a abolição da escravatura

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A abolição da escravatura Em uma assinatura, fomos de um passado vergonhoso de dor e humilhação de centenas de milhares de negros para uma pré- democracia com igualdade de direitos e oportunidades, no dia 13 de maio de 1888. Essa é a história conhecida sobre a abolição da escravatura no Brasil, a última colônia nas Américas a abrir mão do trabalho forçado, mas pouco se fala sobre as verdadeiras intenções do ato de Princesa Isabel - que seguiu um movimento de pressão externa e interna contra a Coroa portuguesa, sendo um fato mais político que humanitário - e das verdadeiras mudanças, refletidas até os dias de hoje. A lei áurea veio para trazer igualdade entre as raças, mas esse objetivo não fora comprido os ex-escravos foram largados a própria sorte, sem moradia, muito menos sem uma terra aonde pudessem plantar. Gênese do racismo uando houve os primeiros contatos entre conquistadores portugueses e africanos, no século XV, não houve atritos de origem racial. Os negros e outros povos da África entraram em acordos comerciais com os europeus, que incluíam o comércio de escravos que, naquela época, era uma forma de aumentar o número de trabalhadores numa sociedade e não uma questão racial. Acredita-se que o surgimento do racismo no Brasil começou no período colonial, quando os portugueses chegaram aqui e tiveram dificuldades em escravizar os primeiros habitantes que haviam em nossa região, os indios. Então usaram os negros para servirem de escravos nos engenhos de cana-de-açúcar, vindos principalmente da região onde atualmente se localizam Nigéria e Angola. Eles possuiam uma ideia errônea de que os negros e os índios eram "raças" inferiores, mais fortes e resistentes e passaram a aplicar a discriminação com base racial nas suas colônias, para assegurar determinados "direitos" aos colonos europeus. Àqueles que não se submetiam era aplicado o genocídio, que exacerbava os sentimentos racistas.

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Sobre escravatura

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A abolio da escravaturaEm uma assinatura, fomos de um passado vergonhoso de dor e humilhao de centenas de milhares de negros para uma pr-democracia com igualdade de direitos e oportunidades, no dia 13 de maio de 1888. Essa a histria conhecida sobre a abolio da escravatura no Brasil, a ltima colnia nas Amricas a abrir mo do trabalho forado, mas pouco se fala sobre as verdadeiras intenes do ato de Princesa Isabel - que seguiu um movimento de presso externa e interna contra a Coroa portuguesa, sendo um fato mais poltico que humanitrio - e das verdadeiras mudanas, refletidas at os dias de hoje. A lei urea veio para trazer igualdade entre as raas, mas esse objetivo no fora comprido os ex-escravos foram largados a prpria sorte, sem moradia, muito menos sem uma terra aonde pudessem plantar. Gnese do racismo uando houve os primeiros contatos entre conquistadores portugueses e africanos, no sculo XV, no houve atritos de origem racial. Os negros e outros povos da frica entraram em acordos comerciais com os europeus, que incluam o comrcio de escravos que, naquela poca, era uma forma de aumentar o nmero de trabalhadores numa sociedade e no uma questo racial.

Acredita-se que o surgimento do racismo no Brasil comeou no perodo colonial, quando os portugueses chegaram aqui e tiveram dificuldades em escravizar os primeiros habitantes que haviam em nossa regio, os indios. Ento usaram os negros para servirem de escravos nos engenhos de cana-de-acar, vindos principalmente da regio onde atualmente se localizam Nigria e Angola. Eles possuiam uma ideia errnea de que os negros e os ndios eram "raas" inferiores, mais fortes e resistentes e passaram a aplicar a discriminao com base racial nas suas colnias, para assegurar determinados "direitos" aos colonos europeus. queles que no se submetiam era aplicado o genocdio, que exacerbava os sentimentos racistas.

A Igreja Catlica que nesse tempo detinha muito poder, no interviu contra a escravido, pelo contrrio, acreditava que os trazendo da frica para o Brasil seria mais fcil cristianiz-los. A idia do "sangue-puro" tambm provm desse tempo, em que os nobres de pele plida com as veias a mostra, se achavam superiores aos de pele escura. Eles acreditavam que existiam seres somente para o trabalho e que eles no tinham alma nem sentimentos.Vrias associaes aos negros foram surgindo, e alguns negros acabaram aceitando e se conformando com o destino que supostamente Deus tinha dado a eles. Essa era a concepo que muitos tinham, pelo fato da Igreja e os brancos afirmarem isto.

Os casos mais extremos foram a confinao dos ndios em reservas e a introduo de leis para instituir a discriminao, como foram os casos das leis de Jim Crow, nos Estados Unidos da Amrica, e do apartheid na frica do Sul.COTAS RACIAIS Pros e Contras No presente ano de 2010, os brasileiros afro-descendentes, os cidados que se auto-definem como pretos e pardos no recenseamento nacional, passam a formar a maioria da populao do pas. A partir de agora -, na conceituao consolidada em dcadas de pesquisas e de anlises metodolgicas do IBGE -, mais da metade dos brasileiros so negros.

Esta mudana vai muito alm da demografia. Ela traz ensinamentos sobre o nosso passado, sobre quem somos e de onde viemos, e traz tambm desafios para o nosso futuro.

Minha fala tentar juntar os dois aspectos do problema, partindo de um resumo histrico para chegar atualidade e ao julgamento que nos ocupa. Os ensinamentos sobre nosso passado, referem-se densa presena da populao negra na formao do povo brasileiro. Todos ns sabemos que esta presena originou-se e desenvolveu-se na violncia. Contudo, a extenso e o impacto do escravismo no tem sido suficientemente sublinhada. A petio inicial de ADPF apresentada pelo DEM a esta Corte fala genricamente sobre o racismo e a opo pela escravido negra (pp. 37-40), sem considerar a especificidade do escravismo em nosso pas.

Na realidade, nenhum pas americano praticou a escravido em to larga escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhes de africanos deportados e chegados vivos nas Amricas, 44% (perto de 5 milhes) vieram para o territrio brasileiro num perodo de trs sculos (1550-1856). O outro grande pas escravista do continente, os Estados Unidos, praticou o trfico negreiro por pouco mais de um sculo (entre 1675 e 1808) e recebeu uma proporo muito menor -, perto de 560.000 africanos -, ou seja, 5,5% do total do trfico transatlantico.1 No final das contas, o Brasil se apresenta como o agregado poltico americano que captou o maior nmero de africanos e que manteve durante mais tempo a escravido.

Durante estes trs sculos, vieram para este lado do Atlntico milhes de africanos que, em meio misria e ao sofrimento, tiveram coragem e esperana para constituir as famlias e as culturas formadoras de uma parte essencial do povo brasileiro. Arrancados para sempre de suas famlias, de sua aldeia, de seu continente, eles foram deportados por negreiros luso-brasileiros e, em seguida, por traficantes genuinamente brasileiros que os trouxeram acorrentados em navios arvorando o auriverde pendo de nossa terra, como narram estrofes menos lembradas do poema de Castro Alves.

No sculo XIX, o Imprio do Brasil aparece ainda como a nica nao independente que praticava o trfico negreiro em larga escala. Alvo da presso diplomtica e naval britnica, o comrcio ocenico de africanos passou a ser proscrito por uma rede de tratados internacionais que a Inglaterra teceu no Atlntico. 2

O tratado anglo-portugus de 1818 vetava o trfico no norte do equador. Na sequncia do tratado anglo-brasileiro de 1826, a lei de 7 de novembro de 1831, proibiu a totalidade do comrcio atlntico de africanos no Brasil.

Entretanto, 50.000 africanos oriundos do norte do Equador so ilegalmente desembarcados entre 1818 e 1831, e 710.000 indivduos, vindos de todas as partes da frica, so trazidos entre 1831 e 1856, num circuito de trfico clandestino. Ora, da mesma forma que o tratado de 1818, a lei de 1831 assegurava plena liberdade aos africanos introduzidos no pas aps a proibio. Em conseqncia, os alegados proprietrios desses indivduos livres eram considerados sequestradores, incorrendo nas sanes do artigo 179 do Cdigo Criminal, de 1830, que punia o ato de reduzir escravido a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade . A lei de 7 de novembro 1831 impunha aos infratores uma pena pecuniria e o reemblso das despesas com o reenvio do africano sequestrado para qualquer porto da frica. Tais penalidades so reiteradas no artigo 4 da Lei de 4 de setembro de 1850, a lei Eusbio de Queirs que acabou definitivamente com o trfico negreiro.

Porm, na dcada de 1850, o governo imperial anistiou, na prtica, os senhores culpados do crime de seqestro, mas deixou livre curso ao crime correlato, a escravizao de pessoas livres.3 De golpe, os 760.000 africanos desembarcados at 1856 -, e a totalidade de seus descendentes -, continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravido at 18884. Para que no estourassem rebelies de escravos e de gente ilegalmente escravizada, para que a ilegalidade da posse de cada senhor, de cada seqestrador, no se transformasse em insegurana coletiva dos proprietrios, de seus scios e credores -, abalando todo o pas -, era preciso que vigorasse um conluio geral, um pacto implcito em favor da violao da lei. Um pacto fundado nos interesses coletivos da sociedade, como sentenciou, em 1854, o ministro da Justia, Nabuco de Arajo, pai de Joaquim Nabuco.

O tema subjaz aos debates da poca. O prprio Joaquim Nabuco -, que est sendo homenageado neste ano do centenrio de sua morte -, escrevia com todas as letras em O Abolicionismo (1883): Durante cinqenta anos a grande maioria da propriedade escrava foi possuda ilegalmente. Nada seria mais difcil aos senhores, tomados coletivamente, do que justificar perante um tribunal escrupuloso a legalidade daquela propriedade, tomada tambm em massa5.

Tal tribunal escrupuloso jamais instaurou-se nas cortes judicirias, nem tampouco na historiografia do pas. Tirante as aes impetradas por um certo nmero de advogados e magistrados abolicionistas, o assunto permaneceu encoberto na poca e foi praticamente ignorado pelas geraes seguintes.

Resta que este crime coletivo guarda um significado dramtico: ao arrepio da lei, a maioria dos africanos cativados no Brasil a partir de 1818 -, e todos os seus descendentes -, foram mantidos na escravido at 1888. Ou seja, boa parte das duas ltimas geraes de indivduos escravizados no Brasil no era escrava. Moralmente ilegtima, a escravido do Imprio era ainda -, primeiro e sobretudo -, ilegal. Como escrev, tenho para mim que este pacto dos sequestadores constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurdica brasileira.6

Firmava-se duradouramente o princpio da impunidade e do casusmo da lei que marca nossa histria e permanece como um desafio constante aos tribunais e a esta Suprema Corte. Consequentemente, no so s os negros brasileiros que pagam o preo da herana escravista.

Outra deformidade gerada pelos males que a escravido criou, para retomar uma expresso de Joaquim Nabuco, refere-se violncia policial.

Para expor o assunto, volto ao sculo XIX, abordando um ponto da histria do direito penal que os ministros desta Corte conhecem bem e que peo a permisso para relembrar.

Depois da Independncia, no Brasil, como no sul dos Estados Unidos, o escravismo passou a ser consubstancial ao State building, organizao das instituies nacionais. Houve, assim, uma modernizao do escravismo para adequ-lo ao direito positivo e s novas normas ocidentais que regulavam a propriedade privada e as liberdades pblicas. Entre as mltiplas contradies engendradas por esta situao, uma relevava do Cdigo Penal: como punir o escravo delinqente sem encarcer-lo, sem privar o senhor do usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena priso?

Para solucionar o problema, o quadro legal foi definido em dois tempos. Primeiro, a Constituio de 1824 garantiu, em seu artigo 179, a extino das punies fsicas constantes nas aplicaes penais portuguesas. Desde j ficam abolidos os aoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruis; a Constituio tambm prescrevia: as cadeias sero seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separao dos rus, conforme suas circunstncias e natureza de seus crimes.

Conforme os princpios do Iluminismo, ficavam assim preservadas as liberdades e a dignidade dos homens livres.

Num segundo tempo, o Cdigo Criminal de 1830 tratou especificamente da priso dos escravos, os quais representavam uma forte proporo de habitantes do Imprio. No seu artigo 60, o Cdigo reatualiza a pena de tortura. Se o ru for escravo e incorrer em pena que no seja a capital ou de gals, ser condenado na de aoites, e depois de os sofrer, ser entregue a seu senhor, que se obrigar a traz-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar, o nmero de aoites ser fixado na sentena e o escravo no poder levar por dia mais de 50. Com o aoite, com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava resolvido o dilema.

Longe de restringir-se ao campo, a escravido tambm se arraigava nas cidades. Em 1850, o Rio de Janeiro contava 110.000 escravos entre seus 266.000 habitantes, reunindo a maior concentrao urbana de escravos da poca moderna. Neste quadro social, a questo da segurana pblica e da criminalidade assumia um vis especfico.7 De maneira mais eficaz que a priso, o terror, a amea do aoite em pblico, servia para intimidar os escravos.

Oficializada at o final do Imprio, esta prtica punitiva estendeu-se s camadas desfavorecidas, aos negros em particular e aos pobres em geral. Junto com a privatizao da justia efetuada no campo pelos fazendeiros, tais procedimentos travaram o advento de uma poltica de segurana pblica fundada nos princpios da liberdade individual e dos direitos humanos.

Enfim, uma terceira deformidade gerada pelo escravismo afeta diretamente o estatuto da cidadania.

sabido que nas eleies censitrias de dois graus ocorrendo no Imprio, at a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros e mulatos alforriados, podiam ser votantes, isto , eleitores de primeiro grau, que elegiam eleitores de 2 grau (cerca de 20.000 homens em 1870), os quais podiam eleger e ser eleitos parlamentares. Depois de 1881, foram suprimidos os dois graus de eleitores e em 1882, o voto dos analfabetos foi vetado. Decidida no contexto pr-abolicionista, a proibio buscava criar um ferrolho que barrasse o acesso do corpo eleitoral maioria dos libertos. Gerou-se um estatuto de infracidadania que perdurou at 1985, quando foi autorizado o voto do analfabeto. O conjunto dos analfabetos brasileiros, brancos e negros, foi atingido.8 Mas a excluso poltica foi mais impactante na populao negra, onde o analfabetismo registrava, e continua registrando, taxas proporcionalmente bem mais altas do que entre os brancos.9

Pelos motivos apontados acima, os ensinamentos do passado ajudam a situar o atual julgamento sobre cotas universitrias na perspectiva da construo da nao e do sistema politico de nosso pas. Nascidas no sculo XIX, a partir da impunidade garantida aos proprietrios de indivduos ilegalmente escravizados, da violncia e das torturas infligidas aos escravos e da infracidadania reservada ao libertos, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiram o pas inteiro.

Por isso, agindo em sentido inverso, a reduo das discriminaes que ainda pesam sobre os afrobrasileiros -, hoje majoritrios no seio da populao -, consolidar nossa democracia.

Portanto, no se trata aqui de uma simples lgica indenizatria, destinada a quitar dvidas da histria e a garantir direitos usurpados de uma comunidade especfica, como foi o caso, em boa medida, nos memorveis julgamentos desta Corte sobre a demarcao das terras indgenas. No presente julgamento, trata-se, sobretudo, de inscrever a discusso sobre a poltica afirmativa no aperfeioamento da democracia, no vir a ser da nao. Tais so os desafios que as cotas raciais universitrias colocam ao nosso presente e ao nosso futuro.

Atacando as cotas universitrias, a ADPF do DEM, traz no seu ponto 3 o seguinte ttulo o perigo da importao de modelos : os exemplos de Ruanda e dos Estados Estados Unidos da Amrica (pps. 41-43). Trata-se de uma comparao absurda no primeiro caso e inepta no segundo.

Qual o paralelo entre o Brasil e Ruanda, que alcanou a independncia apenas em 1962 e viu-se envolvido, desde 1990, numa conflagrao generalizada que os especialistas denominam a primeira guerra mundial africana , implicando tambm o Burundi, Uganda, Angola, o Congo Kinsasha e o Zimbabu, e que culminou, em 1994, com o genocdio de quase 1 milho de tutsis e milhares de hutus ruandenses ?

Na comparao com os Estados Unidos, a alegao inepta por duas razes. Primeiro, os Estados Unidos so a mais antiga democracia do mundo e servem de exemplo a instituies que consolidaram o sistema poltico no Brasil. Nosso federalismo, nosso STF -, vosso STF so calcados no modelo americano. No h nada de perigoso na importao de prticas americanas que possam reforar nossa democracia. A segunda razo da inpcia reside no fato de que o movimento negro e a defesa dos direitos dos ex-escravos e afrodescendentes tem, como ficou dito acima, razes profundas na histria nacional. Desde o sculo XIX, magistrados e advogados brancos e negros tem tido um papel fundamental nesta reinvidicaes.

Assim, ao contrrio do que se tem dito e escrito, a discusso relanada nos anos 1970-1980 sobre as desigualdades raciais muito mais o resultado da atualizao das estatsticas sociais brasileiras, num contexto de lutas democrticas contra a ditadura, do que uma propalada americanizao do debate sobre a discriminao racial em nosso pas. Alis, foram estas mesmas circunstncias que suscitaram, na mesma poca, os questionamentos sobre a distribuio da renda no quadro do alegado milagre econmico . Havia, at a realizao da primeira PNAD incluindo o critrio cor, em 1976, um grande desconhecimento sobre a evoluo demogrfica e social dos afrodescendentes.

De fato, no Censo de 1950, as estatsticas sobre cor eram limitadas, no Censo de 1960, elas ficaram inutilizadas e no Censo de 1970 elas eram inexistentes. Este longo perodo de eclipse estatstica facilitou a difuso da ideologia da democracia racial brasileira, que apregoava de inexistncia de discriminao racial no pas. Todavia, as PNADs de 1976, 1984, 1987, 1995, 1999 e os Censos de 1980, 1991 e 2000, incluram o critrio cor. Constatou-se, ento, que no decurso de trs dcadas, a desigualdade racial permanecia no quadro de uma sociedade mais urbanizada, mais educada e com muito maior renda do que em 1940 e 1950. Ou seja, ficava provado que a desigualdade racial tinha um carcter estrutural que no se reduzia com progresso econmico e social do pas. Da o adensamento das reinvidicaes da comunidade negra, apoiadas por vrios partidos polticos e por boa parte dos movimentos sociais.

Nesta perspectiva, cabe lembrar que a democracia, a prtica democrtica, consiste num processo dinmico, reformado e completado ao longo das dcadas pelos legisladores brasileiros, em resposta s aspiraes da sociedade e s iniciativas de pases pioneiros. Foi somente em 1932 -, ainda assim com as conhecidas restries suprimidas em 1946 -, que o voto feminino instaurou-se no Brasil. Na poca, os setores tradicionalistas alegaram que a capacitao poltica das mulheres iria dividir as famlias e perturbar a tranquilidade de nao. Pouco a pouco, normas consensuais que impediam a plena cidadania e a realizao profissional das mulheres foram sendo reduzidas, segundo o preceito -, aplicvel tambm na questo racial -, de que se deve tratar de maneira desigual o problema gerado por uma situao desigual.

Para alm do caso da poltica de cotas da UNB, o que est em pauta neste julgamento so, a meu ver, duas questes essenciais.

A primeira a seguinte : malgrado a inexistncia de um quadro legal discriminatrio a populao afrobrasileira discriminada nos dias de hoje?

A resposta est retratada nas creches, nas ruas, nas escolas, nas universidades, nas cadeias, nos laudos dos IML de todo o Brasil. No me cabe aqui entrar na anlise de estatsticas raciais, sociais e econmicas que sero abordadas por diversos especialistas no mbito desta Audincia Pblica. Observo, entretanto, que a ADPF apresentada pelo DEM, na parte intitulada A manipulao dos indicadores sociais envolvendo a raa (pp. 54-59), alinha algumas cifras e cita como nica fonte analtica, o livro do jornalista Ali Kamel, o qual, como sabido, no versado no estudo das estatsticas do IBGE, do IPEA, da ONU e das incontveis pesquisas e teses brasileiras e estrangeiras que demonstram, maciamente, a existncia de discriminao racial no Brasil.

Da decorre a segunda pergunta que pode ser formulada em dois tempos. O sistema de promoo social posto em prtica desde o final da escravido poder eliminar as desigualdades que cercam os afrobrasileiros? A expanso do sistema de bolsas e de cotas pelo critrio social provocar uma reduo destas desigualdades ?

Os dados das PNAD organizados pelo IPEA mostram, ao contrrio, que as disparidades se mantm ao longo da ltima dcada. Mais ainda, a entrada no ensino superior exacerba a desigualdade racial no Brasil.

Dessa forma, no ensino fundamental (de 7 a 14 anos), a diferena entre brancos e negros comeou a diminuir a partir de 1999 e em 2008 a taxa de frequncia entre os dois grupos praticamente a mesma, em torno de 95% e 94% respectivamente. No ensino mdio (de 15 a 17 anos) h uma diferena quase constante desde entre 1992 e 2008. Neste ltimo ano, foram registrados 61,0% de alunos brancos e 42,0% de alunos negros desta mesma faixa etria. Porm, no ensino superior a diferena entre os dois grupos se escancara. Em 2008, nas faixas etrias de brancos maiores de 18 anos de idade, havia 20,5% de estudantes universitrios e nas faixas etrias de negros maiores de 18 anos, s 7,7% de estudantes universitrios.10 Patenteia-se que o acesso ao ensino superior constitui um gargalo incontornvel para a ascenso social dos negros brasileiros.

Por todas estas razes, reafirmo minha adeso ao sistema de cotas raciais aplicado pela Universidade de Braslia.

Penso que seria uma simplificao apresentar a discusso sobre as cotas raciais como um corte entre a esquerda e a direita, o governo e a oposio ou o PT e o PSDB. Como no caso do plebiscito de 1993, sobre o presidencialismo e o parlamentarismo, a clivagem atravessa as linhas partidrias e ideolgicas. Alis, as primeiras medidas de poltica afirmativa relativas populao negra foram tomadas, como conhecido, pelo governo Fernando Henrique Cardoso.

Como deixei claro, utilizei vrios estudos do IPEA para embasar meus argumentos. Ora, tanto o presidente do IPEA no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, o professor Roberto Borges Martins, como o presidente do IPEA no segundo governo Lula, o professor Mrcio Porchman -, colegas por quem tenho respeito e admirao -, coordenaram vrios estudos sobre a discriminao racial no Brasil nos dias de hoje e so ambos favorveis s polticas afirmativas e s polticas de cotas raciais.

A existncia de alianas transversais deve nos conduzir -, mesmo num ano de eleies -, a um debate menos ideologizado, onde os argumentos de uns e de outros possam ser analisados a fim de contribuir para a superODia Nacional de Zumbi e da Conscincia Negra, celebrado em 20 de novembro, foi institudo oficialmente pela lei n 12.519, de 10 de novembro de 2011. A data faz referncia morte deZumbi, o ento lder doQuilombo dosPalmares situado entre os estados de Alagoas e Pernambuco, na regio Nordeste do Brasil. Zumbi foi morto em 1695, na referida data, por bandeirantes liderados porDomingos Jorge Velho. Maiores informaes podem ser consultadas no textoHistria do Quilombo de Palmares.A data de sua morte, descoberta por historiadores no incio da dcada de 1970, motivou membros doMovimento Negro Unificado contra a Discriminao Racial, em um congresso realizado em 1978, no contexto da Ditadura Militar Brasileira, a elegerem a figura de Zumbi como um smbolo da luta e resistncia dos negros escravizados no Brasil, bem como da luta por direitos que seus descendentes reivindicam.Com a redemocratizao do Brasil e a promulgao daConstituio de 1988, vrios segmentos da sociedade, inclusive os movimentos sociais, como o Movimento Negro, obtiveram maior espao no mbito das discusses e decises polticas. A lei de preconceito de raa ou cor (n 7.716, de 5 de janeiro de 1989) e leis como a de cotas raciais, no mbito da educao superior, e, especificamente na rea da educao bsica, a lei n 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira, so exemplos de legislaes que preveem certa reparao aos danos sofridos pela populao negra na histria do Brasil.A figura de Zumbi dos Palmares especialmente reivindicada pelo movimento negro como smbolo de todas essas conquistas, tanto que a lei que instituiu o dia da Conscincia Negra foi tambm fruto dessa reivindicao. O nome de Zumbi, inclusive, sugerido nasDiretrizes Curriculares Nacionais para Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africanacomo personalidade a ser abordada nas aulas de ensino bsico como exemplo da luta dos negros no Brasil. Essa sugesto orienta-se por uma das determinaes da lei N 10.639, que diz no Art. 26-A, pargrafo 1: O contedo programtico a que se refere o caput deste artigo incluir o estudo da Histria da frica e dos Africanos,a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade nacional, resgatando a contribuio do povo negro nas reas social, econmica e poltica pertinentes Histria do Brasil.A despeito da comemorao do Dia da Conscincia Negra ser no dia da morte de Zumbi e do que essa figura histrica representa enquanto smbolo para movimentos sociais, como o Movimento Negro, h muita polmica no mbito acadmico em torno da imagem de Zumbi e da prpria histria do Quilombo dos Palmares. As primeiras obras que abordaram esse acontecimento histrico, como as de Edison Carneiro (O Quilombo dos Palmares, Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 3a ed., 1966), de Eduardo Fonseca Jr. (Zumbi dos Palmares,A Histria do Brasil que no foi Contada.Rio de Janeiro: Soc. Yorubana Teolgica de Cultura Afro-Brasileira, 1988) e de Dcio Freitas (Palmares, a guerra dos escravos.Porto Alegre: Movimento, 1973), abriram caminho para a compreenso da histria da fundao, apogeu e queda do Quilombo dos Palmares, mas, em certa medida, deram espao para o uso poltico da figura de Zumbi, o que, segundo outros historiadores que revisaram esse acontecimento, pode ter sido prejudicial para a veracidade dos fatos.Um dos principais historiadores que estudam e revisam a histria do Quilombo dos Palmares atualmente Flvio dos Santos Gomes, cuja principal obra De olho em Zumbi dos Palmares: Histria, smbolos e memria social(So Paulo: Claro Enigma, 2011). Flvio Gomes procurou, nessa obra, realizar no apenas uma reviso dos fatos a partir do contato direto com as fontes do sculo XVI e XVII, mas tambm analisar o uso poltico da imagem de Zumbi. Segundo esse autor, o tio de Zumbi,Ganga Zumba, que chefiou o quilombo e, inclusive, firmou tratados de paz com as autoridades locais, acabou tendo sua imagem diminuda e pouco conhecida em razo da escolha ideolgica de Zumbi como smbolo de luta dos negros.Alm dessa polmica, h tambm o problema referente prpria estrutura e proposta de resistncia dos quilombos no perodo colonial. Historiadores como Jos Murilo de Carvalho acentuam que grandes quilombos, como o de Palmares, no tinham o objetivo estrito de apartar-se completamente da sociedade escravocrata, tendo o prprio Quilombo dos Palmares participado do trfico e do uso de escravos. Diz ele, na obraCidadania no Brasil: Os quilombos que sobreviviam mais tempo acabavam mantendo relaes com a sociedade que os cercava, e esta sociedade era escravista. No prprio quilombo dos Palmares havia escravos. (CARVALHO, Jos Murilo de.Cidadania no Brasil. O longo Caminho.3 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. p. 48).As polmicas partem de indagaes como: Se Zumbi, que foi lder do Quilombo de Palmares, possua escravos negros, a noo de luta por liberdade nesse contexto era bem especfica e no pode coloc-lo como smbolo de resistncia contra a escravido. A prpria histria da frica e do trfico negreiro transatlntico revela que grande parte dos escravos que a coroa portuguesa trazia para o Brasil Colnia era comprada dos prprios reinos africanos que capturavam membros de reinos ou tribos rivais e vendiam-nos aos europeus. Essa prtica tambm ressoou, como atestam alguns historiadores, em dada medida, nos quilombos brasileiros.Nesse sentido, a complexidade dos fatos histricos nem sempre pode adequar-se a anseios polticos. Os estudos histricos precisam dar conta dessa complexidade e fornecer elementos para compreender o passado e sua relao com o presente. Entretanto, esse processo precisa ser cuidadoso. O uso de datas comemorativas como marcos de memria suscita esse tipo de polmica, que deve ser pensada e discutida criteriosamente, sem prejuzo nem das reivindicaes sociais e, tampouco, da veracidade dos fatos.Conseqncias Mais de um sculo aps a assinatura da Lei urea, muita coisa mudou, a populao negra soma hoje 50,1% dos cidados brasileiros, mas ainda existe um fosso entre negros e brancos no pas difcil de transpor e a democracia racial continua sendo um mito.

De acordo com especialistas, essa diferena entre brancos e negros no Brasil tem reflexos basicamente econmicos - na renda e no emprego - mas podem ser notadas tambm no acesso a servios bsicos, como sade, Educao Superior, saneamento bsico e previdncia. Para o professor Marcelo Paixo, coordenador do Laboratrio de Anlises Econmicas, Sociais e Estatsticas das Relaes Raciais (Laeser) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, avaliar o tamanho do fosso entre brancos e negros depende de qual aspecto se analisa. "Se vamos analisar mercado de trabalho, renda e emprego, tivemos reduo das disparidades. Se falamos em mortalidade materna e taxa de homicdios, o ndice ainda assusta", comenta ele. O especialista alerta tambm para a Previdncia Social, que no cobre nem metade da populao negra feminina no pas.

Outro aspecto que evidencia as desigualdades no pas pode ser visto ao analisar a distribuio de renda. Segundo dados do Censo de 2010, o Brasil tem hoje 16,3 milhes de miserveis (renda inferior a R$70 mensais). Destes, cerca de 70% so negros. Mesmo assim, houve a ascenso de uma classe mdia negra nos ltimos oito anos, que hoje engloba 53,5% dos negros e 47,3% dos mestios, centrados nas classes A, B e C.

Edson Cardoso, assessor especial da Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (SPPIR) observa tambm que a populao negra capturada pelo Censo cresceu, indo de encontro a uma taxa de natalidade decrescente da populao brasileira. Essa mudana, segundo ele, no reflete um aumento real, mas sim uma mudana de atitude. "Houve uma conscientizao, empreendida principalmente pelo movimento negro no pas, que fez com que essa populao se autoafirmasse. Aquelas pessoas que anteriormente se diziam brancas, agora se sentem vontade para se declarar pretas ou pardas", explica.

O acesso Educao outro bom parmetro para entender a questo do negro no Brasil. "Quando analisamos os dados de quase 100 anos aps a abolio, tnhamos 40% da populao negra de analfabetos. Hoje, 20 anos depois desse estudo, no conseguimos superar o quadro. A populao de negros analfabetos, em nmeros absolutos, ainda quase o dobro da de brancos", afirma Marcelo Paixo.

O problema se reflete no Ensino Superior. Apesar dos investimentos feitos nos ltimos dez anos, com a adoo de polticas afirmativas para a rea, os nmeros indicam que ainda h muito por fazer. Cardoso acredita que preciso uma combinao entre as polticas afirmativas e uma discusso na sociedade.

"Precisamos entender como funcionam certas instituies, para entender porque determinados grupos ficam de fora", diz. Para o pesquisador, a prpria reao negativa inicial gerada em determinados setores da sociedade com as polticas afirmativas beneficiou o debate sobre a funo da universidade e o racismo no Brasil. "A demanda pelo acesso dos negros ao terceiro grau beneficiou toda a sociedade, pois acabou abrindo discusses sobre o aluno do sistema pblico, sobre o indgena. Quando paramos para discutir, vimos que estvamos criando um terceiro grau muito excludente", afirma.

O especialista acredita que somente uma tomada de conscincia para excluir o racismo da cultura e Educao vai trazer eficcia a qualquer poltica pblica para diversidade. "Uma parcela da sociedade acha que quando voc usa a palavra racismo, ela tarefa dos negros, mas na verdade de toda a sociedade brasileira", resume.