a água congelante da pia amorteceu meus dedos. a louça ... · me aquecer um pouco antes de...
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Alexandra
A água congelante da pia amorteceu meus dedos. A louça
encardida não me deixa perceber quando os pratos estão limpos e o
céu cinza através dos furos da cortina revela que será outro dia frio.
Pela rotina sei que é hora de colocar a água para esquentar e
me aquecer um pouco antes de começar o almoço. Este lugar é o pior
que ele me trouxe, ao menos que me recordo, também o mais velho,
mas deve ser pelo isolamento, não há nada a volta a não ser um longo
campo de terra seca e gelada.
Ao preparar o almoço uso os ingredientes que ele deixou, são
para um ensopado já com blocos de carnes cortados e temperados. A
quantia é para três pessoas e o relógio de corda em cima da geladeira
antiga mostra que não terei nenhum problema em servir na hora
certa.
O silêncio permite ouvir um carro se aproximar e
acompanho o som de sua nova camioneta preta adentrando a
garagem. Ele entra por trás e põe as sacolas na mesa dizendo com sua
voz grossa que pausa entre as frases:
- Arrume mais um lugar! Teremos outra companhia!
Tem mais alguém para o almoço e isto é uma mudança que
atrapalha minha pontualidade, mas preciso servir o almoço na hora
certa. Volto-me para o fogão e imagino como resolver isso.
Com uma pessoa de última hora sei que o almoço pode ser
estressante e não quero chamar a atenção, então cuido para não errar
e penso no que mudou enquanto esquento meus dedos dormentes.
Ele retorna e ainda estou invisível, experimento o ensopado
e deixo como ele quer, depois arrumo a mesa. Ele faz questão de
preparar o suco com sua perfeição de sempre, puro e de laranja. Eu
adoro, mas não vai me deixar beber.
As cadeiras arrastadas atrás de mim indicam que elas se
sentaram e que devo levar à panela a mesa.
Meus cabelos pretos cobrem minha visão para os lados e
apenas olho para concha enquanto sirvo as outras meninas. Não
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posso me concentrar nelas e apenas vejo suas mãos, tenho de servir e
voltar para pia, pois solucionei o problema de mais uma pessoa, eu
não vou comer. Enquanto coloco apenas quatro cubos de carne em
cada prato e duas batatas, vejo as unhas curtas de uma mão trêmula.
Ela acabou de chegar e sei que ela vai atrapalhar o almoço,
então coloco o caldo no seu prato e saio de perto, mas ela olha para
mim e pergunta com sua voz infantil:
- Por favor, pode dizer onde estou? Eu não me lembro de
nada. – ela está assustada, falou comigo, mas é ele quem responde.
- Tome seu suco querida e depois experimente o ensopado
que Olivia fez! – ela bebe.
Então, antes dela ficar em silêncio ela faz outra pergunta a
mesma que a outra menina fez há alguns dias e a mesma que eu me
faço ocasionalmente:
- Qual é o meu nome senhor?
Essas questões e as respostas são tão insanas como a
situação que nos cerca, mas depois de beber ela não faz nenhuma
outra pergunta.
O som do bater de talheres nos pratos ecoa na minha cabeça
e envio meus pensamentos ao passado, até Alexandra.
Em outra mesa, outra casa, anos atrás, uma refeição
semelhante acontece comigo e Alexa. Ela gostava que a chama-se
assim sempre criando situações que nos aproximavam intimamente,
algo maior que uma amizade, erámos como irmãs. Ficávamos lado a
lado de mãos dadas enquanto almoçamos, Alexa é canhota e somos
perfeitas juntas. Ela se tornou tudo para mim e juntas não tínhamos
medo do que estava acontecendo.
Quando volto a mim a mesa e os pratos estão vazios. Retiro a
louça, lavo e não há sobras, pois as quantidades foram exatas. Depois
passo um pano no chão e percebo que a cadeira do outro lado da
mesa está suja. Sei o que houve, mas finjo que não sei, pois não quero
que aconteça comigo. Penso:
“- Limpe, apenas limpe!”
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Com tudo no lugar na cozinha vou para o porão, preciso lavar
as poucas peças e lençóis que temos. O lugar é mal iluminado com
muitas caixas deixadas por antigos moradores, mas não tenho medo,
pois aqui em baixo posso me distrair vasculhado os cantos em busca
de algo util. Há muitas revistas e jornais, nada atual e quase tudo que
encontro é antiquado ou sujo. Quando Alexa estava comigo era mais
fácil atravessar os dias, agora preciso me distrair até de mim mesma
revistas, jornais e enfeites cobrem algumas horas do meu tempo. A
velha máquina de lavar termina o trabalho bato os lençóis antes de
pendurá-los aqui mesmo. Uso o restante das horas colocando a
camiseta rosa com estampa de um girassol no rosto, para lembrar-se
de Alexa, sentindo seu aroma nesta antiga lembrança. Tento imaginar
como ela aparentaria hoje, mas não consigo.
A luz da janela do porão diminui e subo para preparar o
jantar, apenas para ele e uma das meninas. Odeio quando uma
menina não aparece, fico em pânico pensando se ela vai voltar ou que
aconteceu. Acredito que ela também não sabe o que está acontecendo,
nem o que ele quer, mas ele é paciente. Lembro que eu e Alexa se
tornamos amigas rapidamente e moramos muito tempo sem mais
ninguém. Parece que elas ainda não entenderam o que precisam fazer
e por isso aparecem rostos novos, eu acho.
Preparo uma sopa de verduras e sirvo os pratos, mas desta
vez me alimentando e enganando minha fome. Quando todos saem,
começo a deixar tudo limpo para amanhã e uso o restante da água
quente para esquentar minhas mãos.
Uma corrente de ar circula pelo assoalho e penso em ir logo
para cama. É tão injusto, além de estar confinada e assistir minha vida
se esvair, ainda tenho de lidar com este frio. Eu não me acostumo com
o frio, nunca, não consigo mesmo aquecida.
Hoje é meu terceiro dia sem um banho decente, espero que
amanhã possa tomar um para não precisar me limpar com panos
quentes.
Ele vem à porta da cozinha, esperando que eu diga ou fale
algo, mas não tenho vontade de fazê-lo, depois ele sai da porta para
eu passar e faz uma ridícula e assustadora carícia em meus cabelos.
Eu sigo em frente.
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Eu tenho medo, mas é um medo diferente, um medo das
consequências caso algo mude ou saia da rotina. Por isso se eu
continuar fazendo tudo igual, nada acontecerá.
Levo comigo algumas meias limpas para usar durante a noite
e entro em meu quarto, ouço a porta ser trancada atrás de mim e eu
sou esquecida até amanhecer. Tenho uma bacia no canto caso precise
e coloco uma das poucas roupas que tenho para dormir. A janela é
bloqueada por jornais colados no vidro e um poste de madeira
sustenta a luz que deixa o quarto como uma bruma leve. Nesta
penumbra penso na menina que chegou e um sentimento de inércia
me consome por não fazer coisa alguma e deixar o medo me dominar.
Volto a mim e deito nesta antiga cama de casal embaixo de
uma pesada coberta de penas e encolhida abraço minha camiseta
rosa. Adormeço vagarosamente.
O cadeado aberto do lado de fora é meu despertador.
Amanhece frio e silencioso e uma ida rápida ao banheiro inicia a
rotina. Primeiro pela cozinha com o café da manhã, mas ele já
arrumou a mesa apenas para ele, o que é uma mudança.
Começo o café da manhã e antes dele sair percebo outra
mudança, ouço a televisão ligada. Faz muito tempo que ele não a liga e
isto não pode ser um bom sinal.
Então algo pior aconteceu, pois ele vem até mim:
- Olivia, vá para o seu quarto. Você não realizará suas tarefas
hoje. - paro tudo e ele fica atrás de mim. – Volte para seu quarto
agora. – eu abaixo a cabeça.
Caminho olhando para o chão, pois sempre faço isso quando
ele está perto, talvez por medo dele, mas não sei realmente o porquê.
Talvez por causa das outras meninas que nunca mais vi, desaparecem
e eu não quero desaparecer. Percebo ele pegar algo antes de vir atrás
de mim, mas acho que ele não vai fazer nada além de me trancar,
afinal não parece estar com raiva.
Entro e paro alguns passos depois da porta.
Ele entra e ouço-o colocar algo em cima do gaveteiro antigo,
depois sai e tranca a porta. Não sei o motivo, mas pensei que algo pior
fosse acontecer.
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Olho para o gaveteiro e vejo um copo de suco de laranja.
Espero parada até ter certeza de ouvi-lo sair, depois fico encostada na
parede, onde de joelhos olho pela fresta da janela. Ele retira sua
camionete e fecha à garagem, depois sai apressado pela estrada
sumindo na planície.
Começo o dia no quarto com fome e sede. Olho em volta e
não tem nada aqui, nada que já não tenha visto mil vezes. Tudo que eu
tinha foi deixado em outra casa quando saímos às pressas. Talvez em
algumas semanas comece a ter coisas novas, pois ele sempre deixou
roupas e objetos que acha que preciso, mas até agora nada.
Já divaguei sobre este quarto várias vezes, ele foi de alguém
velho, tudo é usado, ou melhor, não foi usado há muito tempo. A
escova, o espelho e os enfeites são assustadores e eu odeio isso aqui.
Mas isso me distrai da sede.
Caminho pelo quarto e sinto o suco de laranja olhando para
mim, depois sinto uma corrente de ar e resolvo colocar mais uma
meia.
No gaveteiro pego o que preciso e o suco fica ali, parado:
- Eu te odeio! – digo para ele.
Não posso beber o suco, não ainda. Apenas vou esperar o até
o último momento para bebê-lo quando o ouvir voltar. Se eu jogar
fora ele vai saber e será pior, eu acho. Mas sei que depois que beber
vou não vou lembrar-me de nada e, portanto não vai fazer diferença.
Ele não retorna ao meio dia e ainda tenho sede, muita mais,
mas preciso das minhas lembranças por mais algumas horas. As boas
memórias eu ainda não perdi, pois sempre me lembro de Alexa e
nossa amizade, menos como nos separamos, isso foi apagado.
Lembro-me de partes da minha vida que somadas devem dar um ano,
algumas são de quando eu tinha seis ou sete anos. Agora eu sou bem
mais velha e não sei para onde foram os outros anos da minha vida.
Parece ficar cada vez mais frio e minha boca arde, lembro-me
de ter um protetor labial que está no fim. Aplico nos lábios e rosto
espalhando-o para render mais, penso em lamber para experimentar
e me distrair da sede e fome. Então jogo ao chão para me afastar
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destas ideias desesperadas. O protetor cai e rola para debaixo da
cama e minhas preocupações retornam.
Onde ele está? Por que não voltou ainda? Bato na porta e a
empurro, mas ele me trancou mesmo, desgraçado. Me acalmo e
abaixo para pegar meu protetor embaixo da cama e claro que está
bem longe ao meio. Empurro a cama e o alcanço, mas vejo algo
riscado no chão. Acho estranho ler escrito no assoalho, “Olivia”, não
me recordo de ter escrito nada e só estou aqui há pouco tempo.
Droga!
Está escrito por que eu escrevi, por que estou aqui à bem
mais tempo e por que já bebi o suco de laranja antes!
Eu odeio aquele maldito. Eu fui enganada, obrigada a acordar
em lugares diferentes e ver pessoas para depois esquecê-las. Não sei
como ele faz isso, mas sei que vem acontecendo desde que eu era
pequena, desde Alexandra. Eu supero meu desespero inicial e me
adapto.
Pego um cabide e uso o gancho para riscar no chão ao lado
do nome. Eu não lembro quem me ensinou a escrever, não me lembro
de ir à escola, mas sei que “Olivia” fui eu quem escreveu. Se acontecer
de novo preciso saber.
Deixo riscado “Olivia II”.
Coloco a cama no lugar e me deito para começar a aceitar
minha inevitável situação, ele vai voltar, eu vou esquecer e nunca
mais vou sair deste pesadelo. Começa anoitecer e luz do poste
ascende, eu não choro, apenas fico quieta debaixo das cobertas e
agarrada a minha blusa rosa. Acho que vamos nos mudar e começar
tudo de novo, deve ser por causa das meninas. Se eu não fosse uma
grande covarde faria alguma coisa, mas não consigo, nem consigo
mais chorar.
Fujo da realidade voltando-me para minhas lembranças
antes de esquecê-las com seus truques malditos. Por que ele faz isso?
Alexa me ensinou a odiá-lo e eu ainda odiá-lo amanhã. Concentro-me
nisso para lembrar para sempre. Adormeço.
Abro os olhos e já escureceu, pela pouca claridade não sei se
é ou não muito tarde, mas ouço barulhos e percebo.
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Dormi demais e ele voltou!
Minha garganta dói e sento assustada na cama, apenas
lembro-me do copo sobre o gaveteiro e que tenho de beber agora.
Imagino que algo pior pode acontecer comigo se não o fizer.
Ainda sonolenta salto da cama para ir até lá e bebê-lo, mas
meu pé preso ao cobertor me derruba e caio batendo contra o
gaveteiro.
Acerto meu rosto contra gaveta, mas meu cotovelo é quem
bate com força no chão fazendo a dor me despertar. Mas ignoro a dor
e só penso em uma coisa:
“– Por favor, não caia!”
A claridade vinda de fora não me deixa enxergar direto, mas
ali no chão com a mão na bochecha dolorida olho para cima:
“– Não caiu!”
Chuto a idiota da coberta e me levanto eufórica para beber
esse maldito suco antes dele entrar. Minha sede me incentiva e
percebo ao ficar em pé no escuro algo escorrer pelas gavetas até o
chão. Não preciso ver para entender que o copo está caído.
“- Não! Pense em algo?”
Eu posso fingir e mentir, fingir que bebi e que não me
lembro de nada, ao menos acho que posso. O barulho aumenta e desta
vez está próximo a minha porta. Volto para cama e me lanço sob o
cobertor esperando que dê certo. Abraço meus joelhos com a blusa
rosa entre as pernas e um silêncio assustador ocorre por alguns
segundos. Então uma força brutal acerta minha porta.
Mas como ele já sabe, como?
Ouço a porta arrebentar e sei que ele vem por mim, sei que
ele pode fazer coisas terríveis mesmo não me recordando. Eu sei que
vou morrer.
Fecho os olhos e minha mente vai até Alexa, sinto ela me
abraçando embaixo do cobertor e dizendo que ninguém vai tocar em
mim, enquanto passa a mão em meu rosto. O pavor me trás de volta,
pois os passos chegam até mim e arrancam meu cobertor deixando eu
encolhida no meio da cama.
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Meus olhos fechados recebem uma luz forte que me deixa
desnorteada, sou agarrada e a blusa rosa é puxada, então eu grito:
- NÃO, NÃO, por favor. – me estico pela camiseta de Alexa.
Sou agarrada pelo braço, mas apenas para ser colocada em
pé.
Abro os olhos, pois a luz diminui e uma voz estranha fala:
- Calma, é a polícia! Você está salva agora! Você está segura! –
é uma voz feminina, uma policial que me devolve a camiseta rosa.
Eu não acredito que seja verdade, tenho certeza que vou
acordar a qualquer momento e esquecer tudo isso. A minha volta,
neste quarto antigo, têm talvez, dez pessoas me cercando e me sinto
estranha. Sinto-me encabulada.
Ela e dois policiais me levam para fora rapidamente, pelo
corredor e para uma luz forte vinda de onde ficava a porta de entrada.
A porta foi arrombada e pela primeira vez vou sair desta casa. Escuto
atrás de mim:
- Detetives! Aqui no fundo, rápido! – sou levada para fora
mais rapidamente.
Piso na varanda e duas mulheres me ajudam. Uma coloca um
cobertor sobre mim e me mostra uma sandália para eu não pisar no
chão gelado. A outra me abraça e me acompanha. São muitos carros,
muitas luzes e muito mais pessoas. Caminho entre elas até uma
ambulância, não estou sonhando acho, me colocam lá dentro deitada
em uma maca para ser examinada.
Fico alguns minutos na ambulância, mas não falam comigo,
até a policial chegar:
- Olá, sou a agente Rebecca, qual o seu nome?
Eu não respondo, não por medo ou choque, eu não sei.
Ele me chamava de Olivia, mas meu nome não é esse, apenas
não lembro qual é, eu esqueci e não quero mentir. Da ambulância vejo
na porta da casa outra menina trazida para fora, ela deve ter uns dez
anos, cabelos pretos, magra, olhos escuros, em seguida outra, também
de cabelos pretos, longos e lisos. Elas se parecem comigo quando
tinha aquela idade, eu já tive essa aparência.
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Ninguém mais sai da casa.
Enquanto observava as meninas a policial falava comigo, mas
não ouvi nada, eu tinha aprendido a ficar em meu mundo e quando o
fazia tudo a volta se silenciava:
- Vamos levá-la para um hospital está bem. Você ficará
protegida e conversaremos depois.
Eu aceno que sim, as portas fecham e partimos em um trajeto
inédito.
Não vejo nada em volta, está escuro e calmo. Vejo meu
reflexo na janela da ambulância e percebo que estou sorrindo. Acho
que é por isto que minha bochecha está doendo e isto faz a moça ao
meu lado sorrir também. Eu peço água e ela me alcança uma garrafa
que eu bebo toda em um gole ininterrupto.
Entramos em uma rodovia, depois uma cidade e logo
chegamos ao hospital. Fomos escoltados por policiais e mesmo não
estando ferida sou tratada como se tivesse a beira da morte.
Eu deixo chegarem perto para poder ver seus rostos, tão
diferentes com tantos detalhes que não consigo reconhecer. Sorrio
enquanto olho para eles, pois todos parecem iguais e bonitos, afinal
não vejo tantas faces há muito tempo.
Sou levada para um quarto e avisam que vão me medicar
para dormir, mas assim que deito em um colchão macio, quente e
cheiroso, abraço minha camiseta rosa e repouso como se estivesse em
uma nuvem.
Desperto e estou olhando para um vaso de flores com as
cores mais lindas que existem. Eu amo flores mesmo nunca as tendo
por perto. Amanhece, pois a luz laranja reflete na parede do quarto e
o som de outras pessoas a minha volta me deixa sentir viva e
protegida. Sorrio direcionada para as flores. De repente um cheiro
maravilhoso me atrai de uma maneira primitiva. Um café com bolo e
doces que me faz sentar subitamente, assustando a enfermeira e a
policial em meu quarto.
A enfermeira me acalma e coloca a bandeja na minha frente,
então pergunto:
- É para mim, posso comer?
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- Claro que pode!
O sabor doce expande meu paladar, alcança minha garganta
e repentinamente me transformo em uma criança. Começo a apreciar
esses sabores maravilhosos e devoro tudo, terminando por raspar
com os dedos os recipientes. Percebo que me olham como se
estivesse em um jardim de infância, com meus lábios sujos e dedos
melados, mas parecem felizes pela minha espontaneidade e
satisfação.
A manhã se estende em um ambiente de conforto com todos
se movendo devagar e falando com tranquilidade. Mas onde vivi, sei
que posso ser surpreendida em bons momentos por coisas ruins e
fico apreensiva com tudo a minha volta. Alguém fecha a cortina e me
assusto, mas logo as enfermeiras deixam claro que estou segura. O
médico me examina e diz que estou perfeita, não sei como ele pode
dizer isso, mas acho que fala apenas do meu corpo não da minha
mente. Antes de sair diz que tenho uma visita e deixa uma mulher
entrar:
- Olá!
- Olá – respondo, mas sei quem ela é. A mesma loira bonita
que me resgatou.
- Lembra-se de mim, meu nome é Rebecca Nichols sou chefe
da força tarefa que a resgatou e estou acompanhado seu caso. Como
está se sentindo?
Não olho diretamente, fico com olhar para baixo e não sei o
que dizer. Nunca pensei que um dia encontraria outras pessoas e só
acordava e fazia o que tinha de fazer, não pensava em fugir nem tinha
esperanças. Não sei se estou feliz ou agradecida, apenas acho tudo
novo, mas não sinto nada então não respondo.
Rebecca continua:
- Pode me dizer o seu nome?
Respondo em voz baixa:
- Meu nome é Alexandra. – eu não sei por que disse isso.
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- É um prazer Alexandra, é bom te conhecer. Nós vamos
ajudá-la. Pode me chamar de Rebecca. Eu estou aqui para descobrir o
que aconteceu. Você sabe me dizer o que houve com você?
Não sei por que disse isso, eu menti e não queria mentir, saiu
de mim naturalmente. Eu não sei o meu nome e vão pensar que eu
sou louca, mas sei tudo sobre Alexa e como ela era. Alexa era amada e
eles vão se importar mais com ela do que com uma doida sem
ninguém para lembrar. Eu tenho de ser como ela:
- Saíram duas meninas da casa. Elas estão bem?
- Você se importa com elas? – ela pausa e espera eu falar, mas
não digo nada. - Não se preocupe com elas, assim como você elas
estão protegidas.
- Vocês o pegaram, ele está preso? Onde ele está?
- Não. Ele não foi encontrado, mas é apenas uma questão de
tempo. Não se preocupe nós vamos pegá-lo, sempre pegamos.
Sim, é uma questão de tempo até o pegarem ou ela descobrir
que eu estou mentindo. Ela continua:
- Você sabe quem ele era, Alexandra?
- Não. – nem sei quem eu sou.
Eu me encolho aflita e fico decepcionada por ele ter
escapado, existem respostas que somente ele pode dar e agora isso
pareceu distante. Ele poderia dizer meu nome verdadeiro e o que
houve com Alexandra, mas sem ele preso tenho de esperar a polícia
descobrir a verdade sobre mim e Alexa. Eu não quero mentir, mas não
sei o que fazer. Meus dedos horríveis talvez forneçam uma digital ou
quando tiverem um exame de sangue saberão a verdade. Pode ser até
pior com os pais de Alexa virem me reconhecer e disserem que não
sou ela, então tudo vai desaparecer e eu não quero desaparecer.
No quarto tem outra policial que nem vi entrar estando
perdida em meus pensamentos, ela entrega para Rebecca um arquivo
e fico curiosa. Rebecca não demonstra reações e demora um pouco
para voltar a falar comigo. Só depois de um sorriso ela diz:
- Alexandra, você passou por muita coisa e não vamos
questionar ou forçar você a dizer nada. Quero que descanse e tente se
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lembrar do máximo que puder para poder me contar, está bem. Se
quiser pergunta algo eu vou ver se posso te ajudar.
Lembro-me do que Alexandra mais queria:
- Minha mãe e meu pai vão vir aqui?
- Você lembra-se de seus pais Alexandra?
- Meu pai é Paul Pietra e minha mãe se chama Rosa.
Rebecca engole a saliva e responde cautelosamente:
- Eu vou cuidar para que possa vê-los, apenas descanse e
pense no que eu pedi para a você. – ela me deixa e fico envergonhada,
envergonhada pela minha naturalidade em mentir estas coisas.
Fico com a cabeça baixa quando uma enfermeira entra, logo
ela diz que eu sou muito corajosa e que tenho que ser forte agora, pois
tudo acabou. Eu não sei do que ela está falando ou sou muito burra.
Quando deito penso em Alexa e lembro-me de nossas
promessas. Nossa outra casa era mais quente e o piso de madeira do
quarto era nosso quintal. Ela me descrevia sua casa, seu quarto, seus
familiares e me fazia prometer coisas:
“- Se você sair antes de mim, vai dizer para os meus pais que eu
amo eles.”
Tão estranho ter somente memórias felizes trancada em um
lugar desconhecido com alguém que realmente amava e não ter
nenhuma outra lembrança feliz de nenhum outro lugar. Nenhuma
mãe ou casa para recordar. Tenho somente lembranças boas e não me
lembro de mais nada sem saber por quê? Alexa me chamava de Olivia,
mas eu nunca a corrigi, pois ele me chamava assim. Ele tem as
respostas que preciso, mas não sei se perguntaria mesmo agora que
acabou. Eu quero saber o que houve com Alexa, mas tenho medo da
resposta. Também tenho medo do que será de mim e da minha
reação. Se Alexa se foi, nada mais importará e por isso tento mantê-la
por perto ao menos mais um pouco.
Foi Alexa que me ensinou, mesmo trancada, a viajar pelo
mundo com minha imaginação, ela me ensinou a sumir para qualquer
lugar que eu quisesse.
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Penso em como isso parece anormal agora com essas outras
pessoas a minha volta. Não sabem o que eu passei, vão me julgar pelo
que não fiz e pelo que não sei. Eu não lutei contra ele ou ajudei as
outras meninas. Eu não fiz nada e eles vão saber, mas eu nunca
esperei que ficasse viva tanto tempo.
A noite cai e fico sozinha no quarto, apenas a policial na
porta é uma companhia. Levanto-me para ir ao banheiro e ao ver o
chuveiro quente, mesmo de camisola tomo um banho. Começo me
limpando suavemente com um pequeno sabonete e logo esfrego com
tanta força que e ele se desgasta, continuo sem ele e uso minhas
unhas roídas para me limpar. A minha pele está escura e seca e quero
limpá-la para alcançar minha pele branca. A água se torna vinho e me
deixa mais suja. Esfrego meu rosto e meus dedos doem ficando
amortecidos, mas ainda não me sinto limpa. As enfermeiras
aparecem e acho que vão me ajudar, mas me detêm e não deixam que
eu termine:
- Por favor, eu não terminei, podem me ajudar, por favor!
Eu preciso terminar, mas sou puxada para fora do banho.
Elas pedem que eu me acalme, mas eu nem me sequei, preciso me
secar, mas sou colocada na cama e adormeço.
Fui sedada e ao despertar tenho curativos nos dedos,
arranhados nos braços e meu rosto está ardente. Eu não queria me
machucar, mas não sentia dor, precisava tomar um banho e fui longe
demais. Agora penso que devo ter exagerado e que devo me controlar,
não me mexo, mas perdi o sono.
Percebo que é madrugada e sento devagar na cama, devem
ser cinco ou seis da manhã. Desta vez a policial Rebecca está no
quarto, adormecida no sofá. Deve ter vindo por causa do meu ataque
exagerado e provavelmente não quis me deixar sozinha. Agora ela
adormece e eu posso olhar bem para ela. Ela é bonita, queria ser como
ela, loira, alta e confiante. Deve ter quase trinta anos, mas aparenta
menos, tem um nariz lindo e um belo corpo. Desço da cama e vou
mais perto dela, ela deve estar cansada e quero cobri-la.
Coloco um lençol sobre ela e volto para cama, não quero
acordá-la, ela poderia se assustar. Passo a noite olhando para ela,
imaginando se ela tem filhos, marido e se é feliz. Percebo que começa
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a nevar e nem sei em que cidade estou ou quanto tempo se passou.
Desejos simples começam a vir a minha mente. Que dia é hoje?
Estamos perto do Natal? Quando é meu aniversário? Fico imersa em
meus pensamentos.
Alexandra chegou dormindo numa manhã, acordou
chorando e logo que falou comigo eu expliquei o que aconteceu:
“- Ele é o homem que descobre nossos sonhos e trás as meninas
que tem sonhos ruins, se você tiver sonhos bons ele vai te levar de volta.”
Ela ficou do meu lado e nunca mais saiu. Contou-me tudo
sobre sua vida várias vezes e eu não tinha nada para contar, tudo que
eu lembrava estava ali mesmo. Eu quis ser como ela, ter suas
lembranças e sua vida. Agora eu era Alexandra.
Ouço a detetive sair do quarto e finjo estar dormindo. Recebo
meu delicioso café e me contenho desta vez. As enfermeiras trocam
alguns curativos e parecem tristes, acho que meu ataque no banho
deve tê-las deixadas apreensivas. Elas saem e Rebecca retorna bem
mais séria:
- Alexandra, está melhor?
- Sim.
- Não vamos falar do que houve ontem a noite está bem.
Quero perguntar sobre o homem que estava com você e com as outras
meninas. Você vai me ajudar?
Aceno que sim.
- Sabe onde ele pode estar?
- Não.
- Você poderia descrevê-lo?
Não sei, não sei mesmo, tinha tanto medo e ódio que quando
olhava via um borrão, mas ela não vai acreditar em mim:
- Era alto, sempre usava sapatos e roupa social, é forte e tem
mãos grandes. – penso em mais alguma coisa.
- E a aparência dele Alexandra, como era seu rosto?
- Liso.
- E a cor do cabelo?
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- Castanho, com um pouco de branco do lado.
- E os olhos?
Alexa dizia que ele tinha olhos de boneca, pareciam de vidro,
pois ficava aberto bastante tempo antes de piscar. Ela se divertia com
aparência dele:
- Olhos pretos.
Pelo olhar dela parece que não sou de grande ajuda, acho que
ela achou que eu sendo a mais velha na casa saberia muito mais.
Alguém a chama na porta e ouço vozes do lado de fora.
Rebecca vai até a porta e ameaça alguém, eu me levanto e quero ver o
que está acontecendo. Gritos ecoam no corredor e ela segura a porta.
Depois olha para mim:
- Alexandra, volte para cama e sente-se!
- O que houve?
- Depois falaremos do homem, volte para dentro. – ela fecha
a porta.
Minutos depois ela retorna:
- Alexandra, uma pessoa quer vê-la, brevemente, eu ficarei
com você e quero que fique sentada. – ela entreabre a porta.
Um homem fica na porta e olho em seus olhos, sem hesitar
ele passa por Rebecca, avança sobre mim e me abraça:
- Minha filha! - ele chora e eu o abraço de volta.
- Pai!
Um homem bem vestido, mas com uma aparência desgastada
não contém sua felicidade, ele acha que eu sou Alexandra e eu o deixo
pensar assim. Nós duas éramos muito parecidas, todas as meninas
que ele tinha levando eram. Cabelos pretos lisos e longos, pele branca
e olhos castanho, magras e quietas. Naquela época eu e Alexa
parecíamos irmãs, não sei como estaria hoje, mas ele acaricia meu
rosto e eu deixo:
- Você voltou! – meu coração acelera e pergunto.
- Onde está a mamãe?