+a america latina no seculo xxi geopolitica critica dos estados e movimentos sociais

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CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 201-206, Maio/Ago. 2008 201 Heriberto Cairo DOSSIÊ INTRODUÇÃO Heriberto Cairo * A AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XXI: geopolítica crítica dos Estados e os movimentos sociais, do conhecimento e da representação 1 “A pergunta sobre o que significa ser latino- americano está mudando desde começos do sécu- lo XXI. Se desvanecem respostas que antes con- venciam e surgem dúvidas sobre a utilidade de firmar compromissos continentais. Aumentaram as vozes que intervêm neste debate […] Ao mesmo tempo, os Estados nacionais […] são diminuídos pela globalização. As incertezas e regressões eco- nômicas e políticas de fins do século XX deixaram para trás muitas expectativas. Aqueles que aposta- ram somente nos Estados nacionais, no mercado, ou nos meios massivos, como caminho para o de- senvolvimento e a integração da América Latina, aprenderam que nenhum desses referentes é o que foi.” Com essas palavras, García Canclini (2002, p.18) começava a estabelecer diversas dúvidas em seu ensaio Latinoamericanos buscando lugar en este siglo, em torno da viabilidade da América La- tina num mundo globalizado. Ainda nesse ensaio, o autor aborda os elementos que globalizam a re- gião e aqueles que aprofundam seus próprios tra- ços – mais tarde retornarei sobre a questão –, mas é significativa a pergunta-motivo que se faz: “Quem quer ser latino-americano?” García Canclini é rela- tivamente cauteloso com respeito à resposta, mas nos recorda que o relato da América Latina deve ser polifônico. Não sei se este dossiê responde a essa exigência, provavelmente não, mas tenta problematizar algumas das visões comuns sobre a América Latina e reunir vozes e práticas habitual- mente silenciadas. * * * Em primeiro lugar vou expor a perspectiva geral do dossiê. Nesse sentido, é necessário afir- mar que ela não é a dos estudos de área (area studies), nascidos nos Estados Unidos (e em ou- tros países ocidentais), após a Segunda Guerra Mundial. Os estudos nessa perspectiva estão mar- * Professor Titular de Ciência Política e de Administração na Faculdade de Ciência Política e Sociologia da Universidad Complutense de Madrid. Campus de Somosaguas, 28223. Madrid - España. [email protected] 1 Agradeço o convite (e a paciência) das editoras da revista Caderno CRH, Profas. Anete B.L. Ivo e Elsa S. Kraychete para organizar este dossiê temático. Do mesmo modo, agradeço a todos os colegas que colaboraram no dossiê; e em particular a Carlos Milani, co-urdidor de tramas aca- dêmicas e, neste caso, grande incentivador, e a Breno Bringel, decisivo na chegada a bom porto de tudo.

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Heriberto Cairo

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INTRODUÇÃO

Heriberto Cairo*

A AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XXI:geopolítica crítica dos Est ados e os movimentos sociais, do

conhecimento e da represent ação 1

“A pergunta sobre o que significa ser latino-americano está mudando desde começos do sécu-lo XXI. Se desvanecem respostas que antes con-venciam e surgem dúvidas sobre a utilidade defirmar compromissos continentais. Aumentaramas vozes que intervêm neste debate […] Ao mesmotempo, os Estados nacionais […] são diminuídospela globalização. As incertezas e regressões eco-nômicas e políticas de fins do século XX deixarampara trás muitas expectativas. Aqueles que aposta-ram somente nos Estados nacionais, no mercado,ou nos meios massivos, como caminho para o de-senvolvimento e a integração da América Latina,aprenderam que nenhum desses referentes é o quefoi.” Com essas palavras, García Canclini (2002,p.18) começava a estabelecer diversas dúvidas em

seu ensaio Latinoamericanos buscando lugar en

este siglo, em torno da viabilidade da América La-tina num mundo globalizado. Ainda nesse ensaio,o autor aborda os elementos que globalizam a re-gião e aqueles que aprofundam seus próprios tra-ços – mais tarde retornarei sobre a questão –, masé significativa a pergunta-motivo que se faz: “Quemquer ser latino-americano?” García Canclini é rela-tivamente cauteloso com respeito à resposta, masnos recorda que o relato da América Latina deveser polifônico. Não sei se este dossiê responde aessa exigência, provavelmente não, mas tentaproblematizar algumas das visões comuns sobre aAmérica Latina e reunir vozes e práticas habitual-mente silenciadas.

* * *

Em primeiro lugar vou expor a perspectivageral do dossiê. Nesse sentido, é necessário afir-mar que ela não é a dos estudos de área (area

studies), nascidos nos Estados Unidos (e em ou-tros países ocidentais), após a Segunda GuerraMundial. Os estudos nessa perspectiva estão mar-

* Professor Titular de Ciência Política e de Administraçãona Faculdade de Ciência Política e Sociologia daUniversidad Complutense de Madrid.Campus de Somosaguas, 28223. Madrid - Españ[email protected]

1 Agradeço o convite (e a paciência) das editoras da revistaCaderno CRH, Profas. Anete B.L. Ivo e Elsa S. Kraychetepara organizar este dossiê temático. Do mesmo modo,agradeço a todos os colegas que colaboraram no dossiê; eem particular a Carlos Milani, co-urdidor de tramas aca-dêmicas e, neste caso, grande incentivador, e a BrenoBringel, decisivo na chegada a bom porto de tudo.

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cados, desde o início, por um eurocentrismo (ou“ocidentocentrismo”) muito forte, que conduz aestudar a região sempre em termos comparativoscom um Ocidente desenvolvido, democrático e maisavançado. Configuram, assim, uma geografia biná-ria, típica da visão de mundo moderna, que come-ça a se desenvolver no Renascimento europeu e,posteriormente, estende-se a todo o mundo. Esseé um dos elementos fundamentais da colonialidadedo saber.2

E, mesmo que os estudos de área sejam deci-didamente interdisciplinares – incluindo a sociolo-gia, a geografia, a história, a economia ou a ciênciapolítica, entre outras disciplinas reconhecidas – e,nesse sentido, abram caminhos para a superaçãodas limitações próprias dos enfoques tradicionaisem ciências sociais, sua perspectiva é “imperial”(Mignolo, 2007). Para que se renovem, é necessáriodescolonizá-los, ou seja, superar o mencionadoeurocentrismo ou o ocidentocentrismo.

A geopolítica crítica que se desenvolveu nosúltimos anos pode ser útil nessa tarefa, já que per-mite abordar o estudo das regiões do planeta deuma forma diferente da dos estudos de área. Elaestá ligada aos trabalhos pioneiros de John Agnew(2003), Simon Dalby (1990) e Géaroid Ó Tuathail(1996). Sua idéia fundamental é reconceituar ageopolítica como discurso que contribui para aconstrução cultural do mapa geopolítico global.Como discurso, caberia diferenciar uma“geopolítica prática” de uma “geopolítica formal”.A primeira seria uma atividade estatal, um exercí-cio no qual o mundo é “espacializado” em regiõescom atributos ou características diversas por parteda burocracia encarregada da política exterior dosEstados (principalmente diplomatas e militares),enquanto que a segunda seria constituída de teori-as, modelos e estratégias elaboradas pelos “inte-lectuais da segurança” (acadêmicos, pesquisado-res de think-tanks), para guiar e justificar as açõesda geopolítica prática. Outros autores (Dodds, 2007;

Sharp, 2000) introduziram, mais tarde, o conceitode “geopolítica popular”, referente à cultura po-pular, aos argumentos geopolíticos elaborados nosmeios de comunicação, no cinema, na novela, quecontribuem decisivamente para a produção e cir-culação do “sentido comum” geopolítico, dos pres-supostos geopolíticos assumidos pelos cidadãos eque permitem, em boa medida, fazer “inteligível” ageopolítica prática e a formal.

Uma das características fundamentais dageopolítica crítica é a consideração de que a refle-xão espacial sobre as relações de poder não se podelimitar – como ocorria na geopolítica tradicional –às existentes entre os Estados. Seriam esquecidos,então, os inumeráveis fluxos que ocorrem à mar-gem, e ela operaria de forma reducionista, limitan-do-se ao “político” e ao “estatal”. Em conseqüên-cia, faz-se necessário desenvolver também o quePaul Routledge (1998) denomina “anti-geopolítica”,ou seja, considerar as práticas espaciais e repre-sentações do espaço dos movimentos sociais, dasorganizações populares e de intelectuais dissiden-tes que resistem, de diversas maneiras, à geopolíticados Estados. Desse modo, ainda que a geopolíticacrítica enfatize a macro-escala de análise, não aban-dona outras escalas, como era o caso da tradicio-nal, para não cair num determinismo geográfico.

* * *

Se a geopolítica crítica se centra no discurso,é necessário também refletir sobre algumas ques-tões fundamentais e elucidá-las, como, por exem-plo, sua relação com os aspectos materiais e simbó-licos que configuram uma região como a AméricaLatina. O “discurso geopolítico” foi utilizado parareferir-se aos enunciados sobre a disposição geográ-fica da política exterior dos Estados, e, inclusive,em algumas ocasiões, se inclui na definição tam-bém o conjunto de procedimentos que geram e or-ganizam esse discurso nas elites governamentaisdos Estados – ou seja, tanto os enunciadosgeopolíticos como sua enunciação. Uma definiçãoprecisa foi a elaborada por Agnew e Corbridge, con-siderando que o discurso geopolítico se refere

2 Para o debate sobre a colonialidade do poder e do saber noBrasil, ver o texto de Lander (2005), apresentado porCarlos Walter Porto-Gonçalves.

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à forma na qual a geografia da economia políticainternacional foi “escrita e lida” nas práticas daspolíticas econômicas e exteriores [dos Estados]ao longo de diferentes períodos de ordensgeopolíticas. “Escrita” está relacionado à formaem que as representações geográficas são incor-poradas nas práticas das elites políticas. “Lida”está relacionado às formas em que essas repre-sentações são comunicadas (1995, p. 46).

Em outras palavras, poder-se-ia dizer que anoção de discurso geopolítico se refere à forma comoos intelectuais de Estado (intellectuals of statecraft)– esse grupo heterogêneo, tanto de “teóricos” uni-versitários ou de institutos de pesquisa como de“praticantes”, militares ou diplomatas – espacializama política mundial.

Definir assim o discurso geopolítico permitefugir de uma dupla simplificação: a idealista, cujosenfoques textualistas tentam explicar as práticassociais como epifenômenos da linguagem, e adeterminista, que reduz o discurso a uma mera ide-ologia ou a um conjunto de idéias determinadaspelas práticas sociais (freqüentemente econômicas),ou que são funcionais para sua representação. Nes-se sentido, o discurso geopolítico se fundamentariana relação dialética entre as “representações do es-paço” e as “práticas espaciais”, como afirmavaLefebvre (1974). As práticas espaciais se referem alugares específicos e a conjuntos espaciais inter-re-lacionados e organizados para a produção econô-mica e a reprodução social em uma dada formaçãosocial. As representações do espaço implicam sig-nos, códigos e “entendimentos” que são necessári-os para fazer inteligíveis as práticas espaciais.

O conceito, também lefebvriano, de “espaçosde representação” é útil para se entenderem as rela-ções entre os discursos geopolíticos e os processosde identificação social e, em particular, os elementosque favorecem sua hegemonia, bem como as resis-tências que os minam, uma vez que tais espaços apre-sentam simbolismos complexos, unidos à parte “sub-terrânea” da vida social, e inspiram mudanças narepresentação do espaço, com o objetivo de transfor-mar as práticas espaciais. Uma representação do es-paço somente será dominante, em longo prazo, seimbricada adequadamente com as práticas espaciaisdominantes, embora, em seu próprio desenvolvimen-

to, sejam geradas as resistências, os espaços de re-presentação, que podem transformar tais práticas.

A noção de discurso de Michel Foucault,tal e como é desenvolvida em dois de seus traba-lhos sobre a genealogia de discursos específicos,como são o clínico (1963) e o sexual (1976), tam-bém incluiria tanto a linguagem como suamaterialidade nas instituições e nas práticas soci-ais. O poder dos discursos, de fato, derivaria desua institucionalização e de sua prática. ParaFoucault, um discurso é um conjunto de enunci-ados e depende da mesma formação discursiva,que, por sua vez, necessita, para ser minimamenteefetivo, um conjunto de “condições de existência”ou “condições de possibilidade”, para cuja cria-ção, ao mesmo tempo, contribui. Dessa forma, odiscurso geopolítico poderia se situar ao lado deoutros que Foucault trabalhou, como o discursoclínico, o discurso da história das idéias no Oci-dente e o discurso psiquiátrico.

Edward Said (1993) também apela para anecessidade de localizar o texto, a linguagem, nomundo. As circunstâncias históricas em que sur-gem os produtos culturais são inseparáveis des-ses produtos. A representação do mundo éconstruída de tal forma, que se estabelecem valo-res e hierarquias para justificar políticas (por exem-plo, coloniais e de extermínio). E essa representa-ção chega às pessoas tanto através de doutrinaspolíticas como de obras literárias, musicais, pictó-ricas... De tal maneira, por exemplo, que não sepode compreender a natureza do imperialismo semestudar os textos, discursos e metáforas das rela-ções coloniais, dado que o imperialismo é algo maisque dominação política ou econômica.

Em suma, os discursos geopolíticos sãoinseparáveis das (e estão constituídos pelas) re-presentações e as práticas geopolíticas. Dessas úl-timas derivam seu poder, ao mesmo tempo quecondicionam sua inteligibilidade.

* * *

Este dossiê se constituiu com este pano defundo, o de construir uma geopolítica crítica da

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América Latina, que se ocupe não somente daspráticas e representações espaciais dos Estados,mas que tome as práticas e representações espaci-ais dos movimentos sociais como a possibilidadecerta de desafiar o poder geopolítico dos Estados eas representações dos intelectuais de Estado. Emsuma, explorar a constituição espacial dos meca-nismos do poder na América Latina e a cartografiadas resistências a esse poder.

O artigo de John Agnew, que abre o dossiê,apresenta os traços básicos das relações de poderno atual sistema mundial. O autor aborda a ques-tão discutindo qual é a melhor caracterização daposição dos Estados Unidos no mundo: potên-cia imperial ou potência hegemônica. E concluique a melhor forma de denominar o momentoatual é hegemonia, entendida não somente comouma capacidade de exercer um poder de coerçãosem limites, mas como a capacidade, reconheci-da pelo resto dos atores, de definir as regras dojogo. A globalidade do poder não é nova; o novo,segundo Agnew, é a combinação de redes glo-bais e fragmentação territorial localizada, comomostram, por exemplo, as agudas variações lo-cais em crescimento econômico. O trabalho deAgnew é o ponto de partida necessário para seentender o lugar ocupado pela América Latina nanova ordem mundial que emergiu após o fim daGuerra Fria.

Explorar como a América Latina foi “situa-da” nos modelos geopolíticos globais, elaboradosfundamentalmente por intelectuais do Estado, eu-ropeus e norte-americanos, é o objetivo do traba-lho de Heriberto Cairo. Nos modelos de HalfordT. Mackinder, que foram tão influentes – e aindatêm adeptos – ao longo do século XX, a AméricaLatina ocupava uma posição marginal dentro docampo de ação natural de potência marítima. Nageopolítica ideológica, característica da ordemgeopolítica da Guerra Fria, o papel da AméricaLatina não deixou de ser o de um tabuleiro passi-vo na disputa das duas superpotências. Na novaera geopolítica, a América Latina vai se delinean-do com contornos próprios, os quais, em algumasocasiões, são marcados como zonas de perigo.

Walter Mignolo, fundamentado em algumascríticas e comentários da sua influente obra, La

idea de América Latina, expõe alguns dos princi-pais traços do projeto modernidade e colonialidadena América Latina, um projeto que procura des-prender-se do eurocentrismo que se manifesta nacolonialidade do poder e do saber na América La-tina – e em outras regiões do mundo. A AméricaLatina, sustenta Mignolo, é uma região construídapelos europeus na segunda modernidade – domesmo modo que a América se construiu na pri-meira modernidade, do domínio ibérico –, sobre abase da exclusão e do silenciamento de indígenase afro-latinos. A opção des-colonial se construiuna fronteira. O pensamento des-colonial é o pen-samento fronteiriço, e há de procurar, segundoMignolo, sua genealogia não na Grécia clássica, masnos tratados des-coloniais que surgem a partir doencontro com os europeus, ou melhor, das resis-tências à dominação européia.

O trabalho de Jaime Preciado explora, a par-tir da perspectiva analítica dos sistemas-mundo, asituação da América Latina e os processos de con-figuração de semiperiferias na região: a subordina-da, como o México; a com aspirações de potênciaglobal, como o Brasil; e a anti-hegemônica, como ada Venezuela. Revisa o estado dos processos deintegração e alianças na região e termina apresen-tando o papel dos atores transnacionais da socie-dade civil nesse novo mapa da área.

Breno Bringel e Alfredo Falero, a partir deum diálogo integrador das perspectivas geográfi-ca e sociológica que reconsidera a importância dolugar nas análises sociais, fazem um estudo so-bre como os movimentos sociais na América La-tina tecem redes transnacionais. Em particular,ocupam-se de dois movimentos: o Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) bra-sileiro e a Federação Uruguaia de Cooperativasde Moradia por Ajuda Mútua (FUCVAM). Mos-tram como os anos 1990 são decisivos na confi-guração dessas redes que desafiam os Estados-nação existentes e constroem novasterritorialidades, vinculadas, por exemplo, aodesenvolvimento de uma integração a partir de

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baixo. Ocupam-se não somente dos aspectos ma-teriais desses processos (as práticas espaciais),mas também dos simbólicos (as representaçõesdo espaço). Talvez uma das contribuições maisimportantes do trabalho de Bringel e Falero sejamostrar que esses processos “anti-geopolíticos”não são meras resistências internas em cada Esta-do ou na região, mas contribuem para reinscre-ver a América Latina no mundo, como mostra ocaso da relação entre o MST e a Via Campesina.

Carlos Milani aborda uma temática similar.Também analisa os movimentos sociais latino-ame-ricanos, nesse caso, os ambientalistas. Atravésdesse estudo, o autor desconstrói o pretendidocaráter natural do sistema interestatal e mostra comoos problemas ambientais e os movimentosambientalistas desafiam o conceito de soberaniados Estados. Mostra a inserção desses movimen-tos no movimento “altermundista” global, estudan-do, em particular o caso do Fórum Social Mundi-al, no qual fica clara a relevância global dos movi-mentos latino-americanos, no momento de definirpolíticas como a de impulsionar avanços críticosna ação. É importante destacar a contribuição dotrabalho de Milani no tocante a entender os pro-cessos de re-territorialização dos sujeitos, nummundo, ainda de Estados-nação.

* * *

Para terminar, volto ao princípio e retomoGarcía Canclini. Seu ensaio conclui com a enume-ração de uma série de tarefas “que poderiam con-tribuir para que a América Latina se reconstituacomo região, localizando-se mais criativa e compe-titivamente nos intercâmbios globais” (GarcíaCanclini, 2002, p. 94-95): identificar as áreas es-tratégicas de desenvolvimento; desenvolver práti-cas socioculturais participativas, multiculturais epromovedoras do avanço tecnológico; re-localizaras práticas culturais entre o endógeno e o interna-cional; e cultivar e proteger a diversidade latino-americana. Em suma, García Canclini recomendanegociar melhor o lugar da América Latina nummundo globalizado, tendo em conta suas peculia-

ridades culturais.Mas talvez já não seja o momento dessa

operação. Como afirma Walter Mignolo, na con-clusão de seu livro La idea de América Latina,

... para o imaginário continental do futuro, dar avolta ao continente não será a solução. Mudar oconteúdo sem questionar a lógica que o sustentaé necessário, porém está muito longe de ser sufi-ciente. Uma ‘epistemologia do Sul’ seria um se-gundo passo para apagar a lembrança de um pla-neta dividido em quatro continentes e promoverum processo de pensamento fronteiriço crítico(2007, p. 181).

E esse pensamento somente poderá ser, naspalavras de Boaventura de Sousa Santos (2007),“pós-abismal”, ou seja, capaz de superar o mono-pólio da ciência ocidental, para distinguir, entre overdadeiro e o falso, a exclusão dos saberes queestão “do outro lado da linha”.

Então, talvez também – e somente talvez –,estejamos no momento de “desmontar” a idéia daAmérica Latina que se criou como “parte desseprocesso expansivo universal [da segundamodernidade]” (Mignolo, 2007, p. 217), e da cons-trução de um “depois da América Latina”, partedo Sul global, do qual, por certo, a Europa meri-dional não tem razão para se excluir.

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