples deliberação pessoal. No trecho final da Seção 31, Agostinho refere-se à promessa

como sinal de imperfeição do homem, se todos tivessem confiança uns nos outros não

precisaríamos prometer (DM, XVI, 31). E nesse âmbito parece que a promessa também

envolve sempre um outro, seria um modo inadequado afirmar que prometeu a si mesmo, em

verdade quem promete sempre promete para um outro. Aliás, seria incongruente pensar

68 Nesse sentido tomamos por padrão que a mentira é algo que necessita de mais de um indivíduo e aceitamos a posição da impossibilidade do mentir para si mesmo, em nosso entendimento a mentira é sempre dirigida para uma outra pessoa e não a si próprio.

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(apesar da presença de um outro) que seria possível enganar Deus, um ser superior; quem

tentasse seria fadado ao fracasso em razão da natureza perfeita de Deus.69

Para que uma mentira seja contada, sem levar em consideração se a mesma será bem

sucedida ou não (acreditada), é necessário que o mentiroso tenha uma crença que julga ter um

determinado valor de verdade e faça com que intencionalmente essa crença seja acreditada

pelo ouvinte em sentido diverso ao que ele crê (duplo coração). No mentir inconsciente não

vemos tal disposição, nem ao menos a presença necessária do outro. No mais, não nos parece

um bom exemplo para um caso de mentir, visto que falta o componente da intencionalidade, e

sem este, o agente pensará apenas em algo falso. Assim sendo, não aceitamos que é possível o

mentir inconsciente, ou seja, o “mentir sem querer” para si mesmo.

Por seu turno, Kant faz uma distinção entre mentira interna e externa. Segundo Kant

(2003) a mentira interna é aquela que ocorre diante de Deus ou de si mesmo, e a mentira

externa é aquela que tem relação com os demais indivíduos. Logo, a mentira interna denota o

homem empregando a mentira contra si mesmo, “trazendo para si a desonra” (MDC, 2003,

p.271) e a mentira externa que denota o homem como alguém desprezível diante aos olhos

alheios, tornando-o “um objeto de desprezo moral” (MDC, 2003, p.271). Tanto as mentiras

internas quanto as mentiras externas pervertem a raiz da natureza humana. A mentira pode ser externa (mendacium externum) ou, inclusive, interna. Através de uma mentira externa um ser humano faz de si mesmo um objeto de desprezo aos olhos dos outros; através de uma mentira interna ele realiza o que é ainda pior: torna a si mesmo desprezível aos seus próprios olhos e viola a dignidade da humanidade em sua própria pessoa. (MDC, 2003, p.271)

Conforme Loparic (2006) embora seja inegável que os homens se atribuem culpa pelas

mentiras internas, fica difícil explicar a possibilidade desse fato, pois o conceito de engano

proposital a si mesmo parece conter uma contradição. (LOPARIC, 2006, p.61). Kant assume a

ideia da mentira interna parecer contraditória, mas ainda que admita a dificuldade da sua

possibilidade, não descarta a sua existência. Segundo ele, “parece mais difícil explicar como

são possíveis, pois uma mentira requer uma segunda pessoa que se pretende enganar, ao passo

que enganar a si mesmo propositalmente parece encerrar uma contradição”. (MDC, 2003,

69 Sobre essa problemática do mentir interiormente, Nietzsche (1988) em seu artigo: “Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral” (1873) publicado em “O Livro do Filósofo”, admite existir a possibilidade do mentir “inconscientemente”. Mas será que alguém pode contar uma mentira sem ao menos ter consciência de que está mentindo? Isso significaria também dizer que seria possível enganar os outros sem saber que os estamos enganando. Para Nietzsche, a necessidade de ser verídico nos termos da moral é uma obrigação segundo uma convenção estabelecida, o homem mente inconscientemente conformando-se com os costumes seculares. (Nietzsche, 1988, p.69). O buscar a verdade no que é racional não traz ao homem nenhum prazer, por isso, inconscientemente, o homem mente e através desse esquecimento, ele encontra o sentimento da verdade usando a abstração e não a razão. (Nietzsche, 1988, p.70).

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p.272). Tal dificuldade decorre do fato de a mentira requerer uma segunda pessoa a quem se

deseja enganar, e no caso da mentira interna, existe apenas uma pessoa que abriga nela as

duas funções, a de enganar e ser enganado (uma pessoa e dois papéis desempenhados pela

pessoa). Como solução para tal contradição Kant parece sugerir que em cada um de nós

existem duas pessoas: aquela que foi enganada e a que tem a intenção de enganar. A nosso

ver, essa solução se assemelha em muito à doutrina agostiniana da mentira. Porém Agostinho

refere-se não a duas pessoas, mas a dois corações, onde um crê e o outro intenta enganar. O

elemento engano estaria presente na caracterização geral da mentira, ou seja, dizer algo falso

com intenção de enganar e o sucesso da mentira dependeria do realmente conseguir enganar.

No Capítulo II, Seção 02 do “Contra Mendacium”, Agostinho retoma o tema do duplo

coração, porém, agora em relação aos hereges, defendendo a chamada “doutrina das mentiras

verbais”. “Ainda que opinem que esse grande mal é uma coisa justa, mentir com a boca

somente não é pecado nenhum sempre que se mantenha a verdade do coração” (CM, II, 02).

Conforme Agostinho é exatamente a caracterização da mentira, é haver um contraste entre o

que se diz e o que se pensa. “Ou seja, com aqueles que não são próximos a nós, por assim

dizer, membros da nossa comunidade de verdade, é lícita e ainda mais conveniente a mentira”

(CM, II, 02). Ao dizer isso Agostinho refere-se aos membros da comunidade herege, naquele

meio em particular, dizer a verdade valia apenas para seus próprios membros, contra aqueles

que não são membros da comunidade herege a mentira é algo aceitável, sendo permitida e até

aconselhável. Sabemos que em algumas doutrinas morais isso pode ocorrer que os deveres

morais se restrinjam a uma comunidade moral específica, seus membros não possuem

nenhuma obrigação moral com outras comunidades além da sua própria. Logo, o dever de

dizer a verdade também estaria restrito somente aos co membros da comunidade.

Conforme a doutrina das mentiras verbais é possível com a boca dizer algo que não é

verdadeiro desde que no seu interior se adote a verdade (CM, II, 03). Tal doutrina é amparada

na estrutura do duplo coração, ao mentir com a boca se diz uma coisa e no coração se tem

outra. Esse significado é o que entendemos por mentira, o contraste entre a boca e o coração,

mas Agostinho dirá que o ato de mentir não é lícito, ainda que os fins sejam nobres a mentira

não será lícita (CM, II, 03). Como prova de tal afirmação Agostinho menciona que não há

nenhuma passagem nas Sagradas Escrituras que sejam contrárias ao que ele afirma. 70 No

Capítulo VI, Seção 14, Agostinho clarifica essa ideia “Por conseguinte, a frase: o que diz a

70 A tendência de Agostinho no que tange a ilicitutude da mentira quanto aos casos em que os fins são nobres não é confirmada pelas Sagradas Escrituras que é omissa nesses casos, de qualquer maneira também não afirma o oposto, quanto a isso apenas se abstém.

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verdade em seu coração não deve entender como se fosse lícito dizer vocalmente a mentira,

sempre que em seu coração se mantenha a verdade” (CM, VI, 14). 71 Sustentam a verdade no

coração, mas vocalizam a mentira (vocalizam o falso). A verdade além de ser dita

vocalmente, deve ser sentida no coração, crendo interiormente no que se diz. Os hereges, por

exemplo, dizem a verdade com a boca, mas não a dizem com o coração, e por isso, que os

distinguem daqueles que dizem a verdade em seu coração. Eles não crêem na verdade católica

e a expressam para que acreditem que são católicos (a mentira dos hereges é a verdade dos

católicos).

A doutrina do duplo coração é um tema tão importante para Agostinho que a apresenta

também em sua obra “De Magistro”. Para representar essa preocupação, reproduzimos alguns

fragmentos da referida obra abaixo:

Por este motivo, nem sequer resta às palavras o ofício de, ao menos, manifestarem o pensamento de quem fala, pois é incerto se este sabe ou não o que diz. Acrescenta o caso dos mentirosos e enganadores e facilmente compreenderás que, com as palavras, eles não só não revelam, mas até ocultam o pensamento. (De Magistro, p. 354) “...e talvez por valor ele entenda as forças do corpo e com este nome enuncie mesmo o que pensava, sem que minta, sem que se engane no fato, sem que oculte as palavras gravadas na memória, agitando na mente alguma outra coisa, sem que por um lapso da língua emita um som diverso do que corresponde ao seu pensamento; ...” (De Magistro, p.354)

Nesse trecho do diálogo entre Agostinho e seu filho Adeodato diz respeito ao que é

dito/pensado ou expressado. Nota-se que no primeiro caso, o falante pensa uma coisa e diz

outra diversa com palavras. No segundo caso, ele pensa em algo e emite por palavras o que

corresponde ao que estava pensando. Seguindo esse caminho, é possível relacionar

adequadamente a análise agostiniana da mentira com a doutrina do duplo coração.

Esse contexto parece à primeira vista reduzir a possibilidade da comunicação, pois,

nunca se sabe o que se diz na fala (é verdade ou falsidade), ou seja, a força da palavra nem

sempre revela o pensamento de quem fala. Agostinho afirma que as próprias coisas não se

aprendem somente pela palavra, citando o exemplo dos mentirosos, que revelam e ocultam ao

mesmo tempo com as palavras o pensamento. (De Magistro, p.354-355). 72 Enquanto se

71 Conforme fonte original, a tradução “dizer vocalmente a mentira” talvez não seja a mais acertada. O certo não seria dizer que se vocaliza a mentira, mas que se vocaliza o falso. A mentira é exatamente esse contraste entre o que se sustenta no coração e o que se vocaliza, sustenta a verdade no coração e vocaliza o falso, isso é a mentira é esse contraste entre o falso e o verdadeiro e não que se vocalize a mentira. 72 Os mentirosos contumazes que revelam e ocultam a verdade indiscriminadamente dificultam ao ouvinte saber quando falam a verdade ou quando mentem. Esse é um problema que permanecerá em aberto, pois não possuímos a capacidade de “ler a mente” do outro e saber até que ponto o que o emissor diz é verdade ou não.

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mente com a boca do corpo, afirmando mentirosamente algo como se fosse verdade, na mente

(boca do coração) se encontra o que conhece como verdade.

2.3.2 A doutrina do duplo coração e a análise padrão

A problemática que envolve a doutrina do duplo coração diz respeito principalmente a

uma discussão sobre as notas características da mentira. O duplo coração nada mais é do que

uma ênfase sobre a intencionalidade subjacente ao ato da mentira, sob forma de um destaque

à terceira nota na análise padrão de Gareth Mathews, qual seja, a intenção de enganar.

Análise-padrão da mentira73

Ao dizer a A que p, S diz uma mentira se, e unicamente se (i) é falso que p; (condição de falsidade) (ii) S acredita que é falso que p; e (condição falsa-acreditável) (iii) ao dizer a A que p, S pretende enganar A em relação a p. (condição de logro)

As análises fornecidas por Matthews não fazem jus à interdependência das condições

definitórias da mentira. As três cláusulas não são condições independentes; além disso, as

duas primeiras condições da análise-padrão, explicam em parte em que consiste o logro de

uma mentira. Na ausência dessa dependência de cláusulas, não é possível relacionar

adequadamente a análise agostiniana da mentira com sua doutrina do duplo coração.

Seguindo a doutrina do duplo coração em Agostinho, tem-se um coração duplo, o

interior (o que se diz a si mesmo) e o exterior (o que é dito para outros). A definição da

mentira a partir de Agostinho deve seguir esses parâmetros pré-estabelecidos, não é possível

fazer uma correta leitura da definição agostiniana de mentira sem levar em consideração esses

fatores, a leitura tem que ser condizente com a doutrina do duplo coração. Em se tratando da

interioridade, o que se “diz a si mesmo”, não pode ser tomado em um sentido literal, pois,

refere-se às crenças, e, por conseguinte tem-se a cláusula de crença (A crê que ~p, A crê que p

é falso), esse é o coração interior. A respeito do coração exterior tende-se a pensar que é o que

A diz para B (A diz p para B), seria o conflito entre o que se diz externamente e a crença

contida no coração interior.

Sobre tal assunto é incerto dizer a que medida deve se tomar como literal essa

contradição entre os corações. Agostinho foi um brilhante antecipador de vários elementos

contidos na doutrina contemporânea dos atos de fala, poderíamos ampliar esse conceito dado

por ele e tomar o coração exterior como aquilo que é implicitado pelo ouvinte e não como

73 Matthews , 2007, p. 195.

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aquilo que é dito para o ouvinte. Ações autônomas como a exclamação de uma expressão de

sentimento pode implicitar pelo próprio contexto da situação envolvida, por exemplo, uma

ordem, para o segundo agente. Essa interpretação depende do valor referencial de uma

expressão verbal ou corporal emanada pelo sujeito. Assim, os atos locutórios podem ou não

implicitar outras ações, isto é, provocar por meio de expressões linguísticas, certos efeitos nos

sentimentos, e no próprio pensamento e ações de outras pessoas.

Nesse contexto, o coração exterior não significa necessariamente o que o sujeito diz,

mas o que é implicitado. Se o sujeito B desacredita sistematicamente em A, então a forma

mais eficaz de A mentir para B é dizendo a verdade, dizer as coisas como elas realmente o são

e B irá interpretar o contrário e tomará como falso. A implicatura ocorre porque A sabe que B

interpretará como falso o que lhe foi proferido, o engano é bem sucedido porque A sabe que B

desacredita nele. O comportamento sistemático de um agente em realizar tal ação é o que

confere ao outro as ferramentas necessárias para efetuar essa estratégia ardilosa (A diz que p,

e ao dizer p para B, B entenderá como ~p). 74

Assim sendo, deve-se seguir a noção de que toda a definição de mentira precisa ser

cotejada com o duplo coração. O relevante em termos dessa doutrina é que um dos corações

(o interior) é somente crença e não possui valor de verdade dado a sua posição, ou seja, da

crença do agente sobre o valor de verdade do que acredita. O coração externo não é

necessariamente o conteúdo da expressão proferida, mas em alguns casos o ato de fala

envolvido ao se proferir algo. Até porque é possível mentir sem ao menos proferir uma

palavra sequer, mesmo sem nada falar é concebível mentir.

2.4 Sorte Moral

Em traços gerais, o conceito de Sorte Moral pretende chamar a atenção para o fato de

que a realização de uma ação pode depender de fatores que estão totalmente fora do controle

de seu agente. Assim, para elucidar nossa análise a respeito das particularidades enfrentadas

na caracterização da mentira, na subseção 2.4.1 pretende-se apontar para alguns pontos

relevantes acerca do conceito de Sorte Moral e na subseção 2.4.2 estabelecer a relação

existente entre a Sorte Moral e a condição de falsidade.

74 Tal sistemática contextual refere-se à teoria dos atos de fala.

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2.4.1 Concepção de Sorte Moral

Todos somos responsáveis pelas nossas ações, bem como por nossas omissões. Tal

responsabilidade por nossas condutas implica em condições próprias ou adequadas para a

realização das ações. Nessa perspectiva, a mera sorte pode influenciar decisivamente em

condutas habituais, particularmente condutas com conteúdo moral. Sobre a problemática

envolvida a respeito da sorte moral são desenvolvidas inúmeras questões, entre as quais se

destacam: Pode a sorte determinar uma distinção moral? Alguém pode ser considerado imoral

em razão de um ato de sorte?

Tais questões foram abordadas nos artigos de Thomas Nagel (1979) e Bernard

Williams (1981) ambos intitulados “Moral Luck”. De acordo com Nagel (1979) quando um

aspecto significativo do que alguém faz depende de fatores que estão fora de seu controle, e

continuamos a tratá-lo a esse respeito como um objeto de julgamento moral, a isso chamamos

de sorte moral (NAGEL, 1979, p. 26). Assim, conforme o autor, na sorte moral a ação do

agente é moralmente julgada e dependente de fatores que estão fora de seu controle. Williams

(1981) supõe que o conceito de Sorte Moral está naquilo que escapa à caracterização de uma

situação moral como relativa a decisões racionais, como o caráter do agente e as

circunstâncias da ação (WILLIAMS, 1981, p.30). Ele afirma que, em geral, o que é discutido

são exemplos de determinação por parte dos fatos, isto é, de determinação das ações de um

agente, que recebe algo que escapa ao seu controle.

Na posse dos conceitos básicos a respeito da Sorte Moral, vejamos, duas situações

distintas:

A) Alguém faz um disparo com arma de fogo contra sua vítima, mas no momento em que o projétil atingiu a vítima, esta fazia uso de colete a prova de balas, e em razão disso nada sofre. B) Alguém portando uma arma a deixa cair no chão ocasionando um disparo vindo a atingir mortalmente um transeunte que passava naquele exato momento.

Os dois exemplos hipotéticos envolvem eventos ligados à sorte, ou seja, fatores

alheios à vontade do agente. No primeiro caso havia a nítida intenção do agente em provocar

um ato contra a integridade física de alguém, mas por sorte, a vítima estava protegida com o

colete e não se machucou gravemente. A ação em si ruim foi minimizada pela boa sorte. No

segundo caso também há a ocorrência do elemento sorte, porém uma ação que não continha

más intenções se transformou em um infortúnio. A ação sem conotação aparente resultou em

algo ruim pela má sorte. Assim, aquele que acaba matando alguém mesmo sem querer, torna-

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se um assassino, enquanto aquele que embora tentasse matar e não conseguiu, não é um

assassino. 75

A Sorte Moral é um fenômeno ao qual atribui ao agente moral uma “imoralidade” ou

“moralidade” para a ação realizada ou por consequências da ação, ainda que o agente não

tenha tido controle sobre essa ação ou suas consequências. O problema, em última análise,

consiste no fato de que a responsabilidade moral ou a censura moral, não devem ser afetadas

pelo elemento sorte, contrariamente ao que ocorre em alguns casos nos quais à sorte é

atribuído um papel mais importante nas questões morais do que ela realmente tem.

2.4.2 A Sorte Moral no contexto da mentira

A problemática que envolve a sorte moral no contexto da caracterização da mentira

refere-se à condição do falso: se o falso é condição necessária para a mentira, ou seja, se a

mentira tem que necessariamente ter relação com o falso; questiona-se se é necessário que a

nota seja tal que aquele que diz algo verdadeiro, não mente, mesmo que o agente tivesse a

intenção de enganar.

Assim, para determinar a condição de falsidade a uma condição de sorte moral

analisaremos o primeiro item da análise padrão de Matthews (2007) conforme a seguinte

estrutura:

Item 1 – é falso que p, Item 2 – S acredita que é falso que p, e Item 3 – ao dizer a A que p, S pretende enganar A em relação a p

O esquema acima aborda a situação em que alguém (S) acredita que p é falso e, com a

intenção de enganar A, diz p, mas descobre posteriormente que p é, na realidade, verdadeiro.

Nessa acepção a Sorte Moral diz respeito ao falso, porque ao dizer algo com intenção de

enganar, quem profere o falso como se fosse verdadeiro, no entanto se equivoca, pois, de fato

é verdadeiro o que enunciou como falso. Esse pressuposto contém a crença de que o falante

sabe a verdade, portanto mais do que a crença na verdade, exige que o falante profira algo

diverso do que crê, vindo a proferir algo falso para ele no momento do proferimento, mas

conforme as circunstâncias, o que crê ser uma falsidade “por sorte” é verdadeiro.

No caso da mentira, a sorte moral aponta para fatores que estão indeterminados em

razão do acaso, e fora do controle do emissor. Por exemplo, uma pessoa terá ou não dito uma 75 Na boa sorte tem-se uma má intenção e um bom resultado, enquanto na má sorte tem-se uma boa intenção e um mau resultado.

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mentira conforme o ouvinte acredite ou não no que foi proferido. A enunciação resultou em

uma mentira por sorte, do mesmo modo que os agentes epistêmicos nos contra-exemplos de

Gettier chegam ao conhecimento pelo acaso. Mediante a apresentação de contra-exemplos,

Gettier tenta mostrar que S pode estar justificado em ter uma crença verdadeira acerca de p e

mesmo assim não conhecer p. 76 O elemento “sorte” também está presente na teoria de

Gettier. Sorte. O que é mais característico dos casos de Gettier é a sorte que eles contêm. Em qualquer um dos casos de Gettier, na verdade, a boa, mas falível crença justificada em questão é verdadeira. No entanto, há uma sorte significativa na forma como a crença combina o ser verdadeiro com o ser justificado. Alguma circunstância anormal ou estranha está presente no caso, uma circunstância que torna a existência dessa crença justificada e verdadeira bastante fortuita (IEP). 77

Mentir é asserir uma proposição contrária da proposição acreditada. Mentimos ao

dizer algo falso, mas podemos dizer uma verdade quando mentimos, na medida em que

esperamos que seja falso o que foi dito, mas, no entanto por acaso não o é. Em razão do

fortúnio aquela crença falsa era, de fato, verdadeira, por consequência desse raciocínio não

podemos acusar alguém de mentiroso apenas por ele dizer algo falso. Desta forma a mentira

não exige necessariamente uma falsidade ou conhecimento, mas uma crença. A crença deve

ser apenas considerar algo como verdadeiro, desta forma evitando possíveis confusões a

respeito de “ser” verdadeiro e “ser considerado” verdadeiro.

Para elucidar o envolvimento da sorte moral na caracterização da mentira partimos

para a análise da seguinte estrutura:

1. p é verdadeira (~p é falsa) 2. A acredita que ~p é verdadeira (A acredita que p é falsa) 3. A tem a intenção de enganar

O A acredita que ao dizer para B que p, então o B acreditará em p. O acreditar

sistematicamente ou desacreditar sistematicamente em p traduz operações epistêmicas

distintas. A mentira bem sucedida ficaria dependente de fatores alheios ao emissor. Em (1)

que p seja falso ou verdadeiro é exatamente o valor que está fora do controle em geral de A.

Em (2 e 3) a crença e a intenção está dentro do controle de A, mas não o valor de verdade

daquilo que ele emite, isso pode escapar ao seu controle. Agora digamos que A diz p para B,

e A acredita que p é falso e A tem intenção de enganar B, mas por sorte p é verdadeiro, então

nesse caso A não mentiu. O dilema da sorte moral é verificar se trata ou não de uma mentira

76 Os exemplos de Gettier foram considerados por muitos epistemólogos uma afronta à concepção clássica de conhecimento e seu célebre artigo revolucionou a epistemologia contemporânea. 77 Stephen Hetherington. Gettier Problem (online). Internet Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: http://www.iep.utm.edu/gettier/.

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apesar da intenção de enganar. O equívoco é a sorte de A porque ele acaba dizendo algo

verdadeiro para B. A contou com o atributo da sorte, apesar de toda sua intenção em contar

uma mentira, não mentiu, contou com a sorte por estar enganado, por estar equivocado sobre

o valor de verdade de p.

Embora acreditasse ser falso o que proferiu como verdadeiro, em realidade era

realmente verdadeiro. Tal situação expressa a dificuldade de se estabelecer uma definição

segura do ato de mentir quando ocorrem fatos alheios à vontade do agente, e neste caso o ser

ou não mentira dependeria da sorte moral, de circunstâncias alheias (externas) ao agente. É

difícil conceder uma definição que dependa exclusivamente do querer, porque quando A

acredita que ~p é verdadeira e diz p para B, o que foi proferido pode ou não ser mentira

dependendo se o p é ou não é verdadeiro. Não obstante, pode ocorrer o caso de que A nunca

venha a saber se ~p é realmente verdadeiro ou não, e que B nunca venha a saber se A mentiu

ou não.

Aparentemente a boa ou má sorte ocorre frequentemente em nossas vidas e, portanto,

teria uma influência decisiva em nossa qualificação como agentes morais. A sorte moral como

integrante da moral contemporânea preconiza situações que podem ultrapassar o plano das

meras peculiaridades e direcionar atos para certos tipos de ações. Tais situações seriam os

casos em que o agente ainda não cometeu, por exemplo, nenhuma mentira porque teve a sorte

de não ser confrontado com nenhuma circunstância em que fosse tentado ou obrigado a

mentir, e por tal motivo ainda está isento do agir moralmente errado. Esse agente nunca

mentiu não necessariamente porque é bom, mas porque teve sorte em não ser confrontado

com nenhuma questão duvidosa. Talvez ele não tivesse que mentir, porque nunca se deparou

com uma situação dilemática em que necessariamente terá que decidir entre uma coisa ou

outra, onde teria duas alternativas e somente uma saída. A sorte moral nos dias atuais é um

componente na discussão sobre dilemas morais, e dentre alguns pontos trata da questão de

como alguns indivíduos são agraciados pelo destino de maneira diferente quando não têm

influência direta sobre os atos que realizam. Isso simboliza que tal pessoa é “melhor” do que

outra pelo simples fato que essa pessoa não foi colocada a teste em situações tão complicadas

como essa. No caso da mentira, quem mentiu por querer, porque foi induzido ou por estar

diante de um caso difícil, agiu errado, fazendo com que o indivíduo que nada disso fez (que

não precisou mentir) seja moralmente melhor.

Enquanto ato moral do agente os resultados em virtude da presença da sorte moral

poderiam ter sido diferentes ou não. Não teríamos como saber até que ocorresse a

possibilidade desse agente enfrentar uma situação difícil, neste caso, que poderia ser chamado

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de destino ou sorte em circunstâncias antecedentes. Diante disso, reconhecemos a dificuldade

de estabelecer regras acerca das ações em virtude desses acontecimentos que as tornam

incertas ou imprecisas. Em razão das incertezas da vida o agente moral não deve ser poupado

de enfrentar decisões difíceis, e nem sempre este agente poderá contar com a sorte moral.

A respeito da moralidade, a falsidade é uma forma de evasão que conduz à

imoralidade porque dissimula o fundamento da lei moral. De acordo com essa concepção a

mentira é um ato contraditório do homem consigo mesmo, o homem ao fazer uso da mentira

contraria a sua própria autonomia no sentido de fazer mal uso de sua liberdade. Agostinho,

por exemplo, se volta para Deus como uma garantia universal da verdade de modo que ela

adquire um valor divino e universal, e por consequência a mentira é considerada um ato

contra Deus.

2.5 O silêncio eloquente

Em relação às possibilidades de mentir, podemos mencionar as que existem por

consequência da linguagem falada, de atitudes, da linguagem escrita, e até mesmo do silêncio.

Em situações projetadas por Agostinho percebemos que é possível mentir não apenas através

da fala como por gestos com a cabeça, e, inclusive, pelo silêncio eloquente. O intervalo entre

expressões, a omissão, o silêncio, podem implicar um determinado entendimento do ouvinte,

que produz as condições da mentira. A mentira origina-se na contradição entre o signo e a

intenção do transmissor. O mentiroso tem uma ideia na mente que não corresponde ao que é

expresso em palavras ou outros signos quaisquer; a mentira é mais que uma afirmação que

não corresponde à realidade. Ela é a expressão da ação ou omissão do agente, pelos atos de

fala ou pelos atos de cala, mediante gestos e sinais.

A verdade é sempre uma, a mentira não, ela possui várias faces e algumas delas não se

esgotam no domínio do engano, ela abrange também a simulação, a dissimulação, a omissão e

o silêncio. Agostinho considera o silêncio e a omissão modalidades especiais de mentira em

que o indivíduo pode mentir através de seu comportamento corporal. A atitude demonstrada

dá indícios a quem assiste determinada ação ou inação que a pessoa está ocultando algo,

gerando com isso suspeita por parte daquele que o indaga. Para clarificar a presença dessas

situações Agostinho nos traz os seguintes exemplos.

Na Seção 22, do Capítulo XIII, Agostinho apresenta uma situação em que, ao ser

questionado, quem responde não pode silenciar, ou abster-se de responder.

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O que dizer se um homicida se refugia na casa de um cristão e este vê o lugar em que se escondeu, e depois venham a perguntar por ele quem o busca para matar-lhe. Deverá mentir? Se o cristão mente, não oculta o pecado, havendo cometido um pecado tão horroroso aquele que está em favor do que mente? (DM, XIII, 22). E se tratasse de um homem inocente? Se souberes onde se esconde e o juiz lhe pergunta sobre ele. O juiz por sua vez é mandado por outra autoridade superior para prender este homem e levá-lo a morte. Aquele que lhe pergunta não fez a lei, somente a cumpre. (DM, XIII, 22).

Caso 1: Alguém se refugia na casa de um cristão e quem o busca pergunta onde está?

a) Ou o refugiado é um homicida ou o refugiado é inocente

b) Aquele que busca pergunta: Onde ele está?

c) Ao ser questionado o cristão não pode deixar de responder

A análise de tal exemplo nesta seção não vislumbra o teor da moralidade da ação, por

conta disso, não nos importa se o procurado é um homicida ou um inocente, ainda que se

tenham intenções perversas em vista. A relevância nesse exemplo está no modo como é feita a

pergunta e como ela pode ser respondida, a pergunta é feita de tal maneira que o indagado não

possa abster-se de responder. O interrogado ou terá que mentir, afirmando que o foragido

encontra-se em outro lugar, ou terá que dizer que não sabe o seu paradeiro. Nesse caso não

poderá haver o silêncio como resposta, pois a pergunta não será satisfeita somente pelo

silêncio, precisará de um complemento, alguma informação que satisfaça a dúvida de quem

busca pelo refugiado. Além disso, um criminoso ao pedir à sua vítima para dizer onde se

encontra determinada pessoa não causará maiores dificuldades à vítima: ela pode ser veraz e,

ao mesmo tempo, não delatar uma terceira pessoa simplesmente silenciando, omitindo-se

diante da indagação.

Na seção 24, do mesmo capítulo, Agostinho adiciona uma particularidade que torna a

solução do caso mais difícil, ao ser questionado quem responde pode se silenciar, porém seu

silêncio traduz um assentimento. Mas às vezes chegamos a uma encruzilhada mais difícil. Um homem se esconde de maneira que não possa ser encontrado tão facilmente a menos que o delatem. Não nos perguntam onde está e nem nos obrigam a descobri-lo. Perguntam-nos unicamente se ele está em determinado lugar ou não. Se soubermos que está ali e nos calamos, o descobrimos. Ocorre o mesmo ao contestar em não dizer se está naquele lugar ou não. Por essa resposta quem o procura deduz que realmente está ali, embora pudesse não estar, poderíamos responder simplesmente que ao não querer mentir nem ao menos delatar, que ele não estava lá. E desse modo, ou pelo nosso silêncio ou pela nossa expressão, encontram o homem a que procuram. (DM, XIII, 24)

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Caso 2: Um homem se esconde e dificilmente será encontrado a menos que o delatem,

quem por ele busca para descobrir o esconderijo aponta para determinado lugar e pergunta se

o procurado está lá.

a) O procurado está escondido e sabemos onde ele está

b) Quem o busca apontando pergunta: Ele está lá?

c) Se nos silenciamos, o delatamos.

No caso 2 presenciamos um elemento distinto do caso 1 apresentando uma dificuldade

maior na sua resolução. Agostinho na Seção 24 sugere que ao invés de interrogar a vítima

sobre o paradeiro do refugiado, aponta-se para o local e pergunta-se se a terceira pessoa

encontra-se naquele local. A partir de tal enunciado inferimos duas possíveis situações: 1) O

interrogado não sabe o paradeiro do refugiado; 2) O interrogado sabe o local onde o refugiado

se esconde. Caso não se saiba se o refugiado se encontra naquele local ou não, ou se sabe que

não se encontra naquele local, ele simplesmente pode dizer que não sabe, ou dizer que o

refugiado não se encontra naquele local. Mas o que fazer na segunda situação, quando se sabe

que o local apontado é onde realmente se encontra quem está escondido? A solução seria:

delatar, não delatar e silenciar. Ao delatar estaria o entregando à morte, ao não delatar

mentiria, e ao silenciar seria o mesmo que assentir, logo o delataria. Segundo Agostinho no

contexto em que em que se passam os eventos, o silêncio e a omissão indicam que a terceira

pessoa encontra-se, de fato, no local apontado.

Conforme o caso 2, a pergunta foi feita de modo que a resposta à questão será um sim

ou um não, e o questionado terá apenas uma escolha dentre duas alternativas, ou seja, mentir

ou delatar, visto que, o silêncio equivale a delatar. É uma situação que se mostra em um

contexto tal que o silêncio corresponde à delação, à indicação do paradeiro daquele que se

esconde. Neste caso se o silêncio demonstra um assentimento, logo quem é indagado não

pode abster-se de responder, alguma coisa deve ser dita, e o silêncio em si implica uma

resposta. 78 Na posse dessa afirmação projetamos na mente outra situação. Poderia, ainda,

haver outro acontecimento em que o questionado pode beneficiar-se do silêncio para enganar

a autoridade. Se a autoridade pergunta: Aquele indivíduo é o assassino? Reconhece como

sendo o foragido a que busco? Embora o questionado saiba que não é quem a autoridade

busca ele pode se calar, o policial irá interpretar como se de fato fosse o assassino. No

entanto, quem mentiu (mesmo sem nada falar), o fez para proteger o verdadeiro assassino, que

78 Se mediante tal exemplo Agostinho comprovou a possibilidade de mentir até mesmo quando nada se diz, ou seja, pelo silêncio, se a mentira é considerada moralmente errada, o silêncio “mentiroso” também é imoral.

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ganhando tempo pela mentira consegue fugir. Assim, a mentira não é somente aquilo que é

dito, porque inclusive o silêncio pode ser fonte de mentira.

As questões desenvolvidas nos casos 1 e 2, nos remete a análise desenvolvida por

Frege (2002), em sua obra “Investigações Lógicas”, na qual realiza um estudo sobre os

diferentes tipos de perguntas. Conforme suas conclusões há dois tipos de perguntas: as

sentenças interrogativas completas, que são aquelas que podem ser respondidas com um

“sim” ou um “não”, por exemplo, “ele é o assassino”? E a interrogação nominal, que utiliza

um termo indeterminado e cuja resposta nem sempre é um sim ou um não, mas terá de ser

respondida de outro modo, por exemplo, “onde o viu”? (FREGE, 2002, p.16). O exemplo

apresentado por Agostinho no Caso 2, em relação ao silêncio eloquente só funciona para as

sentenças interrogativas (ele está lá?), porque ao permanecer em silêncio, equivale a

responder “sim” à pergunta daquele que aponta. As interrogações nominais (onde ele está?)

funcionarão somente para o Caso 1, em que a resposta demanda um complemento, deixar de

responder nesse caso de nada ajuda a quem pergunta. Mas no caso de uma pergunta que

demanda “sim” ou “não” como resposta ao ficar em silêncio equivale a um “sim”.

Destacamos a importância de tal distinção entre esses dois tipos de pergunta, porque somente

uma delas funciona adequadamente como um ato performativo, no caso do silêncio. O

silêncio só será eloquente quando uma pergunta envolvida é uma sentença interrogativa e não

uma interrogação nominal. É mais perspicaz por parte do agente fazer perguntas que

envolvam um “sim” ou “não” como resposta do que as que envolvam algo distinto como

resposta. Ao fazer a pergunta certa, o questionado poderá mentir, e isso irá transparecer

corporalmente (que mentiu) ou ele pode se constranger e ficar em silêncio, e neste caso o

silêncio é contra ele, pois, será interpretado como um sim. Resta claramente evidenciado que

aquele que pergunta deve ser sagaz para retirar as informações de que necessita, ao fazer as

perguntas certas.

Dentre os aspectos implicitados pelo silêncio, não podemos deixar de lembrar de sua

presença nas discussões jurídicas. No ambiente jurídico existem certas divergências

interpretativas quanto à eloquência do silêncio. O código de processo penal apresenta duas

notas sobre o silêncio: o acusado tem o direito de permanecer calado (art.186) 79, e o silêncio

79 Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. (grifo nosso).

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será interpretado como elemento para a formação do convencimento do juiz (art.198) 80. A

primeira vista os artigos sugerem contradição hermenêutica, porém, a leitura deve ser feita no

sentido de que, diferentemente do exemplo imposto por Agostinho, nesse caso o silêncio não

importa em um “sim”. O silêncio não significa confissão e não pode ser interpretado em

desfavor daquele que silencia. Além disso, no conflito aparente entre leis de configuração

hierárquica menor deve prevalecer o entendimento da carta maior, ou seja, da Constituição

Federal. No Brasil, vigora o princípio da não-autoincriminação 81, o qual assegura ao preso e

ao acusado em geral o direito de permanecer calado e não produzir prova contra si mesmo

(art. 5.º, LXIII CF/88). Em outro dizer, a redação apresentada pelo art. 198 só encontra

legitimidade se interpretada conforme a Constituição Federativa do Brasil, conduzindo à

conclusão de que o silêncio invocado não poderá levar a um convencimento do juiz

prejudicial à parte a qual o invocou. O direito ao silêncio é prerrogativa constitucional que

impede qualquer previsão que aponte para um sentido diverso e que, portanto, revele-se

incompatível com a Lei Maior. O direito ao silêncio é a manifestação da garantia muito

maior, que é a do direito da não auto-acusação sem prejuízos jurídicos, portanto, o acusado

tem o direito de fornecer subsídios à defesa técnica, mas, como aquela é dispensável e

renunciável, pode, também, como forma de defesa, preferir o silêncio.

A partir dos exemplos fornecidos por Agostinho, vimos que a manipulação intencional

de informação pode ser feita mediante gestos, dissimulação, por meio de ação ou inação, e

mesmo pelo silêncio. A mentira não é, necessariamente, um ato de fala. Os atos de fala

dependem do ajuste de quem os enuncia a um procedimento de convencimento aceito que

inclui a emissão de certas palavras, por parte de certas pessoas, em certas circunstâncias; o

que se omite, sinaliza, ou silencia em uma ação não verbal também pode ser, em alguns casos,

considerada mentira. Igualmente se faz necessário para a interação entre locutor e ouvinte é

que eles se sintam parte de uma mesma comunidade de crenças e saberes para que consigam

perceber e decodificar as nuances presentes no discurso. Em tese, ninguém “mente em

solilóquio”, e a mentira também pode ser uma forma de ligação entre as pessoas e não apenas

um corte entre palavras e coisas, porque a linguagem é um fazer juntos.

Unindo a relação de indicação entre a palavra e a coisa, o experimento de pensamento

Agostinho parece antecipar a pragmática filosófica de Paul Grice (1982). Grice desenvolveu

80 Art. 198. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz. (grifo nosso). 81 O principio da não-autoincriminação faz parte da autodefesa e, esta por sua vez possui diversas dimensões, dentre as quais: a) direito ao silêncio; b) o direito de não produzir provas contra si mesmo; c) direito de não confessar.

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uma teoria das relações entre uma expressão, o seu significado, o significado atribuído pelo

falante e as implicações da enunciação. As implicaturas são aqueles processos em que o

enunciado diz algo mais ou até algo diferente daquilo que é explicitamente dito. A ideia

básica de Grice é que as nossas trocas comunicativas (na conversação) são o resultado de

esforços de cooperação, de que existe um princípio de cooperação, segundo o qual todas as

pessoas contribuiriam sempre, de modo pertinente, para as trocas conversacionais em que se

vêem envolvidas. Para Grice o princípio da cooperação está estabelecido da seguinte maneira:

“faça sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo

propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está engajado”. (GRICE,

1982, p. 86).

O princípio da cooperação é elucidado com o recurso a máxima e submáximas

relacionadas a quatro categorias:

1- Quantidade (contribuição informativa) 2- Qualidade (contribuição verdadeira) 3- Relação (contribuição de relevância) 4- Modo (contribuição de clareza) Grice apresenta regras de discurso que devem ser observadas para que o diálogo

evolua de forma eficiente. Uma delas é a da interação do tipo conversação, segundo Grice, tal

interação é regida por um princípio muito geral que se esperaria que os participantes de uma

conversação observassem, seguindo um princípio de cooperação, entenda-se como esforços

cooperativos caso queiram manter uma conversação. (GRICE, 1982, p.86).

Após estabelecer os principais traços teóricos da pragmática de Grice, passamos a

fazer dois comentários. O primeiro refere-se a adaptação do experimento de pensamento de

Agostinho as regras cooperativas de Grice, e o segundo refere-se a uma breve reflexão sobre

as duas primeiras categorias (máximas) do princípio de cooperação com a mentira.

De acordo com as regras referentes aos atos de fala, o discurso opera sobre influência

do princípio de cooperação, assim, o exemplo de Agostinho deve ser adaptado a uma situação

em especial, pois se trata de uma situação inversa onde não há fala, mas um ato de cala. Além

do mais o contexto da mentira não envolve uma conversação, aquele que intenta mentir não

quer cooperar com aquele que pretende enganar, ao contrário, a regra seria cooperar o menos

possível com o outro. E Grice mostra que determinados modos de interação entre indivíduos

envolvem regras constitutivas com as quais deduzimos pelas implicitações que existem

naquele determinado contexto. Desta forma, a perspectiva de Grice precisa, evidentemente,

ser adaptada no caso do tratamento do experimento de pensamento suscitado por Agostinho.

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A interação entre aquele que procura (o assassino) e o interrogado, é uma situação de

opressão em que as regras são diferentes obviamente, não há, evidentemente, uma interação

regida por cooperação ou, ao menos, não completamente regida por cooperação.

Embora seja assimétrica tal interação segue princípios gerais aos quais podem ser

descritos da seguinte forma: O criminoso é regido por um “Princípio de puro interesse”:

“Reivindique seus interesses, independente da cooperação ou não da outra parte envolvida;

afinal, você está no comando.” A vítima, por outro lado, é regida por um “Princípio de

cooperação subordinada ao interesse próprio”: “Se não há prejuízo aos seus interesses

próprios, coopere; caso contrário, não coopere e reivindique seus próprios interesses.”

(SAUTTER, 2011)

O próximo ponto de interesse visa às duas primeiras categorias do princípio de

cooperação de Grice. A primeira categoria é a máxima quantidade, que está relacionada com a

quantidade de informações a serem fornecidas. Essa categoria segue as máximas: 1. Faça com

que sua contribuição seja tão informativa quanto requerido (para o propósito corrente da

conversação); 2. Não faça sua contribuição mais informativa do que é requerido. (GRICE,

1982, p.87).

Grice exemplifica a máxima da quantidade da seguinte forma: Se você está me ajudando a consertar um carro, espero que sua contribuição seja nem mais nem menos do que o exigido; se, por exemplo, num estágio particular eu precisar de quatro parafusos, espero que você me alcance quatro e não dois ou seis parafusos. (GRICE, 1982, p.89)

Certas mentiras possuem o “poder de enganar” ao violar a máxima de quantidade,

quando o falante não é tão “informativo quanto requerido”. Embora estritamente falando, não

é uma mentira, se você tem a obrigação de afirmar p para X e p é verdadeiro, mas uma

mentira por omissão pode ser uma forma de engano, assim como vimos no caso do silêncio

no exemplo de Agostinho.

Não menos importante na perspectiva da mentira encontra-se a segunda categoria do

princípio de cooperação de Grice, a máxima da qualidade “Trate de fazer uma contribuição

que seja verdadeira” (GRICE, 1982, p.87) e suas máximas específicas: 1.Não diga o que você

acredita ser falso; 2. Não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência adequada.

(GRICE, 1982, p.87).

Grice para clarificar a máxima da qualidade expressa o seguinte paralelo: Espero que sua contribuição seja genuína e não espúria. Se necessito açúcar como um ingrediente para o bolo que você está me ajudando a fazer, espero que você não me alcance o sal; se preciso de uma colher, espero que você não me passe uma colher de borracha usada por prestidigitadores. (GRICE, 1982, p.89)

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As implicaturas conversacionais assumem certos princípios cooperativos a serem

seguidos e a mentira é a violação de uma regra das máximas de Grice, a de fazer a sua

contribuição verdadeira, ou seja, não expressar o que você acredita ser falso. As regras de

Grice são importantes para nos expressarmos de forma clara e direta, proporcionando uma

real interpretação das declarações. Porém podemos explorá-las para tentar enganar outras

pessoas durante um diálogo ou uma expressão linguística qualquer, pois, a quebra das regras

básicas de Grice dificultam o entendimento das entrelinhas implicadas nas declarações.

Há uma crescente discussão sobre a mentira em relação à distinção entre “dizer-

significar” em particular sobre questões relativas à como se define uma mentira nos casos em

que ocorrem ironia, falsa implicatura, brincadeiras e vários outros tipos de discursos não

assertivos.

Vejamos os seguintes exemplos:

1) X vai à casa de Y, ao bater na porta da casa X pergunta se Y está; R que atende responde: Y não está, e ao dizer isso pisca um dos olhos, isso significará que X não pode levar a sério o que R está afirmando. Nesse caso pelo gracejo inferido pelo ato de piscar não caracteriza uma mentira, ainda que tenha dito algo falso. 2) Mas se X ao perguntar por Y, R faz um sinal de negação com a cabeça quando na verdade Y está em casa, esse dissentimento implica em uma mentira, mesmo sem nada falar, ao silenciar-se.

Assim como no exemplo de Agostinho, a manifestação gestual do dissentimento com

a cabeça implicou certa interpretação por parte daquele que pergunta naquele dado contexto.

É importante diferenciar casos em que uma interpretação é notoriamente acessível, das que

por uso de ironia, metáforas, ambíguas ou obscuras prejudicam o entendimento do ouvinte.

Essas informações incompletas ou superficiais podem implicar uma realidade diversa daquela

que se pretendia comunicar e o ouvinte interpretar como uma falsidade, e, uma informação

que em princípio não tinha a intenção de enganar transforma-se em mentira. Para a análise de

Grice ter sucesso na comunicação, por exemplo, de que p para X somente ocorrerá se X

acreditar realmente que p é verdadeira. Então, para uma caracterização de mentira, devemos

exigir apenas que o falante tente comunicar que p. Assim, se uma ação, verbal ou não, é uma

mentira, dependerá da interpretação do interlocutor, o ouvinte pode tomar a expressão em seu

sentido literal ou implicar algo oposto do que o agente pretendia produzir. Uma mesma

afirmação sabidamente falsa poderia ser mentira para o interlocutor X e não o seria para o

interlocutor Y. Portanto, os atos locutórios ou não podem implicitar outras ações, é uma outra

dimensão do ato de fala e do ato de cala. As expressões linguísticas podem exercer influência

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de uma forma determinada, sobre as pessoas, para convencer ou inferir certas crenças, por

exemplo. A execução da expressão de pensamento implica a intenção de produzir

determinado efeito no ouvinte.

No ambiente conversacional um indivíduo deve cooperar com o outro, os diálogos

ambíguos ou obscuros prejudicam a interpretação do ouvinte e implicam coisas diversas do

que de fato foi dito. As estratégias manipuladores da informação não são falsificações diretas

da realidade, mas manipulações através de uma pluralidade de modos indiretos de transmitir

significados. A modalidade da pragmática filosófica, coloca a linguagem no centro de nossas

preocupações nos ajudando a pensar o problema do significado em função do uso. A

duplicidade dos enunciados e os equívocos que podem decorrer da interpretação desacertada

de palavras e expressões constituíram um campo fértil, explorado no quadro de temáticas

relacionadas com estratégias de convencimento e enganos. Em certos casos, a mentira não se

opõe à verdade, porque a intenção de mentir pode coincidir, sem querer, com um discurso

verdadeiro. O que decide é a coincidência entre as palavras e as coisas, para além de qualquer

relação intersubjetiva. Ao falar, além do que as palavras dizem claramente, posso não estar

dizendo algo explicitamente, mas de forma implícita e, embora parecendo “não dizer”, eu

comunico. O falante comunica quase sempre mais do que aquilo que diz e, às vezes,

comunica algo diferente daquilo que diz. Os conteúdos podem ser explícitos, se realmente

ditos, ou implícitos, caso se mostrem ocultos. Todos os falantes de uma língua têm, em maior

ou menor grau, uma competência para ler nas entrelinhas, para decodificar elementos

implícitos, entender metáforas, fazer inferências, perceber subentendidos, compreender

ironias, é o locutor que controla as inferências do discurso, no ambiente conversacional.

2.6 Análise de casos práticos

Agostinho elabora no decorrer de seus dois tratados sobre a mentira (De Mendacio e

Contra Mendacium) inúmeros experimentos de pensamento que se inclina a chamar casos de

mentir, e, ao demonstrar o quão problemática pode vir a ser a noção de dizer uma mentira,

torna o tema ricamente filosófico. Veremos nesta Seção alguns casos que Agostinho apresenta

em específico sobre a possibilidade de enfraquecimento de uma ou mais cláusulas da sua

definição, bem como, demais casos potenciais de mentira.

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1) Enfraquecimento da cláusula (i) condição de falsidade (é falso que p)

Ao afirmar a A que p, S profere uma mentira se, e unicamente se; É falso que p e S o profere como verdadeiro; É verdadeiro que p e S o profere como falso.

Caso 1: Alguém profere uma falsidade acreditando dizer algo verdadeiro. (DM, III, 03) Caso 2: Alguém profere uma verdade acreditando dizer algo falso. (DM, III, 03)

No caso 1 não há mentira, mas um erro. No caso 2 há mentira. Caso 3: Matthews sobre esse tópico fornece o seguinte exemplo: Suponha que eu lhe digo que alguém está esperando por você lá fora, apenas com o intuito de o fazer sair da sala, quando, sem que eu saiba, alguém está realmente lá fora à espera. (MATTHEWS, 2007, p.194) S profere uma falsidade sobre p, acreditando ser falso que p, no entanto p é realmente verdadeiro. Nesse caso não houve uma mentira. Ele acreditava que não teria ninguém no corredor, mas em razão do fator sorte, de fato havia alguém, e não houve sucesso no mentir.

Agostinho cientemente exclui primeiramente os chistes entre os candidatos à mentira

justamente pela sua natureza de ser um simples dizer sem intenção. Por isso, salientamos a

expressão “afirmar” que p ao invés de “dizer” que p, tal destaque se dá em razão de que não é

suficiente apenas que S diga algo para A, é preciso fazê-lo com força assertórica.

A condição de falsidade não entra no cômputo daquilo que constitui uma mentira,

segundo Agostinho “Nem todo aquele que diz algo falso mente, se crê ou opina que é verdade

aquilo que diz”; e, logo a seguir na mesma Seção, ele diz: “[...] se pode dizer uma verdade

mentindo se aquele que a expressa pensa que diz uma falsidade e a faz passar por verdade,

ainda que efetivamente o seja”. (DM, III, 03) A falsidade de p é nesses casos mencionada por

Agostinho para esclarecer em que consiste um erro quanto ao valor de verdade de p: “Quem

expressa o que crê ou opina interiormente, ainda que cometa um erro, não mente.” (DM, III,

03). Houve uma intenção de mentir e uma falsidade, mas o que foi dito não era realmente uma

mentira ainda que fosse falso. Isso significa que embora exista uma intenção, não quer dizer

que haverá uma mentira, pois a mentira independe do valor de verdade da asserção, a mentira

se dará com o proferimento tanto da falsidade quanto da verdade. Como vimos no caso três

em que alguém acredita que p é falsa e, com a intenção de enganar outrem, afirma p, mas

descobre posteriormente que p é, de fato, verdadeira. Portanto a falsidade não é uma condição

necessária para a mentira.

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2) Enfraquecimento da cláusula (ii) condição de crença (S acredita que p)

Ao afirmar a A que p, S profere uma mentira se, e unicamente se; S acredita que p é falso; e S acredita que A confia nele ao menos no contexto do

proferimento de p; ou S acredita que p é verdadeiro; e S acredita que A desconfia dele ao menos no contexto

do proferimento de p.

Caso 4: Um homem que, sabendo que certa estrada é muito assediada por bandidos e temendo que seu amigo por cuja segurança se preocupa irá usar essa estrada, e sabendo também que seu amigo não irá acreditar no que dirá, lhe diz que a pode percorrer sem perigo pois não é frequentada por bandidos no intuito de desviar a trajetória do amigo. (DM, IV,04)

Caso 5: Se o mesmo homem dissesse ao seu desconfiado amigo que havia bandidos na estrada, sabendo que eles estariam realmente lá, mas o seu amigo, por não confiar no que diz, seguiria seu caminho por essa estrada e cairia assim nas mãos dos bandidos. (DM, IV,04)

No caso 4 foi dita uma falsidade para não enganar, ou seja, alguém que sabe ou pensa

que está dizendo uma falsidade, mas fala desse modo sem a intenção de enganar. No caso 5 é

dito algo verdadeiro para enganar, ou seja, a pessoa sabe ou pensa que o que diz é verdadeiro

e, não obstante, o diz para enganar.

Os casos anteriores envolvem as seguintes situações:

1-É verdadeiro que p e S acredita que p é verdadeiro; 2-É verdadeiro que p e S acredita que p é falso; 3-É falso que p e S acredita que p é verdadeiro; 4-É falso que p e S acredita que p é falso. Tais exemplos de Agostinho sugerem que o fator confiança (desconfiança) joga um

papel fundamental na possibilidade de ocorrência de uma mentira.

Caso Valor de verdade de p

acreditado por S Comportamento de A em relação a S, acreditado por S

S mente para A que p?

1 Verdadeiro Confia NÃO 2 Falso Confia SIM 4 Verdadeiro Desconfia SIM 5 Falso Desconfia NÃO

Quadro 03 – Fator confiança (desconfiança) na possibilidade de uma mentira

No caso 1, visivelmente não se trata de uma mentira, pois não há contradição entre o

que S acredita, e A confia nele. No caso 2, S afirma o contrário daquilo em que ele acredita e

ele acredita que A confia nele, logo ele tem a intenção de enganar A, e em decorrência dessa

combinação será mentira.82 No caso 4, também há a intenção de enganar: S afirma aquilo em

82 Esse é o caso típico de mentira segundo Agostinho, a que contém a intenção de enganar e a falsidade.

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que acredita, mas ele acredita que A desconfia dele; essa combinação produz uma situação de

intenção de enganar, assim como produz uma situação em que há uma mentira, ainda que falte

o componente da falsidade. No caso 5, embora não constitua uma situação de mentira, há o

componente da falsidade.

Ainda que essas cláusulas sejam traduzidas em termos de crenças, no conflito entre o

que é proferido e a crença interior, o que é dito não pode ter tomado tão literalmente. O

proferimento deve também ser analisado em termos daquilo que é implicitado pelo ouvinte e

não somente como aquilo que é dito para o ouvinte. Se A desacredita sistematicamente em S

então a forma mais eficaz de S enganar é dizendo a verdade, dizer as coisas como realmente o

são e A irá interpretar do contrário e irá tomar como falso. Isso funcionará a medida em que S

é sabedor do comportamento de A, como no exemplo de Agostinho em que o homem sabe

qual o comportamento o amigo irá adotar, ele sabe que seu o amigo tomará como falso porque

desacredita nele. O homem só conseguiu sucesso porque ao dizer que p sabe que seu amigo

entenderá como ~p, nesse mecanismo devemos também considerar a possibilidade de uma

implicatura envolvida nesse contexto.

3) Enfraquecimento da cláusula (iii) condição de engano intencional (S pretende enganar A

em relação a p)

Ao afirmar a A que p S mente se, e unicamente se; S acredita que é falso que p e S pretende enganar A em relação a p; S acredita que é verdadeiro que p e S pretende enganar A em relação a p.

A partir da leitura de Agostinho podemos distinguir dois diferentes tipos de intenção

de engano envolvendo a mentira: 1- a intenção de enganar o ouvinte com respeito a afirmação

falsa; 2- a intenção de enganar o ouvinte com respeito as suas próprias crenças, ou seja, o

nível de aceitação pelo receptor da declaração proferida pelo emissor. Para clarificar tais

afirmações voltamos a estudar os casos 4 e 5, para discutir a intenção de tipo 1 e de tipo 2

respectivamente. A partir da análise do caso 4 temos a intenção de tipo 1, na situação em que

alguém diz o que acredita ser falso e que é realmente falso, mas faz a declaração com a

intenção de que não o acreditem. Esse caso trabalha a dinâmica do duplo coração, pois

envolve uma intenção de proferir uma falsidade, que é contrária ao que ele acredita. O caso 5

utiliza a intenção de tipo 2, onde devemos ser mais cautelosos para responder a pergunta se

houve uma mentira, porque há o elemento da desconfiança do ouvinte.

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Para tentar responder a pergunta sobre quem afinal mente Agostinho desmembra os

casos em quatro situações: (1) Mente aquele que quis dizer uma falsidade ainda que não

tivesse a intenção de enganar; ou (2) Se a mentira consiste em afirmar algo com intenção de

enganar, não mentiu, senão aquele que teve o apetite de enganar ainda que dissesse a verdade;

ou (3) Se a mentira é a afirmação intencionada para induzir ao erro, ambos mentiram: o

primeiro porque quis afirmar uma coisa falsa e o segundo porque quis que cressem em algo

falso ao enunciar algo verdadeiro; ou (4) E por fim, se a mentira consiste em afirmar uma

coisa falsa com o propósito de enganar, nenhum dos dois mentiram, porque um disse uma

coisa falsa para persuadir a verdadeira, e o outro para induzir ao erro, disse uma coisa

verdadeira (DM, IV,04).

Agostinho não responde propriamente qual das opções ele aceita, pelo menos não de

imediato. O que sugere ao longo de seus escritos é que considera a intenção de enganar uma

condição necessária da mentira, e juntamente a isso, a intenção de transmitir uma falsidade,

para constituir suficientes condições de mentira. Se considerarmos seu segundo entendimento

sobre a intenção de enganar, como uma intenção para converter crenças alheias de acordo

com as nossas, aparentemente todos os casos que assim surgirem serão mentiras. Na primeira

situação, por exemplo, Agostinho parece admitir a mentira somente se envolver uma intenção

do tipo 2. O único ponto que Agostinho deixa claro é que “mente quem deliberadamente diz

algo falso com a intenção de enganar” (DM, IV, 05).

No caso da mentira, qualquer forma de comportamento, cuja função é fazer que outros

formem crenças falsas ou privá-los de crenças verdadeiras, caracteriza uma mentira. Esse

comportamento pode ser simplesmente uma questão de sonegar informações, sem dizer

qualquer coisa falsa. Em certos casos, a mentira não se opõe à verdade, porque a intenção de

mentir pode coincidir, sem querer, com um discurso verdadeiro. O que decide é a

coincidência entre as palavras e as coisas, para além de qualquer relação intersubjetiva.

4) Outros casos

Ainda que haja um enfraquecimento de uma ou mais cláusulas, há uma dependência

entre as cláusulas iniciais e a cláusula final, e, é através das cláusulas iniciais que explicamos

exatamente como se está enganando o outro.

Para determinar essa relação de interdependência entre as cláusulas relacionamos

outros prováveis casos de mentir:

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Podemos trocar esses exemplos de sorte por aquele que não quis enganar e pretendia fazer-lhe uma desgraça mais grave, pois muitos se dizem desgraçados ao saber de coisas ao qual deveriam lhe ser ocultadas. E que aquele que quis enganar pretendia com isto proporcionar alguma utilidade, pois sabemos que muitos se suicidariam se soubessem que ocorreu alguma desgraça com seus entes queridos. (DM, IV, 04)

Agostinho menciona que o caso 4 e o caso 5 tratam de exemplos que envolvem o fator

sorte, pois os elementos de confiança e desconfiança do ouvinte em relação ao emissor

contribuem ou não para a configuração da mentira. A partir do fragmento citado acima

criamos os seguintes exemplos: Caso 6: Um homem acredita que não aconteceu um acidente e pretende assustar alguém dizendo que aconteceu algo ruim, mas de fato esse acidente aconteceu. Caso 7: Alguém sabe que seu amigo muito doente irá morrer, quando o enfermo lhe pergunta sobre sua condição de saúde, este lhe engana dizendo que está tudo bem.

No caso 6 a intenção do emissor não era a de provocar um prejuízo, mas de assustar

seu amigo, logo não se trata de uma mentira. No caso 7 temos em mente que Agostinho

acrescenta o elemento da “mentira piedosa” em que o receptor tem a intenção de enganar, mas

visando o bem do próximo. Caso 8: As parteiras que não puderam dizer que foram guiadas por um espírito profético para significar uma verdade futura ao dizer ao Faraó uma coisa por outra, ainda sem saber que o fizeram, e Deus as aprovou e remunerou a medida de sua boa intenção. (DM, V, 07)

Em particular nesse caso 8 encaramos como um exemplo de sentido figurado que não

deverá ser interpretado de forma literal, e sendo assim, não pode ser considerado como uma

mentira pelo conteúdo simbólico de sua significação. A respeito desse assunto Agostinho diz: E dizem que não lhes assustam os exemplos do Antigo Testamento. Tudo o que se narra nele como acontecido pode se entender em um sentido figurado sobre o que aconteceu na realidade. Nada do que se diz ou realiza em sentido figurado pode-se chamar mentira, pois toda expressão dever ser entendida segundo o conteúdo expressado. (DM, V, 07)

No caso 9 apresentamos como exemplo à menção de Agostinho a simulação de Pedro: Caso 9: São Pedro nega a Jesus três vezes, como havia predito Jesus. (Mt 26 34-35; 69-75) 83

83 Mt 26,34-35: “Jesus declarou: 'Eu garanto a você: esta noite, antes que o galo cante, você me negará três vezes'. Pedro respondeu: 'Ainda que eu tenha de morrer contigo, mesmo assim não te negarei'. E todos os discípulos disseram a mesma coisa”. Mt 26,69-75: “Pedro estava sentado fora, no pátio. Uma criada chegou perto dele, e disse: 'Você também estava com Jesus, o galileu!' Mas Pedro negou diante de todos: "Não sei o que você está dizendo”. E saiu para a entrada do pátio. Então outra criada viu Pedro, e disse aos que aí estavam: 'Esse também estava com Jesus, o Nazareno'. Pedro negou outra vez, jurando: 'Nem conheço esse homem!' Pouco depois, os que aí estavam aproximaram-se de Pedro, e disseram: 'É claro que você também é um deles, pois o seu modo de falar o denuncia'. Então Pedro começou a maldizer e a jurar, dizendo: "Nem conheço esse

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Esse episódio bíblico relata a negação de Pedro à Cristo, que disse: antes do galo

cantar você irá negar três vezes a mim! Se fosse admitida a mentira, haveria situações em que

bastariam crer interiormente embora se professasse externamente algo distinto, mas não é isso

que ocorreu nesse caso. Pedro naquele momento em que ele nega a Cristo ele ainda crê

interiormente em Cristo só que não o professa exteriormente e depois se arrepende em ter

negado a Cristo, isso é sinal de que a mentira é um erro. Então no caso desse exemplo as três

vezes que ele negou a Cristo, são 3 mentiras que ele contou, o arrependimento apenas reforça

a ideia do comportamento dos apóstolos de que para o cristão a mentira é um erro, mesmo

que não se altere a situação interior. “Quem estará tão enganado que pensará que o Apóstolo

Pedro sentiu em seu coração o que disse com a boca quando negou a Cristo?” (CM, VI, 13) É

exatamente isso que acontece na mentira, a mentira tem uma discrepância entre o que você

crê e o que você diz, então não é suficiente que você creia interiormente é necessário que você

ao se pronunciar expresse aquilo em que você crê. Caso 10: Se alguém busca por um fugitivo e ao ser perguntado por ele, aponta-se para um terceiro. (DM, X, 16)

Mais uma vez temos presente a situação em que apesar de não ter nenhuma linguagem

falada, a mentira é possível através de sinais, ou neste caso, pelo simples apontar falsamente

terceiro com o intuito de enganar quem busca o verdadeiro fugitivo. Caso 11: Aqueles que sabem não ser de todo verdadeiro o que dizem, e, nas conversações acrescentam informações falsas não para caluniar nem para injuriar, mas para agradar com sua conversa. (DM, XI, 18).

No caso 11, encontramos a típica situação do embusteiro, daquele que gosta de

engrandecer a si próprio, dando informações que são apenas em parte verdade a seu respeito.

Ele falseia sem querer, ou para agradar aos outros, sem a intenção de prejudicar ninguém. Caso 12: Abraão disse que Sara não era sua esposa, mas sua irmã. Depois foi confirmado que na realidade Sara era sua meia-irmã, com parentesco por parte paterna. Portanto se calou de dizer algo verdadeiro, mas também não disse nada falso. (CM, X, 23)

Agostinho retira esse exemplo do livro bíblico de Gênesis, 17, ao qual Abraão diz que

Sara é sua irmã, e não sua esposa para protegê-la de eventuais ameaças. Muitos podem dizer

que não se trata de uma mentira, pois realmente ela tinha parentesco com ele, mas a intenção

de Abraão era enganar, não levando em consideração o significado literal de suas palavras, o

homem!" Nesse instante, o galo cantou. Pedro se lembrou então do que Jesus tinha dito: 'Antes que o galo cante, você me negará três vezes'. E, saindo, chorou amargamente”.

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sistema definitório de Agostinho não faz distinção entre meias verdades e verdades

deliberadamente enganosas das mentiras. Esse é o típico caso em que houve uma mentira,

ainda que Abraão tenha falado uma meia-verdade.

Um resumo dos casos de mentir aos quais foram apresentados e analisados é dado no

quadro a seguir.

Relação de casos de mentir

Casos É falso que p? (valor de

verdade de p) Crença de S sobre p? S tem intenção de

enganar A? Mentira?

06 Verdadeiro Falso Sim NÃO 07 Falso Verdadeira Sim SIM 08 Falso Falso Sim NÃO 09 Falso Verdadeiro Não SIM 10 Falso Verdadeiro Sim SIM 11 Verdadeiro Verdadeiro Não NÃO 12 Verdadeiro Verdadeiro Sim SIM Quadro 04 - Casos de mentir

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3 A AVALIAÇÃO AGOSTINIANA DA MENTIRA

3.1 A moralidade da mentira

Geralmente pensamos que a mentira serve somente para propósitos ardis e de logro,

não relacionamos a ação de mentir a consequências positivas. Certamente que algumas

pessoas só se valem do verniz da linguagem para se beneficiar do poder de convencimento,

mas isso seria estabelecer uma visão muito limitada do alcance e finalidades da linguagem e a

mentira é apenas um fenômeno linguístico dentre tantos na trama da linguagem.

Uma das áreas que constantemente beneficia-se com a discussão da mentira é o campo

jurídico e a partir disso poderíamos pensar uma forma específica do uso da linguagem. No

ambiente jurídico, é aceitável que a autoridade policial ao realizar uma inquirição de

testemunha ou interrogar o acusado, na sua persecução à verdade, realize um processo de

indução ao longo do interrogatório. Tal procedimento muitas vezes resulta na contradição do

interrogado, porque ele acaba dizendo o que não queria dizer, mas o que a autoridade policial

gostaria que fosse dito. Do mesmo modo, embora com intenções diversas, o advogado na

defesa de seu cliente tende a usar de subterfúgios à verdade utilizando-se de artifícios

estratégicos de convencimento. Nesse conjunto é importante esclarecer o ponto referente à

permissão para mentir, e como se dá o seu funcionamento nas condutas estratégicas do

advogado no meio jurídico. O advogado em juízo ou fora deste não possui nenhuma

permissão legislativa para mentir, o que ocorre é uma permissão para propor declarações de

insuficiente respaldo, aquelas em que se emite juízos ao qual não se tem provas suficientes.

Imaginemos que um auxiliar da justiça possua exímia astúcia e poder de estratagema, seria

muito trabalhoso saber quando se está falando a verdade ou quando se está mentindo e esse

mecanismo que relaxa as condições de prova faz com que seja ainda mais difícil a descoberta

da mentira. O resultado disso é que é muito raro reconhecer uma mentira no meio jurídico a

não ser que seja acrescida uma prova cabal. Devido à dificuldade do receptor em reconhecer

se quem emite a declaração está mentindo ou não, o emissor pode valer-se disso para mentir.

Mas não se trata de uma permissão para mentir, apenas de uma estratégia que pode ser usada

para beneficiar-se da mentira na atmosfera de um tribunal do júri, por exemplo, contudo a lei

não ampara esse tipo de comportamento.

Apesar do advogado não possuir uma “autorização para mentir” ele tem direito à livre

manifestação, e pode fazer uso da palavra para manifestar-se perante o juízo ou tribunal em

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relação a fatos ou afirmações que influam no julgamento da causa. Na defesa da

litispendência fortuitamente terá a faculdade de afirmar fatos, dizer algo, que em outras

circunstâncias necessitaria de provas, e ao fazê-lo poderá deixar de vir a sofrer qualquer

sanção pelo excesso no exercício de sua profissão. 84 Isso quer dizer, a lei protege o advogado

em situações em que ele faz uma afirmação que em outros contextos ele deveria provar a

veracidade dessa declaração.

Elucidamos o assunto através do seguinte quadro:

Situação em um contexto de tribunal O advogado A acredita que B mente ao dizer que p e não

precisa provar que é falso que p. Situação fora do contexto de tribunal O advogado A acredita que B mente ao dizer que p e

precisa provar que é falso que p. Quadro 05 - Contextualização da mentira no ambiente jurídico de um tribunal

Se o advogado A realmente acredita que B está mentindo e pronuncia isto em um

tribunal, isso é aceitável, porém, fora desse contexto isto certamente poderia incorrer em um

crime contra a honra, ou seja, uma injúria85 ou difamação86 e tal fato deveria ser provado. Não

poderia simplesmente ser pronunciado sem ter uma base satisfatória de prova ou evidência.

Ainda, em relação ao meio jurídico, citamos as situações que ocorrem no percurso de um

julgamento; há vários aspectos que devem ser levados em consideração até se obter a

condenação do acusado. Por exemplo, circunstâncias alheias à sua vontade, fatos

imprevisíveis, boas intenções, fatores atenuantes que irão provavelmente ocasionar uma

mitigação da pena. Em relação à mentira podemos fazer a mesma confrontação, no que tange

às questões circunstanciais que levam a pessoa a mentir, haveria uma diferenciação entre

agravantes e atenuantes. Todas as mentiras são condenáveis, mas poderia haver uma

mitigação dessa condenação entre os tipos mais graves e os menos graves.

A teoria da lei natural clássica não condena, em princípio, as práticas potencialmente

enganosas como o uso de discurso evasivo e disfarces linguísticos, mas em se tratando de

realmente valer-se da mentira para efetivar essas práticas, isto seria errado, da mesma forma

que a teologia moral católica se manifesta contra a mentira. Na opinião dos teóricos

84 LEI Nº 8.906/94. Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Art.7, XX, § 2º - O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer. 85 A palavra difamação vem do latim diffamare que significa desacreditar alguém. Trata-se de um crime, que consiste em atribuir a alguém fato ofensivo à sua reputação de pessoa íntegra e fiel aos bons princípios da moralidade. 86 A injúria é caracterizada quando se atribui a alguém uma qualidade negativa que ofenda sua honra ou dignidade.

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tradicionais do direito natural, a mentira pode ser benevolente, um ato misericordioso de se

efetuar quando, por exemplo, a vida de um inocente não possa ser protegida de outra forma.

Agostinho em razão dos conhecimentos adquiridos em sua vida pregressa à conversão

cristã e por ser um excelente retórico (FITZGERALD, 1999, p. 724-725) estava ciente dos

perigos e da forma leviana dos usos da linguagem para a produção do mal ou imoralidade,

subvertendo situações. As várias espécies de emprego da linguagem determinam a forma

como as pessoas usam em particular esse veículo e nisto está incluída também a mentira.

Sabemos que a respeito da questão de mentir persistem várias divergências na sua avaliação,

todos possuem sua opinião própria e seu grau de consciência sobre os atos que realizam.

Analisando a moralidade pelo ponto de vista não normativo, mas descritivo, percebemos nos

comportamentos observáveis a dificuldade em se estabelecer algumas regras do que é

moralmente correto. Isso ocorre em razão dos costumes que mudam constantemente, afinal o

que ontem era considerado errado hoje pode ser aceito. E no mentir não é diferente, algumas

sociedades aceitam melhor a questão da mentira do que outras, pois, acreditam ser a mentira

útil nas suas relações interpessoais. Além disso, quem se comportasse de maneira discrepante,

divergindo dos costumes aceitos e respeitados, estaria adotando uma atitude errada, pelo

menos, enquanto a maioria da sociedade ainda não adotasse o comportamento ou costume

diferentes.

Ao finalizar o Capítulo Seis da obra “De Mendacio”, Agostinho indaga: o que está

ainda faltando para que em seus leitores não reste nenhuma dúvida de que nunca será lícita a

mentira? Se entre os bens temporais, nada é mais importante e adorado do que a saúde e a vida do corpo, e se nem mesmo isso pode ter precedência sobre a verdade, o que pode opor-se para convencer-nos a não mentir, aqueles que julgam que às vezes a mentira é conveniente? (DM, VI, 9).

A partir dessa interrogação ele propõe que analisemos o caso se seria possível mentir

para salvar a pureza do corpo. Desta forma ele expõe a seguinte situação: se uma pessoa dita

honorável lhe suplica que minta para que evite com sua mentira que ela seja violada, somente

sendo salva se necessariamente você houvesse de mentir. A esta questão ele responde

diretamente que; de nada serve a pureza do corpo se falta integridade à alma. “A alma não

deverá ser corrompida com a mentira para salvar a pureza do corpo, porque este permanecerá

inviolado se a alma se conserva sem manchas”. (DM,VII, 10).

Agostinho apresenta situações em que se questiona a possibilidade de haver beneficio

decorrente da mentira, e a partir disso produzimos uma classificação da mentira quanto a uma

possível avaliação moral. Ele apresenta na segunda parte do “De Mendacio” sua classificação

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das mentiras, e com base na análise dos capítulos XI e XII extraímos uma taxonomia

quadripartite da mentira. Nossa adaptação da classificação da mentira elaborada por

Agostinho, tem por fio condutor a motivação e os efeitos benéficos e maléficos da mentira

sobre as outras pessoas.

Classificação geral de comportamentos humanos Classificação Primária Classificação Secundária 1. Alguém é prejudicado, ninguém é favorecido 2. Alguém é prejudicado, alguém é favorecido A. o prejuízo supera o favorecimento

B. o favorecimento supera o prejuízo 3. Ninguém, (distinto do emissor) é prejudicado, alguém é favorecido87

Quadro 06 – Divisão quadripartite da mentira

A classificação acima comporta duas maneiras diferentes de interpretação, ela pode

ser analisada tanto do ponto de vista da motivação quanto dos efeitos da mentira. 88 Em

termos de avaliação moral, o primeiro grupo é facilmente visualizado como erro, o último

grupo é mais complexo e sua análise mais difícil, pois, mesmo na situação do tipo 3 em que

ninguém é prejudicado e alguém é favorecido, de acordo com Agostinho mentir é errado. E

esse tipo irá determinar inclusive a avaliação moral da situação intermediária, se ela for dita

errada, a situação intermediária também será considerada errada.

Interpretando essa classificação do quadro 06 com fundamento na motivação de cada

ação, temos os seguintes tipos de mentira: aquela que nem prejudica nem colabora com

ninguém é uma mentira que não tem motivo, é aquela chamada de uma mentira gratuita.

Também temos as mentiras que tem por motivo evitar um mal maior, existem outras mentiras

que o único motivo é prejudicar e aquelas mentiras que aparentemente a justificação é

simplesmente favorecer alguém. Em todos os casos mentir é errado, porém, em alguns deles a

motivação é torpe. (DM, XII, 21). A classificação da mentira interpretada com base nos

resultados por ela produzidos, expressa como a mentira afeta daquela forma esperada pelo

emissor, e a partir de suas consequências. Neste trecho Agostinho menciona diversos tipos de

87 Esse quadro pode ser pensado em termos desses quatro itens para qualquer comportamento. Destacamos no item três que esse “ninguém” é distinto do emissor, referindo-se de acordo com uma classificação geral em torno de qualquer comportamento humano. Nesse ponto houve esse ajuste salientando essa distinção da classificação geral à concepção agostiniana da mentira. Uma vez que, em especial no tocante à mentira em Agostinho o item três não faria sentido, pois, conforme Agostinho sempre há um prejudicado o próprio emissor, ou seja, o prejuízo sobrevirá para a própria pessoa que emanou a mentira. 88 Observamos a admissão de duas diferentes leituras no quadro 2, em virtude de que Agostinho na maioria das seções refere-se aos efeitos da ação de mentir, mas há duas seções em específico em que ele menciona a palavra motivo, referindo-se à motivação do ato de mentir.

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mentira, como a mentira jocosa, a mentira que serve para evitar um mal maior. Na primeira

situação vemos que há obviamente a intenção de produzir um mal, e não evitar nada,

simplesmente quer produzir um mal; a segunda é um mal, mas é um mal menor do que se a

mentira não fosse contada; a terceira são aquelas que não prejudicam em nada, mas que

favorecem a alguém. Segundo essa interpretação de igual forma, em nenhuma das três

situações Agostinho aceita a mentira, para ele a mentira é ruim, é um mal, até mesmo a

mentira jocosa que aparentemente não produz mal algum. (DM, XI 18). Conforme a

exposição contida no quadro 06, compreendemos que no primeiro caso, a mentira já surge

com a intenção de prejudicar, nos casos seguintes, vejamos que a mentiras mostradas nesse

quadro ocorrem a partir de diferentes situações. Como quando alguém mente, faz um mal,

mas mente para evitar um mal maior. Ou quando alguém mente simplesmente por mentir e a

mentira não evita um mal maior e ela não é prejudicial, que é a mentira jocosa, ocorre

simplesmente por diversão, pelo prazer de mentir, ela não faz um bem à medida que evita um

mal maior. (DM, XI 18, XII 19).

Como podemos ver, as mentiras apresentam-se de várias formas; há mentiras que não

tem consequência nenhuma, nem favorável, nem desfavorável, quais sejam, nem para bem

nem para mal, as que aparentemente fazem bem, porque se elas não fossem contadas

sobreviria um mal maior. Na questão da mentira jocosa não há um reconhecimento que elas

são um mal porque são contadas somente para fins de diversão, não há a intenção de

prejudicar nem de favorecer. Agostinho ao fazer uma classificação parece à primeira vista

estar mais interessado em uma avaliação moral da mentira, pretendendo mostrar se alguma

mentira pode tornar-se um “bem”, ou seja, ser traduzida como um ato moralmente aceitável

ou pelo menos permitido.

Para elucidar sua proposta Agostinho, no Capítulo XII do “De Mendacio”, fornece

alguns casos hipotéticos, e para que o leitor o acompanhe sua linha de pensamento lança a

seguinte questão: nas mentiras que defendem ou ocultam alguma fraude é possível haver

alguma exceção? Para responder essa questão ele sugere duas situações: Situação um – um homem que possui muitas riquezas teve uma parte de seu trigo furtado, ele tem uma grande quantidade de trigo e quem lhe furtou o fez para manter seu sustento. Caso alguém tivesse visto esse roubo e fosse interrogado a respeito, deveria mentir em favor do pobre? (DM, XII, 19). Situação dois - um homem que está à sua frente esconde o dinheiro dele para que não seja furtado ou roubado mediante violência. Se lhe perguntam se sabes onde está o dinheiro, deves mentir? (DM, XII, 20).

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Ambos os casos de mentir são referentes às mentiras ditas honestas, aquelas que não

prejudicam ninguém e que, além disso, favorecem a alguém. No primeiro caso alguém mente

sem prejudicar outras pessoas para favorecer um pobre que cometeu um furto, vindo a ocultar

o seu crime. Para o rico seria ínfima a diferença em seu patrimônio, mas para o pobre uma

fonte de provisão. Caso diga-se a verdade será feita uma acusação contra o pobre e a

restituição dos bens ao rico não influirá no seu montante de dinheiro. Caso se minta o pobre

se livrará da acusação e o rico se sentirá injustiçado por não capturarem o responsável pelo

furto. Conforme Agostinho, ainda que não prejudique ninguém e favoreça uma pessoa pobre,

essa ação ocultaria um crime, e logo seria repreensível. (DM, XII, 20). A situação exposta por

Agostinho poderia ser analisada também sobre a perspectiva de Rawls (2002). Em sua obra

“Uma teoria da justiça” ele propõe alguns princípios gerais que regulam a justiça distributiva,

e sobre essa situação hipotética ele afirmaria que é justo aquilo que beneficiam alguns e não

prejudicam ninguém. 89 O fato é que tratar as pessoas como iguais não implica remover todas

as suas desigualdades, mas apenas aquelas que trazem desvantagens para alguém. Se ao

destinar mais dinheiro a uma pessoa do que a outra promoverá mais os interesses de ambas do

que simplesmente dar-lhes a mesma quantidade de dinheiro, então uma consideração

igualitária dos interesses não proibiria essa desigualdade.

Seguindo essa situação hipotética de Agostinho, podemos mencionar também o

escritor Appiah (1997) que em seu livro “Na Casa de Meu Pai”, narra um caso semelhante: Em meados dos anos 70, eu rodava com um amigo inglês (branco) pela cidade ganesa de Takoradi. Meu amigo estava no volante. Num cruzamento, paramos atrás de um grande caminhão de madeira, e o motorista, que não nos viu por seu retro-visor, deu marcha a ré em direção a nós. Meu amigo inglês toco a buzina, mas o motorista continuou recuando... até bater e quebrar nosso pára-brisa. Era uma área movimentada, perto das docas, e houve muitas testemunhas. Ficou bastante claro de quem era a culpa — no sentido do sistema legal — pelo acidente. Contudo, nenhuma das testemunhas dispôs-se a corroborar nossa versão da história. (APPIAH, 1997, p.26)

Provavelmente as pessoas que não quiseram prestar testemunho a favor dos

estrangeiros levaram em consideração a disparidade entre as duas partes. Na comparação

entre o africano e o estrangeiro; o nativo que dirigia o caminhão poderia perder o emprego, já

89 Sob essa perspectiva, a mentira favorecendo o pobre, seria defensável à luz do princípio de justiça como equidade. Tal princípio prescreve que: (a) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de direitos e de liberdades básicas iguais, que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e (b) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e a posições acessíveis a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades, e, segundo, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade. (Rawls, 2002, p.60).

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o estrangeiro somente arcaria com os prejuízos materiais pelo reparo no pára-brisa. O prejuízo

para quem é rico diante de um trabalhador africano é mínimo.

Conforme a “situação dois”, se lhe fosse perguntado sobre onde está o dinheiro e se

sabes onde está e mente, não prejudicará a ninguém e fará um favor a quem necessitava

ocultar seu dinheiro naquele momento? Não. Agostinho novamente utiliza-se da retórica para

firmar sua posição. “Não é lícito ocultar um pecado, mas é lícito cometê-lo?” (DM, XII, 20-

21). Trata-se de uma pergunta meramente retórica, porque não é lícito ocultar um pecado nem

o cometer, será pecado independente do contexto em que é cometido. Agostinho continuará

firme em seu posicionamento afirmando que em ambas as situações a mentira não é aceitável.

Visto que, para ele de nada adianta salvar o seu próximo, se ao tentar salvar o outro você

condena a si mesmo à danação eterna. (DM, VI, 9). Ainda salienta que conforme a doutrina

cristã não se pode amar o outro mais do que a si mesmo, essa tese é amparada pelo

mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. (Mt. 22, 39).

No Capítulo XIII, Agostinho demonstra circunstâncias que envolvem outros motivos

de mentira, citando casos práticos como veremos a seguir: Caso um – O que dizer se um homicida se refugia na casa de um cristão e este vê o lugar em que se escondeu, e depois venham a perguntar por ele quem o busca para matar-lhe. (DM, XIII, 22). Caso dois – Ocorre à mesma situação descrita acima, porém, quem se esconde é um inocente. (DM, XIII, 22). Caso três – Por ordem do imperador foram enviados guardas a casa de um bispo chamado Firmo, que escondia com todo cuidado um homem que se refugiava em sua casa. Quando questionado do paradeiro desse homem respondeu que não podia nem mentir, nem entregar aquele que era procurado. (DM, XIII, 23).

O fator diferencial entre o caso um e o caso dois é a condição de culpa entre aqueles

que se escondem. Haveria alguma diferença entre ocultar um assassino ou um inocente? O

primeiro caso parece não ter muita dificuldade no seu desfecho, alguém pretende matar um

homicida, afinal seria mais fácil delatar um pecador e revelar o paradeiro dele a quem o busca

do que entregar um inocente. Para elaborar a questão Agostinho acrescenta outro elemento, e

se quem estivesse perguntando pelo homicida fosse um juiz, mudaria a decisão do

questionado? Existiria agora uma obrigação de falar a verdade para não incorrer em falso

testemunho? Ainda que essa declaração resultasse na morte de alguém mesmo que essa

pessoa fosse um assassino? Agostinho parece usar a expressão de falso testemunho quando

algo é dito a uma pessoa investida de autoridade, como se referiu ao juiz, e em mentira

quando se tratar de alguém não necessariamente investido de autoridade. Há a possibilidade

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de interpretar esse trecho do texto como uma razão pela qual ele faz essa distinção entre se a

delação é feita a um juiz ou a uma mera pessoa não investida de autoridade. Todavia o

interrogado poderia crer que não iria dizer um falso testemunho ao mentir em prol de um

inocente porque quem lhe fez a pergunta não era propriamente um juiz. Mas nesse caso não

deveria haver um tratamento diferenciado entre ser questionado por uma autoridade ou fazer

uma denúncia espontânea, deve-se falar a verdade em qualquer das hipóteses. Nestas

situações de dificuldade crescente, há claramente um juízo moral sob essas duas atitudes

envolvidas, matar uma pessoa e mentir ambas são erradas só que as situações são tais que

geram dúvida de como caracterizar as ações correspondentes, entre delatar e matar alguém.

Agostinho sugestiona que a alternativa para o caso um e dois estaria na opção da omissão.

Desta forma, o interrogado não delataria o paradeiro daquele que se oculta nem tampouco

mentiria. E se não for possível omitir a verdade, diga a verdade, porque quem comete o

assassinato não é o delator. Isso significa, nas situações em não há como se omitir, é

obrigatória uma resposta (dizer a verdade ou mentir), terá que ser dita a verdade mesmo que

sobrevenha algo ruim. Embora resulte em um mal, não é quem proferiu a verdade que

executará o mal, a sua missão foi feita ao dizer a verdade.

No caso três, o bispo ao efetuar uma omissão vem a suportar o eventual castigo

decorrente dessa omissão de informação, visto que, ele não poderia mentir nem entregar ao

interessado. Posteriormente conseguiu o perdão da autoridade na pessoa do imperador, e isso

demonstra que a pessoa que se ocultava era culpada. A situação em si evidencia o mesmo

caso tratado anteriormente, é uma árdua decisão a ser tomada mesmo que se trate de um

homicida. E inclusive nesse caso todos têm direito à penitência por isso sua ênfase no fato do

homicida encontrar-se refugiado na casa de um cristão. Até mesmo o homicida tem o direito à

vida e a uma penitência que não implique a retirada da vida dele. Um exemplo correlato ao

caso do bispo é o da cristã holandesa Corrie ten Boom (2000), que em sua autobiografia “O

Refúgio Secreto” (The Hiding Place) (1971) conta a história de como ajudou a salvar a vida

de muitos judeus ao escondê-los dos nazistas durante a II Guerra Mundial. Por meio de uma

passagem secreta ela costumava esconder os judeus em um esconderijo na casa dela que

ficava debaixo da mesa. Certa vez os nazistas desconfiados perguntaram para ela onde estava

escondendo os judeus? Debaixo da mesa respondeu e apontou para debaixo da mesa, e é claro

que ao olharem não viram nada. E eles entenderam aquilo como um ato de má educação e

foram embora, mas na verdade eles estavam realmente escondidos embaixo da mesa em um

esconderijo.

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Importante ressaltar que há uma certa gradação da complexidade e da dificuldade de

resolução dos casos que são apresentados por Agostinho. Ele inicia seus experimentos de

pensamento em situações mais simples, casos de mais fácil resolução e a partir disso, parte

para condições mais complexas e que exigem uma reflexão maior do leitor. Nos primeiros

casos as respostas ocorrem rapidamente à mente, e através de suas perguntas retóricas vai

conduzindo o leitor a refletir à medida que vai adicionando novas dificuldades.

No tocante ao caráter moral objetivo das ações, Agostinho prescreve que não podemos

simplesmente fazer o mal esperando que sobrevenha o bem, ainda que o pecado seja venial. E

a partir disso ele faz uma analogia com outras situações, pois, não se corrige uma mentira com

outra, nem um roubo com outro, não se espera corrigir algo com outros sacrilégios. Por detrás

da objeção à mentira segue-se o seguinte princípio: o mal não se corrige com o mal e o bem

não resulta do mal. (CM, I, 1). Isso encontra o seguinte apoio textual nas Sagradas Escrituras:

“do mal resultará apenas o mal, nunca o bem”. (Rom. 3,7-8). Para Agostinho quem está

acostumado a mentir para fazer o mal, e mente para fazer o bem, já faz um progresso muito

grande, pois, uma coisa é propor uma ação como louvável em si mesma e outra é preferi-la

em relação à outra de menor condição. (DM, V, 7).

3.2 Classificação da mentira

Na seção 3.2.1 apresenta-se a classificação e tipologia da mentira segundo Agostinho,

e posteriormente na seção 3.2.2 realiza-se uma análise mais aprofundada com base em

literatura secundária e esforços próprios de reflexão, procurando expor uma interpretação

plausível e uma avaliação da proposta de Agostinho.

3.2.1 A proposta de Agostinho

Na segunda parte do livro “De Mendacio”, Agostinho se dedica à classificação das

mentiras. Seu intuito ao fazer uma classificação parece residir na radical condição e proibição

absoluta da mentira: todas as mentiras são dignas de reprovação, mas nem todas estão no

mesmo patamar de gravidade sob o ponto de vista da salvação da alma. E o engendramento de

uma classificação parece sugerir e estar motivada pelo reconhecimento da parte de Agostinho,

ele reconhece a dificuldade de aniquilar completamente a mentira da vida cotidiana das

pessoas, até mesmo das mendacidades ditas inofensivas. Dessa forma, segue-se do item que

ocupa o topo dessa classificação o dever supremo de buscar a salvação da alma, porque ainda

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que todas as mentiras sejam condenáveis, nem todas são condenáveis do mesmo modo,

existem alguns casos em que uma mentira repercute menos sobre a salvação da alma.

Disposto a reconhecer esses nuances que envolvem a mentira, Agostinho pondera

sobre a relação sopesada entre a intenção subjacente a mentira e as suas consequências.

Assim, para construir a classificação da mentira ele se direciona pelos resultados; a partir dos

exemplos de mentiras oferecidos por ele concluímos que o fio condutor da classificação não é

o conteúdo da matéria da própria mentira, mas as consequências que ela produz. E é o

contexto em que ela ocorre que irá nos dizer quais as consequências a mentira irá ocasionar, e

a partir disso ele retira uma classificação. Todas as mentiras são condenáveis, entretanto, a

ação poderá ter diferentes consequências dependendo do contexto em que ela é proferida e

neste ponto reside a importância de se fazer uma classificação. Sendo assim, as mentiras são

classificadas pelo modo como afetam a realidade, ou seja, a partir de suas consequências.

Depreende-se, no mais, que exista uma impossibilidade de compreensão da mentira

caso seja pensada como algo simples (primário), baseada em apenas um elemento, ela se

apresenta de forma complexa e requer uma série de elementos consubstanciadores. 90 E essa

classificação somente é possível em razão da mentira não demonstrar ser algo

descontextualizado, se assim o fosse, não seríamos capazes de fazer esse tipo de distinções.

Por exemplo, se a mentira ao mesmo tempo pode beneficiar esse ou prejudicar aquele, então

não é algo simples, é algo complexo porque determina pelo menos o envolvimento de duas

pessoas em contextos específicos, ou seja, o que é benéfico ou prejudicial a alguém em um

dado contexto, pode não o ser em outro.

No Capítulo XIV, Seção 25 do “De Mendacio”, Santo Agostinho fornece uma

classificação de oito diferentes tipos de mentiras, das mais graves às menos graves:91

Construção da hierarquia classificatória da mentira

01 A mentira contra a doutrina religiosa. 02 A mentira que prejudica alguém de forma injusta, e não beneficia ninguém. 03 A mentira que prejudica alguém em benefício de outrem. 04 A mentira contada pelo prazer de mentir. 05 A mentira motivada pelo desejo de agradar. 06 A mentira usada para proteger bens materiais. 07 A mentira usada para salvaguardar a vida. 08 A mentira para conservar a pureza do corpo. Quadro 07 – A hierarquia da mentira 90 Tais elementos referem-se a um complexo entre as notas características (falsidade, crença, intenção) que definem o conceito de mentira. 91 Salientamos que a classificação foi elaborada a partir de tradução nossa com referência à edição bilíngue latim-espanhol extraída das Obras Completas de Sto. Agustín, tomo XII – Escritos Morales, pela Biblioteca de Autores Cristianos. Autores como Gabriele Greggersen que utilizaram a versão eletrônica em inglês do sítio Christian Classics Ethereal Library em http://www.ccel.org, apresentam divergências em alguns itens.

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Agostinho parece considerar que algumas mentiras são menos graves do que outras e

dispõe os oito tipos de mentira de acordo com uma gradação de pecado. Através da

explicitação deste quadro entendemos não se tratar apenas de uma classificação, mas de uma

hierarquia de mentiras, porque as mentiras não diferem apenas no tipo, mas também em

gravidade. Além disso, que tal hierarquia é construída tanto a partir do conteúdo da mentira,

como pela maneira como ela afeta seu emissor e seu receptor.

Esses oito tipos de mentira apresentados no Quadro 07 podem ser subdivididos em três

grupos. Os cinco primeiros tipos de mentiras são proibitivos e taxativos “mentir é errado” e

devem ser evitados absolutamente, o sexto e o sétimo um verdadeiro cristão não deve

cometer. O oitavo tipo de mentira também deveria ser evitado, porque também não se justifica

sob hipótese alguma, pois, mesmo aquela mentira que contém boas intenções futuramente

será julgada por Deus. Ademais, esses três grupos são separados da seguinte forma: os cinco

primeiros tipos de mentiras do primeiro grupo são aquelas mentiras que prejudicam alguém e

não ajudam ninguém. O sexto e o sétimo tipo não prejudicam ninguém e ajudam alguém. O

oitavo tipo poderia, em princípio, ser incluído no segundo grupo, mas difere dos tipos do

segundo grupo pelo seu grau de especificidade, tratando não de atos genéricos, mas de um

tipo específico de ato, a saber, atos em que uma moléstia ou agressão física é realizada.

Uma descrição detalhada de cada um dos oito tipos de mentira é fornecida a seguir: 92

Tipo um - A mentira contra a doutrina religiosa (DM, XIII, 21)

Agostinho prescreve esse tipo de mentira como a mais grave e por isso a coloca no

topo de sua classificação. Para ele a mentira que leva ao erro religioso é grave porque ao se

falsificar a doutrina peca-se contra as Sagradas Escrituras, há um ensinamento errado da

doutrina. Nesse prisma é razoável interpretar como um pecado gravíssimo pecar contra o

Espírito Santo, pois, seu papel é disseminar da palavra de Deus, e neste caso há uma

falsificação da doutrina cristã. A verdade em relação à doutrina é a responsável pela castidade

da alma, e se esta é perdida não há outra possibilidade de conservar a pureza do espírito.

Agostinho reitera essa noção a respeito de mentir sobre a doutrina de Cristo na obra

“Contra Mendacium” dando continuidade ao seu pensamento. Essa motivação dá-se em razão

dos priscilianos que são um grupo de indivíduos que pretende trazer pessoas a Cristo sob uma

forma de heresia em que a mentira é aceitável como um meio para trazer pessoas ao seio da

comunidade cristã. Os priscilianos se viam no direito de esconder a verdade, quando lhes

92 As referências ao lado de cada tipo de mentira equivalem a situações assemelhadas a cada tipo. Agostinho não exemplifica de forma ordenada cada um dos tipos de mentira.

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aprouvesse, o que normalmente representa um erro não menos grave, do que o de proferir

uma mentira diretamente. Agostinho mostrou-se contra essa prática, alegando que não se pode

mentir para angariar fiéis, não é certo esse método, porque eles mentem, mas o católico não,

“Destruirás a todos os que dizem toda e qualquer classe de mentiras” (CM, I,1).

Tipo dois - A mentira que prejudica alguém de forma injusta, e não beneficia ninguém

(CM, I,1)

Esse tipo de mentira é proferido pelo simples intuito de provocar dano a alguém, sem

haver necessariamente nenhum benefício a qualquer pessoa. De acordo com Agostinho,

julgamos tratar-se da calúnia, injúria e da difamação, ações motivadas pela maldade, da

inveja para o propósito de prejudicar, causando um mal a alguém. Da perspectiva religiosa é

visto como um pecado, porque viola o principio de caridade ao próximo, e este dever de

caridade não se confunde com um mero respeito ao outro, mas um dever também de justiça,

pois nele está intrínseco uma obrigação de amor e benevolência. As consequências injustas

que esse tipo de mentira proporciona referem-se à exploração do próximo e uso de má fé.

Tipo três - A mentira que prejudica alguém em benefício de outrem (CM, IX, 20)

Possui a essência prejudicial semelhante a uma calúnia, porém quem utiliza este tipo

de mentira faz para conceder algum benefício a um terceiro. É difícil de conceber o uso desse

tipo de mentira, principalmente porque quem profere a mentira espera conseguir algo à

custa de outros ou do sofrimento dos outros.

Tipo quatro - A mentira contada pelo prazer de mentir (DM, XI, 18)

Poderíamos dizer que esse tipo de mentira é muito conhecida daqueles que possuem a

mentira como “esporte”, utilizando-a em seu dia-a-dia de forma recorrente, nas mais variadas

situações. Seja para contar vantagem ou causar alguma impressão ao outro, ao dizer que

frequenta os melhores lugares, que já viajou pelo mundo várias vezes, quando dá uma

informação errada a respeito da idade ou em relação ao seu peso, e assim por diante.

Tipo cinco - A mentira motivada pelo desejo de agradar (DM, XII, 19)

Notamos a presença desse tipo de mentira especialmente nos discursos, nas falas das

pesssoas que omitem ou acrescem certas informações a certas pessoas com o propósito de

futuros benefícios, pretendendo auferir algum proveito daquela pessoa através da subjugação

desta pelo discurso. Esse tipo de mentira é contado para agradar aos outros, por exemplo,

através de um discurso, por um elogio descabido ou exagerado, pelas falsas promessas. Usa-

se uma espécie de floreio na linguagem, aonde se aproveitam da conversação para agradar a

quem os ouve. Em uma conversação muitas vezes há a supressão, o realce ou o exagero de

informações com a intenção de que o ouvinte acredite no que está sendo dito.

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Tipo seis – A mentira usada para proteger bens materiais (DM, XII, 20)

Acreditamos se tratar das “mentiras brancas” ou “mentiras piedosas”, aquele tipo de

mentira que é emanado com o propósito de ajudar alguém que se encontra em uma situação

de risco ou perigo, ocorre geralmente em função de uma “boa causa” e por isso, não são

julgadas pela maioria como erradas, já que visam o benefício do próximo. Observamos esse

tipo de mentira principalmente nas instituições, em pequenos grupos, nas famílias ou entre

amigos. Agostinho relata o exemplo de alguém que mente para o ladrão que tem a intenção

perversa de roubar injustamente o dinheiro de outrem. (DM, XIV, 25). A mentira nesse caso

se bem sucedida fará o ladrão desistir de efetuar o roubo, e o proferidor da mentira terá

beneficiado alguém. Nesse tipo de mentira, Greggersen (2005), entende tratar-se da mentira

dita por conveniência que prejudica o outro psicológica ou economicamente. Pois para ela,

embora o prejuízo não seja aparente, ele pode ser profundo e duradouro, como, por exemplo,

no caso do “caixa dois” de uma empresa ou da omissão de algum rendimento ao “Leão do

Imposto de Renda”.

Tipo sete - A mentira usada para salvaguardar a vida (DM, XIII, 22)

Trata-se do tipo de mentira que não prejudica ninguém e favorece alguém. É um tipo

muito especial de mentira, particularmente se nos referimos à época em que viveu Agostinho,

onde eram realizados julgamentos que decidiam se os acusados pagariam sua sentença com a

própria vida. Sobre o assunto ele expõe o caso de alguém que diante do tribunal, quando lhe é

perguntado a respeito do paradeiro de um assassino: denunciar o paradeiro do homicida não é

trair, mas se você fizer isso espontaneamente fora do tribunal seria trair? (DM, XIII, 22). Não

é perguntado sobre o pecado, mas pelo lugar onde se encontra o pecador, então não seria um

mal mentir para o que está em pecado.

Nesse ponto Greggersen (2005) novamente apresenta outra interpretação acreditando

se tratar da mentira em benefício próprio, mas que não prejudica ninguém e também não

ajuda ninguém. Afirmando ser aquela mentira dita por preguiça de pesquisar mais ou ir mais a

fundo na realidade das coisas.

Tipo oito - A mentira para conservar a pureza do corpo (CM, X, 23)

Esse tipo de mentira é aquele que não prejudica ninguém, e que liberta alguém de

prejuízo físico, prevenindo de um atentado impuro contra seu corpo. Esse último tipo de

mentira cita o corpo, um aspecto que não fora mencionado nos outros tipos anteriores, a

motivação para este feito tem relação com a própria doutrina religiosa de Agostinho, pois,

para ele o prejuízo ao corpo não é tão importante quanto a salvação da alma. Existe uma

finalidade específica para que o prejuízo ao corpo esteja em último lugar na sua classificação,

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ele leva em consideração uma série de elementos para a formulação dessa classificação, e a

sua ordem tem um propósito. Em ambas as obras de Agostinho a respeito da mentira

encontramos diversas passagens em que claramente o espiritual se mostra mais importante do

que o material, portanto, é natural entender que a mentira afete apenas o corporal, e o físico

esteja em um tipo mais baixo dessa hierarquia.

3.2.2 Interpretação e avaliação da proposta

Usualmente concebemos a mentira como uma relação de beneficio de quem a emana

em desfavor do ouvinte, ou seja, aquele que mente se beneficia da mentira, e aquele que a

ouve é quem está sendo prejudicado, recebendo os efeitos danosos decorrentes do

proferimento da mentira. Agostinho inverte essa noção generalizada da mentira e fornece um

novo sentido a ela, aduzindo o prejuízo a aquele que mente, e não ao ouvinte, “Há mentiras

ainda que com intenção de enganar, não prejudicam em nada a quem as ouve, mas são

nocivas para quem as diz”. (CM, III, 4). Ao dizer que é sempre quem mente o prejudicado ele

subverte completamente a noção que temos da mentira, pois, a impressão é que se beneficia

aquele que profere a mentira, e ele nos mostra justamente o contrário. A visão típica da

mentira se desfaz a partir desse aprimoramento teórico que especifica que o prejuízo recai

para si, para quem está mentindo, mesmo que eventualmente advenha o prejuízo de outrem, o

proferidor é o maior prejudicado. Isso significa dizer que Agostinho não está pensando nos

efeitos imediatos da mentira, os de curto prazo, mas dos efeitos a longo prazo. Por

compreender que o prejudicado é o próprio mentiroso, porque esse é quem coloca em risco a

sua alma, por isso, a longo prazo a mentira é prejudicial.

Para Agostinho a mentira sempre proporciona um dano a si mesmo e que pode

agravar-se e vir a prejudicar outra pessoa, por isso são condenáveis, até mesmo o embusteiro

que se pode dizer que mente por vezes e sem intenção de fazê-lo, do que o mentiroso que

deseja a mentira e dela extrai o prazer interior de contá-la. As consequências externas também

contribuem em grande escala para a construção dessa ordem. Agostinho se coloca

frontalmente contra qualquer atenuante ao ato de mentir, tal ato além de ser errado

proporciona uma consequência prejudicial, ocasionando dano físico e, o que é pior, em alguns

dano da alma. Ele faz essa distinção: mentir sobre coisas importantes, da fé ou da moralidade,

por exemplo, é sempre gravemente errado. Outras mentiras, sobre assuntos de menor

importância são bem menos graves, mas sempre erradas.

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Um modelo a partir do qual podemos pensar a proposta de Agostinho é um tipo

específico de consequencialismo tal como encontramos em Mann (1999). Ele propõe

pensarmos em uma forma de consequencialismo ao qual prescreve que nenhuma ação é errada

a menos que objetive produzir algum mal. Essa versão consequencialista de dano seria

necessária para a concepção da ilicitude, mas não seria suficiente para demonstrar que houve

intenção93. Poderia ter ocorrido o caso em que o agente em situação isolada fez um ato

prejudicial para prevenir um dano maior, ou para produzir algo melhor, ou ainda que o dano

fosse inevitável. Um consequencialista, por exemplo, ao comparar o caso da mentira tipo 2

(que prejudica alguém de forma injusta, e não beneficia ninguém) com a mentira tipo 6 (que

não fere ninguém e ajudam alguém), iria dizer que os casos não são suficientemente

específicos, se fosse o caso de ambas as mentiras serem evitáveis, elas não teriam

consequências mais relevantes, mas ao tratar de consequências a longo prazo, a mentira tipo 2

seria considerada pior do que a mentira tipo 6 porque simplesmente é a mais prejudicial, na

sua visão ela causaria maiores danos.

Adaptando a descrição de Mann (1999), esses tipos são descritos do seguinte modo:

Tipo 02) A pessoa mente, intencionalmente causando prejuízo a alguém e não ajuda ninguém. A pessoa mente, inadvertidamente causando prejuízo a alguém e não ajuda ninguém (Mann, 1999, p.156, grifo nosso). Tipo 06 94) A pessoa mente, intencionalmente não causando prejuízo a ninguém enquanto salvam as posses de alguém. A pessoa mente, inadvertidamente não causando prejuízo a ninguém enquanto salvam as posses de alguém (Mann, 1999, p.156, grifo nosso)

Com base na adaptação desse modelo construímos o seguinte quadro: 95

93 William E. Mann. Inner-life ethics. In: Gareth B. Matthews (ed.). The Augustinian tradition. Berkeley, Los Angeles, London, University of California Press, 1999, p. 156. 94 Neste ponto referente à mentira de tipo 6, preferimos manter a tradução de William Mann ao texto por ele analisado em latim, e adotamos o sentido de “Mentiras que não ferem ninguém e ajudam alguém” para sustentar o exemplo adotado por ele. Ao contrário Gabriele Greggersen adotou o entendimento de “A mentira que beneficia em detrimento ou prejuízo de alguém, mas não de forma física.” Acreditamos que nesse tipo em especial não há a figura do prejuízo, visto que, Agostinho no livro De Mendacio, capítulo XIV, seção 25, p. 577, exemplifica o sexto tipo de mentira da seguinte forma: “alguém diz uma mentira para um ladrão que quer roubar injustamente o dinheiro do próximo”. 95 Mann utiliza apenas as mentiras de tipo 2 e de tipo 6, para completar a tabela acrescentamos mais três casos, que correspondem na classificação de Agostinho as mentiras de tipo 3, tipo 4 e tipo 5.

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Mentira Há intenção de prejudicar?

Há intenção de beneficiar?

Há intenção de mentir?

Tipo 2

Sim Não Sim Sim Não Não

Tipo 6

Não Sim Sim Não Sim Não

Tipo 3 S S S Tipo 4 N N S Tipo 5 S S N Quadro 08 – Análise das mentiras de tipo 2 e de tipo 6

Agostinho considera que todas as mentiras são categoricamente pecados,

independentemente de sua motivação ou resultado. De acordo esse entendimento,

provavelmente ele iria concordar que a mentira inadvertida de tipo 2 é mais prejudicial do que

a mentira inadvertida de tipo 6, embora, segundo os critérios morais, elas estivessem em igual

patamar, ambas são moralmente recrimináveis, consideradas erradas e são fontes de pecado.

Mann sugere que Agostinho ao escrever o livro De Mendacio tinha em mente a comparação

entre mentira intencional tipo 2 e mentira intencional tipo 6. A primeira é considerada mais

pecaminosa do que a segunda, devido a questão do “prejudicar intencionalmente a alguém” e

não apenas pelo grau de prejuízo causado, e isso, de acordo com a doutrina de Deus, é

desrespeitar o mandamento que prescreve que devemos amar ao próximo. Essa interpretação

de Mann (1999, p.157), em que há um destaque à vida interior dos indivíduos, está em

consonância (harmonia) com a classificação proposta por Agostinho.

A classificação das mentiras feita por Agostinho se mostra peculiar pelo fato de que

além de distinguir os tipos de mentira por uma gradação de pecado, distingue os tipos também

em razão de sua motivação ou consequências. Equivale pelo efeito que a mentira tem sobre

outras pessoas e sobre si mesmo, e não pelo conteúdo da fala dita mentirosa, como geralmente

é feito nesse tipo de classificação.

Agostinho também expõe alguns casos de situações dilemáticas envolvendo a mentira,

em que aparentemente é “inevitável” 96 mentir, senão ir-se-ia sofrer de alguma violação ou

algo terrível. A resposta para essa questão, ele fornece da seguinte forma: “é preferível perder

96 A respeito do termo “inevitável”, destacamos que é possível evitar de mentir e vir a sofrer uma violação. Na guerra da Bósnia, por exemplo, os conquistadores daquele lugar tiveram sistematicamente uma chamada limpeza racial, eles estupravam as mulheres dos conquistados para que elas tivessem filhos deles que se consideravam de raça superior, com a certeza de que essas mulheres por razões religiosas não iriam cometer o aborto. Paririam os filhos e os criariam porque o aborto é um atentado à vida, que é superior, é mais grave do que o estupro que elas sofreram. Assim acreditamos que não é inevitável mentir, depende da concepção pessoal, há pessoas que preferem sofrer a violação do que mentir. Significa que em situações em que aparentemente só tem uma solução, isso pode ser deslocável dependendo da doutrina sustentada pelos indivíduos, uma pessoa religiosa pode tomar certa decisão sustentada por sua crença, o que talvez outra pessoa qualquer em igual situação não faria o mesmo.

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o corpo a perder a alma”. (DM, XV, 26). 97 O importância em dispor de uma hierarquia

mentira se enfatiza na possibilidade de haver uma situação dilemática em que a pessoa se

coloca obrigada a escolher entre duas mentiras, ela poderia optar pela menos grave. Muitas

passagens do livro de Agostinho poderiam ser analisadas dessa maneira, caso houvesse uma

situação em que a mentira teria que se fazer presente, então que se minta de forma menos

grave. Observamos que entre escolher mentir desse ou de outro modo não é indiferente, os

dois são ruins, não existe diferença entre pecados, ou seja, grandes ou pequenos pecados,

afinal ou é ou não é pecado. 98

3.3 A ladeira escorregadia da mentira

Nesta Seção será analisado o argumento da falácia da ladeira escorregadia e suas

consequências em relação a eventos futuros. Para tanto, desenvolveremos a seção em duas

partes, a saber: na Subseção 3.3.1 a conceituação desse tipo de argumento e sua aplicação

usual no campo da ética e bioética, na Subseção 3.3.2 será abordada a ligação do argumento

da ladeira escorregadia à mentira a partir da teoria agostiniana.

3.3.1 Caracterização da falácia da ladeira escorregadia

O argumento a ser analisado é designado pela expressão inglesa ‘slippery slope’. Sua

tradução para o português comporta diversas terminologias diferentes como: ladeira ou rampa

escorregadia, terreno ou declive escorregadio, ladeira de derrapagem, bola de neve, efeito

cascata, declive ardiloso, efeito dominó, etc. Atualmente existem diferentes séries de

argumentos que são chamados de ‘slippery slope’, os mais discutidos por autores norte

americanos são os tipos: conceitual, imparcial e causal (FOGELIN, 1997, p.308). Neste

trabalho trataremos apenas o argumento do slippery slope do tipo causal. O argumento desse

tipo pode ser representado por um interessante exemplo que ocorreu na intervenção do

governo dos Estados Unidos no Vietnã em 1960. Foi alegado que se os comunistas tomassem

97 No capítulo XV, seção 26 do De Mendacio Agostinho coloca em destaque a autoridade divina, e essa se traduz pelas Sagradas Escrituras, não como fonte única da autoridade divina, dessa tradição católica também se encontram a vida dos justos que sirvam como exemplo. Se Deus seja através das sagradas escrituras, seja através da vida dos justos, não impõe nenhuma restrição sobre a mentira, ela é legítima, não importando de que outra fonte se origine. Se a fonte da autoridade divina concede por omissão a mentira, a mentira é permitida. 98 Relembramos que conforme o que se extrai da leitura de Santo Agostinho, ele adota essa acepção de que não existe diferença entre um pecado maior ou um menor, todos são igualmente pecados. Ele ainda menciona que pecar contra o Espírito Santo é imperdoável, os outros são perdoáveis, mas contra o Espírito Santo é definitivo, não há perdão.

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o Vietnã, eles tomariam o Cambodia, depois o resto da Ásia, e outros continentes, até se

expandir para o mundo todo (FOGELIN, 1997, p.313). Isso seria o chamado efeito dominó,

ao cair um país, os países vizinhos também cairiam da mesma forma.

O slippery slope estipula que um simples ‘empurrão’ basta para que se perca o

controle sobre as ações futuras. Por exemplo, defensores do rigor da lei podem utilizá-lo

alegando que pequenos crimes levariam a grandes crimes e críticos do consumo de drogas o

podem utilizar alegando que a liberação de drogas leves incentivariam as drogas duras. Então,

se um evento ocorre, ocorrerão outros similares, ainda que não se tenha prova que estes

realmente foram causados em função do primeiro evento. Esse tipo de argumento pressupõe

que depois de dado o primeiro passo, aceitando a proposição em questão, é inevitável

prosseguir ladeira abaixo, já que há uma sequência de passos que se segue inexoravelmente ao

primeiro (WALTON, 2006, p.31).

A falácia da ladeira escorregadia pode ser representada da seguinte forma válida:

Se X1, então X2. Se X2, então X3. ... Se Xn-1, então Xn. X1. Logo, Xn. Embora tenha uma forma válida, a falácia da ladeira escorregadia não é considerada

um bom argumento, porque ainda que não seja possível determinar qual premissa condicional

deva ser rejeitada, pelo menos uma delas deverá ser rejeitada, neste ponto reside seu caráter

de falácia nesse tipo de argumento. Argumentos sob uma ladeira escorregadia são

mais convincentes quando não for possível distinguir no curso proposto da ação o

incompatível ou inaceitável. A real questão não é a progressão inevitável da ladeira

escorregadia, mas a base racional para a sua restrição em primeiro lugar. Esse tipo de

argumento pode ser racional quando houver provas ou evidências suficientes para tornar suas

premissas plausíveis. Apenas quando essas provas ou evidências não forem apresentadas é

que se pode dizer que um determinado argumento desse tipo é errôneo, incorreto ou não

persuasivo. (WALTON, 2006, p.378).

A falácia da ladeira escorregadia ocorre quando uma proposta é criticada, sem provas

suficientes, sob a alegação de que irá levar, por uma sequência inevitável de consequências

estreitamente ligadas, a um resultado catastrófico (WALTON, 2006, p.31). As questões que

utilizam desse recurso possuem um caráter extremamente polêmico. O argumento da ladeira

escorregadia nesse sentido é amplamente utilizado no campo da ética e bioética para opor

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certas questões controvertidas como: o aborto, a eutanásia, e o controle de natalidade. Um

exemplo esclarecedor de aplicação dessa falácia é fornecido nas primeiras linhas do ensaio

intitulado “Uma defesa do aborto” da filósofa Judith Jarvis Thomson. Ela reconstrói o

argumento mais freqüentemente empregado pelos opositores do aborto da seguinte maneira: Somos solicitados a noticiar que o desenvolvimento de um ser humano da concepção, por intermédio do nascimento, até a infância é contínuo; então é dito que para traçar uma linha demarcatória, para escolher um ponto no desenvolvimento, e dizer ‘antes desse ponto a coisa não é uma pessoa, depois desse ponto ela é uma pessoa’, fazemos uma escolha arbitrária, uma escolha para a qual, dada a natureza das coisas, nenhuma boa razão pode ser dada. Conclui-se que o feto é, ou, em todo caso, que é melhor dizermos que ele é, uma pessoa a partir do momento da concepção. (THOMSON, 2012, p.146)

A partir disso, ela, oferece um contra-exemplo ao argumento acima apresentado,

recorrendo a um argumento analógico no qual a condição de feto e a condição de pessoa são

comparados à condição de fruto da árvore de carvalho e à condição de árvore de carvalho,

respectivamente. Assim, como o fruto da árvore de carvalho não é, e sequer é melhor

dizermos que é, uma árvore de carvalho, ainda que não consigamos traçar uma linha

demarcatória, no desenvolvimento do carvalho, entre o fruto e a árvore, assim também um

feto não é uma pessoa, ainda que não consigamos traçar uma linha demarcatória, no

desenvolvimento de uma pessoa, entre feto e pessoa. Na opinião de Thompson, “Um feto é

uma pessoa” e as condicionais têm a forma: “Se num dado instante de tempo a coisa é uma

pessoa, então num instante de tempo imediatamente anterior ela também é uma pessoa”.

(THOMSON, 2012, p. 145-146)

Uma sociedade que ao assumir o direito de matar bebês no útero (porque são

indesejados, imperfeitos, ou simplesmente inconvenientes) teria dificuldades em assumir o

direito de matar outros seres humanos? Especialmente em se tratando de adultos mais velhos

que são julgados indesejáveis, considerados imperfeitos físicos ou mentais. É um argumento

no qual se conclui que certas medidas aparentemente plausíveis poderão ser estendidas de

maneira indevida.

Por exemplo:

Hoje foi apresentado um projeto de lei que permite o aborto de fetos sem cérebro. Logo, amanhã irão propor a liberalização total do aborto. Isso significaria dizer que: Se o governo permitir o aborto até o terceiro mês, logo ele

estará permitindo até o final da gravidez... Nesse argumento, a premissa compara a proposta de hoje com um declive que poderá

nos levar a ‘cair’ amanhã. As pessoas que defendem a proibição do aborto comumente

admitem o fenômeno da ladeira escorregadia. Os opositores ao aborto alertam que uma vez

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feita uma pequena concessão para matar um embrião, virá uma para matar o feto de até três

meses, e depois, será permitido matar até os cinco meses, e com isso virá a permissão para até

momentos antes do parto. Dessa forma, nenhuma concessão parcial para seu ‘direito’ seria

suficiente, não se conformará em poder matar ‘somente’ até os três meses, e então serão

exigidas outras ‘autorizações’. Uma vez concedidas, outras pessoas começarão igualmente a

querer efetuar práticas idênticas, podendo até abranger a matar os recém-nascidos, os bebês de

várias semanas, os doentes, os idosos... Na tentativa de oposição a um argumento de ladeira

escorregadia, quem se defende usa incorretamente a resposta de efeito dominó quando

continua a exigir de maneira dogmática que a regra seja seguida, mesmo quando um

argumento apresentado pelo atacante justifica a exceção. (WALTON, 2006, p.378).

No mesmo processo argumentativo os opositores da eutanásia alegam que a partir do

momento em que a eutanásia passar a ser admitida de acordo com a lei, primeiramente será

estritamente voluntária para os doentes terminais, em seguida, ficará disponível para qualquer

pessoa que desejar fazer, e, finalmente, será involuntária, praticado por qualquer pessoa que

constitua uma sobrecarga para a sociedade: os idosos, os deficientes, e potencialmente

qualquer pessoa que não beneficia o sistema. Esse efeito dominó também seria aplicado ao

controle de natalidade, não se limitando aos bebês malformados, mas conduzindo

naturalmente à limitação do número de filhos que uma família possa ter. Um fato dessa ordem

ocorreu em 1971, na Conferência Nacional de Educação da População em Washington, onde

foi proposta uma dinâmica populacional, prevendo desincentivos fiscais para os pais que

tivessem mais de dois filhos. Após a terceira criança que nascesse, a mãe e o pai teria de

apresentar-se ao hospital e serem submetidos a esterilização, caso eles não comparecessem ao

hospital, não seria dada emissão da certidão de nascimento do terceiro filho. Ainda, a mãe

seria tatuada ou marcada de forma a indicar que ocorreu um terceiro nascimento

(TABBARAH, 1976, p.199-200).

Após analisarmos os diferentes tipos de aplicação do argumento da Ladeira

Escorregadia no campo das discussões éticas, passaremos a seguir a trabalhar a relação desse

argumento com a mentira.

3.3.2 A mentira e a ladeira escorregadia

O dano ocasionado pela mentira se concretiza no nível da consciência de quem a

emite, a moralidade de quem utiliza a mentira é questionada porque esse ato o empobrece

como pessoa. Essas ações costumam ser cíclicas e se repetem cotidianamente, e aceitar essa

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dura realidade é reconhecer a imperfeição da condição humana. Para aquele que não se

martiriza com situações que recaem em erros morais, lhe é conveniente mentir quando achar

que sua mentira não será descoberta. Assim, se os demais (além do emissor), não sabem que

houve uma mentira pode-se estabelecer que o efeito prático foi realizado com sucesso, houve

o engano. Caso a mentira seja descoberta, o efeito prático será nulo, pois, o mentiroso não foi

bem sucedido e seu propósito não será alcançado.

Admitimos que haja casos em que uma mentira, pode ser repetida muitas vezes, e ao

confirmar inúmeras vezes a mesma mentira esta acaba se ‘tornando verdade’ para o ouvinte.

Isso ocorre porque afirmações muito repetidas podem ganhar um status tal que as pessoas

podem nunca ter parado para pensar realmente no porquê de acreditarem nelas, e a mentira

acaba ganhando uma ‘roupagem’ veraz. No mesmo ponto da repetição de mentiras, porém em

sentido diverso, há o famoso exemplo da fábula do Pastor e o Lobo. O pastor gritava por

socorro dizendo que havia um lobo atacando as suas ovelhas e os habitantes da aldeia corriam

para lhe socorrer com pedaços de madeira para caçar o lobo, e ao subir o morro encontravam

o pastor às gargalhadas, revelando que tudo se passava de uma brincadeira. Isso se repetiu

outras vezes, no entanto, fatidicamente em certa ocasião realmente apareceu um lobo e ao

gritar por socorro os aldeões não acreditaram, achando que se tratava de outra mentira. Dessa

situação se extrai que a mentira descoberta tem um efeito cascata sobre o seu emissor. Tal

efeito também pode ser notado na tentativa desesperada do emissor em manter a sua mentira,

para sustentar a primeira mentira adiciona outra e mais outras, até o receptor ser convencido

através do acúmulo de mentira sustentado, ou descobrir de fato que era tudo mentira, e então

se desfazer a corrente de falsidades.

É possível analogamente estabelecer o argumento da Ladeira Escorregadia no percurso

da mentira porque ao se permitir uma mentira poderão ter que se permitirem outras mais

simples e assim por diante. Então ao conceder uma mentira é provável que outras concessões

também devam ser feitas ao longo do processo e o resultado disso está além do previsto. Na

base desse argumento está a ideia de que, uma vez que já demos um passo em certa direção,

estaremos numa Ladeira Escorregadia e teremos de escorregar mais do que seria a nossa

vontade (SINGER, 1993, p.87).

Na discussão sobre se é permitido utilizar de estratagemas de mentir para trazerem os

priscilianos para a ortodoxia cristã, Agostinho mostra-se contra. Para ele em certas questões

não se pode fazer concessões, não é admitido mentir, não importam as causas da mentira. Para

fundamentar seu posicionamento Agostinho desenvolve inúmeras analogias ao longo de sua

obra. Como, por exemplo, a analogia ao adultério, assim como não se admite cometer

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adultério para trazer a Cristo uma pessoa, não se admite que se minta para trazer uma pessoa a

Cristo. (CM, VII, 17). Nenhum comportamento ilícito se torna lícito em razão de servir para

um propósito maior. Em continuidade a tal fundamentação, Agostinho no Capítulo IX, seção

20 do “Contra Mendacium” nos traz uma inusitada situação. Ele conta que um homem

hospedou em sua casa algumas pessoas ameaçadas pelos sodomitas e este temendo pelo bem

estar dessas pessoas, para não entregar seus hóspedes ele oferece as suas filhas para aplacar a

fúria dos sodomitas. Agostinho com muita polidez explica que essa situação é errada, pois,

não se pode cometer um erro para evitar um erro maior, ao oferecer as próprias filhas para

evitar o que parece ser um erro maior ainda não estaria certo, porque um mal não se evita com

outro. O argumento básico deste trecho é que não se pode compensar um mal maior

cometendo um mal menor. Um mal é sempre um mal, o pecado é sempre o pecado.

“Se abrirmos essa comporta aos pecados de maneira que se possam cometer pecados menores com o fim de evitar que os outros cometam pecados maiores, não haverá dique que suporte, e mais, não podemos colocar nenhuma barragem a esta avalanche de pecados e todos entrarão no mundo e reinará em campo aberto no infinito espaço [...]” [...] “E assim com toda classe de pecados. Pensaríamos que se podem cometer roubos para evitar outros roubos, incestos para evitar outros incestos, sacrilégios para evitar outros sacrilégios; nossos pecados para evitar os alheios; os menores para evitar outros maiores, e, ainda quando se tratasse dos piores e mais atrozes, julgaríamos que poderíamos cometê-los, se fossem menores em número, com o fim de evitar uma quantidade maior que haveriam de cometer os outros” (CM, IX, 20).

Significa que ao fazer pequenas concessões e outras concessões criará um efeito

interminável ou de maiores proporções, de tal modo que a conclusão é insustentável. No caso

da mentira ocorre da mesma forma que deve-se evitar cometer um roubo para evitar outros

roubos ou cometer pecados menores para evitar maiores. Se abrir uma exceção para alguém,

terá que se abrir exceções para todos. Então se recomenda não abrir exceções à mentira, não

importando os motivos ou intenções, porque se o fizer terá que abrir outras concessões e

assim por diante, é nesse sentido que está a ladeira escorregadia da mentira. Um argumento

do tipo ladeira escorregadia propõe que seja dado um primeiro passo relativamente pequeno,

como mentir em uma circunstância especial, por exemplo, mas esse pequeno passo conduz a

uma cadeia de eventos relacionados culminando em algum efeito significante. É algo

aparentemente sem importância como uma pequena mentira, mas que ao criar volume irá se

transformar em algo gigantesco.

Lembramos que a base de toda a discussão para Agostinho escrever a obra “Contra

Mendacium” está na questão de se utilizar a mentira para trazer novos membros, é se fazer

passar por prisciliano e mentir para ganhar a sua confiança e conseguir trazê-los de volta à

doutrina cristã. Mas se faz importante salientar que, embora esse argumento desse certo com

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respeito aos priscilianos, discordamos que seja sempre eficaz. Pode acontecer outras

possibilidades, além desta, porque acreditamos que ninguém vai mentir sempre, o fato de que

uma pessoa mente em uma situação especial não significa que isso é uma porta aberta para a

mentira em todos os casos. Neste ponto contestamos Agostinho por perceber que ao fazer

uma concessão em certo momento não significará que isso irá se transformar em uma

concessão permanente ou para quaisquer circunstâncias. Ele parece utilizar a mesma estrutura

da ladeira escorregadia ao dizer que ao fazer uma concessão irá se chegar a uma situação

inaceitável, mas o fato de se fazer uma pequena concessão não quer dizer que irá se permitir

em quaisquer circunstâncias. Essas pequenas concessões poderiam ser controladas, por

exemplo, poderia criar-se uma situação especial exatamente para o caso de angariar pessoas

para a fé cristã. Mas ele não pensa assim, Agostinho afirma que depois que se abre uma porta

não há solução, gera-se uma avalanche de novas exceções. Nesse caso contesta-se o

argumento utilizado por Agostinho e não o resultado, ou a conclusão de seu argumento. Em

seções posteriores Agostinho parece clarificar melhor o seu argumento ao dizer que “os

pecados deles são os deles e os seus são os seus” (CM, IX, 22), não pode haver uma

substituição ou compensação de pecados, ou seja, ele demonstra um outro tom a sua retórica

disposta em seções anteriores. Porque se dispõe diferentemente de dizer que uma vez que se

permitiu um erro terá que se permitir todos.

Para Agostinho o arrependimento e a conversão não podem ser realizados através da

mentira, não se devem prestar os mesmos erros daqueles que querem trazer a sua doutrina por

mentirosos artifícios, a real conversão será alcançada apenas pelo discurso verdadeiro, por

uma discussão autêntica. (CM, VI, 11). Suposto da generalidade da mentira, a respeito do

discurso, Aristóteles no livro IV da obra “Metafisica” 99 tem um argumento em que é

chamado ou classificado como um argumento transcendental para a universalidade do

princípio da não-contradição. O princípio de não-contradição mostra-se como uma condição

de possibilidade da linguagem significativa. É necessário apresentar justificativas plausíveis

que nos convençam de que as coisas são reais e não-contraditórias. Ao falar algo se espera

que seja compreendido, porque quando se fala necessariamente se diz algo determinado, e

para tanto é indispensável que se pronuncie algo significativo e convencional, pois, não se

pode falar contraditoriamente e esperar que seja compreendido (RA, IV, 3, 1009 a, 17).

99 As referências bibliográficas feitas sobre a obra “Metafísica” de Aristóteles estão relacionadas a partir da numeração contida na obra de Enrico Berti, “As razões de Aristóteles”, tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 1998.

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O princípio de não-contradição não consiste em uma arma contra a possível falsidade

de um discurso, pois, um discurso, para ser falso, não precisa ser contraditório, mas na sua

própria natureza de princípio a necessidade de reconhecê-lo como tal. Todo discurso e ato de

fala deve necessariamente pressupor o princípio de não-contradição, ou seja, deve significar

algo, pois de outro modo sequer poderia haver fala (RA, IV 4, 1006 b, 7-12).

Quem, com efeito, diz que são verdadeiros todos os discursos, torna verdadeiro também o discurso oposto ao seu, e por isso não-verdadeiro o seu ( visto que o discurso oposto diz que seu discurso não é verdadeiro), enquanto quem diz que são todos falsos diz ele mesmo que também o seu próprio [é falso]. E há algumas exceções, alguns dizendo que apenas o discurso oposto ao seu não é verdadeiro, outros dizendo que apenas o seu não é falso; apesar de tudo, segue-se a eles dever postular infinitos discursos verdadeiros e falsos, visto que o discurso que diz que o discurso verdadeiro é verdadeiro é, ele mesmo, verdadeiro, e assim ao infinito (RA, IV 8, 1012 b 15-22).

Aristóteles afirma que o sofista precisa ser refutado exatamente por não reconhecer o

limite do próprio discurso, esse discurso não se submete pela força devido ao seu poder de

persuasão, mas por demonstrar uma verdade incontornável. A força do argumento, não está na

sua precisão lógica, mas naquilo de que ele é argumento (RA, IV 4, 1008 b, 14-18). São

princípios ao qual sua universalidade e necessidade decidem sobre a verdade ou falsidade de

qualquer discurso existente ou possível. Para uma demonstração por refutação, o discurso

teria que ter a verdade como princípio fundamental enquanto pressuposto de todo discurso

significante. Ou seja, demonstrar que a pretensão do adversário é não só falsa, mas

necessariamente falsa (ALMEIDA, 2008, p.20).

Aquele que nega o princípio da não-contradição pretende que o seu discurso seja

significativo, que seja compreendido pelo outro, mas o discurso só pode ser entendido pelo

outro, e fazer sentido se já estiver sendo utilizado previamente o principio de não-contradição.

Essa relação demonstra que trata-se de um pressuposto, é uma condição de possibilidade do

discurso significativo a adoção do principio de não-contradição. Parece que Agostinho

ressalvadas as devidas proporções, menciona o mesmo acerca do discurso verdadeiro, do

discurso veraz. No trecho inicial da seção 11 do “De Mendacium” ele lança uma série de

perguntas retóricas, por exemplo, como podemos saber se um indivíduo é herege, ou como

sabemos se os priscilianos propõem ou sustentam uma heresia. Nesse caminho, se o

inquisidor não utiliza um discurso veraz, ele sequer teria como saber se os outros são hereges

se ele admite ser um discurso falso, um discurso mentiroso. Torna-se uma situação

insustentável, utilizar-se da mentira quando do mesmo modo o outro pode estar usando da

mesma estratégia, ambos estariam mentindo. O sujeito que mente deseja a priori que todos

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sejam sinceros para com ele, embora ele não o seja para com alguém. Por razões de coerência

caso se admita para si o mentir deve-se esperar do outro a mesma atitude. Somente se o

inquisidor tiver por fundamento um discurso veraz é que poderá acusar o outro de heresia.

Agostinho prescreve: “De muitos modos se pode descobrir a pista dos hereges sem negar a fé

católica e sem louvar sua impiedade herética” (CM, VI, 17).

Agostinho parece utilizar da mesma estrutura deste princípio, determinando que, assim

como o discurso significativo não pode prescindir do princípio da não-contradição, o discurso

significativo não pode admitir a mentira. Ao abrir a porta para que a mentira entre, ao se

admitir a mentira, não poderá acusar o outro de ser herege porque o outro pode estar também

mentindo no momento em que propõe uma tese que seja falsa, ao qual se vê como falso. Ao

se admitir a mentira se impossibilita uma acusação séria contra a heresia, pois, é precipitado

acusar alguém cegamente, se o inquisidor admite a mentira pode ser exatamente o ponto de

discórdia entre eles, ou seja, o fato que o outro está mentindo. Então assim como o princípio

de não-contradição é uma condição de possibilidade do discurso significativo, o dizer a

verdade também seria, porque para ser significativo não deve ser produzido a partir de uma

mentira. O princípio de não-contradição possui uma ordem “lógica”, enquanto o princípio de

não-mendacidade possui uma ordem “prática” como função comunicativa da linguagem (do

discurso).

3.4 O argumento da quebra de confiança

Nesta Seção serão tratados, na Subseção 3.4.1, a relação de confiança pressuposta nas

relações entre emissor e receptor de atos de fala. Na Subseção 3.4.2 a questão da quebra de

confiança resultante, por exemplo, dos juramentos displicentes, das falsas promessas,

descumprimento dos contratos e do discurso mentiroso, vistos segundo a perspectiva de

Agostinho e de outros autores que trataram do tema.

3.4.1 A relação de confiança entre emissor e receptor

Examinada anteriormente a mentira, segundo a tipologia de Agostinho, pode ser tanto

em relação aos motivos quanto aos efeitos, e estas diferenças são importantes para a

compreensão, aceitação e influência da mentira no comportamento humano e nas interações

sociais. Nem todas as mentiras têm a mesma relevância: nem todas têm os mesmos efeitos e

danos, e os motivos de algumas são mais torpes do que os motivos de outras. A

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permissibilidade da mentira depende da moralidade de quem a profere e assim o julga

permissível em alguns casos, ou seja, dependente de sua motivação pessoal ou do que

pretende resultar com a mentira. De tal forma que as mentiras são relacionadas às situações e

casos em que elas são consideradas mais aceitáveis (as altruístas), excepcionais (os casos

difíceis), e às extremamente negativas (as danosas).

Tais situações poderão ser vistas mediante um esquema prático da afetação da mentira

em vinculação ao ouvinte:

A mentira afeta:

Emissor Receptor 3ª Pessoa

(nem receptor nem emissor)

Efeitos da Mentira

Favoravelmente Favoravelmente Melhor caso Favoravelmente Desfavoravelmente Intermediários

ou Neutros Desfavoravelmente Favoravelmente Desfavoravelmente Desfavoravelmente Pior caso

Quadro 09 – Simulação da influência da mentira em relação ao ouvinte

Com base no quadro 09 quanto aos efeitos, o melhor caso abrangeria, por exemplo, a

situação em que o indivíduo X não diz para Y que ele irá morrer e mente ao dizer a Y que ele

não irá morrer. X provavelmente está lhe protegendo, porque caso Y soubesse que iria morrer

isso provavelmente o prejudicaria ainda mais. O caso intermediário ou neutro seriam os casos

de contar uma mentira em que não irá se obter nem benefícios nem malefícios o seu

proferimento. Por exemplo, o médico ao ser questionado por seu paciente enfermo sobre sua

condição de saúde, este paciente lhe pergunta se é grave e isso o levará a morte, o médico

responde que ele não irá morrer. Esse é um caso neutro em que não há vantagem alguma, em

relação ao médico a situação é neutra, nem favorável nem desfavorável. No pior caso é

claramente percebida a intenção de proporcionar uma desvantagem ou algo desfavorável, por

exemplo, mentir para alguém que uma ideia ou projeto tenha sido elaborado por ele próprio (e

levar os méritos por isso) quando na verdade foi outra pessoa que o elaborou.

Isto significa que a aceitabilidade da mentira pode, conforme o caso, situar-se em um

extremo ou outro. De um lado está a mentira cujo interesse exclusivo é ajudar os outros e que,

por isso mesmo, é a mais aceitável. De outro lado estão as mentiras que pretendem

exclusivamente lograr um benefício pessoal, prejudicando alguém, ou as que buscam

diretamente gerar danos a outrem. Podemos dizer ainda que existam aquelas mentiras ditas

intermediárias que são aceitáveis em parte, são os tipos de mentira que buscam proteger a si

mesmo ou causar uma boa imagem perante outras pessoas. Assim, o senso comum sugere

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existir um componente de permissibilidade estabelecido pelas intenções e motivos do emissor

da mentira que são um aspecto fundamental para determinar a sua avaliação.

A variável contida na avaliação moral tem sua relevância na detecção da mentira e no

quanto ela afeta os juízos de credibilidade. Esses juízos de credibilidade são claramente mais

afetados nos ambientes sociais onde a mentira é frequente, e a recorrência da mentira resultará

provavelmente na quebra de confiança entre os grupos dessa sociedade.

A questão da confiabilidade se mostra relevante, porque a confiança depositada

funciona como fundamento das relações interpessoais. Na ausência da confiança, que requer a

veracidade, não há lugar para o agir em conjunto. Os objetivos pelos quais se mente são os

principais fatores que incidem na valoração social, porque geralmente se busca um benefício,

seja o benefício de um terceiro (onde a mentira é mais aceitável), seja para o beneficio próprio

(considerada mais grave). Ambos os tipos de mentira de uma forma ou outra prejudicam as

relações humanas, causando em menor ou maior proporção dano as relações que exigem

cooperação e confiança. A mentira afeta o comportamento das pessoas e o juízo de

credibilidade, gerando a desconfiança outras consequências similares aos envolvidos no

contexto organizacional. Isso ocorre principalmente em um grupo específico, como no

ambiente de trabalho, nas instituições, pois a credibilidade dos membros de uma

organização é uma condição necessária para o bom desenvolvimento da lealdade

e compromisso com os mesmos.

Aprofundando a questão também poderíamos pensar que seria errado os pais inserirem

crenças falsas em seus filhos a respeito de fábulas infantis como o Papai Noel, o coelhinho da

Páscoa, etc. Isso é não necessariamente gravemente errado, mas ainda errado e imprudente na

medida em que as crianças que se acharem enganadas sobre estas questões poderiam

razoavelmente questionar se os seus pais estariam mentindo para eles sobre outros assuntos

também e, principalmente, sobre assuntos mais importantes. Para Agostinho é melhor sempre

dizer a verdade em todas as situações, assim evitaremos equívocos e confusões por parte do

ouvinte, porque ao dizer sempre a verdade o outro não teria motivos suficientes para

desconfiar daquilo que, por nós, é proferido naquele dado momento.

Desta forma, uma análise da condição do comportamento do receptor B em relação ao

emissor A, acreditado por A poderia ser estabelecida da seguinte forma:

A ao dizer a B que p, A diz uma mentira se, e unicamente se (i) A acredita que p é falso; e A acredita que B confia nele ao menos no contexto do

proferimento de p; ou (ii) A acredita que p é verdadeiro; e A acredita que B desconfia dele ao menos no

contexto do proferimento de p.

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A relação existente de confiança mencionada acima poderá ser melhor esclarecida

através do quadro a seguir:

A diz p para B Confiança de B em A

Valor de verdade de p

Crença de A a respeito do valor de verdade de p

B toma p por verdadeiro?

A mente para B que p?

B confia sistematicamente em A (e A sabe disso)

1 VERDADEIRO VERDADEIRO SIM NÃO 2 VERDADEIRO FALSO SIM SIM 3 FALSO VERDADEIRO SIM NÃO 4 FALSO FALSO SIM SIM

B desconfia sistematicamente de A (e A sabe disso)

5 VERDADEIRO VERDADEIRO NÃO SIM 6 VERDADEIRO FALSO NÃO NÃO 7 FALSO VERDADEIRO NÃO SIM 8 FALSO FALSO NAO NÃO

Quadro 10 - Fator confiança/desconfiança no comportamento de B em relação a A

No quadro 10, a noção de crença permanece irredutível, ao proferir p, A sabe que p é

verdadeiro ou sabe que p é falso. Tenhamos em mente que esses atos destinam-se sempre a

uma ou mais pessoas, a fim de enganá-las ou pelo menos levá-las a crer naquilo que é dito.

Isto ocorre em situações em que o mentiroso, seja por compromisso explícito, por juramento

ou promessa implícita, deu a entender dizer a verdade e somente a verdade. Mas o sucesso do

ato de mentir sugere algo a mais do que somente a intenção de enganar, a mentira precisa ter

ao menos a possibilidade de ser bem sucedida e para isso se faz essencial a condição de

crença. Esse limite do possível dá-se no movimento entre as crenças de A e B. A

possibilidade dependerá da crença de A em relação à confiança que B deposita nele, ou seja,

B deve em geral confiar em A, a ponto de acreditar no que ele diz. Conforme Agostinho

aquele que pergunta considera a resposta como verdadeira por isso, porque ele confia na

honestidade de quem responde.

Em relação à condição de possibilidade da mentira Gareth Matthews (2007), nos traz

um interessante exemplo: um caixeiro-viajante na velha Rússia ao encontrar seu

arquiconcorrente na estação de trem lhe pergunta para onde ele está indo nesse dia. “Para

Minsk”, responde ao rival. “Você está me dizendo que vai a Minsk para que eu pense que está

indo para Pinsk, quando realmente é para Minsk que está viajando, seu mentiroso!” diz o

primeiro vendedor. (MATTHEWS, 2007, p.198). O comportamento regular gerou a

desconfiança entre os vendedores, então tudo o que um disser, o outro irá desconfiar dele

achando ser falso e assim uma maneira eficaz de enganar seria realmente dizer a verdade.

Desta feita, por intermédio da desconfiança sistemática, houve a intenção de enganar com

base no comportamento esperado pelo segundo vendedor, de que seu concorrente não

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acreditaria ser verdade e logo suporia estar se tratando de uma mentira quando de fato era

verdade. Algo é dito pelo emissor que acredita ser verdade, e de fato o é, mas em razão das

circunstâncias esse emissor pode esperar que o ouvinte a interprete como uma mentira. Não é

o fenômeno da confiança que gera a possibilidade da mentira, mas o comportamento regular

quanto ao valor de verdade das proposições emitidas. Por conseguinte a condição de

possibilidade da mentira vai além da confiança entre os envolvidos, partindo do pressuposto

do comportamento regular esperado pelo receptor em relação ao emissor.

A representação da confiabilidade na composição do sistema de crenças entre os

agentes também pode ser explicada em sentido estrito por Davidson (2001) através do

Princípio da Caridade100. Conforme sua exposição, tal Princípio representa a presunção de

verdade por parte do intérprete em relação aos proferimentos do falante. A unidade externa

entre a aparência do mundo de uma pessoa (seus atos comunicativos) e seu interior (o que

ele realmente está pensando) são bem distintos. Então se deve tentar interpretar os

proferimentos dos outros de forma a maximizar a razoabilidade desses. Para entender porque

o Princípio de Caridade é útil, é preciso ter em mente que nossas observações envolvem

interpretações ou traduções. Ou seja, como eu posso traduzir os proferimentos que ouço de tal

forma que esses nos pareçam compreensíveis. Davidson mostra que o intérprete poderá,

através de sucessivos ajustes e, sobretudo, empregando sistematicamente um Princípio de

Caridade, reduzir a imprecisão ou indeterminação, podendo otimizar o acordo entre aquilo

que ele tem por verdade e aquilo que o falante tem por verdade. (STEIN apud SPARANO,

2003, p. 12). Nesse passo ressalta-se a importância do contexto, pois é impossível perceber o

comportamento linguístico fora dos contextos em que estes estão inseridos. Para que

possamos encontrar sentido no que nos dizem, teremos que: acreditar que o que é dito faz

sentido (caridade interpretativa) e partilhar um contexto interpretativo, uma condição comum,

um mundo comum. Assim, as crenças de uma pessoa, tal como os vários elementos de uma

cultura, dependem umas das outras para adquirir significado, é pouco provável conseguir

comparar o que está numa mente, ou o que está numa cultura, com o que está noutra, pois elas

são diferentes. Os escritos de Davidson têm, portanto, como objetivo a possibilidade de

verificação empírica da correção de uma teoria semântica para um grupo definido de falantes,

através da comparação das condições em que os falantes tomam suas sentenças por

verdadeiras e as condições de verdade assinaladas pela teoria para aquelas sentenças. 100 Para explicitar melhor o sistema do Princípio de Caridade faz necessário expor suas três exigências básicas: 1 - devemos pressupor que o falante não se encontra em erro; 2 - que seu sistema de crenças é coerente; 3 - que seu sistema de crenças não é tão diferente do sistema de crenças do intérprete, ou seja, de nosso sistema de crenças. (DAVIDSON, 2001, p.197).

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(ARRUDA, 2005, p.137). O mesmo ocorre em relação à possibilidade de sucesso da mentira,

deve existir um comportamento constante entre as partes. Geralmente esse comportamento é

de confiança sistemática do receptor em relação ao emissor, mas também se pode produzir

uma mentira bem sucedida quando há uma desconfiança sistemática.

3.4.2 Considerações de Agostinho e outros autores a respeito da confiança

Vimos que o processo da confiança dá-se da seguinte forma, o indivíduo

primeiramente confia no que lhe é dito, mas com o passar das circunstâncias comportamentais

e fatores reincidentes ocasionados pela mentira há uma quebra na confiança resultando na

desconfiança entre os envolvidos no ato comunicativo. Veremos a seguir quais são os outros

elementos que também promovem essa quebra de confiança.

Agostinho coloca em tela além da questão da quebra de confiança que gera a

desconfiança entre os agentes, a posição da quebra de promessa feita pelo emissor em relação

ao receptor. Ele demonstra entender o juramento como uma fonte potencial de mentira ao não

ser cumprido. “Jurando sem motivo, virás a adquirir a facilidade de jurar, da facilidade, o

costume, e do costume chegarás a cair no pecado de jurar em falso” (DM, XV, 28). Nesse

caso ao fazer o juramento e não conseguir o cumprir esse receberá o status de mentira, por

isso que a questão do juramento entra em discussão, há certas mentiras que resultam do

processo de juramento, por causa dos juramentos que não são cumpridos. Isto deve ser

interpretado como uma recomendação e não como uma proibição absoluta, “evite o

juramento”, porque pode ser uma forma potencial de mentira. Embora o status de mentira

tenha sido adquirido depois, não no momento do proferimento do juramento. Somente em

casos muito específicos como, por exemplo, naqueles que envolvem a propagação da fé, ou

algo dessa ordem que é lícito. Mesmo assim, deve-se ser cauteloso no juramento, não

prometendo coisas fora de seu alcance, porque um juramento que, de antemão, sabe-se que

não poderá ser cumprido é uma mentira. Talvez esta interpretação pudesse ser abrangida aos

juramentos feitos despicientemente, pois, não é todo o juramento que é quebrado e constitui

uma mentira, mas apenas os juramentos que no momento em que são realizados são feitos de

maneira despiciente, e, portanto, facilmente conducentes ao seu descumprimento. Assim,

deve evitar de qualquer modo fazer os juramentos, porque exatamente não há como saber com

certeza absoluta se irá conseguir cumprí-lo ou não. “Não ames nem deseje jurar, não tenhas

apetite, como se fosse uma coisa boa” (DM, XV, 28).

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139

A partir do exposto avançamos a uma situação dilemática. Vejamos um exemplo

clássico: digamos que A prometeu se reunir com B na manhã seguinte, porém ao se deslocar

para a dita reunião com B, houve um acidente de trânsito no caminho e A toma a decisão de

prestar socorro à vítima, deixando B esperando e descumprindo a sua promessa. O dilema

consiste em quebrar o juramento, a promessa que foi feita ou não atender aquele acidentado,

ambos são considerados erros morais. A partir da leitura de Agostinho permanece a dúvida se

o que caracteriza a mentira é apenas aquele juramento quebrado que, no ato do juramento,

havia uma certa displicência (não havia um compromisso sério no cumprimento desse

juramento) ou se também é considerada mentira aquele juramento que apesar de todo o

esforço não foi cumprido. De qualquer forma podemos interpretar de duas maneiras essa

situação: 1- uma situação em que no ato do juramento já há uma displicência envolvida e isso

deveria ser evitado porque levaria à mentira. 2- a outra situação é mais complexa, leva-se a

sério o juramento e mesmo assim não se consegue cumprí-lo. Desta forma, compreendemos o

fato de ser displicente no juramento não significa que não irá cumpri-lo, pode ser que de

alguma forma acabe cumprindo o juramento mesmo que quem jurou tenha sido displicente

nesse juramento, e, nesse caso ele não é mentiroso, mas leviano. A problemática apresentada

(1) é o fato de ser displicente e descumprir o juramento, resultando em um caso claro de

mentira, se algum caso de descumprimento de juramento pode ser visto como mentira é esse.

No segundo caso (2) é uma outra leitura possível que talvez possa ser considerada também

como sendo mentira, porém teríamos que situar isso como intenção de mentira a menos que a

displicência seja uma forma de intenção de enganar. A nosso ver ele não é mentiroso, mas

leviano.

A diferença entre dizer e jurar está no comprometimento e nas consequências aduzidas

ao evento prometido. Se alguém lhe pergunta: Esteve na noite tal no lugar X? E responde não.

A pessoa ainda não convencida novamente pode questionar, jura que não esteve? Disso se

extraem duas consequências. A primeira: se descobrem que mentiu, a consequência seria,

simplesmente, que ocorreu uma mentira. A segunda: fez-se um juramento e descobrem que

mentiu, parece ser mais grave, pois, o juramento é ipso facto, um contrato, em que há um

comprometimento, se dispondo que envolvam consequências supervenientes a esse ato. 101

Parece que a mentira nesse caso envolve um agravante, o comprometimento. Porque o

comprometimento é a marca de que um contrato, ainda que verbal, foi efetuado, para realizar

algo nas circunstâncias estabelecidas por ambas as partes.

101 Caso Agostinho comparasse o ato de mentir simplesmente e perjurar, com certeza o perjurar teria um peso muito maior.

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A promessa pode ser interpretada como um contrato entre pessoas, contratos que

tenham legitimidade jurídica associados também no campo moral. Nesse tocante

presenciamos uma clara tendência de Agostinho à filosofia moral kantiana. No mesmo intuito

Kant aborda a questão das promessas mentirosas (falsas promessas) e ele trata

especificamente da parte contratualista em que há uma obrigação com alguém. Caso fosse

feita uma concessão para a mentira, as duas partes do contrato se permitiriam mentir e o

objeto do contrato dificilmente seria satisfeito, pois, resultaria em algo diferente do que foi

previamente acordado, e, nesse caso, a operação em si perderia seu sentido de ser.

Kant apresenta algumas situações sobre a descrença proporcionada a partir das

promessas falsas. Estas são rechaçadas pela fórmula do imperativo categórico, de que a

máxima da mentira não pode ser universalizável, e que devemos tratar sempre as pessoas

como fins em si mesmas que são e, nunca, como meio. (HÖFFE, 2005, p.211). A partir desse

ponto ele nos interroga: ser-me-á lícito, em meio de graves apuros, fazer uma promessa com

intenção de a não observar ? Se, por exemplo, prometi algo a alguém, devo manter minha promessa, mesmo que isso acarrete algum dano. Por que um homem que toma uma decisão, e não a cumpre, não pode ter confiança em si mesmo. (Kant, 2002, p. 84). Admitir como lei universal que todo homem, que julgue encontrar-se em necessidade, possa prometer o que lhe vem à mente, com o propósito de não cumprir, equivaleria a tornar impossível toda promessa, e inatingível o fim que com ela se pretende alcançar, pois ninguém acreditaria mais naquilo que se lhe promete e todos se ririam de semelhantes declarações, como de fingimentos vãos. (FMC, 1995, 422-423).

Para ele o caso não oferece dificuldades visto que os dois sentidos que a questão pode

comportar, consoante se deseja saber se é prudente, ou se é conforme ao dever, fazer uma

promessa falsa. Se a máxima que declara ser lícito tirar-lhe de uma dificuldade com

promessas mentirosas, fosse erigida como lei, ninguém prestaria mais fé às promessas e já não

haveria vantagem nenhuma em mentir. Por isso, cada qual pode reconhecer em cada momento

onde está o dever, e a condição de uma boa vontade, perguntando-se: “Podes tu querer

também que a tua máxima se converta em lei universal?” (FMC, p. 35). Se todos começarem

a fazer promessas falsas, ninguém mais acreditará em promessas e a máxima entrará em

contradição consigo mesma. Se as pessoas não derem garantia de que cumprem as promessas,

deixa de ter qualquer sentido fazer uma promessa, porque termina a confiança entre as

pessoas. O estado de necessidade não justifica a falsa promessa (FMC, p. 136), pois,

conforme Kant deve-se examinar com cuidado se da mentira proferida não resultarão, no

futuro, aborrecimentos muito mais graves do que aqueles de que me liberto neste momento;

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e não são fáceis de prever as consequências desse meu ato. 102 Devo recear que a perda de

confiança por parte de outrem me acarrete maiores prejuízos que todo o mal que neste

momento penso evitar.

Segundo Kant a mentira é sempre prejudicial, tanto para um sujeito quanto para toda a

humanidade. Rejeitando a mentira com base racionais, expõe haver uma contradição

performativa envolvida na mentira, ou seja, ao permitir que se minta, admite-se que todo e

qualquer outro membro da comunidade moral também minta. Essa ação inviabiliza a

segurança em saber se o que é dito foi de forma sincera ou não. Os efeitos desse processo a

exemplo do que Agostinho determina é o desenvolvimento de uma quebra de confiança, pois,

que garantia há de que não irão mentir para mim se eu minto. Esses efeitos resultantes da

mentira proporcionam um prejuízo em longo prazo que é a perda de confiança em relação à

comunidade moral. Enquanto o comum é julgar que a mentira tem apenas efeitos locais, o que

o Agostinho se preocupa assim como Kant nos efeitos globais da mentira. 103 O efeito global

da mentira resulta que uma vez em que é admitida a mentira ninguém me garante um outro

membro qualquer da comunidade moral também não esteja mentindo. Isso causa certa

insegurança na comunidade moral ao qual estão inseridos.

Assim, o dever de não mentir é uma lei moral inviolável, porque o mentir não se pode

converter em uma lei universal, mentir sistematicamente acarretaria desconfiança entre as

pessoas e não se poderia viver em sociedade, pois a confiança é a base primordial para

estabelecer vínculos entre as pessoas. Isso seria dizer que, eu não posso querer que essa

máxima se torne uma lei universal, pois, tão logo isso aconteça, a ação de prometer passa a

ser universalmente desacreditada, tornando-se inútil e não podendo servir de meio para

defender interesses. Com isso, a máxima que universaliza a prática de promessas falsas com a

finalidade de evitar embaraços destrói-se, necessariamente, a si mesma como regra de um

modo de agir racional dirigido a fins. Porque para uma moral de princípios, não há diferença

moral importante entre "pequenas" e "grandes mentiras", posto que é um imperativo

102 Nesse ponto Höffe destaca que ao contrário do que muitos interpretam Kant não atribui que o cumprimento da promessa deva ser mantido em todas as circunstâncias, nem é imoral quem tem que romper uma promessa em virtude de uma força superior. (HÖFFE, 2005, p.211). 103 Agostinho em geral tem por base na sua avaliação moral o “comando divino”, o ato é descrito como errado porque Deus assim prescreveu conforme consta nas Sagradas Escrituras, enquanto que, em Kant a base para a avaliação moral sobre os atos está na racionalidade. Em face disso, salientamos que, embora em termos gerais a filosofia deles possa diferir; em casos particulares a argumentação poderá ser a mesma. Pode ocorrer um ou outro caso particular, e, esse pode ser o caso da mentira, que Agostinho sustente bases racionais, e isso per si é suficiente, não precisa que Deus aponte como errado, o próprio agente percebe que é errado, mas sejamos cautelosos porque se tratam de casos excepcionais.

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incondicional, que não reconhece exceções, e cuja transgressão fere o princípio moral, e em

última instância extingue a própria confiabilidade entre as pessoas.

No campo extra jurídico, estabelecemos que ao prometer algo essa ação é voluntária,

não é uma exigência, não faz parte da moralidade prometer coisas, agir segundo a lei moral

não é prometer que irá agir dessa forma, mas simplesmente agir de acordo com a lei moral.

Trata-se de uma situação voluntária, e o mesmo ocorre no campo jurídico, a lei faculta a

concretização do contrato entre os interessados. E o contrato será lavrado desde que o objeto

seja lícito, ou seja, que esteja dentro dos limites aceitáveis pela legislação. O dispositivo

contratual ocorre em função de uma garantia futura em seu cumprimento. No caso da

promessa nos parece que esta garantia é dada em razão de uma falta de confiança e caso não

seja cumprida exigimos a força do dispositivo legal. Se existisse confiança entre as partes não

seria necessário haver uma promessa. No caso a promessa é exatamente pelo fato da

obrigação de cumprí-la, que a torna grave (no caso de prometer e não cumprir), assim como

ao assinar um contrato cumpre as sanções jurídicas, assim também o não cumprimento de

uma promessa envolve também questões morais, por isso seu caráter contratualista.

No âmbito jurídico a quebra de promessa mais comum é a “quebra de um contrato”.

Ao realizar um contrato, há a promessa alheia de cumprir algo em relação ao objeto acordado,

disso segue-se imediatamente o dever de cumprir com o compromisso estipulado. Quando um

dos indivíduos quebra o contrato não executando o prometido, engana o outro contratante e

manipula a vontade deste conforme sua vontade. Como meio de segurança jurídica deve-se

seguir o brocado latino “pacta suntservanda”104, ao qual dispõe que os contratos existem para

serem cumpridos. É muito mais que um dito jurídico, pois, encerra um princípio de Direito,

no ramo das Obrigações Contratuais. É um princípio de força obrigatória, segundo o qual o

contrato faz lei entre as partes.

Desta forma, o direito pode ser visto como um mecanismo de proteção mútua, a seguir

a teoria de Herbert Hart. De acordo com sua ideia significa criarmos um mecanismo de

proteção mútua de uns contra os outros. Esse mecanismo apontado parece também ocorrer na

esfera moral através da promessa, pois, a promessa é uma proteção da sua parte, um

104 Pacta sunt servanda trata-se de um princípio existente para preservar a autonomia da vontade, a liberdade de contratar e a segurança jurídica de que os instrumentos previstos no nosso ordenamento são confiáveis. O fator de exceção a esse dispositivo chama-se Rebus sic standibus que representa a Teoria da Imprevisão e constitui uma exceção à regra do Princípio da Força Obrigatória dos Contratos. É a possibilidade de que um pacto seja alterado, a despeito da obrigatoriedade, sempre que as circunstâncias que envolveram a sua formação não forem as mesmas no momento da execução da obrigação contratual, há necessidade de um ajuste no contrato.

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dispositivo que o proteja do outro. Porque envolverá uma expectativa, é uma proteção que irá

assegurar o objeto da promessa, e se não há confiança, a promessa será a garantia.

Singer cita a alternativa de Hare ao dizer que seria melhor adotarmos alguns princípios

éticos gerais para a vida ética cotidiana, e não nos desviarmos deles. Esses princípios

deveriam incluir aqueles que a experiência mostrou ao longo dos séculos que conduzem

geralmente às melhores consequências e, na perspectiva de Hare, incluiriam muitos dos

princípios morais canônicos, como, por exemplo, dizer a verdade, respeitar as promessas, não

prejudicar os outros, e assim por diante. (SINGER, 1993, p.239). Do mesmo modo os não-

consequencialistas105 são categóricos em censurar a injustiça, a quebra de promessas, as

graves violações dos direitos individuais etc. Pois em sua maioria este grupo sustenta que

devemos impedir que o mal aconteça e que devemos promover o bem. Kant ao contrário de

Hare rejeita o consequencialismo, pois, para ele o valor moral de um ato deriva da sua

máxima e não das suas consequências. Se desejamos avaliar o caráter moral do agente, as

consequências de suas ações mostram-se um meio falho para isso, porque alguém considerado

bom pode fazer um mal a alguém de forma não intencional, e alguém considerado mal, pode

beneficiar outrem sem contudo desejar isso. Isso significa que o que torna uma ação moral

certa ou errada não são as suas consequências serem prejudiciais ou benéficas. Por óbvio que

tal fato não implica na total desconsideração das consequências sobre as ações.

Em suma extraímos desta seção que mentir, jurar em vão ou falsear promessas é

errado porque estamos sustentando uma opinião falsa, causando uma expectativa de engano

em outra pessoa, e a consequência pretendida é o que torna tais ações erradas. Portanto, para

manter uma relação de confiabilidade, deve-se falar a verdade, e informar o outro disso.

Mesmo que nesse contexto isso traga a consequência de que ao fazer isso ficarei em

desvantagem sob outros aspectos.

105 Sobre a teoria consequencialista de Hare ver mais em: Hare, R. M., Moral Thinking: its Levels, Method and Point, Nova York, Oxford University Press, 1981.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde os primórdios do pensamento ocidental houve diferentes opiniões sobre a

questão da admissibilidade da mentira. Aristóteles, em sua obra “Ética a Nicômaco”, parece

considerar que nunca é permitido dizer uma mentira, enquanto Platão, na obra “A República”,

é mais complacente, ele permite que médicos e governantes mintam, ocasionalmente, para o

bem de seus pacientes e para o bem comum. Os modernos, da mesma maneira, mostraram-se

divididos quanto a tal questão. Embora se considerasse um seguidor de Platão, Agostinho não

compartilhou de todas as suas ideias, visto que Platão aponta casos permissivos da mentira.

Sob o ponto de vista ético e político, a respeito da mentira, no mundo ocidental pode-se dizer

que surgiram dois grandes grupos: o daqueles que como Agostinho e Kant rejeitaram todo e

qualquer tipo de mentira, considerando-a como uma prática imoral, e o daqueles que como

Platão e Benjamin Constant aceitaram algum tipo de mentira, ocasionalmente, desde que

pudesse ser justificada.

Embora alguns filósofos da antiguidade tenham tratado de temas correlatos à mentira,

nenhum especificamente tratou do conceito do que é realmente dizer uma mentira, e, assim

como Gareth Matthews, acredito que Agostinho tenha sido o primeiro filósofo a perceber o

quão filosoficamente problemática é a noção de dizer uma mentira. Para concretizar o

presente estudo, que teve como propósito analisar a caracterização da mentira em Agostinho,

foi necessário primeiramente adentrar em questões basilares. Para tanto, destacamos a

importância em estabelecer os pré-requisitos que se aplicam à estrutura e o conteúdo das

definições. Utilizando os ensinamentos de Sven Hansson a partir de seu tutorial sobre a base

metodológica para o desenvolvimento de definições que podem ser aplicadas em qualquer

ramo do saber.

Agostinho exercita um processo indutivo e retórico na sua abordagem teórica, mas

também se utiliza da analítica no sentido de que dispõe de experimentos de pensamento que

levam os leitores a descobrirem as teses por si mesmos e a tirarem suas próprias conclusões.

Agostinho é categórico sobre a sua definição de mentira ao afirmar que mente todo aquele que

deliberadamente diz algo falso com intenção de enganar. Esse é o seu paradigma, e pode

servir como sua definição final, na medida em que temos três cláusulas (i) falsidade; (ii)

crença (dizer algo contrário do que se acredita); (iii) intenção de enganar (que pode ser tanto

em relação à afirmação proferida quanto em relação à crença do ouvinte em relação ao

falante). Assim, Agostinho, defendendo sua tese inicial, estabelece a sua definição e após

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tenta refiná-la excluindo elementos e adicionando novos qualificadores. Ainda que não tenha

restado claro o resultado final de tal processo sobre a interdependência das condições

definitórias da mentira, deixando a dúvida se estas cláusulas per se são condições suficientes

e necessárias para o mentir.

Essas reflexões levam à presunção de que a essência da mentira tem raízes bem mais

profundas do que a mera contradição entre o pensar e o falar. Poder-se-ia dizer que é a pessoa

que profere a declaração que estabelece sua crença como mendacidade ou como veracidade.

Agostinho argumenta que ao enganar os outros, implantando intencionalmente falsas crenças

em suas mentes, há uma quebra na fé entre os homens, pois faz mal uso de um dom divino, ou

seja, usar a palavra para enganar outros homens através da mentira e não para transmitir seus

pensamentos é um uso condenável do dom da palavra. Aqueles que abusam de discursos

mentirosos e falsas promessas minam a confiança tão necessária nas relações interpessoais e

na vida em sociedade.

A partir da leitura das obras de Agostinho extraímos que mentir é sempre errado, ainda

que a ampla maioria das mentiras não seja considerada tão grave, exceção à mentira contra a

doutrina religiosa. Por isso, é errado mentir até mesmo no caso em que um assassino venha à

nossa porta exigindo saber onde encontrar a sua vítima. Abster-se de dizer o paradeiro da

provável vítima, ou falar de forma evasiva não seria errado, mas se isso não funcionar, seria

errado mentir. Tal mentira não seria avaliada como tão gravemente errada, mas ainda seria

atribuída como um erro. Assim como falar deliberadamente o contrário do que se pensa ser

verdade é sempre mentira e, portanto, sempre errado. Agostinho faz essa distinção: mentir

sobre coisas importantes, da fé ou da moralidade, por exemplo, é sempre gravemente errado.

Outras mentiras, sobre assuntos de menor importância, são bem menos graves, mas sempre

erradas. O mentiroso dificilmente apercebe-se de que só é possível enganar alguém por certo

período de tempo, ele excepcionalmente conseguirá enganar alguém por muito tempo,

entretanto é impossível enganar a todos o tempo todo. A melhor sugestão é seguir o conselho

do grande mestre que foi Agostinho e dizer sempre a verdade e esforçar-se para que não

tenham motivos para desconfiar daquilo que afirmamos e assim mantermos a confiança

daqueles que nos cercam.

A mentira como tema tão rico que é não se esgotaria nesse trabalho apenas.

Mencionamos brevemente alguns autores que estão atualmente questionando a caracterização

clássica da mentira em outras perspectivas (Sorensen, Carson, Fallis), e poderíamos ter

acrescentado outros (Mahon, Feehan) que também vislumbram novas tendências aos

pressupostos do ato de mentir. A meu ver, ainda que critiquem e estabeleçam ressalvas à

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análise de Agostinho, se considerarmos a época em que foram escritos seus tratados (século

IV) e o acesso às informações e técnicas de análise disponíveis, parece-me uma versão de

definição bastante satisfatória. Contudo, sabemos a importância de basear-se em literatura

secundária na tentativa de entender melhor o argumento do autor, ainda que a obra

agostiniana fosse suficiente para problematizar a definição da mentira.

No presente estudo nos detemos essencialmente na questão analítica da mentira,

enfatizando questões relativas à caracterização da mentira e deixamos a avaliação moral em

segundo plano. Mas, salientamos que há a possibilidade de ampliar o nosso campo de

pesquisa em outros terrenos relacionados à avaliação moral, como em diferentes temas de

ética normativa ou metaética. Uma vez agora esclarecido o que consiste uma mentira,

podemos nos perguntar como ela é avaliada moralmente em diferentes tendências de ética

normativa e de filosofia jurídica. Por exemplo, os juristas prescrevem que existem inúmeras

dificuldades para a vigência plena de uma ética de princípios, verificando-se com base na

experiência que na prática não há princípio que não esteja sujeito à exceção na sua aplicação

em casos concretos. Agostinho reconhece que há casos em que é muito difícil manter a

veracidade acima de tudo, por causa da nossa condição humana. Embora exista uma

obrigação de dizer a verdade, porque não é lícito mentir, há uma interferência de nossos

sentimentos que podem nos causar dificuldade no cumprimento dessa obrigação. Também

podemos citar, como exemplo, a avaliação moral em torno da mentira necessária, que é outro

ponto crítico para o filósofo moral, uma vez que as situações indeterminadas, oriundas de

emergência, muitas vezes dependem de outros fatores também não determinados para a sua

solução. Pode alguém roubar, matar ou enganar por necessidade, ou o caso de

emergência subverte de igual forma toda a moral. Lembramos também de doutrinas da ética

como o utilitarismo (Bentham, James Mill, John Stuart Mill, Sidgwick), assim como dos

sistemas de metaética, porque há esse enfrentamento permanente, a mentira pode ser uma

questão de epistemologia, de moralidade, de pragmática: são várias as perspectivas que

cooperam para uma correta interpretação e avaliação da mentira.

Desta forma, pode-se concluir que a mentira é um tema perene da filosofia, desde os

seus primórdios; ela perpassa a obra dos primeiros grandes filósofos como Platão e

Aristóteles, da filosofia moderna como em Kant, sobrevindo inclusive na atualidade, em que

há uma revitalização em torno do que constitui a mentira, em grande medida oportunizada por

ferramentas e instrumentos de análises mais refinadas do que aqueles pensadores possuíam.

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