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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA – UniCEUB FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS – FASA CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO EM JORNALISMO ÁREA: JORNALISMO A ANARQUIA NO FIM DA DITADURA A EXPERIÊNCIA DO CADERNO CULTURAL DO CORREIO BRAZILIENSE DE 1978 A 1979 CECILIA PINTO COELHO 2036339/1 PROFESSOR ORIENTADOR: SEVERINO FRANCISCO Brasília/DF, maio de 2007.

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA – UniCEUBFACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS – FASA

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIALHABILITAÇÃO EM JORNALISMO

ÁREA: JORNALISMO

A ANARQUIA NO FIM DA DITADURAA EXPERIÊNCIA DO CADERNO CULTURAL DO CORREIO

BRAZILIENSE DE 1978 A 1979

CECILIA PINTO COELHO2036339/1

PROFESSOR ORIENTADOR: SEVERINO FRANCISCO

Brasília/DF, maio de 2007.

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CECILIA PINTO COELHO

A ANARQUIA NO FIM DA DITADURAA EXPERIÊNCIA DO CADERNO CULTURAL DO CORREIO

BRAZILIENSE DE 1978 A 1979

Trabalho apresentado à Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas, como requisito parcial para a obtenção ao grau de Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo do UniCEUB – Centro Universitário de Brasília

Prof . Orientador: Severino Francisco

Brasília, maio de 2007

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CECILIA PINTO COELHO

A ANARQUIA NO FIM DA DITADURAA EXPERIÊNCIA DO CADERNO CULTURAL DO CORREIO

BRAZILIENSE DE 1978 A 1979

Trabalho apresentado à Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas, como requisito parcial para a obtenção ao grau de Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo do UniCEUB – Centro Universitário de Brasília

Brasília, de maio de 2007Banca Examinadora

_____________________________________Prof. Severino Francisco

Orientador

__________________________________Prof. Alexandre Humberto G. Rocha

Examinador

__________________________________Prof. Lunde Braghini

Examinador

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Severino Francisco, pela ajuda, tempo e dedicação.

Agradeço à minha família pelo carinho, apoio constante e incentivo.

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RESUMO

Ainda no período da ditadura militar, o Correio Braziliense foi sob a direção de Oliveira Bastos, no final da década de setenta, um jornal anárquico-conservador. Conservador, no primeiro caderno e anárquico, no segundo. O segundo caderno era avançado para época, tanto na parte de diagramação quanto na linguagem do texto. Artigos polêmicos de Glauber Rocha, com uma linguagem entre o tupi-guarani e o português, também foram divulgados. Ele era considerado um jornalista 007, com licença para matar e liberdade total de expressão. O editor-executivo da época, Fernando Lemos, resume o segundo caderno como “uma janela onde eles podiam respirar”, já que considerava “fazer aquele jornal algo sufocante”. O resultado desse projeto, esquecido nas estantes do centro de documentação e pouco citado em trabalhos acadêmicos, mostra que o Correio Braziliense nem sempre foi chapa-branca e oficialista.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 6 1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA ....................................................................................... 8

1.1 Rumo à redemocratização ....................................................................................................... 8 1.2 A Censura e a imprensa: ....................................................................................................... 11 1.3 Tipos de censura ................................................................................................................... 13 1.4 A criatividade como fuga ..................................................................................................... 17

2 O CASO DO CADERNO DE CULTURA DO CORREIO BRAZILIENSE ............................ 19 2.1 Contexto cultural: ................................................................................................................. 19 2.2 O Correio Braziliense e a década de setenta ......................................................................... 21 2.3 O caderno cultural e os suplementos no final da década de setenta ..................................... 23

3 AS INTERVENÇÔES DE GLAUBER ROCHA NO CORREIO BRAZILIENSE ................... 28 3.1 Quem é Glauber Rocha? ....................................................................................................... 28 3.2 Glauber e o Correio Braziliense ........................................................................................... 29

4 CONCLUSÃO ............................................................................................................................. 34 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................. 36 ANEXOS ............................................................................................................................. 7

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INTRODUÇÃO

A década de setenta foi marcada pelos primeiros passos rumo ao fim

de um regime ditatorial. A abertura política teve início ainda no regime militar

com o governo de Ernesto Geisel. Entre avanços e recuos rumo à

democratização, o governo decretou, em 1978, fim do AI-5, ato institucional

que suspendia as garantias individuais dos cidadãos. O general João Batista

Figueiredo, sucessor de Geisel, deu continuidade ao processo de distensão.

Em 1979 possibilitou a volta dos exilados políticos e aprovou o fim do bi-

partidarismo.

Apesar dos avanços, o período, com a instalação da censura, da

pressão econômica nos meios de comunicação e da tortura, representou o

fechamento de diversos jornais. Alguns, no entanto, resistiram e recorreram à

criatividade. As matérias censuradas deram lugar a receitas, poemas ou

espaços em branco.

Poucos são, no entanto, os relatos sobre essa época relacionados ao

Correio Braziliense e em especial ao seu caderno cultural. Apesar de não

apresentar muita resistência e conseqüentemente não enfrentar grandes

problemas com a censura, o jornal amargou, durante anos, a fama de chapa-

branca, oficialista e porta-voz dos interesses governamentais. O presente

trabalho, por meio do caderno cultural e dos suplementos especiais publicados

entre 1976 e 1979 pretende mostrar essa fase criativa, irreverente e anarquista.

O Correio nasceu e acompanhou o crescimento de Brasília. No final da

década de setenta, os movimentos culturais se intensificaram na capital

federal. O grupo carnavalesco Pacotão encantou brasilienses pela primeira

vez, em 1978. Foi a época em que nasceram também, por exemplo, os cursos

de verão anuais da Escola de Música de Brasília, a Orquestra Sinfônica do

Teatro Nacional e o espaço cultural da 508 Sul.

O caderno cultural ganhou espaço sob a nova direção do jornal, com o

então diretor de redação Oliveira Bastos. Segundo o editor-executivo na época,

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Fernando Lemos, era um caderno anárquico, avançado e “o melhor que havia

disparado”. Apesar da censura ter sido abolida recentemente, o caderno era

ousado, tanto na parte gráfica quanto em relação aos textos.

O caderno dois se contrapunha ao primeiro caderno, totalmente oficial.

Fizeram parte dessa experiência grandes nomes como o cineasta Glauber

Rocha, que instaurou, inclusive, uma linguagem tupi-guarani, o cantor Caetano

Veloso, o cartunista Lopes, o poeta Chacal, o cineasta Júlio Bressane e o

letrista Bernardo Vilhena.

O Correio Braziliense também se destacou na época pelos

suplementos especiais. É o caso, por exemplo, do suplemento literário

Alvorada, produzido por TT Catalão, Glauber Rocha e Rogério Duarte. Outros

exemplos foram os cadernos Encarte e Anexo.

O objetivo deste trabalho é mostrar uma faceta pouco difundida na

história do Correio Braziliense e da imprensa brasileira. A metodologia utilizada

é de revisão bibliográfica, análise de conteúdo e entrevistas.

O primeiro capítulo contextualiza o momento em que o caderno

cultural, com a abordagem anárquica, foi criado. Destaca a censura, as formas

como era imposta sobre os meios de comunicação e as maneiras como esses

a enfrentavam. O segundo capítulo mostra o contexto cultural da capital federal

na década de setenta, revela a linha editorial do jornal na época e relata as

inovações do caderno cultural. Finalmente, o terceiro capítulo refere-se a

intervenção do cineasta Glauber Rocha e a importância de sua colaboração

para o jornal.

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1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

1.1 Rumo à redemocratização

De 1964 a 1985, o Brasil viveu sob uma ditadura militar. Entre as

diversas manifestações políticas, econômicas e sociais, o regime impôs as

práticas da censura e da tortura. A transição para a democracia, iniciada na

década de setenta com o governo Geisel, se deu, como ele mesmo anunciou,

de forma lenta e gradual. O general Ernesto Geisel, conhecido também como

Alemão, presidente da Petrobrás, chefe do Gabinete Militar no governo

Castello Branco e irmão mais novo do ministro do Exército, foi indicado por

uma junta militar em 15 de março de 1974. A partir dessa data, deu início à

quarta presidência do regime militar, chamado na época de “revolução”, 21º

período de governo republicano. Esse duraria 1826 dias, até 15 de março de

1979.

Desde 1970, era considerado um dos nomes mais fortes para a

sucessão do então presidente Emilio Garrastazu Médici. Dele, herdaria o

milagre econômico e uma ditadura, como sugere Elio Gaspari, “feroz contra os

adversários e benevolente com os amigos” (GASPARI, 2003, p. 15).

Na prática, a liberalização do regime, chamado a princípio de

distensão, seguiu um caminho de avanços e recuos. Ao mesmo tempo em que

Geisel sofria pressões da linha dura, que mantinha muito da sua força, ele

mesmo desejava controlar a abertura, rumo à uma democracia conservadora.

O objetivo era evitar que a oposição chegasse muito cedo ao poder. Segundo

Fausto (2006, p.271), “a abertura foi lenta, gradual e insegura, porque a linha

dura se manteve como uma contínua ameaça de retrocesso até o fim do

governo de Figueiredo”.

Uma das medidas tomadas pelo governo Geisel foi se aliar à Igreja

para atingir um objetivo comum: a luta contra a tortura. Outro problema a ser

enfrentado era as relações entre as Forças Armadas e o poder. Esse último

tinha sido tomado pelos órgãos de repressão, prejudicando a hierarquia das

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Forças Armadas. Para restaurá-la, era necessário neutralizar a linha dura e

abrandar a repressão. O governo Geisel também foi o responsável pelo fim do

Ato Institucional nº5, à meia-noite de 31 de dezembro de 1978. Na prática, isso

significava, por exemplo, o direito ao habeas-corpus nos casos de crimes

políticos, a volta ao funcionamento do Congresso por delegação popular e o

desaparecimento da legislação das siglas Ato Institucional (AI) e Ato

Complementar (AC).

Em meio a medidas de abertura, Geisel também promoveu outras

repressivas. É o caso, por exemplo, do “pacote de abril”, introduzido em 1977.

Entre as medidas do pacote estava a criação de um Senador biônico, cuja

função era evitar que o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) obtivesse a

maioria no Senado. Foi também, durante o governo Geisel, que o jornalista

Vladmir Herzog, em 1975, foi intimado a comparecer no DOI-CODI, por

suspeita de ligações com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). De lá não saiu

vivo. O resultado foi a indignação em São Paulo, com a mobilização da Igreja

Católica e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Mas o desaparecimento do AI-5 nem sempre foi prioridade para Geisel.

No livro Ditadura Derrotada, Elio Gaspari cita uma conversa entre o presidente

e Coutinho sobre o AI-5, em 16 de fevereiro de 1974, em que Geisel relata:

O Ato 5 é um cajado. Eu sou besta de abrir mão desse negócio? Eu sei lá o que que vem. (...) Ah, eu sou um sujeito profundamente democrático. Toda a minha vida fui.(...) Agora, não sou nenhum burro de amanhã fazer uma vasta abertura, fingir aí uma democracia e depois ter que recuar dois, três, quatro passos. Eu não vou recuar. (...)Eu vou aplicar é racionalmente, com decência e pronto. (GASPARI, 2003. p.323)

A estratégia de abertura foi traçada pelo presidente e pelo general

Golbery, chefe de Gabinete Civil da Presidência. Os dois se conheceram ainda

no primeiro governo da ditadura militar, sob mando do então presidente

Castello Branco. Na época, Geisel, com 56 anos, era chefe do Gabinete Militar

do presidente. Golbery, com 52, foi responsável por fundar o Serviço Nacional

de Informações (SNI).

(...) Geisel e Golbery chegaram em Brasília em 14 de março de 1974 dispostos a mudar o regime. Diferiam no método, nos motivos e nos

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propósitos. Os dois generais eram diferentes, mas formavam uma dupla que só a amizade e a disciplina militar podem produzir. Um simpatizava com o integralismo. O outro com a Revolução Soviética. (...) Ambos achavam necessário acabar com a ditadura porque, tendo-a fundado, sabiam o grau de anarquia política e militar que produzira. (GASPARI; HOLLANDA; VENTURA. 2000. p.15) .

Em 1974, ambos tinham o objetivo de desmontar a ditadura

radicalizada desde 1968, com a criação do Ato Institucional nº5, que suspendia

as garantias individuais dos cidadãos. Segundo Elio Gaspari, autor de Ditadura

Derrotada, Geisel não dava valor ao sufrágio universal. Ele queria mudar

porque tinha a convicção de que faltavam ao regime brasileiro estrutura e força

para se perpetuar.

Gaspari (2000) explica que o desmanche ditatorial ocorreu aos poucos

e que, até hoje, é difícil dizer quando, de fato, terminou. Segundo o autor,

Golbery comparava a política de abertura à cama de Alice, personagem do

conto ‘Alice no país das maravilhas’, que estava em um lugar quando ia dormir

e em outro quando acordava.

Para Gaspari (2003), a ditadura de 1964 acabou várias vezes. Pode

ter sido na noite de 14 de março de 1985, no último dia de governo de um

general. Outros consideram a noite de 12 de janeiro de 1976 como um marco

fundamental. Na época, Geisel recebeu um telefonema do governador de São

Paulo, Paulo Edígio Martins, informando que morrera na DOI-CODI do II

Exército o metalúrgico Manuel Fiel Filho. O resultado foi a demissão do general

Ednardo d´Avilla Mello do comando da guarnição de São Paulo. A humilhação

de um general por conta de um preso político representou o poder do

presidente sobre o aparelho de repressão política. Mas, apesar desse fato, as

torturas continuaram. Outro momento importante ocorreu em 31 de dezembro

de 1979, quando o governo pôs fim ao Ato Institucional. O fato significou a

volta ao regime constitucional, mas, ressalva Gaspari (2000), ao da chamada

Emenda de 1969, outorgada por três ministros militares. A ditadura só teria

realmente terminado então, para alguns, com a Constituição Cidadã,

proclamada por Ulysses em 1988.

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1.2 A Censura e a imprensa:

De acordo com Smith (2000), nunca houve no Brasil uma idade de ouro

de completa autonomia da imprensa em relação ao Estado. E foi, junto com a

chegada da imprensa no Brasil, que surgiu a censura. Em 1808, quando a

corte portuguesa fugiu do exército de Napoleão em direção ao Rio de Janeiro,

trouxe consigo a primeira imprensa e as primeiras leis de imprensa. Nada

podia ser impresso sem o exame prévio dos censores reais. Assim, as

informações contra o governo, religião e bons costumes eram proibidas. Ao

declarar o confisco em 1809 do jornal fundado por José Hipólito da Costa, o

Correio Braziliense, a corte dizia que a malignidade e falsidade política

poderiam enganar o povo simples.

Mas foi, durante o período da ditadura (1964-1985), que a imprensa

talvez tenha tido que fazer maior uso da criatividade para sobreviver. Na época,

existiam, basicamente, duas grandes categorias de imprensa: a grande

imprensa e a imprensa alternativa. A primeira, representada por jornais como o

Estado de São Paulo, Correio da Manhã, Folha de São Paulo e o Globo,

deveria ser representativa, majoritária. No entanto, ela podia ser apenas a

dominante ou a mais bem-sucedida comercialmente. A segunda incluía jornais

como o Pasquim, Opinião e Movimento. Era crítica, embora pudesse ser

apenas não conformista. Ela exerceu um papel crucial na formação de uma

oposição política e buscava incessantemente novos modelos. Eram veículos de

oposição, muitas vezes com publicações efêmeras.

Para Aquino (1999), apenas em dois momentos da história republicana

do país a ação da censura pode ser considerada contínua: no governo Vargas

e no regime militar instaurado após 1964. O marco de uma censura política

lentamente institucionalizada foi estabelecido em 13 de dezembro de 1968,

com a criação do AI-5.

O AI-5 foi editado pelo presidente Costa e Silva após um discurso

pronunciado na Câmara pelo deputado Márcio Moreira Alves. Nele, Moreira

Alves chamava a população para boicotar a parada militar comemorativa de

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Independência e aconselhava às mulheres que não namorassem militares

envolvidos na repressão. O fato, considerado um ultraje às Forças Armadas,

serviu aos interessados no recrudescimento da repressão para exercer pressão

no presidente.

Na prática, o AI-5 concentrava e conferia excepcionalidade maior ao

presidente, limitava ou extinguia liberdades democráticas e suspendia as

garantias constitucionais. Diferia dos demais atos em um aspecto: não havia

prazo estipulado para a sua vigência. Com sua publicação, as rédeas da

condução do país haviam mudado de posição.

O AI-5 foi um marco divisório na história da censura do país. A partir de 13 de dezembro de 1968, a censura à imprensa escrita viveu períodos de maior ou menor intensidade e variou o seu modo de atuação de acordo com o periódico, a extensão de suas denúncias e com a intensidade de sua resistência, (AQUINO, 1999. p.207).

Os principais jornais, na data da edição do Ato, manifestaram, de um

jeito ou de outro, a sua opinião. O Estado de São Paulo trazia no título do

editorial: Instituição em frangalhos. No Jornal do Brasil, uma nota no topo da

página dizia: ontem foi o dia dos cegos. A mensagem, de duplo sentido, se

referia também a data 13 de dezembro, dia de Santa Luzia, padroeira dos

cegos. Ao lado esquerdo do título, Alberto Dines, na época editor-chefe,

comentava o tempo com as seguintes palavras: “Tempo negro. Temperatura

sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por um vento forte”.

No artigo de Ventura (1971 apud GASPARI, HOLLANDA e VENTURA,

2000, p. 46), Alberto Dines dá sua opinião sobre o AI-5:

A imprensa, em particular, e o campo das comunicações coletivas, em geral, vinham atravessando no Brasil um processo ascendente de qualidade, vitalidade e amadurecimento. O AI-5 abafou repentinamente essa explosão. Não apenas porque implantou a censura prévia com todo o seu rol de não menos desagradável nuanças, mas porque implantou definitivamente o arbítrio na área da informação. Hoje não há fontes de notícias, há notas oficiais. (...) Enfim, não há mais aquela indispensável espontaneidade no processo de busca e divulgação da informação, porque há um fantasma balançando em cima de todos, chamado AI-5. Estamos todos fazendo um grande esforço na base da criatividade, diversificação de atividades e busca permanente de qualidade, para impedir que a crise pela qual passa nossa imprensa possa converter-se em fenômeno crônico.

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A censura política do estado brasileiro durou de 1968, com a edição do

AI-5, até 1978, com a abolição da censura prévia nos últimos três órgãos de

divulgação sobre os quais ela ainda atuava: Tribuna da Imprensa, Movimento,

o São Paulo.

Aquino separa o período em três fases. A primeira delas, de 1968 a

1972, é a inicial. Há uma estruturação da censura, do ponto de vista legal e

profissional. Existem procedimentos de telefonemas e bilhetes enviados às

redações. De 1972 a 1975, ocorre a radicalização e instauração da censura

prévia aos órgãos de divulgação que oferecem resistência. Geisel assume com

a intenção de conduzir o processo de distensão política, o que incluía a

liberação da imprensa. No entanto, o ano de 1974 não traz mudanças no

quadro da censura. Em alguns casos, como no Jornal do Brasil, há o aumento

do número de bilhetinhos que chegam à redação.

Finalmente, entre 1975 e 1978, a censura torna-se mais restritiva e

seletiva. Diminuem as ordens telefônicas e os bilhetes. Em 8 de julho de 1978,

o coronel Rubem Ludwig, assessor de imprensa do Planalto, informa, por meio

de um comunicado, que estava extinta a censura nos jornais Tribuna da

Imprensa, O São Paulo e o Movimento.

1.3 Tipos de censura

Durante o período de ditadura militar (1964-1985) foram várias as

formas de controle da imprensa. Embora o regime nunca tivesse negado

formalmente a liberdade de imprensa, podia impedir que ela fizesse jus desse

direito. A imprensa era vulnerável no ponto de vista financeiro, profissional e

em termos de segurança pessoal de seus membros.

Uma forma que regime adotou para pôr em prática esse cerceamento

foi por meio da interferência do Estado nas finanças das empresas dos meios

de comunicação. Suspender publicidades, negar empréstimos pelos bancos

oficiais, recusar licenças de importação de equipamentos ou papel e o confisco

de tiragem eram algumas das medidas adotadas. Esses recursos, segundo

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Smith (2000), eram meios seguros de efetiva pressão sem restringir às claras a

liberdade de imprensa propriamente dita.

O bloqueio de receitas publicitárias ocorria de duas formas: a

suspensão dos anúncios governamentais ou a pressão do próprio governo para

anunciantes privados cancelarem suas propagandas. Smith (2000) explica que,

na época, o Estado representava 36% do mercado publicitário dos jornais

brasileiros. Em 1978, o Jornal do Brasil (JB) sofreu um bloqueio econômico no

qual qualquer entidade ligada ao governo estava proibida de comprar anúncios

nas páginas do JB. Tudo isso porque o jornal contestou, no editorial, o sigilo

dos acordos nucleares entre Brasil e Estados Unidos.

Outra forma de prejudicar a imprensa era por meio de apreensões. O

Correio da Manhã, o Estado de São Paulo, a Tribuna da Imprensa foram

vítimas do confisco de exemplares antes de sua distribuição. O fato

representava uma pesada perda financeira para qualquer publicação. O

jornalista Ricardo Kotscho (2006), lembra a primeira vez em que o jornal deixou

de circular e recebeu, também de forma inédita, a visita de censores.

Na madrugada de 13 de dezembro, dia em que Costa e Silva editou o AI-5, o principal editorial trazia o premonitório título ”Instituições em frangalhos”. Informado por algum dos vários colaboradores do regime infiltrados na redação, o delegado Sílvio Correia de Andrade, da Polícia Federal, invadiu a oficina, que dava para a rua Martins Fontes, e gritou a ordem: “Parem as máquinas!”. Em seguida, determinou aos policiais que o acompanhavam a apreensão de todos os exemplares já prontos para a distribuição. Pela primeira vez desde o golpe, o Estado deixou de circular. (...) No começo da noite seguinte, dois policiais à paisana da Divisão de Diversões Públicas da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo chegaram à redação para “examinar o noticiário político”. Era o início oficial da censura prévia. (KOTSCHO, 2006 p. 45).

Além disso, o próprio noticiário era controlado. As notícias eram

tratadas como um material controlado e não como um bem público. Alguns dos

temas que se enquadravam nessa regra eram: seqüestros, greves, disputas

nos ministérios, sucessão presidencial, dados sobre produções petrolífera e

agrícola. Assim, qualquer notícia negativa era considerada como uma munição

para o inimigo. Smith conta que o regime tinha uma baixa opinião do povo, cuja

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capacidade de discernimento era menosprezada. A elite do governo julgava a

“massa” como inculta e simplória.

As estratégias para impor controle sobre a notícia também eram

diversificadas. Os press releases, por exemplo, eram usados para todo tipo de

notícia, desde decisões políticas até dados estatísticos. Em si, não constituíam

um instrumento, mas a forma com que eram distribuídos mostrava uma

imposição de controle. Tratava-se de uma declaração e não de um ponto de

partida para uma pauta, como ocorre atualmente. Era lido em voz alta por um

funcionário especificamente designado para tal função e os jornalistas não

tinham espaço para fazer qualquer pergunta.

O regime também recusava divulgar notícias. Smith (2000) conta que

havia uma falta de vontade generalizada nos meios federais de proporcionar

informações. Outro método utilizado era exercer pressão sobre os indivíduos.

Ou seja, certos jornalistas eram impedidos de desempenhar a profissão, donos

de jornais eram vítimas de processos judiciais e qualquer pessoa corria o risco

de sofrer agressões físicas. Negar ou cancelar credenciais também era um

procedimento comum.

Além dessas medidas, dois tipos de censura foram praticadas: a

censura prévia e a autocensura. A primeira determinava que tudo que fosse

preparado por um jornal seria examinado pela polícia antes da divulgação. O

processo era padronizado. Foi conduzido pela Polícia Federal em Brasília, a

qual estava sujeita ao Ministério da Justiça Civil, mas era chefiada por um

militar e mantinha laços com as Forças Armadas. Era um recurso repressivo

estabelecido nos órgãos de divulgação que se recusavam a aceitar ordens. A

censura prévia atuava de duas formas: instalando censores nas redações,

como no caso de O Estado de São Paulo e Tribuna da Imprensa, ou exigindo

que todo o material publicado fosse entregue na delegacia regional da Polícia

Federal ou enviado diretamente à Brasília. Lá, o departamento responsável do

órgão examinava reportagens, charges, fotos, capas e anúncios. O material era

devolvido apenas após leitura e cortes. Os censores vinculados a Polícia

Federal, com o tempo passaram por um processo de uniformização. Todos

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deviam ter nível superior e a realização de cursos na Academia Nacional de

Polícia e submissão de exames. Kotscho (2006) lembra como lidava com os

censores na época em que trabalhava no Estadão.

O agravamento da situação política do país com a morte de Costa e Silva, substituída por uma junta militar e em seguida por outro general ainda mais linha-dura, Emílio Garrastazu Médici, tornou mais tensas as relações entre a “turma do Rossi” e a cúpula. Continuávamos trabalhando como se a censura não existisse. Depois íamos negociar com os censores nas oficinas do jornal para tentar salvar alguma coisa . Ao assumir um erro cometido por um repórter em matéria de denúncia contra Paulo Maluf, então prefeito nomeado de São Paulo, Clóvis Rossi foi punido com sua transferência para a editoria de esportes. Fui para lá junto com ele. (KOTSCHO, 2006. p.46)

A autocensura consistia na proibição de noticiar certos fatos que eram

indicados pela Polícia Federal antes de sua publicação. O termo é usado para

referir-se ao processo de receber e obedecer às ordens baixadas pela Polícia

Federal, entre 1968 e 1978. Era o silêncio da abstenção consciente. O público,

muitas vezes, ignorava que lhe estava sendo negada determinada informação.

Ambos tipos de censura, de acordo com Smith, eram ilegais e ocultas

do público tanto quanto possível. A autora lembra que, em 1970, o ministro da

justiça Alfredo Buzaud baixou um decreto-lei que previa censura moral em

livros e revistas, mas excluía censura política de notícias ou informações. No

AI-5, a liberdade de imprensa podia ser suspensa em caso de estado de sítio,

mas nunca foi declarado estado de sítio durante a censura prévia. A censura

era, portanto, inconstitucional e se enquadrava em um dos temas mais evitados

nas publicações.

Catalão (2007) conta que pelo fato do jornal Correio Braziliense estar

em Brasília, havia uma vigilância maior. Até 1970, o jornal contava com um

censor de plantão que cortava trechos dos textos antes da impressão. Ele

confessa, no entanto, que só viu censura dentro da redação em um episódio

envolvendo o governador Roriz, que enviou um oficial de justiça para garantir a

não publicação de uma matéria. TT Catalão relata ainda que, no primeiro

período em que trabalhou no jornal, existia uma pressão ideológica dos

editores e diretores ligados ao sistema.

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As censuras indiretas ocorrem no “consenso de manutenção do emprego a qualquer custo e dignidade”, via ligações do tipo: “essa matéria desagradou a A ou B; não repita esse tipo de abordagem; controlem seu pessoal senão aquele negócio nosso será prejudicado etc. Enfim, nada diferente do que ainda ocorre hoje. Esse sistema de censura, hoje, não é tão ideológico, mas empresarial. A notícia na maioria das vezes segue o faro comercial de suporte como mercadoria. Mas vale lembrar que há muitos exemplos de resistência, caráter e bravura nas redações. Gente que consegue operar na linha maior do jornalismo como serviço primeiro ao público. (CATALÃO, 2007).

Catalão (2007) revela também que a revolução do caderno dois era

estética e que os censores buscavam sinais clássicos de opinião formal contra

o regime. Segundo ele, a equipe trabalhava com o simbólico, com a ousadia de

imagens e criavam “relações de escracho para desestabilizar a medula do

modelo com discursos fora do padrão”. Catalão (2007) explica que não havia

uma proposta alinhada a um partido ou ideologia formal. O trabalho era

operado na expressão criativa, mas segundo ele, com óbvia intenção de busca

de atitudes no comportamento pela liberdade e respeito aos direitos básicos

que um incitamento contra a ordem pública.

De um lado, a censura nos meios de comunicação era um segredo

relativamente público, pelo menos na esfera da imprensa, e de outro, devia ser

um segredo porque se tratava da violação ilegal de uma liberdade assegurada

constitucionalmente.

O retorno à liberdade de imprensa foi gradual e hesitante. Duas forças,

segundo Smith (2000), contribuíram para isso: as disputas internas no regime e

o crescimento da organização e atuação da sociedade civil. Outro fator que

colaborou foi que a própria liberdade de imprensa podia ser usada pela facção

pró-Geisel em sua luta constante contra a linha dura.

1.4 A criatividade como fuga

Diante da censura imposta pelo regime militar, muitos jornais tiveram

de encontrar uma forma para sobreviver e para denunciar aos leitores o que

ocorria nos bastidores das redações. O Estado de São Paulo, ao se opor ao

regime, é afetado pela censura prévia. Como saída, frente às matérias não

publicadas, força o leitor a buscar e a descobrir, a partir do insólito da

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substituição, o que poderia estar oculto ali. As matérias censuradas dão lugar

às jurisprudências, anúncios e cartas ao leitor. No dia 10 de maio de 1973, por

exemplo, é publicada uma carta com referência a Salomão, intitulada, Salomão

e Rosas, que, no Cântico dos Cânticos, fala sobre a Rosa de Sharon, que

personifica os ideais de liberdade. Outro anúncio estampava o slogan: “Agora é

samba”.

Assim, o jornal deixa claro, para seu público, a existência da censura.

A estratégia, segundo Aquino, teve várias fórmulas (mencionadas acima) até

chegar a uma solução definitiva, que pelo inesperado, não poderia deixar o

leitor indiferente. De 1973 a 1975, O Estado de São Paulo publica, como

sugere a autora, “suaves prestações”, d´Os Lusíados, de Luis de Camões.

Foram tantos cortes que o título chegou a ser publicado duas vezes, na íntegra.

No Estado de São Paulo, o material de substituição escolhido chama

atenção do leitor pelo insólito. Representam uma surpresa para o público

porque a sua publicação, no local onde não deveriam estar, não faz sentido. O

Jornal da Tarde optou por substituir as matérias proibidas por receitas

culinárias. O público, segundo a autora, chegou a reclamar que essas não

davam certo, mas, apesar disso, lembram até hoje da estratégia. O Tribuna da

Imprensa, um dos últimos a se livrar de atos de censura, deixava espaços em

branco.

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2 O CASO DO CADERNO DE CULTURA DO CORREIO BRAZILIENSE

2.1 Contexto cultural:

Ventura (1971 apud GASPARI, HOLLANDA e VENTURA, 2000) critica

a crise cultural vivida no Brasil naquela época. Ele cita uma pesquisa que

aponta dois fatores primordiais que levaram a tal quadro: o AI-5 e a censura.

Segundo Ventura (2000), não havia nada que se assemelhasse a

efervescência criativa que caracterizou o começo da década de sessenta. No

plano da arquitetura não existia nada que “chegasse perto da grandeza

inventiva de Brasília” (GASPARI, HOLLANDA e VENTURA, 2000, p.40). No

cinema não havia nada como o Cinema Novo e, na música, nada como a

Bossa Nova. Para o autor, ao contrário, a década de setenta apresentava um

panorama “sombrio” porque a quantidade suplantava a qualidade, havia uma

queda na venda de jornais, livros e revistas, ocorria a evasão dos melhores

cérebros e o desaparecimento da temática polêmica e da controvérsia da

cultura. Ao lado das motivações intrínsecas, Ventura (2000) cita como causa

desse cenário as alterações na estrutura social, política, econômica e

psicológica dos últimos anos. A primeira delas foi a “revolução” de 1964,

quando a cultura sofreu o choque das novas condições.

Sempre, ao lado da história, a criação cultural significou insubmissão e exigiu um clima de ampla liberdade. Os seus valores fundamentais – humanismo, liberalismo, livre expressão de idéias - nem sempre coincidiram com as motivações básicas do poder política forte, e mesmo quando os conteúdos deste variam. (GASPARI, HOLLANDA e VENTURA, 2000, p. 42).

Mas, segundo o autor, por trás do autoritarismo do regime militar, havia

uma certa preocupação em preservar a cultura, ou como ele mesmo sugere,

em não matá-la. Assim, para ele, a cultura vivia momentos críticos para os

quais não tinha a menor preparação, mas vivia. O AI-5 colaborou para esse

contexto com a censura prévia, agindo no interior do campo cultural e com a

cassação, expulsão, aposentadoria e prisão das pessoas. Entre os autores

censurados no Brasil, figuravam nomes como Machado de Assis, Jorge Amado

e Carlos Drummond de Andrade.

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Apesar da abertura política promovida já na década de setenta por

Ernesto Geisel, foi apenas com o governo do seu sucessor, o general

Figueiredo, cuja posse ocorreu em março de 1979, que houve o fim do bi-

partidarismo e, em agosto do mesmo ano, a volta dos exilados políticos. Uma

das contradições é que o general indicado para dar continuidade à abertura foi

um dos responsáveis por chefiar um órgão repressivo. Figueiredo tinha sido

chefe do Gabinete Militar no período Médici e chefe do Serviço Nacional de

Informações (SNI) no governo Geisel. Assim como ocorreu no governo

anterior, o processo de abertura foi perturbado pela ação da linha dura. A lei de

anistia, segundo Boris Fausto, continha restrições e fazia uma importante

concessão à linha dura, incluindo responsáveis pela prática de tortura. Dentre a

lista de exilados que retornaram ao Brasil na época estava o atual deputado

Fernando Gabeira (PV/ RJ). Em uma entrevista realizada em 1979 por Heloisa

Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Messeder, publicada no livro “Cultura em

trânsito: da repressão à abertura”, Gabeira comenta sobre as relações entre a

ditadura militar e a cultura.

O país começou a se encolher do ponto de vista intelectual. Os jornalistas já não podiam dizer o que queriam, o arquiteto foi reduzido ao espaço da grande residência burguesa, o artista plástico teve que formalizar ainda mais e, no jornal, o que se colocava para nós, jornalistas, era perder a perspectiva de contestação, de provocação e, num certo sentido, se enquadrar dentro de uma perspectiva muito bem comportada, no que dizia respeito ao conteúdo, e com algumas possibilidades formais, em termos de melhor a paginação e assim por diante. (GASPARI, HOLLANDA e VENTURA 2000. p.128)

Para Morelli (2002), os anos setenta, apesar da ditadura repressiva,

permitiram a fixação da capital no Planalto Central e o desenvolvimento

econômico de Brasília. Entre 1974 e 1979, o Distrito Federal foi governado pelo

engenheiro Elmo Serejo, nomeado por Geisel. Com o início da consolidação da

cidade vieram várias mudanças na área cultural. Foi a época em que

nasceram, por exemplo, os cursos de verão anuais da Escola de Música de

Brasília, o espaço cultural da 508 Sul, a Orquestra Sinfônica do Teatro

Nacional e o movimento cultural Cabeças, série de shows ao ar livre, na 311

Sul. Em 1978, chegou o projeto Pixinguinha, da Funarte, que permitiu aos

brasilienses ouvir, de forma inédita, os grandes artistas da música popular ao

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vivo. No mesmo ano, o popular bloco de rua carnavalesco Pacotão deu o ar da

graça nas entrequadras. E encantou centenas de pessoas com marchas que

ironizavam os governos de Ernesto Geisel e João Figueiredo. Em 1979, o

Teatro Nacional foi re-inaugurado. A chegada de artistas e intelectuais, como o

músico Astor Piazzola e o pensador italiano Umberto Eco, passaram a fazer

parte do roteiro cultural dos brasilienses.

2.2 O Correio Braziliense e a década de setenta

O jornalista e empresário Assis Chateaubriand, dono da cadeia de

meios de comunicação Diários Associados, foi o responsável por criar o atual

Correio Braziliense, em 1960. Segundo Morelli (2002), o jornal surgiu de uma

aposta entre ele e Juscelino Kubitschek. Apesar de ser inicialmente contrário a

construção de Brasília, Chatô disse que, se a cidade ficasse pronta, arrumaria

um jornal para o dia da inauguração. Mas foi o segundo responsável pelos

Diários Associados, João Calmon, quem se empenhou no projeto. Calmon

acreditava que era importante para o grupo ter um jornal na capital do país. O

nome foi inspirado em um dos primeiros jornais brasileiros, fundado por Hipólito

da Costa, no século XIX.

Morelli (2002) comenta que, ao realizar o seu estudo, muitos jornalistas

que trabalharam na época afirmaram que uma das particularidades do Correio,

ao longo dos anos, foi o apoio do jornal aos governos locais e, em alguns

casos, ao federal também. A idéia inicial era ocupar o mercado de Brasília.

Segundo ela, a independência editorial ocorreu recentemente, a partir de 1994,

motivada “por questões mercadológicas, históricas e políticas”.

A década de setenta, no entanto já apresentava algumas

transformações. Foi marcada no Correio Braziliense pela chegada de um novo

diretor de redação: o jornalista Oliveira Bastos. Ele foi professor de latim, amigo

de Oswald de Andrade, integrante do grupo que editou o Suplemento Cultural

do Jornal do Brasil na década de 1960. Quando chegou ao jornal, detectou a

existência de vários problemas: atraso na impressão, falta de credibilidade

junto às autoridades, cobertura voltada muito para o local e grande

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dependência da publicidade oficial do governo do Distrito Federal. Além disso,

havia problemas na revisão, apuração e redação de textos. Ocorria também a

publicação de press-releases.

O período, de constantes mudanças gráficas e editoriais, contou com o

surgimento de novos cadernos e colunas. De acordo com Morelli (2002), as

transformações já estavam em curso no jornal no início da década, mas foi

Oliveira o responsável por promover grandes reformas. O novo diretor pensava

em um jornal com importância nacional. Lemos (2007), conta a experiência:

Cheguei ao Correio em 1976. Foi o Oliveira Bastos que me trouxe porque já tínhamos trabalhado juntos. Bastos fez uma revolução lá. O jornal era muito sem carisma, sem cara. Parecia um jornal do Diário Oficial. Foi uma revolução gráfica e editorial. Valorizamos pessoas que já estavam lá, como o cartoonista Lopes, mas também trouxemos muita gente de fora. (LEMOS, 2007).

Morelli (2002) explica que o advento de um concorrente, o Jornal de

Brasília criado em 1970, também contribuiu para impulsionar tais

transformações. Assim, as matérias tornaram-se mais reflexivas e o jornal

passou a contar com a colaboração de nomes de repercussão nacional, como

os do cineasta Glauber Rocha e do cantor Caetano Veloso. O novo diretor

aperfeiçoou as rotinas de produção, organizou a redação e implantou retrancas

por assunto nas páginas. No meio da década de setenta, surgem os encartes

Caderno de Integração, com matérias sobre Goiânia, Anápolis e cidades-

satélites. Foram publicados também o Jornal do Automóvel e o Caderno Social,

aos domingos, com as colunas sociais de Gilberto Amaral e Katucha, cinema,

música, TV, rádio, literatura, dicas sobre medicina, moda, culinária,

programação cultural e quadrinhos. Morelli (2002) conta também que, seguindo

uma tradição iniciada na década anterior e mantida por Bastos, o Segundo

Caderno continuou a ser o local onde se publicavam grandes reportagens

sobre o que os jornalistas chamavam na época de “tema do dia”.

Além disso, a editoria de cidades ganhou uma página própria e houve

uma intensificação da interatividade com o leitor. Ele podia opinar sobre temas

do momento por meio de cartas ou na coluna “Voz do povo”.

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Apesar das mudanças, Morelli (2002) conta que o jornal não

abandonou o seu perfil “chapa-branca”. Graças a autocensura e às boas

relações do dono, Edílson Cid Varela, e de Oliveira Bastos o jornal não teve de

enfrentar muitos problemas frente à censura.

Na época da ditadura, o jornal era muito submetido a regras draconianas. Era muito policiado internamente, era como se houvesse uma censura. Havia regras do que era permitido falar ou não. A pressão era forte, mas quase amigável com a direção do jornal. O Correio era dócil, não resistia. Eles davam ordens pelo telefone: “olha, não quero que dê nada disso”. Mas era suave. Outros jornais, como o Jornal do Brasil e a Folha de São Paulo, resistiam e brigavam. Aqui, era paz total. (LEMOS, 2007).

As mudanças promovidas pela nova gestão significaram um aumento

no número de páginas de classificados e da tiragem do jornal. Em 1970,

circulavam 11 mil exemplares por dia. Em 1978, eram 27,5 mil exemplares por

dia. Ao divulgar os dados, no entanto, Morelli faz uma ressalva: a população

também cresceu na época. Passou de 500 mil habitantes para um milhão,

nesse mesmo período.

2.3 O caderno cultural e os suplementos no final da década de setenta

Dentre todas as mudanças promovidas, as mais radicais foram aquelas

relacionadas ao caderno de cultura e aos suplementos especiais. Morelli

(2002) explica em sua tese que a cobertura cultural aumentou e acompanhou

assim o movimento da cidade e do país. Brasília contava na época com

representações diplomáticas estrangeiras com seus departamentos culturais e

os brasilienses produziam música, teatro e artes plásticas. Morelli (2002)

sustenta também que o jornal era chapa-branca e que manteve esse perfil,

inclusive, com a crescente democratização e com a direção seguinte de

Ronaldo Junqueira, já na década de oitenta.

Noblat (2007) conta como estava o Correio no início da reforma, em

fevereiro de 1994. Ele menciona que fatos que pudessem desagradar ao

governo local e ao federal, anunciantes importantes e amigos da direção do

jornal eram desconsiderados ou mereciam pouco destaque. Também traficava-

se influência em quase todas as áreas do jornal e muitos diretores e até

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diagramadores ganhavam dinheiro com isso. Dentre os novos lemas adotados,

constavam os de que toda notícia que interessasse ao leitor seria publicada e o

de que era, a partir de então, permitido ousar.

Outra medida adotada foi investir na oferta de notícias e reportagens

próprias, fora do cardápio de assuntos comum aos demais veículos de

comunicação. No novo jornal, havia também a preocupação em produzir algo

visualmente atraente. Assim, o que importa, segundo Noblat (2007), é

comunicar bem seja por meio de gráficos ou infografias, mesmo se a medida

implicasse retirar texto.

Ao folhar exemplares do segundo caderno do final da década de

setenta, é possível notar que havia, no entanto, essa preocupação. As capas

do caderno muitas vezes estampavam ilustrações que ocupavam dois terços

da página. Ousadia tampouco foi um quesito deixado de lado. O caderno

cultural contou com a colaboração de pessoas das mais variadas formações.

Fizeram parte do caderno, por exemplo, o ator Ary Pararraios, a

fotógrafa exclusiva do caderno, Mila Petrilo, o jornalista TT Catalão, o

cartunista Lopes, a jornalista Maria do Rosário, o cronista e poeta Chacal, o

letrista Bernardo Vilhena e os cineastas Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e

Júlio Bressane. Segundo Lemos (2007), o caderno cultural com todos os seus

colaboradores, sua linguagem estética e revolucionária foi uma janela na qual

eles podiam respirar.

Quando eu e o Oliveira Bastos chegamos, inventamos o seguinte lema: o Correio Braziliense é um jornal anárquico-conservador, conservador no primeiro caderno e, no caderno de cultura, totalmente revolucionário, anarquista. E realmente foi. Investimos muito no caderno cultural, levamos uma turma que era do Jornal de Brasília, pegamos uma equipe forte. O caderno tinha uma linguagem revolucionária, uma estética revolucionária. Era o melhor caderno cultural disparado da época. Essa decisão foi minha e do Oliveira porque a gente não agüentava fazer aquele jornal. Era uma coisa sufocante. A gente abriu uma janela para poder respirar e essa janela foi o caderno cultural com todos os seus agregados. (LEMOS, 2007).

Segundo Lemos (2007), o caderno era diferente porque não publicava

apenas eventos. Era um jornal com preocupação literária de buscar pessoas

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que acrescentassem dados ao caderno. Além de matérias sobre teatro, música

e exposições, a editoria trazia uma coluna intitulada “geléia geral”, com notas

curtas sobre diversos temas culturais. Além da parte estética, Lemos (2007)

explica que os textos também tinham uma linguagem revolucionária. Glauber

Rocha, por exemplo, escrevia artigos polêmicos em uma linguagem entre o

português e o tupi-guarani.

Catalão (2007) conta que o segundo caderno do Correio Braziliense

começou a ser citado no Rio, em São Paulo, Minas Gerias e Porto Alegre. O

tratamento gráfico, segundo ele, foi o início do que seria feito, mais tarde, com

a reforma promovida por Noblat (2007). Ele acrescenta que a noticia era

contextualizada, havia projeção do fato e existia a opinião participativa do leitor.

Na verdade o tratamento gráfico era o embrião do que faríamos mais tarde com o grupo reunido pelo Noblat partir de 1996 e foi (parte) demitido em 2003. O jornalista conta histórias, e podemos narrar sob diversos suportes. Abríamos para dar contexto a notícia, a opinião realmente participativa do leitor, a análise editorializada do repórter e a busca da projeção do fato. Os cadernos Geléia Geral, EncArte, Questões, as crônicas que fiz revezando com o poeta Chacal exigiam uma outra postura gráfica e um entendimento no narrar, no tratamento da notícia, que mais tarde se revelariam inusitadas ao informar, mas chocar os padrões tediosamente clássicos. A arte comprometida e abusada incomoda, digamos, “revolucionariamente”, mais que mil panfletos cheios de chavões. (CATALÃO, 2007).

Jardim (2007), criador do Caderno B do Jornal do Brasil, também

trabalhou no Correio Braziliense. Era responsável pelo caderno Desencarte, na

década de oitenta, quando o jornal estava sob a direção de Ronaldo Junqueira.

Ele explica que, naquela época, já não existia mais a liberdade dos anos

anteriores. Todo dia havia uma reunião, na qual era decidida a pauta do dia.

(JARDIM, 2007).

Achava convencional aquele caderno. Quando cheguei estava muito ruim, já tinha voltado a normalidade. Houve uma fase do Oliveira Bastos, ele trabalhou comigo no suplemento do Jornal do Brasil. O Oliveira Bastos era muito bom, era crítico de artes plásticas e de literatura, era muito culto. O Ronaldo Junqueira acabou com essa fase criativa. Não vejo nada de revolucionário daquele tempo, a não ser a equipe que trabalhou comigo. Mas perto do que tinha feito antes, era muito acomodado. A própria estrutura do jornal não dava liberdade. (JARDIM, 2007).

O jornalista, poeta, criador e reformador de jornais Reynaldo Jardim,

explicou também na entrevista como foi criar o Caderno B, o primeiro caderno

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de artes e espetáculos. Conta que, na época, o jornal tinha muitos recursos

devido aos classificados e que contava apenas com dois cadernos. O segundo

era uma continuação do primeiro, não havia uma distinção editorial. A idéia de

Jardim foi separar os blocos. A partir de então, surgiu o Caderno A, de

atualidades, e o C, de classificados.

Minha idéia era separar o primeiro caderno dos classificados. Quer dizer o Caderno A, de atualidades, o C, de classificados. Foi aí que apareceu o Caderno B. Nessa época, os segundos cadernos não existiam com essa característica cultural. Foi o primeiro caderno de artes e espetáculos. Aí começou a proliferar em tudo quanto é lugar. Hoje não existe um jornal que não tenha isso. (...) A vantagem do JB é que ele não era nada, só tinha dinheiro porque era um jornal de classificados. Então você pode começar do começo. Não tem ninguém para te aborrecer. Hoje em dia os donos do jornal eles pensam que entendem de jornal e não se contentam em ser donos de jornal (JARDIM, 2007).

Para Jardim (2007), o jornalismo está muito padronizado e os jovens

que chegam ao mercado são inibidos de usarem a força criativa. O jornalista

acredita que a criatividade da imprensa acabou e que a solução para isso

estaria nos blogs, uma das únicas formas de fazer algo criativo e independente.

Eu acho que mesmo os bons cadernos culturais são muito convencionais. Eles cumprem a missão direitinho, perfeito. A diferença do caderno que eu fazia é que ele era revolucionário, anárquico, era uma coisa completamente nova, em diagramação, em texto e em posição política. Os jornais hoje estão todos iguais. Até as matérias são as mesmas. Antes era necessário estruturar a linguagem jornalística e isso começou com o Diário Carioca do Rio. Os diretores introduziram lead e sub-lead. Não existia isso na imprensa brasileira. Era para fazer uma eugenia da linguagem que era muito literária. Mas isso faz 50, 60 anos e hoje em dia acho que a linguagem jornalística ficou muito padronizada, muito igual, muito pouco criativa, devido a essa ortodoxia da linguagem. A questão de estilo e criatividade da imprensa...acho que acabou. São as mesma manchetes. (JARDIM, 2007).

Alcântara, Chaparro e Garcia (2005) definem a importância e a função

do jornalismo cultural:

Penso que o jornalismo cultural deveria contribuir tanto para informar e prestar serviço quanto para formar o público. Essa formação se faz com textos críticos que possibilitem o estabelecimento de referência e sirvam para orientar escolhas nessa época de muita produção e pouquíssimo tempo para a fruição em profundidade. (ALCÃNTARA, CHAPARRO e GARCIA, 2005, p.320).

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Além do caderno cultural, alguns suplementos especiais se destacaram

nessa época. É o caso, por exemplo do “Anexo”, um jornal de poesias que

contou com a colaboração de Caetano Veloso, Chacal, Ronaldo Bastos e

outros. A capa era ilustrada por imagens de grafites.

Outro caderno que chamou a atenção foi o “Encarte”, produzido por

Fernando Lemos, Chacal e TT Catalão. Segundo Lemos (2007), foi uma

experiência interessante porque a equipe escolhia um grande tema como, por

exemplo, o racismo e o explorava artisticamente, com textos, ilustrações e

poemas. A cada semana, era um novo assunto.

Além disso, o suplemento especial literário Alvorada, elaborado pelo

poeta e designer Rogério Duarte, TT Catalão e Glauber Rocha, também teve

grande repercussão.

O jornalista Alberto Dines, no livro Eles mudaram a imprensa, defende

que a atividade jornalística antigamente era vista como uma atividade

eminentemente cultural e que, hoje, tornou-se um comércio de informação.

Acho que todo jornalismo é cultural, mas aquele segmento de informações que está no Segundo Caderno hoje virou um mercado onde entra tudo. (...) O caderno cultural virou uma coisa de show business, de variedades, onde entra tudo, e isso baixa o nível. Os jornais, antes, tinham um suplemento cultural. Já hoje... (ABREU; LATTMAN-WELTMAN e ROCHA, 2003. p. 174).

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3 AS INTERVENÇÔES DE GLAUBER ROCHA NO CORREIO BRAZILIENSE

3.1 Quem é Glauber Rocha?

Glauber Pedro de Andrade Rocha nasceu em Vitória da Conquista, na

Bahia, em 14 de março de 1939 em uma família presbiteriana de classe média.

Viveu 42 anos, durante os quais produziu 15 filmes, 8 longas e 7 curtas. Os

mais famosos foram Deus e o Diabo na terra de sol (1964), Terra em Transe

(1967) e O dragão da maldade contra o canto guerreiro (1969).

Da mãe, dona Lúcia, herdou o dom artístico e recebeu apoio constante

para fazer cinema. Apesar de ser apaixonada por poesia, ela obedeceu a

família e deixou o sonho de ser poeta para se casar cedo. O nome que

escolheu para o filho foi uma homenagem que ela deu ao cientista que criou o

sulfato de sódio, também conhecido como Sal de Glauber. O pai, Adamastor

Branlio Silva da Rocha, era engenheiro, construtor de estradas. Foi ele quem

mostrou de perto o sertão, a violência e a miséria a Glauber, que o

acompanhava pela viagens de trabalho.

No livro “O pensamento vivo de Glauber Rocha”, há trechos em que o

próprio cineasta fala de sua infância e de como surgiu a paixão pelo cinema.

Esse negócio de cinema pegou no sangue há muito tempo. O responsável foi uma revista que hoje está morta: Cena Muda. Eu morava lá em Conquista, uma cidade de muito tiroteio e minha mãe não me deixava sair de noite, porque depois das oito não se tinha luz e sempre havia muitos crimes. Eu então ficava em casa lendo Gibi e Cena Muda. As revistas em quadrinhos me ofereciam histórias ilustradas e muito parecidas com filmes. (FONSECA, 1987, p.13).

No mesmo depoimento, Glauber revela ter sido interno em um colégio

americano. O ódio, segundo ele, foi tão grande que aprendeu a detestar a

língua inglesa e o cinema de Hollywood.

Em 1952, uma de suas irmãs, Ana Marcelina, morreu de leucemia e o

seu pai sofreu um acidente na estrada entre Rio e Bahia, que o impossibilitou

de trabalhar. Rocha (1979) terminou de se criar no pensionato de sua mãe. Lá

formou amigos que revelaram ser, mais tarde, fontes do Cinema Novo.

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Em 1965, Glauber escreve um manifesto polêmico intitulado Uma

Estética da fome, no qual assume a precariedade como estratégia artística. Os

seus filmes e o próprio movimento que criou – o Cinema Novo – traziam à tona

problemas da realidade brasileira econômica, social e cultural. No livro “O

pensamento vivo de Glauber”, o cineasta defende o movimento.

Nosso cinema é novo porque o brasileiro é novo e a problemática no Brasil é nova e por isso nossos filmes são diferentes. (...) Queremos fazer filmes anti-industriais, queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser comprometido com os grandes problemas do seu tempo, queremos filmes de combate na hora de combate e filmes para construir no Brasil um patrimônio cultural. (FONSECA, 1987, p.22).

No entanto, Glauber falava demais. Em 1969, foi preso e ameaçado de

morte. Teve o nome vetado pela imprensa e na lista negra do SNI. De 1971 a

1976 vive um período de exílio.

Em 1977 escreve para o Correio Braziliense. No mesmo ano, a irmã e

atriz Anecy Rocha morre e deixa Glauber muito abalado. Segundo Fonseca

(1987), de 1977 a 1981 o cineasta pairou solitário, com suas próprias lúcidas e

loucas convicções. Na medida em que começou a apoiar o governo militar

brasileiro e acreditou na abertura política proposta por Geisel, despertou

ceticismo de todos os lados. Segundo Fonseca (1987), intelectuais

esquerdistas o acusavam de traidor, oportunista e paranóico. A direita, por sua

vez, continuou vendo-o com desconfiança.

Ao lançar A Idade da terra, exilou-se novamente. Doente em Portugal,

foi diagnosticado pelos médicos como tendo tuberculose, pericardite e câncer.

Levado ao Brasil, morre 24 horas após a chegada ao Rio, em agosto de 1981.

A família descobre que o cineasta morreu de negligência médica e de

pneumonia, embolias pulmonares múltiplas e septicemia.

3.2 Glauber e o Correio Braziliense

Uma das participações mais marcantes no caderno cultural e em alguns

suplementos foi a do cineasta Glauber Rocha. Ele era um revolucionário, um

pensador da cultura brasileira e um deflagrador de polêmicas. Esse mesmo

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espírito esteve presente em diversas matérias e artigos publicados a partir de

1977 no Correio Braziliense.

No artigo Em Brasília ele era amigo do Rei, publicado em 22 de agosto

de 1992 e escrito por Maurício Melo Júnior, há uma citação em que Glauber

conta como foi esse período.Na verdade eu encontrei no jornal Correio Braziliense uma liberdade de imprensa diferente do conceito de liberdade de imprensa, podendo escrever um artigo político num estilo tropicalista, por exemplo. Escrevi então uma série de artigos que tiveram repercussão e provocaram reações, mas que não me abalaram. Eu conheço bem a história do Brasil e conheço da forma certa (ROCHA).

Glauber Rocha era um velho amigo do então diretor de redação do

Correio Braziliense, Oliveira Bastos. Ambos se conheceram no suplemento

dominical do Jornal do Brasil, onde era feita, nas palavras de Oliveira Bastos,

uma revolução cultural contendo a bandeira do concretismo. Glauber tinha sido

convidado para escrever sobre cinema no JB.

Após período de exílio, Glauber voltou ao Brasil em 1976. E foi no

Correio Braziliense que encontrou refúgio para muitos de seus problemas. O

Correio o colocava em uma suíte presidencial do hotel Eron. De acordo com

Bastos, Brasília era para Glauber uma espécie de Pasárgada. Assim, toda vez

que o cineasta estava em crise, vinha para a capital porque não gastava

dinheiro, tinha as melhores amizades e ninguém questionava se ele usava

drogas. Segundo o diretor de redação, não interessava a ninguém fazer isso,

por causa da força do Correio e do carisma de Glauber.

Bastos explica na entrevista intitulada Em Brasília ele era amigo do Rei

que o cineasta veio de Cuba, em 1976, com a visão de que havia uma

estrutura de poder no Brasil e que, assim como em Cuba, não poderia ser

explodida de fora para dentro. Para Bastos (1991), Glauber veio com o

pensamento que tinham de ser estimulados os sinais de abertura dentro do

sistema para que o esse se abrisse de dentro para fora. Bastos conta na

entrevista como Glauber começou a escrever para o Correio.

O Glauber chegou com estas idéias todas e me pediu conselho sobre o que era que fazia e eu disse, “Bom o melhor é você escrever isso

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tudo no Corrreio Braziliense e conversar com as pessoas certas”. Eu o coloquei em contato com o general Golbery (...) e ele percebeu que Glauber era um elemento precioso porque poderia levar pelo menos uma parte das esquerdas a redefinir as suas posições, o que ajudaria muito o projeto de abertura do general Geisel. (...) O Glauber era uma figura que eu tinha como uma figura artisticamente importante e politicamente providencial. Eu passei a colocar os artigos de Glauber na primeira página. E o que escandalizou o país não foi o Glauber ter publicado artigos apenas, foi que ele foi manchete do jornal, ele fez suplemento, um suplemento inteiro. (BASTOS, 1991).

O suplemento ao qual se refere é o Alvorada, publicado em 10 de abril

de 1977, em um domingo de páscoa. O suplemento sobre os mistérios da

paixão, que teve direito a chamada de capa, contou com a edição de texto de

Glauber Rocha e Fernando Lemos. A concepção visual ficou por conta de

Rogério Duarte. O texto “Phrometeu”, escrito por Glauber, ficou famoso. O

suplemento é uma releitura anárquica dessa celebração, incorpora da cultura

brasileira. Em uma interpretação de Shakespeare, Glauber dá sentido à

libertação, liga às fontes da cultura brasileira e mistura o texto com

antropofagia. No suplemento, escreve “tupy or not tupy” e, entre parênteses,

cita Oswald, em referência a famosa frase to be or not to be.

O cineasta fez uso do estilo tropicalista e abusou do “y”, publicando

palavras como “Brazylia”. Reynaldo Jardim, que considera a participação de

cineastas, artistas e outros colaboradores essencial, foi quem inspirou Glauber

Rocha a escrever dessa forma. O jornalista Washington Novaes, que trabalhou

com Jardim em Curitiba mostrou a Glauber alguns poemas escritos por

Reynaldo Jardim com essa linguagem e o cineasta a adotou.

Mas não foi apenas nesse suplemento que Glauber se destacou. A

linguagem inovadora e polêmica esteve presente em vários artigos. Oliveira

Bastos admite na entrevista que, mesmo em tempos de ditadura, nunca houve

qualquer restrição ao que ele escrevia.

Lemos (2007), editor-executivo na época, conta que o cineasta Glauber

Rocha tinha liberdade total para escrever e que ele exercia o papel de um

jornalista 007, com licença para matar. Na entrevista, brinca que às vezes,

tornava-se até chato.

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Quando fizemos o caderno cultural com todos os seus agregados trouxemos o Glauber, que estava sendo muito perseguido. Foi na época em que a irmã dele morreu. Ele estava com o clima muito ruim então o trouxemos para cá. A participação dele foi marcante, de total importância. Ele tinha licença para matar, era tipo um jornalista 007. Podia fazer o que queria. Ele escrevia artigos com uma linguagem entre o português e o guarani. Escrevia com as letras “K” e “Y”. Criou muita polêmica aqui também. Disse, por exemplo, que o Golbery era “um gênio da raça”. Glauber enxergava longe, era um profeta. Vivia aquela criação dele o tempo todo, era até chato. (LEMOS, 2007).

Quando o AI-5 saiu de cena, o Correio publicou um artigo em que

vários intelectuais do país, de Glauber Rocha a Oscar Niemeyer, davam a sua

opinião sobre o fato. Nele, o cineasta sustenta que a crise da cultura brasileira

não foi resultado do AI-5. O cineasta considera que o ato coibiu a expressão

vanguardista, mas que foi “mais um cadeado no baú da cultura nacional”.

Apesar da ditadura militar, faz críticas. Deixa claro que a cultura, para ele, é

escola, hospital e trabalho. Sustenta que qualquer produção artística deve ter

como objetivo conceder essas necessidades fundamentais à sociedade

brasileira. Propõe que 1979 seja o “ano zero da cultura”.

Na medida em que o AI-5 reprime a produção e distribuição da cultura brasileira, ele não foi o responsável pela crise criativa, antes foi uma conseqüência da crise criativa, que permitiu o sufoco da democracia... da democracia não, que nunca houve, que permitiu o sufoco institucional (ROCHA) .

Glauber Rocha argumenta que a cultura brasileira está com câncer e

que os efeitos destrutivos possuíram membros e almas dos artistas, burocratas

que se ocupam de produzir e distribuir cultura no Brasil. Todo o artigo está

escrito na linguagem entre o português e o tupi-guarani. Algumas palavras,

como Parayso Rolyudiano, ganham nova grafia. Outras, no meio do texto,

estão com todas as letras em maiúsculas.

A Cultura Brasyleira está com câncer. Toritoma maligno. Carcimona Embriologenico. Melomena pulverizantyz. Metástase: os efeitos destrutivos possuíram órgãos, membros e almas dos artistas, burocratas que se ocupam de produzir, realizar e distribuir cultura no Brazyl. A Televisão está contaminada pelos enlatados promocionais do FBI e da CIA. (órgãos de segurança yankz). As Telenovelas veiculam problemas falsos, com roupas falsas e falas falsas. Nossas rádios transmitem 90% de música yank ou “multyz” com o objetivo de SURDAR o povo. (ROCHA, 1979).

Quanto às opiniões políticas de Glauber e à idéia de se infiltrar no

regime militar para poder modificá-lo, o amigo do cineasta, Rogério Duarte,

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explica em uma matéria publicada em 14 de março de 1999 e escrita pelo

jornalista Rogério Menezes, que Glauber encarava a política como um filme:

Enquanto as pessoas diziam que havia aderido à ditadura, Glauber dizia uma coisa maravilhosa: “Na verdade eu ponho frases na boca deles, atribuo significados a estes personagens e depois ele têm de agir conforme um script. (MENEZES, 1999).

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4 CONCLUSÃO

O caderno de cultura do Correio Braziliense entre 1978 e 1979 põe em

xeque o senso comum de que o jornal sempre foi oficialista e chapa-branca até

a reforma promovida por Ricardo Noblat a partir de 1994. Assim, sob a direção

de Oliveira Bastos, no final da década de setenta houve espaço e incentivo

para montar um caderno anárquico e irreverente. Com a ajuda de

colaboradores e de uma equipe forte, foram publicadas matérias e artigos

escritos inovadores tanto na parte estética quanto na linguagem.

A participação do cineasta Glauber Rocha também foi marcante na

medida em que tinha liberdade total, em plena ditadura e nas barbas da

República, para escrever o que quisesse. Assim, surgiram artigos polêmicos,

com uma linguagem entre o português e o tupi-guarani.

Na época, o diretor de redação Oliveira Bastos e o editor-executivo

Fernando Lemos puseram em prática uma série de mudanças na rotina da

redação do Correio Braziliense e criaram o seguinte lema: o jornal seria

anárquico-conservador. Conservador no primeiro caderno e anárquico, no

segundo.

Para isso, montaram uma equipe forte. Valorizaram pessoas que já

trabalhavam lá, como o cartuista Lopes e chamaram jornalistas que escreviam

para o concorrente recém-inaugurado, o jornal de Brasília. Além disso,

trouxeram pessoas de fora. Colaboraram para o caderno cultural atores,

poetas, letristas e cineastas. O caderno dois era diferente porque não

divulgava apenas eventos. Ele tinha uma preocupação literária. A diagramação

priorizava muitas vezes ilustrações que ocupavam dois terços da capa do

caderno dois. O estudo do caderno dois também traz à tona outro tipo de

enfoque para o jornalismo cultural: o uso e incentivo da criatividade.

O presente trabalho procurou mostrar uma iniciativa de grande

contribuição em termos jornalísticos e, no entanto, esquecida em estantes do

Centro de Documentação do Correio Braziliense. O resultado do projeto

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proposto por Oliveira Bastos e Fernando Lemos mostra que é possível fazer

uso da criatividade, romper com padrões pré-estabelecidos e com a mesmice

presente nas bancas de jornais.

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