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867 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18(3):867-871, mai-jun, 2002 OPINIÃO OPINION Aspectos críticos do controle do dengue no Brasil Critical aspects of dengue control in Brazil 1 Faculdade de Medicina, Área de Medicina Social, Universidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasília, DF 70910-900, Brasil. [email protected] Pedro Luiz Tauil 1 Abstract Dengue is now the main reemerging disease in the world. In the absence of an effica- cious preventive vaccine and effective etiologic treatment and chemoprophylaxis, the only vul- nerable link for reducing dengue transmission is the mosquito Aedes aegypti , its principal vec- tor. There are many difficulties in combating this mosquito in large and medium-sized cities. The complexity of contemporary urban life generates factors that facilitate the mosquito’s prolif- eration and constraints on the reduction of its infestation rates. The objectives of dengue control should be based on available scientific and technical knowledge. Thus, while it is not possible to avoid dengue in areas infested with A. aegypti , it is possible to prevent major epidemics by im- proving epidemiological surveillance,and it is both possible and feasible to reduce the disease’s case fatality from the current 5 to 6% to some 1% in the severe forms. The elaboration and execu- tion of strategic plans for the organization of medical care for suspected dengue cases have proven to be a highly useful instrument to reduce case fatality both in other countries and in some cities of Brazil. Key words Vector Control; Disease Outbreak; Aedes; Dengue; Epidemiologic Surveillance Resumo O dengue é hoje a principal doença re-emergente no mundo. Na ausência de uma va- cina preventiva eficaz, de tratamento etiológico e quimioprofilaxia efetivos, o único elo vulnerá- vel para reduzir a sua transmissão é o mosquito Aedes aegypti, seu principal vetor. As dificulda- des de combater este mosquito, em grandes e médias cidades, são muitas. Há facilidades para sua proliferação e limitações para reduzir seus índices de infestação, geradas pela complexidade da vida urbana atual. Os objetivos do controle do dengue devem ser estabelecidos com base nos conhecimentos científicos e técnicos disponíveis. Assim, não sendo possível evitar casos de den- gue em áreas infestadas pelo A. aegypti, é possível prevenir epidemias de grandes dimensões por meio do aprimoramento da vigilância epidemiológica, e é possível e factível reduzir a letalidade da doença, dos níveis atuais de 5 a 6% para cerca de 1% das formas graves. A elaboração e execu- ção de planos estratégicos de organização da assistência aos casos suspeitos de dengue têm mos- trado, tanto em outros países, como em algumas cidades brasileiras, ser um instrumento muito útil na redução da letalidade. Palavras-chave Controle de Vetores; Surto de Doenças; Aedes; Dengue; Vigilância Epidemioló- gica

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 18(3):867-871, mai-jun, 2002

OPINIÃO OPINION

Aspectos críticos do controle do dengue no Brasil

Critical aspects of dengue control in Brazil

1 Faculdade de Medicina,Área de Medicina Social,Universidade de Brasília.Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte,Brasília, DF 70910-900, [email protected]

Pedro Luiz Tauil 1

Abstract Dengue is now the main reemerging disease in the world. In the absence of an effica-cious preventive vaccine and effective etiologic treatment and chemoprophylaxis, the only vul-nerable link for reducing dengue transmission is the mosquito Aedes aegypti, its principal vec-tor. There are many difficulties in combating this mosquito in large and medium-sized cities.The complexity of contemporary urban life generates factors that facilitate the mosquito’s prolif-eration and constraints on the reduction of its infestation rates. The objectives of dengue controlshould be based on available scientific and technical knowledge. Thus, while it is not possible toavoid dengue in areas infested with A. aegypti, it is possible to prevent major epidemics by im-proving epidemiological surveillance, and it is both possible and feasible to reduce the disease’scase fatality from the current 5 to 6% to some 1% in the severe forms. The elaboration and execu-tion of strategic plans for the organization of medical care for suspected dengue cases haveproven to be a highly useful instrument to reduce case fatality both in other countries and insome cities of Brazil.Key words Vector Control; Disease Outbreak; Aedes; Dengue; Epidemiologic Surveillance

Resumo O dengue é hoje a principal doença re-emergente no mundo. Na ausência de uma va-cina preventiva eficaz, de tratamento etiológico e quimioprofilaxia efetivos, o único elo vulnerá-vel para reduzir a sua transmissão é o mosquito Aedes aegypti, seu principal vetor. As dificulda-des de combater este mosquito, em grandes e médias cidades, são muitas. Há facilidades parasua proliferação e limitações para reduzir seus índices de infestação, geradas pela complexidadeda vida urbana atual. Os objetivos do controle do dengue devem ser estabelecidos com base nosconhecimentos científicos e técnicos disponíveis. Assim, não sendo possível evitar casos de den-gue em áreas infestadas pelo A. aegypti, é possível prevenir epidemias de grandes dimensões pormeio do aprimoramento da vigilância epidemiológica, e é possível e factível reduzir a letalidadeda doença, dos níveis atuais de 5 a 6% para cerca de 1% das formas graves. A elaboração e execu-ção de planos estratégicos de organização da assistência aos casos suspeitos de dengue têm mos-trado, tanto em outros países, como em algumas cidades brasileiras, ser um instrumento muitoútil na redução da letalidade.Palavras-chave Controle de Vetores; Surto de Doenças; Aedes; Dengue; Vigilância Epidemioló-gica

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O controle de um agravo à saúde pode ter dife-rentes objetivos em função do grau de conhe-cimento científico que se tenha do agravo, dosrecursos tecnológicos disponíveis e das condi-ções sócio-econômicas e políticas existentes.Entre a erradicação, objetivo mais ambicioso, ea redução da mortalidade específica pelo agra-vo, objetivo mais restrito, passando pela suaeliminação, redução da sua incidência ou dasua gravidade, estabelecem-se os objetivos dasatividades de controle específicas e determi-nam-se as medidas preventivas disponíveis econsistentes a serem utilizadas. Em publicaçãode 1998, as relações entre objetivos de controlee medidas preventivas foram discutidas e apro-fundadas (Tauil, 1998).

No que se refere ao dengue, é preciso que sedetermine, diante dos conhecimentos científi-cos e tecnológicos disponíveis, quais são os ob-jetivos das atividades de controle passíveis deser alcançados, estabelecendo-se as medidaspreventivas adequadas a estes objetivos.

O dengue é hoje a arbovirose mais impor-tante do mundo. Cerca de 2,5 bilhões de pes-soas encontram-se sob risco de se infectarem,particularmente em países tropicais onde atemperatura e a umidade favorecem a prolife-ração do mosquito vetor. Entre as doenças re-emergentes é a que se constitui em problemamais grave de saúde pública. São bem conheci-das sua etiologia e seus mecanismos de trans-missão. O seu espectro clínico é muito amplo,variando de formas assintomáticas ou oligo-sintomáticas até formas graves e letais. As cau-sas da ocorrência de formas graves ainda nãoestão plenamente estabelecidas, existindo al-gumas teorias explicativas relacionadas à maiorvirulência da cepa de vírus infectante, à se-qüência de infecções pelos diferentes sorotiposdo agente etiológico, a fatores individuais dohospedeiro e a uma combinação de todas asexplicações anteriores. Por outro lado, apesarde muito pesquisada, ainda não está disponí-vel uma vacina preventiva eficaz. Da mesmaforma, não se pode contar ainda com uma te-rapêutica etiológica e uma quimioprofilaxiaefetivas. No momento, o único elo vulnerávelna cadeia de transmissão do dengue a uma me-dida preventiva é o vetor.

Aspectos relativos ao combate vetorial

O mosquito Aedes aegypti é a principal espécieresponsável pela transmissão do dengue. É ummosquito doméstico, antropofílico, com ativi-dade hematofágica diurna e utiliza-se prefe-rencialmente de depósitos artificiais de água

limpa para colocar os seus ovos. Estes têm umaalta capacidade de resistir à dessecação, man-tendo-se viáveis na ausência de água por até450 dias. O A. aegypti tem mostrado uma gran-de capacidade de adaptação a diferentes situa-ções ambientais consideradas desfavoráveis.Adultos já foram encontrados em altitudes ele-vadas e larvas em água poluída.

A re-emergência do dengue está diretamen-te relacionada à reinfestação do país pelo A.aegypti. Antes da epidemia de Boa Vista, Rorai-ma, em 1981/1982, o último registro da ocor-rência de dengue havia acontecido há quasesessenta anos, em 1923 (Pedro, 1923). É possí-vel que a doença possa ter passado despercebi-da, mas o fato é que nesse período a luta con-tra o mosquito foi intensa, particularmentecom a finalidade de eliminar a forma urbanada febre amarela, também transmitida por esteinseto. Nas décadas de 1950 e 1960, o Brasil emais 17 países das Américas conseguiram eli-miná-lo de seus territórios. A estratégia utiliza-da foi a de uma campanha nacional, centrali-zada, verticalizada, com estruturação militar,onde a disciplina e a hierarquia eram caracte-rísticas marcantes. Porém, a partir de uns pou-cos países que não obtiveram o mesmo êxito, oBrasil enfrentou centenas de re-infestações, asquais foram detectadas precocemente e elimi-nadas. Em 1976, foi detectada uma infestaçãoque não pôde ser eliminada, disseminando-separa outros estados como o Rio Grande do Nortee o Rio de Janeiro. Daí, o A. aegypti re-infestoutodas as Unidades da Federação e atualmentejá foi detectado em quase 4 mil municípios.

A luta contra este mosquito apresenta mui-tos pontos críticos. Não se sabe qual o índicede infestação abaixo do qual a transmissão dedengue se interrompe (Gomes, 1998). Dois ín-dices são os mais usados: o de infestação pre-dial (percentual de prédios encontrados comrecipientes contendo água e larvas em relaçãoao número total de prédios examinados) e o deBretau (percentual de recipientes encontradoscom larvas em relação ao número total de pré-dios examinados). Nenhum deles é suficiente-mente capaz de medir a intensidade de infes-tação (Gomes, 1998). No primeiro caso, um pré-dio pode ter um ou vários recipientes positivospara larvas e é considerado apenas como umprédio infestado. No caso do Índice de Bretau,não se diferencia o tipo de reservatório, conta-bilizando da mesma forma um tonel de águacom larvas e um prato de xaxim com larvas,embora o número de larvas num tonel seja emgeral, muitas vezes maior que no prato de xa-xim. Na literatura, há referência de que comum índice de infestação predial menor que 1%

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e um índice de Bretau abaixo de 5% não have-ria transmissão de dengue. Porém, Kuno relataque houve transmissão de dengue em Cinga-pura com índice de Bretau abaixo de 5% (Kuno,1995). Portanto, baixos índices de infestaçãopelo A. aegypti reduzem o risco de transmissãode dengue, porém não o eliminam. Há ainda anecessidade de manter esses índices baixos, oque exige uma vigilância entomológica perma-nente, atividade essa intensiva de mão-de-obrae que, com a redução da incidência da doença,perde, com o passar dos anos, o seu apelo polí-tico e, por conseqüência, recursos financeiros,materiais e humanos, em favor de outras prio-ridades em saúde.

Outro vetor transmissor de dengue no Su-deste Asiático, existente no Brasil desde 1986, éo Aedes albopictus, até agora não encontradonaturalmente infectado no país. Possui uma va-lência ecológica bem mais ampla que o A. ae-gypti, sendo encontrado também em ambientesilvestre, não passível portanto de eliminação.É um vetor secundário, uma vez que não émuito doméstico e nem muito antropofílico.Assim, mesmo que o A. aegypti seja eliminado,ainda existe, mesmo que reduzido, o risco detransmissão de dengue pelo A. albopictus.

Por que o A. aegypti se multiplica e se disse-mina tanto nos dias atuais? A sua proliferaçãonas Américas, e em particular no Brasil, temmúltiplos condicionantes. O fluxo rural-urba-no intenso nos últimos trinta anos, resultounuma concentração populacional muito eleva-da em médias e grandes cidades. Mais de 80%da população brasileira vive hoje em área ur-bana. As cidades, pressionadas por essa de-manda, não conseguiram oferecer condiçõessatisfatórias de habitação e de saneamento bá-sico a uma fração importante dos seus habi-tantes: em torno de 20% vivem em favelas, in-vasões, mocambos ou cortiços, onde, quandoexistem, o abastecimento de água e a coleta dedejetos, são irregulares. A necessidade de ar-mazenar água para consumo em tonéis é umfator que favorece a proliferação do mosquitovetor. O privilegiamento, pelo processo indus-trial moderno, de embalagens descartáveis,contribui para a multiplicação dos mosquitosquando estas embalagens, de plástico, alumí-nio, vidro ou isopor, não são adequadamenterecolhidas após sua utilização. O fantástico au-mento da produção de veículos automotorescontribui igualmente para a multiplicação dovetor, na medida em que aumenta o número depneus usados dispostos inadequadamente nomeio ambiente, comportando-se como reci-pientes prioritários para a postura de ovos pe-los mosquitos, e permitindo o transporte passi-

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vo de ovos, larvas e insetos adultos facilitandoa sua disseminação.

Além das facilidades de proliferação e dis-seminação do A. aegypti oferecidas pelas con-dições atuais de vida urbana, o combate aomosquito também apresenta limitações. Doponto de vista institucional, alguns aspectoscríticos podem ser detectados. As atividades devigilância sanitária em nível municipal care-cem de legislação de apoio, e/ou de práticas defiscalização, para eliminarem os criadouros domosquito em pontos considerados estratégi-cos. Estes são as borracharias, com pneus ex-postos às intempéries do tempo; os cemitérios,com seus múltiplos vasos acumulando água; osdepósitos de ferro velho a céu aberto retendoágua de chuva; os terrenos baldios não cuida-dos, com múltiplos recipientes retendo água eas caixas d’água domiciliares descobertas. Ou-tra dificuldade atual relacionada ao poder pú-blico é a ampliação e regularização do abaste-cimento de água encanada e da coleta freqüen-te do lixo, com destinação adequada, particu-larmente nas periferias das cidades. O terceirocomponente institucional crítico é a inspeçãopredial e eliminação ou tratamento de reserva-tórios potenciais ou atuais de larvas de mos-quito, e aplicação de inseticida em locais comtransmissão ativa da doença. As grandes e mé-dias cidades possuem hoje áreas de difícil aces-so aos domicílios pelos servidores públicos,por razões de segurança: tanto em bairros depopulação mais abastada, como naqueles maispobres. As inspeções são feitas durante o dia emuitos prédios encontram-se fechados, emfunção das atividades laborais de seus ocupan-tes. Dessa forma, a inspeção fica quantitativa-mente prejudicada e muitos focos de mosquitonão identificados e, portanto, não tratados. Co-mo é uma atividade intensiva de mão-de-obra,a inspeção de domicílios para levantamentodos índices de infestação e eliminação de fo-cos, exige contratação, treinamento e supervi-são de pessoal de campo, em quantidade sufi-ciente para dar cobertura abrangente dos do-micílios. Em virtude de limitações legais paracontratação de pessoal, muitos municípios têmutilizado a terceirização como meio de superaras dificuldades legais. Os contratos, em geral,são temporários e às vezes sem garantias tra-balhistas. Ora, como os servidores não perma-necem muito tempo em empregos tão instá-veis, mesmo que sejam bem treinados, nãochegam a adquirir experiência suficiente paraum trabalho de boa qualidade. A supervisão,por outro lado, é quase inexistente. Finalmen-te, o quarto elemento institucional importanteé aquele relativo à informação, educação e co-

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municação da população sobre a necessidadee as formas de reduzir os fatores domiciliaresque favorecem a multiplicação dos mosquitos.A mobilização comunitária para a adoção depráticas de redução dos vetores é de fundamen-tal importância. Muitas vezes, a população tema informação correta, porém suas práticas nãosão coerentes com o conhecimento do proble-ma. A abordagem do assunto pelos meios decomunicação e pelas escolas, deve buscar jus-tamente a mudança das práticas habituais fa-cilitadoras da proliferação do A. aegypti.

Em função da situação político-institucio-nal do Brasil, particularmente do setor saúde,não se admite mais uma estratégia de combateao mosquito nos moldes da realizada no pas-sado, por meio de uma campanha centraliza-da, verticalizada e hierarquizada. Porém, nãohá experiência no mundo de eliminação de umvetor de doença realizada de forma descentra-lizada, com direção única em cada nível de go-verno, a exemplo do preconizado pelo SistemaÚnico de Saúde brasileiro. Muito ainda precisaser feito para a aquisição de uma estratégia efe-tiva de combate ao vetor do dengue de formadescentralizada. O Brasil eliminou o Anophelesgambiae do Nordeste, no início da década de1940, com uma campanha centralizada. O êxi-to dessa campanha foi o principal motivo paraa realização da chamada campanha de erradi-cação continental do A. aegypti, na década de1950, nos mesmos moldes da campanha dogambiae (Franco, 1969).

O combate ao principal vetor do dengue en-contra atualmente um novo ponto crítico. Trata-se do problema da resistência crescente dos in-setos aos larvicidas e adulticidas de uso habitualnas atividades de controle. O mosquito já apre-sentava, há muitos anos, resistência aos inseti-cidas organoclorados. Muitos pesquisadores es-tão relatando resistência das larvas e dos adul-tos aos inseticidas organofosforados e dos adul-tos aos piretróides. Assim, o monitoramento daresistência dos mosquitos deve ser permanente,bem como a pesquisa de novos produtos inseti-cidas, eficazes e ecologicamente seguros.

As dificuldades de combater o A. aegypti sãomuito grandes nos dias de hoje. Alguns exem-plos históricos recentes precisam ser lembra-dos, entre eles o de Cuba. Após enfrentar heroi-camente a primeira epidemia de dengue he-morrágico nas Américas, em 1981, Cuba em-preendeu uma luta nacional para erradicar ovetor de seu território, em moldes campanhis-tas. Conseguiu reduzir drasticamente os índi-ces de infestação. Porém, a partir de um resí-duo mínimo de infestação, o A. aegypti nova-mente reapareceu transmitindo dengue, inclu-

sive recentemente, em fins de 2001 e início de2002. É preciso levar-se em conta que Cuba éuma ilha, com cerca de 12 milhões de habitan-tes, e que desenvolveu uma campanha extre-mamente organizada, com participação inten-sa da população e forte apoio político. Outroexemplo é Cingapura, modelo internacional decombate ao vetor do dengue, que ainda apre-senta um resíduo de infestação, insuficientepara impedir transmissão esporádica da doen-ça. Todos os 18 países das Américas que elimi-naram o A. aegypti dos seus territórios no pas-sado, estão todos novamente re-infestados.

Aspectos relativos ao controle da mortalidade

Diante de tantas dificuldades para combater omosquito e reduzir a transmissão do dengue,outros aspectos do seu controle precisam seraprimorados. O primeiro deles refere-se à redu-ção da mortalidade específica. É possível e fac-tível reduzir a letalidade por dengue hemorrá-gico a valores em torno de 1%. Nas epidemiasde Cuba e da Venezuela, esses valores foram al-cançados. No Brasil, a letalidade ainda está mui-to alta. Segundo dados da Fundação Nacionalde Saúde, do Ministério da Saúde, em 2001,houve o registro de 675 casos de forma hemor-rágica do dengue e 29 óbitos, um coeficiente deletalidade de 4,3%. Neste início de 2002, princi-palmente na cidade do Rio de Janeiro, o núme-ro de óbitos aumentou muito, em função dacirculação do sorotipo DEN-3. Ainda não setem os dados consolidados, mas os disponíveismostram uma letalidade acima dos 5%, com 29óbitos entre 460 casos de dengue hemorrágico,até o dia 4 de abril. O aspecto crítico nessa ques-tão diz respeito exclusivamente ao setor saúde.É preciso que cada cidade disponha de um pla-no estratégico de atendimento aos pacientessuspeitos de dengue, facilitando seu acessoprecoce aos serviços de saúde. Estes devemcontar com pessoal treinado nos procedimen-tos para classificar os casos, e nas condutas aserem tomadas segundo sua classificação. Co-mo estas condutas variam desde o acompa-nhamento do doente em casa até a internaçãoem unidades de terapia intensiva, é preciso or-ganizar os serviços de referência dos doentes,reservar leitos hospitalares, manter os insumosnecessários e pessoal capacitado para o aten-dimento nos diferentes níveis de complexida-de da assistência médica. Algumas cidades bra-sileiras elaboraram e puseram em prática esteplano e tiveram oportunidade de colher bonsresultados, reduzindo substancialmente a leta-

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lidade por dengue hemorrágico. Ao lado dessasmedidas, é preciso manter a população infor-mada da possibilidade de formas graves e atéletais da doença, estimulando a busca precocede assistência médica.

A prevenção de grandes epidemias

Além de reduzir a mortalidade específica pordengue, é possível reduzir as dimensões dasepidemias que têm, no Brasil, se tornado cadavez maiores e mais graves? A detecção precocee a investigação de surtos de doença febril, semconfirmação diagnóstica, em área infestada pe-lo A. aegypti, seguida de medidas de controlelocalizadas, havendo a confirmação de dengue,é a forma mais eficaz de prevenir epidemias degrandes dimensões. O aspecto crítico aqui é avigilância epidemiológica nos municípios. Essaatividade exige uma co-responsabilidade detodos os profissionais de saúde, tanto na áreade assistência médica como na de saúde públi-ca. Exige a instalação e funcionamento de la-boratórios de apoio diagnóstico e monitoraçãodos sorotipos circulantes. Exige uma respostarápida de combate ao vetor infectado, que setorna mais efetiva na medida em que a área deatuação é mais restrita. A vigilância epidemio-lógica é considerada muitas vezes uma ativida-de apenas burocrática e não desperta o interes-se, principalmente dos médicos dos serviçosde saúde. Porém, a informação é o ponto departida para desencadear ações de controle. Acapacidade dos serviços de saúde de responder,com ações efetivas de controle, à notificaçãode transmissão de dengue localizada numa áreageográfica restrita, é a forma possível de preve-nir epidemias de grandes dimensões. Quandoa doença já está ocorrendo simultaneamenteem diferentes bairros da cidade, toda a ativida-de de combate ao vetor torna-se mais difícil,quando não se transforma em uma verdadeiraguerra, em se tratando de uma cidade de gran-de ou médio porte. Faz parte ainda da vigilân-

cia epidemiológica, manter a população deuma área infestada por A. aegypti informada dadoença, de suas características clínicas e da ne-cessidade de buscar assistência médica preco-cemente se perceber os sintomas da doença.Infelizmente, é praticamente impossível, im-pedir a entrada de pessoas infectadas, em fasede transmissibilidade da doença, em áreas coma presença do vetor. Os meios atuais de trans-porte são muito rápidos e freqüentes, e podemdeslocar indivíduos portadores do vírus de lo-cais distantes, rapidamente. A identificação des-ses indivíduos para a tomada de medidas sani-tárias adequadas, é totalmente inviável pela di-ficuldade de diagnóstico rápido, pelo númeroelevado de assintomáticos ou oligossintomáti-cos e pela intensidade do tráfego de passagei-ros, quer por via aérea, quer por via terrestre.

Comentários finais

Considerando os conhecimentos científicos erecursos tecnológicos atualmente disponíveisem relação ao dengue, os objetivos do controledesta doença devem estar bem claros. É possí-vel reduzir os atuais coeficientes de letalidadepara valores em torno de 1%, organizando osistema de assistência médica aos casos sus-peitos. É possível reduzir as dimensões das epi-demias, aprimorando o sistema de vigilânciaepidemiológica, detectando mais precocemen-te os surtos da doença e respondendo mais efe-tivamente no combate ao vetor infectado, quan-do presente apenas em áreas restritas das gran-des e médias cidades brasileiras. Torna-se mui-to difícil, na presença do A. aegypti, mesmo emníveis baixos de infestação, evitar-se casos dedengue, pois a entrada do vírus, por meio deportadores, numa área infestada é praticamen-te impossível. Realisticamente, a eliminaçãodesse vetor das grandes e médias cidades pare-ce inexeqüível nos dias de hoje, considerandotoda a complexidade da vida urbana.

Referências

FRANCO, O., 1969. História da Febre Amarela no Bra-sil. Rio de Janeiro: Superintendência de Campa-nhas de Saúde Pública, Ministério da Saúde.

GOMES, A. C., 1998. Medidas dos níveis de infestaçãourbana para Aedes (Stegomyia) aegypti e Aedes(Stegomyia) albopictus em programa de vigilân-cia entomológica. Informativo Epidemiológico doSUS, 7:49-57.

KUNO, G., 1995. Review of the factors modulating den-gue transmission. Epidemiologic Review, 17:321-335.

PEDRO, A. O., 1923. Dengue em Nicteroy. Brasil-Mé-dico, 1:173-177.

TAUIL, P. L., 1998. Controle de agravos à saúde: Con-sistência entre objetivos e medidas preventivas.Informativo Epidemiológico do SUS, 7:55-58.

Recebido em 8 de abril de 2002Aprovado em 10 de abril de 2002