(9) rosa luxemburg ou o preço da liberdade

144
JÖRN SCHÜTRUMPF (org.) ROSA LUXEMBURG OU O PREçO DA LIBERDADE

Upload: leonardo-vilela

Post on 25-Nov-2015

11 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

  • Jrn Schtrumpf (org.)

    R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

  • Jrn Schtrumpf (org.)

    R o s a L u x e m b u R g o uo p R e o d a L i b e R d a d e

    Traduo: isabel maria Loureiro

    1a edio

    ediToRa expResso popuLaR

    Fundao Rosa LuxembuRg. anLise sociaL e FoRmao poLTica

    so paulo - 2006

  • Para Lovis e seus amigos

    A todos os amigos e colegas que se deram ao trabalho de uma primeira leitura, o

    organizador agradece as crticas e sugestes.

  • Copyright 2006, by editora expresso popularTtulo original: Rosa Luxemburg oder: Der Preis der Freiheit

    Reviso: Geraldo Martins de Azevedo Filho e Miguel Cavalcanti Yoshidaprojeto grfico diagramao e capa: ZAP Design. Foto da capa: Instituto Rosa-Luxemburg-stiftungimpresso e acabamento: Bartira

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorizao da editora.

    1 edio: setembro de 20061 reimpresso: abril de 2009

    ediToRa expResso popuLaRRua abolio, 197 - bela VistaCep 01319-010 so paulo-spFone/Fax: (11) [email protected]

  • sumrio

    pReFcio ..............................................................................................................9

    enTRe o amoR e a cLeRa: Rosa LuxembuRg

    advertncia para o futuro .......................................................................................15

    Judia, polonesa, alem revolucionria ...................................................................17

    do marxismo a marx ..............................................................................................22

    entre socialdemocratas e bolcheviques .....................................................................42

    na revoluo errada ..............................................................................................50

    ultrajada e glorificada mas tambm necessria? ...................................................52

    a pRoFessoRa ....................................................................................................61

    Rosa LuxembuRg: no aLbeRgue ..............................................................63

    Rosa LuxembuRg: Tenho menos diFicuLdade em

    imaginaR Pogroms conTRa Judeus na aLemanha...

    uma carta da priso a sonia Liebknecht ..................................................................73

    ... sempRe um seR humano ........................................................................83

    Rosa LuxembuRg: a RevoLuo Russa .................................................85

    uma vida cuRTa ...........................................................................................127

    daTas escoLhidas .......................................................................................129

    dados biogRFicos ...................................................................................133

  • pReFcio

    tima a iniciativa de isabel Loureiro e da Fundao Rosa Lu-xemburg de traduzir para o portugus este livrinho, que contm 3 documentos preciosos da revolucionria judia/polonesa/alem, alm de uma bela introduo de Jrn schtrumpf nome impro-nuncivel no brasil, mas no faz mal que apresenta os principais momentos da vida e obra de Rosa Luxemburg, e interessantes comentrios sobre sua atualidade; entre parnteses, s discordo de suas crticas opo revolucionria de Rosa Luxemburg o livrinho tambm contm opinies de diversos amigos, discpulos ou adversrios. uma delas, do comunista dissidente alemo Walter Jens, me parece muito justa: a humanidade de nossa sociedade ser medida pelo grau em que se honra a herana de Rosa Lu-xemburg.

    o primeiro texto de Rosa Luxemburg, no albergue, de 1912, uma maravilhosa ilustrao de seu talento literrio como polemista, colocando sua ironia acerba e seu brilhante sarcasmo a servio do protesto contra a barbrie capitalista. alm do mais um escrito de uma incrvel atualidade no brasil de hoje: basta substituir berlim por so paulo, Karl melchior por pedro da silva, e o imperador guilherme ii pelo governador do estado mui-tas coisas mudaram no mundo desde 1912, menos a lucidez do diagnstico da dra. Luxemburg: o micrbio que matou os pobres do asilo se chama ordem social capitalista.

    o segundo documento uma carta da priso, de dezembro de 1917, sua amiga sonia Liebknecht. as cartas de Rosa Luxemburg, que testemunham seu carter ntegro, sua ternura e sua sensibilida-

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    10

    de tica, so um aspecto essencial de sua obra. Lembro-me de que o primeiro escrito dela que conheci foi uma velha edio das Cartas da priso, de meados dos anos de 1920, que minha me trouxe de viena quando emigrou para o brasil: toda uma gerao de jovens de esquerda na europa se educou lendo essas cartas. aquela que aqui se publica tem tambm uma dimenso proftica: as prximas perseguies contras os judeus no viro mais da Rssia, mas da alemanha, escrevia ela; claro, pensava em pogroms, massacres locais, no podia imaginar o extermnio em escala industrial.

    o terceiro escrito a famosa brochura sobre a Revoluo Rus-sa, escrita na priso em 1918; sem deixar de se solidarizar com os revolucionrios russos, ela formula sua crtica, radical, incisiva e profundamente lcida aos erros dos dirigentes bolcheviques: no pode haver socialismo, insistia Rosa Luxemburg, sem liberdade de expresso e de organizao, democracia, sufrgio universal. Lembro-me ainda do entusiasmo, do fervor mesmo com que la-mos esse precioso escrito, quando participei, por volta de 1956, em so paulo, da fundao de um pequeno grupo luxembur-guista, junto com amigos e companheiros de grande valor, como paulo singer, os irmos eder e emir sader, mauricio Tragtenberg, herminio sachetta, os advogados Renato caldas e Luis carvalho pinto. nosso local, na avenida brigadeiro Lus antonio, tinha dois metros quadrados, mas era decorado por um belo retrato de nossa inspiradora. estou convencido de que essa brochura de 1918 um dos textos indispensveis no s para entender o passado, mas tambm e sobretudo para uma refundao do socialismo (ou do comunismo) no sculo 21.

    claro, existem muitos outros escritos importantes de Rosa Luxemburg, sobre o internacionalismo, a relao entre reforma e revoluo, a acumulao do capital, o comunismo primitivo, ou a greve de massas. gostaria de lembrar apenas um, o folheto sobre A crise da socialdemocracia, escrito na priso em 1915 e assinado com o pseudnimo Junius. ali que aparece uma frmula cru-

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    11

    cial para a concepo marxista da histria: socialismo ou barbrie. isto : a histria um processo aberto, em que o assim chamado fator subjetivo conscincia, organizao, iniciativa dos opri-midos torna-se decisivo. no se trata mais de esperar que o fruto amadurea, segundo as leis naturais da economia, mas de agir antes que seja tarde demais, antes que a barbrie triunfe. com esse termo, Rosa Luxemburg no se referia a um passado tribal ou primitivo, mas s formas modernas da barbrie, como a prpria guerra mundial, muito pior, em sua desumanidade mortfera, do que as prticas guerreiras dos conquistadores brbaros do imprio Romano.

    no por acaso Rosa Luxemburg , como lembra o organizador deste volume, junto com che guevara e antonio gramsci (eu acrescentaria Leon Trotsky), uma das poucas figuras do movimento socialista/comunista do sculo 20 que ainda sobrevivem na cons-cincia e nas lutas do novo sculo que comea. seu pensamento, associando inseparavelmente socialismo e liberdade, democracia e revoluo, interessar tambm aqui no brasil a todos aqueles obstinados que no se converteram religio neoliberal, a todos aqueles teimosos que ainda acreditam que vale a pena lutar por um outro mundo. Que a fora de Rosa Luxemburg esteja com eles!

    michael Lwy

    paris, 19 de junho de 2006

  • o comunismo ... que o diabo carregue a sua prtica, mas que deus o conserve como

    constante ameaa sobre a cabea daqueles que possuem propriedades ...Que deus

    o conserve para que essa corja, a quem a insolncia faz perder a cabea, no se torne ainda mais insolente, para que a sociedade

    dos nicos que tm direito ao prazer ... pelo menos tambm v para a cama com

    pesadelos! para que ao menos percam a vontade de pregar moral s suas vtimas e a

    disposio de fazer piadas sobre elas.Karl Kraus, 1920

  • naquela poca [janeiro de 1919] participei de um comcio no qual Karl Liebknecht

    e Rosa Luxemburg falaram. Fiquei com a impresso de que eram os lderes intelectuais

    da revoluo e decidi mandar mat-los. por ordem minha os dois foram capturados. era

    preciso tomar a deciso de rejeitar o ponto de vista do direito ... a deciso de eliminar os dois no foi fcil para mim ... ademais,

    tambm defendo a idia de que essa deciso, inclusive do ponto de vista moral-teolgico,

    totalmente justificvel. capito Waldemar pabst, 1962

  • Advertncia para o futuro

    Liberdade sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente

    a esquerda poltica s raras vezes soube apresentar suas idias abstratas de liberdade e emancipao, tanto do indivduo quanto da sociedade, de modo que fossem compreensveis e, sobretudo, atraentes para as pessoas menos politizadas. Freqentemente, a esquerda poltica procurou compensar essa lacuna evocando, como testemunho de suas prprias boas intenes, os que, num passado remoto, combateram pela liberdade. eram lembrados spartakus,* os irmos graco, Thomas mnzer ou Tommaso campanella, Jacques Roux, graco babeuf, charles Fourier ou Robert owen, Friedrich engels, mikhail bakunin, Ferdinand Lassalle ou piotr Kropotkin. mais tarde foram igualmente escolhidos contempo-rneos: august bebel e clara Zetkin, vladimir ilich Lenin e au-gusto sandino, Karl Liebknecht, Leon Trotsky, Josef stalin e mao Tse-tung, patrice Lumumba, ho chi minh e Frantz Fanon... mas nas manifestaes que ocorrem hoje em dia em qualquer lugar do mundo, v-se que eles j no aparecem com tanto destaque.

    com algumas excees. um deles, quase sempre includo, que paira acima de tudo e por isso se esquece freqentemente de mencio nar, um judeu alemo da cidade de Trier: Karl marx. a seu lado ficam somente as imagens de 3 pessoas mostradas por

    enTRe o amoR e a cLeRa: Rosa LuxembuRg

    * os dados biogrficos da maioria das pessoas mencionadas encontram-se no apndice.

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    16

    quase toda parte: a de uma judia polonesa, bestialmente assassi-nada na alemanha; a de um argentino que em 1967 na bolvia caiu nas garras de seus assassinos; e a de um italiano que depois de muitos anos de crcere foi libertado pelos fascistas em 1937, para morrer: Rosa Luxemburg, ernesto che guevara e antonio gramsci. Todos os trs coisa rara mantiveram-se fiis unidade entre palavra e ao. Todos os trs tambm se mantiveram fiis ao pensamento independente, que no se submetia a nenhuma doutrina, a nenhum aparelho. e todos os trs, por suas convices, pagaram com a vida. Foram levados morte no por adversrios dentro do prprio campo, e sim pelos do campo inimigo, o que no sculo 20 no foi absolutamente normal.

    alm disso, Rosa Luxemburg e antonio gramsci ainda tm outra coisa em comum: nunca se encontraram numa situao em que precisassem exercer o poder de estado, nem manchar o nome participando de um regime ditatorial ou mesmo totalitrio. a socialde mocrata e co-fundadora do partido comunista alemo Rosa Luxemburg escapou da ascenso de stalin; em janeiro de 1919, foi derrubada a coronhadas e por fim levou um tiro pelas costas. des-de 1928, o socialdemocrata e co-fundador do partido comunista italiano antonio gramsci ficou encarcerado na terra natal at que a doena o levou morte. somente ernesto che guevara foi, por um breve perodo, uma liderana poltica no governo da cuba revolucio-nria, mas ali o guerrilheiro no agentou por muito tempo.

    ernesto che guevara at hoje d asas imaginao dos jovens; faz dcadas que antonio gramsci impressiona sobretudo os in-telectuais; no entanto, de Rosa Luxemburg, a mais multifactica dos trs, a maio ria conhece apenas o nome e o destino, no o pensamento e a obra.

    as linhas a seguir visam, em certa medida, remediar essa situa o. Queremos despertar o interesse por Rosa Luxemburg e sua obra, por uma das pessoas mais extraordinrias da esquerda europia, uma mulher que recusava privilgios pelo fato de ser mu-

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    17

    lher, pois sabia que esse tipo de comportamento s visava legitimar a recusa da igualdade de direitos, uma pensadora que aspirava igualdade com liberdade e solidariedade sem qualquer relao de subordinao entre esses valores.

    o sculo 20 carregado de crimes e assassinatos, traies e tor-turas, aflige como um pesadelo a esquerda poltica. ela s poder se libertar se conseguir reencontrar as virtudes de outrora aquelas cujo sentido foi usurpado nos pores da tortura e nos congressos partidrios: a honestidade perante as prprias aes, no passado e no presente; a sinceridade do prprio pensamento, mesmo quando incmoda; e tambm a lealdade, inclusive com o adversrio fraudes podem construir ditaduras, mas no encorajam a emancipar-se da explorao e da opresso. para tudo isso que foi reprimido durante dcadas existe o nome de uma mulher: Rosa Luxemburg.

    Judia, polonesa, alem revolucionria

    sua humanidade estava profundamente enraizada no humanismo de pensadores anteriores que haviam influenciado permanentemente a cultura

    europia. Ao investigar a histria, a literatura e a arte de povos e naes de outros continentes, ela obteve ... inspirao. sua determinao ao agir

    e sua capacidade de compreender analiticamente novos desenvolvimentos e fenmenos sociais e de responder a novas perguntas de maneira no dog-

    mtica desenvolveram-se medida que aumentavam suas experincias no movimento operrio organizado em torno da socialdemocracia.

    annelies Laschitza

    durante a Revoluo Russa de 1905-1907, Rosa Luxemburg, que fora s pressas da alemanha para a sua polnia natal, caiu, em 1906, nas garras da polcia de varsvia. naquela poca, a polnia no era um estado independente, e sim repartido entre os trs imprios da Rssia, da alemanha prussiana e da ustria. varsvia, a capital da polnia, pertencia ao gigantesco imprio russo, onde o regime dos tsares, com sua polcia secreta, sua burocracia corrupta e terror policial se mantinha com dificuldade no poder. nas condies do tsarismo uma priso por motivos polticos significava o maior perigo

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    18

    para a integridade fsica e a vida. por essa razo, os amigos poloneses mais ntimos de Rosa Luxemburg no s coletaram dinheiro para a fiana e o suborno de um alto oficial, mas tambm fizeram circular a ameaa de que a vida de altos funcionrios russos correria perigo se um nico de seus cabelos fosse tocado. pouco tempo depois, foi libertada viajou para a Finlndia que naquela poca tambm per-tencia ao imprio russo, e dali escapou para a alemanha, o centro de sua vida. nunca voltou a rever sua terra natal na polnia russa.

    durante muitos anos, Rosa Luxemburg levou uma dupla vida poltica: era membro do partido social-democrata alemo, o spd, e co-fundadora da social-democracia do Reino da polnia e Litunia, o sdKpiL hoje quase esquecido de cuja existncia praticamente ningum sabia algo preciso na socialdemocracia ale-m. chegou alemanha depois de uma estada na sua, na poca o pas mais livre do mundo, onde at as mulheres podiam entrar na universidade. Rosa Luxemburg apresentou-se s autoridades alems como Rosalia Lbeck. por meio de um casamento de fachada com um alemo filho de emigrantes, que durou de 1898 at 1903, a economista de 27 anos, com um doutorado recm-obtido em Zurique em 1898, adquiriu a cidadania alem.

    na polnia russa, a pessoas como ela estava reservado o desterro na sibria, ao passo que, na alemanha, atuava legalmente, desde 1890, o maior de todos os partidos operrios socialdemocratas, que, entre outras coisas, podia recordar a luta ilegal de 12 anos contra sua proibio sob a famigerada lei contra os socialistas,* alm de muitos

    * Lei contra os socialistas: Lei contra as aspiraes da socialdemocracia, que representam um peri-go pblico (1878); por iniciativa de bismarck, proibio da socialdemocracia, de sua imprensa e literatura; somente os mandatos no Reichstag [parlamento federal] permaneceram intocados. ao terror judicial (cerca de mil anos de pena de priso no total para todos os condenados) bismarck acrescentou reformas sociais (po doce e chicote). mas como a socialdemocracia era a expresso poltica do movimento operrio e a lei contra os socialistas era a autoconscincia do operariado, fortalecendo assim a socialdemocracia em vez de enfraquec-la, a lei no foi prorrogada em 1890. o spd tornou-se a seguir, no plano internacional, o partido socialista mais forte e influente, um modelo para os partidos de outros pases.

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    19

    triunfos eleitorais. o que podia ser mais atraente para uma socialista polonesa do que se mudar para a alemanha imperial prussiana que, em suas regies do Leste, dispunha de territrio polons anexado? Tanto mais que dominava melhor a lngua alem falada e escrita que a maioria dos alemes? isso para no falar das outras lnguas que conhecia: polons, russo, francs, ingls e italiano.

    no spd, a jovem tornou-se rapidamente conhecida. pertencia ala esquerda do partido e rapidamente tornou-se sua porta-voz. no movimento operrio alemo, Rosa Luxemburg era amada ou odiada, e no fazia a vida fcil nem sequer a seus admiradores. mas sua ptria poltica continuou sendo o sdKpiL. esse pequeno partido se havia separado em 1893 do partido socialista polons, pps, fundado um ano antes; no comeo, chamava-se social-democracia do Reino da polnia (sdKp); mais tarde, quando a esquerda lituana entrou no partido, sob a direo do aristocrata polons Feliks dzierzynski, passou a se chamar social-democracia do Reino da polnia e Litu-nia. o conflito com a maioria dentro do pps havia comeado com o debate a respeito de um estado polons independente. o crculo de amigos a que pertencia Rosa Luxemburg se opunha a tal estado, pois temia a fragmentao das foras anticapitalistas. alm disso, combatia qualquer nacionalismo, inclusive o polons, porque este rejeitava emancipar-se da opresso e da explorao.

    por mais simpatia que essa atitude pudesse despertar e por mais justificado que parecesse o temor perante o nacionalismo polons, essa posio no era realista. em quase todos os estados europeus de fins do sculo 19 e comeos do sculo 20, a instigao intencio-nal do nacionalismo desembocou em chauvinismo e dio contra os outros povos. em conseqncia, a atitude de Rosa Luxemburg e de seus amigos a respeito da questo polonesa levou ao isolamento da esquerda internacionalista na polnia, isolamento de que no conseguiu se libertar at hoje. Rosa Luxemburg, passados mais de 80 anos de seu fim violento, considerada na sua polnia natal como no-pessoa.

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    20

    mas embora Rosa Luxemburg e seus amigos alis, como toda esquerda em qualquer lugar do mundo tenham fracassado no que se refere questo nacional, sua averso ao nacionalismo abriu cami-nho para que se concentrassem na questo social e em sua soluo. antes da i guerra mundial, existia na socialdemocracia europia um amplo consenso sobre a idia de que s se poderiam eliminar as injustias sociais, comuns no capitalismo, com a abolio do capita-lismo. porm, na poltica prtica, os dirigentes da socialdemocracia europia tinham em vista o prprio fortalecimento, que acredita-vam alcanar no futuro como at ento atravs de um aumento crescente dos correligionrios: mais trabalhadores sindicalizados, mais inscritos no partido, mais cadeiras no parlamento. a isso se acrescentava um nmero cada vez maior de organizaes de base proletrias, supostamente cada vez mais fortes das cooperativas de consumo s caixas de poupana para construo de moradias, das cerimnias laicas de crisma juvenil s funerrias administradas por comunidades religiosas independentes. Tudo isso funcionava, sobretudo, onde os trabalhadores viviam no mesmo meio social, tinham as mesmas preocupaes, os mesmos problemas. Quando se mudavam, abandonavam esse meio; o comportamento proletrio, diferentemente do pequeno-burgus, tinha algo de voltil.

    somente dois pequenos partidos compreendiam como poltica prtica algo diferente como um incessante trabalho para abolir o capitalismo. eram os bolcheviques russos* em torno de Lenin, e o

    * bolcheviques bolchevismo; mencheviques menchevismo, semimenchevismo: em 1903, no ii congresso do partido operrio social-democrata Russo (sdapR), os partidrios de Lenin e de seu jornal Iskra (A Centelha), a favor de um partido de novo tipo de revolu-cionrios profissionais, rigidamente organizado e centralizado, conseguiram a maioria (em russo, bolschinstwo) na eleio para o rgo dirigente do partido; as foras que queriam organizar o partido segundo padres socialdemocratas tradicionais ficaram em minoria (em russo, menschistwo). desde ento, os partidrios de Lenin chamaram-se bolcheviques, embora posteriormente, na maior parte do tempo, tivessem ficado em minoria no sdapR. em 1912, bolcheviques e mencheviques finalmente se separaram em dois partidos indepen-dentes e inimigos. enquanto em 1914 os bolcheviques se opuseram guerra, como Rosa Luxemburg e seus amigos, os mencheviques, assim como a maioria do spd, a apoiaram. na revoluo de fevereiro de 1917, quando um governo burgus substituiu o tsarismo, os

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    21

    sdKpiL em torno de Rosa Luxemburg e seus amigos. contudo, os polticos ao redor de Lenin defendiam um partido de luta, com uma organizao rgida de tipo hierrquico-militar, enquanto os lderes intelectuais do sdKpiL desejavam um partido que deveria tornar os trabalhadores capazes de agir autonomamente contra o capitalismo. porm ambos tinham a profunda convico de que o capitalismo levaria a humanidade catstrofe e portanto tinha que ser totalmente abolido. por essa razo, depois da i guerra mundial, no por acaso, muitos dirigentes, no s do partido comunista polons, mas tambm dos bolcheviques russos e do partido co-munista alemo (Kpd), no incio, foram recrutados no pequeno sdKpiL. Rosa Luxemburg e Leo Jogiches, o crebro organizador do Kpd e seu companheiro durante 15 anos, morreram em 1919 nas mos da contra-revoluo alem; outros antigos membros do sdKpiL morreram nas mos da contra-revoluo estalinista, entre eles, em 1937, toda a liderana do partido comunista polons.

    em termos organizativos, o sdKpiL era algo extraordin-rio. nele uniram-se pessoas da mesma idade, com antecedentes sociais e culturais semelhantes. muitos provinham do grupo de judeus assimilados da burguesia culta da polnia, e que fugiram para estudar no exterior; entre eles, uma certa Rza Luksenburg, jovem de pequena estatura, que nasceu em 1871 na cidadezinha de Zamosc e cresceu na metrpole de varsvia. o sdKpiL no funcionava como um partido de trabalhadores normal, e sim

    mencheviques apoiaram a represso aos bolcheviques; depois da revoluo de outubro de 1917, os bolcheviques perseguiram, de maneira cada vez mais radical, os mencheviques. bolchevismo designava a poltica dos bolcheviques; ser caracterizado como menchevique ou partidrio do menchevismo representava um estigma quase insupervel, que levava, no mnimo, a golpes baixos e perseguies. essa caracterizao, em pouco tempo, passou a ser empregada no s para os verdadeiros mencheviques, mas para todos que entravam em conflito com a linha dos bolcheviques. stalin, ao classificar as idias de Rosa Luxemburg como semimenchevismo (1931, ver p. 52 ss.), impossibilitou a todos os partidrios da internacional comunista (ver p. 53) uma relao positiva com ela. como deuses ao lado de stalin s restaram marx, engels e Lenin emblematicamente utilizados durante o estalinismo em todo o mundo pelos partidos fiis a moscou.

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    22

    como um peer group: um grupo de iguais, que no s perseguia um projeto poltico comum mas tambm cultivava em seu interior estreitas relaes pessoais. cada um era aceito com suas foras e fraquezas, cada um podia confiar cegamente no outro. aqui, Rosa Luxemburg estava em casa. eram essas as pessoas que em 1906 protegeram a vida de Rosa Luxemburg na priso tsarista com a ameaa do terrorismo, embora rejeitassem o terrorismo e na realidade nunca o tivessem praticado.

    Do marxismo a Marx

    Nosso marxismo dominante teme infelizmente dar asas ao pensamento como se fosse um velho tio artrtico.

    Rosa Luxemburg, 1913

    Esses marxistas profundos esqueceram o abc do socialismo.Rosa Luxemburg, 1918

    Leo Jogiches 4 anos mais velho que Rosa Luxemburg filho de uma abastada famlia judia de vilna, j tinha atrs de si anos de trabalho conspirativo na Litunia e alguns anos de priso; alm disso, havia desertado do exrcito russo. Jogiches conheceu Rosa Luxemburg como estudante de zoologia, mas levou-a rapidamente para a economia poltica e a poltica. ele no s se tornou o men-tor de Rosa Luxemburg nas questes do socialismo, mas tambm seu primeiro companheiro. Quando seu relacionamento privado, que nunca foi fcil, terminou por volta de 1906, eles continuaram estreitamente ligados, no s politicamente mesmo quando Rosa Luxemburg conseguiu um revlver para manter distncia o ex-companheiro, que ameaava mat-la. embora muito culto, Jogiches no era escritor nem terico, e sim um ativista revolucio-nrio, que no s tinha autoridade, como era autoritrio algo que especialmente na juventude lhe grangeou, junto com o respeito, algumas inimizades que duraram a vida toda. com apenas 19

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    23

    anos, Jogiches dominava o repertrio do conspirador solitrio: da agitao ilegal, passando pela produo de documentos falsos e o contrabando de pessoas em risco para o exterior, a greves que organizava sozinho. em 1887, os responsveis pelo atentado contra o tsar russo alexandre iii, em apuros, dirigiram-se ao solitrio de 20 anos pedindo-lhe que levasse para o exterior duas pessoas perseguidas o que Jogiches cumpriu de modo rotineiro. Trinta anos depois, durante a i guerra mundial, era responsvel pela organizao da luta clandestina do grupo spartakus* contra o genocdio; tambm ele foi vtima de mos assassinas, dois meses depois de Rosa Luxemburg, em maro de 1919, numa cela da priso de moabit, em berlim.

    a relao poltica entre Rosa Luxemburg e Leo Jogiches era simbitica. os estudos na universidade de Zurique e tambm nos diversos crculos de refugiados na sua fizeram de Rosa Luxem-burg, em poucos anos, uma marxista extraordinariamente culta. Logo ela era no s a terica ou seja, no pensamento daquela poca, o terico do sdKpiL, mas tambm dispunha de fato das capacidades tericas de uma pesquisadora arguta, postas prova mais tarde, em sua original teoria da acumulao (1913). contudo, ela tinha pouco interesse pela teoria em si. J no final dos estudos universitrios , escrevia e publicava muito, mas na maior parte das vezes tratava-se de jornalismo poltico destinado ao, no teoria. ela queria agir, transformar, instigar. porm, durante muitos

    * grupo spartakus: fundado em 2 de janeiro de 1915 como grupo internacional, pela iniciativa de Rosa Luxemburg e do historiador do movimento operrio Franz mehring, em protesto contra a adeso do spd guerra; pouco depois, o nome mudou para grupo spartakus, a partir das cartas de spartakus publicadas pelo grupo internacional. em virtude do trabalho de propaganda clandestino contra a guerra, os membros do grupo spartakus foram sistematicamente perseguidos e suas lideranas, Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht, postas na priso. em 9 de novembro de 1918, mudou de nome para Liga spartakus, independente no plano organizativo; o grupo spartakus, junto com os comunistas internacionais alemes, foi o embrio organizativo e poltico do partido comunista alemo, fundado na vspera do ano novo de 1918, cuja direo foi assumida pela liderana da Liga spartakus.

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    24

    anos, os principais enfoques polticos no foram determinados por ela e sim por Leo Jogiches, que muitas vezes se exprimia atravs de Rosa Luxemburg; sem ela, Jogiches, cuja lngua materna era o russo, teria permanecido freqentemente sem fala, j que lhe faltava pacincia e habilidade para se exprimir por meio da escrita e mais ainda em polons ou alemo, embora naturalmente falasse as duas lnguas.

    em Zurique, Rosa Luxemburg tornou-se marxista no incio no totalmente livre de aspectos ortodoxos. no entanto, nunca correu o risco de acabar numa torre de marfim. Foi salva por seu esprito inquieto e seu temperamento, ambos alimentados por uma avidez insacivel pela vida. em seus trabalhos escritos, descobriu cedo a forma de expresso adequada para tanto: a polmica. distncia de 100 anos, pode-se dizer que Rosa Luxemburg entrou na literatura mundial como uma de suas mais brilhantes pole-mistas. na sua poca, praticamente ningum lhe chegava aos ps. graas ao vis polmico, seus artigos, escritos na maior parte para o presente, conservaram freqentemente um frescor inacreditvel. o que Kurt Tucholsky alcanou na stira poltica do sculo 20, Rosa Luxemburg conseguiu, com mo aparentemente mais leve mas muito disciplinada, na polmica poltica.

    no de surpreender que muitos de seus adversrios a consi-derassem insuportvel e, conseqentemente, a acusassem; sobre-tudo aqueles que no eram capazes de suportar-lhe a pena afiada e, especialmente nos congressos do spd, a lngua mordaz. a vingana de alguns, no entanto, no se limitava a acus-la de ser uma mulher briguenta e procuravam humilh-la abertamente. verdade que a natureza no foi generosa com Rosa Luxemburg: um metro e cinquenta de altura, cabea desproporcional, nariz grande e um problema no quadril, que quase sempre conseguia disfarar, ofereciam aos espritos simples, que nunca faltaram na socialde-mocracia, a possibilidade de compensar sua prpria inferioridade com caoadas baratas. Rosa Luxemburg, que sem dvida sofria

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    25

    com tudo isso, se protegia na medida do possvel com a auto-ironia. ela justificava sua preferncia por empregadas altas e fortes h 100 anos as tarefas domsticas ainda exigiam o trabalho de um dia inteiro dizendo temer que os visitantes tivessem a impresso de ter chegado a uma casa de anes.

    igualmente no que se referia aos homens, preferia aqueles no s de elevada estatura intelectual, mas tambm fsica. com efeito, quanto mais ela desejava, mais era desejada. margem de uma reunio do bureau da segunda internacional* (1907) aparecia a foto de um grupo: uma radiante Rosa Luxemburg no centro, rodeada de dezenas de homens, na maioria mais velhos, uma imagem de brilho raro. os homens mais novos tambm ficavam fascinados por ela. com exceo de Leo Jogiches, todos os seus amigos eram mais novos que ela: costia Zetkin (1885-1980), filho de clara Zetkin, 14 anos; paul Levi, 12 anos; e o mdico hans diefenbach (1884-1917), que morreu durante a primeira guerra, 13 anos. em pblico antes de seu casamento de fachada, nunca se casara e no tinha filhos Rosa Luxemburg era geralmente muito reservada sobre sua vida privada. na hipcrita alemanha guilhermina uma mulher viajando sozinha era considerada indecente ainda mais quando se comportava como Rosa Luxemburg.

    a dupla moral dominante fazia que ela no exprimisse publi-camente todas as suas opinies: seja dito de passagem da senhora von stein, com todo o respeito por suas folhas de hera: que deus me castigue, mas era uma idiota. Quando goethe a mandou passear, ela se comportou como uma tagarela venenosa; continuo acreditando

    * segunda internacional: organizao internacional dos partidos e sindicatos socialistas (1889-1914), que deveria coordenar as aes polticas e econmicas entre os seus mem-bros. as resolues eram adotadas nos congressos internacionais realizados regularmente; entre os congressos, era dirigida por um bureau socialista internacional, no qual Rosa Luxemburg representava a social-democracia do Reino da polnia e Litunia (sdKpiL). no comeo da guerra mundial, as lideranas de todos os partidos traram os juramentos de paz adotados por dcadas, tornando-se defensoras da ptria que aulavam os traba-lhadores de todos os pases uns contra os outros.

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    26

    que o carter de uma mulher no se mostra quando o amor comea, e sim quando ele acaba. (carta a mathilde Jacob)

    sua relao com paul Levi, conhecida apenas em 1983, muitas dcadas depois da morte de ambos quando a famlia dele tornou pblica a correspondncia com Rosa Luxemburg , mostra o quanto era obrigada a ser discreta. Levi, pouco antes da guerra mundial, foi seu advogado no processo que sofreu por incitao desobedi-ncia em Frankfurt; em 1919 tornou-se seu sucessor na direo do Kpd. em 1914, uniu-os uma breve, porm intensa relao amorosa; a amizade e a confiana mantiveram-se at a morte dela. paul Levi salvou sua obra pstuma e editou em 1922, sob forte hostilidade, A revoluo russa, o trabalho mais citado e mais freqentemente mal interpretado de Rosa Luxemburg, com o clebre imperativo cate-grico, evidentemente usado fora de contexto: liberdade sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente.

    cultivada, segundo um de seus bigrafos, seria a palavra que caracterizaria da maneira mais precisa sua posio perante a vida. suas relaes pessoais eram to claramente ordenadas quanto suas posses: cada um tinha seu lugar fixo e somente podia aproximar-se quando convidado, e, mesmo assim, apenas um passo. mas sua relao com as pessoas no era rgida nem formal. em seu crculo mais ntimo, des-pertava uma fidelidade e um devotamento que, se ela tivesse permitido, ter-se-ia convertido numa espcie de amor. (John peter nettl)

    no confronto poltico e na crtica ao capitalismo Rosa Lu-xemburg era impiedosa. no incio limitava-se a aplicar s questes contemporneas o conhecimento marxista que havia adquirido. Ficou conhecida em 1899 com a brochura reforma social ou revo-luo?, na qual buscava ajustar contas com um dos poucos alunos pessoais de Friedrich engels, eduard bernstein. na poca da lei contra os socialistas, bernstein, da emigrao, havia dirigido a imprensa no exlio, sendo considerado uma sumidade nas questes tericas do socialismo. porm, alguns meses depois da morte de engels, comeou a renegar a interpretao terica amplamente

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    27

    difundida entre os socialistas, segundo a qual os problemas da socie dade fundada no modo de produo capitalista aumentariam sem cessar e que, conseqentemente, essa sociedade no s deveria ser combatida, mas totalmente superada. bernstein acreditava ver indcios que contradiziam essa interpretao: as oposies se enfraqueceriam em vez de se fortalecerem e, assim sendo, era pre-fervel a cooperao com a sociedade capitalista-burguesa, e no o confronto como praticado at ento.

    bernstein, no fim das contas, s dizia aquilo que pensavam muitos parlamentares socialdemocratas e sobretudo os dirigentes sindicais, embora no o admitissem publicamente. os dirigentes sindicais nunca se entusiasmaram seriamente com a idia de uma oposio fundamental, porque a seu ver, justamente em momentos de crise, como havia mostrado a lei contra os socialistas, ela punha em perigo a existncia das organizaes construdas arduamente e com isso, seu prprio poder.

    porm, mesmo naquele momento, s poucos ousavam apoiar abertamente bernstein. este, sem se dar conta das conseqncias, tinha cometido um grave sacrilgio. as reaes dos guardies do templo, em primeiro lugar do lder terico do spd, Karl Kautsky, foram evidentemente muito fortes. at o congresso do spd em 1903 ocorreu o chamado debate sobre o revisionismo* no qual Rosa Luxemburg ganhou claramente mais que um primeiro

    * debate sobre o revisionismo, polmica sobre o revisionismo (1896-1903): desencadeado a partir da srie de artigos de eduard bernstein na revista Die Neue Zeit, problemas do socia-lismo. os prprios e os transmitidos, em que caracterizava como utopismo os fundamentos tericos nos quais a socialdemocracia baseava sua poltica, exigindo sua reviso. o socialismo no comearia s depois do colapso do capitalismo, mas cresceria por meio da presso do movimento operrio no interior da sociedade capitalista-burguesa. era necessrio afastar-se de todas as iluses revolucionrias e exercer uma pura poltica evolucionria. Rosa Luxemburg, em contrapartida, defendia incisivamente uma poltica revolucionria; o congresso de dresden do spd, em 1903, adotou o seu ponto de vista e encerrou o debate. no entanto, depois de 1907, as idias de bernstein prevaleceram no essencial. nem o caminho de bernstein nem a posio revolucionria que Rosa Luxemburg defendia no debate sobre o revisionismo levaram ao socialismo; historicamente a polmica no teve vencedores. em contrapartida, pode-se ligar a isso a idia desenvolvida mais tarde por Rosa Luxemburg de uma realpolitik revolucionria.

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    28

    reconhecimento ainda que, no tocante ao contedo, ela apenas resumisse conhecidas posies do marxismo. os antagonismos no capitalismo aumentariam de tal forma que a humanidade cairia na barbrie. a tarefa do movimento operrio consistia em fazer tudo para impedir que isso acontecesse. o socialismo era a salvao em face do declnio, donde a frmula: socialismo ou barbrie.

    especialistas pensam que nenhum outro livro entusiasmou maior nmero de pessoas pelo projeto de marx de acabar com a explorao, a opresso e a guerra da comunidade humana de forma permanente do que essa obra juvenil de Rosa Luxemburg reforma social ou revoluo?. ainda hoje ela oferece, de forma estimulante, um bom panorama do marxismo originrio ou seja, daquele marxismo que ainda no havia sido transformado numa caricatura, quer pelo velho Kautsky, quer por stalin e seus adeptos.

    com efeito, o prprio marx havia rejeitado essa entidade, o marxismo, pensando ironicamente que se algo desse gnero contudo existisse, ele, Karl marx, no era marxista. Karl Kautsky, a outra autoridade nas questes tericas do socialismo ao lado de eduard bernstein, esforara-se, desde os anos de 1880, com uma srie de escritos, por popularizar e sistematizar o pensamento de Karl marx na rea de lngua alem. ao resultado disso chamou marxismo: um edifcio de dogmas, esquemas argumentativos, dedues histricas e fundamentaes cientficas. para cada nova pergunta que se apresentava, Karl Kautsky, o incansvel empre-gado do partido para questes tericas, tinha uma teoria prpria mo. Todos foram escola de Kautsky: Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburg que, com reforma social ou revoluo?, se converteu subitamente no nmero dois entre os marxistas alemes assim como milhares de marxistas esquecidos h muito tempo.

    at o debate sobre o revisionismo, Kautsky tinha sido o senhor indis cutvel de qualquer forma de interpretao. a polmica com bernstein inclusive consolidou sua posio, pois o debate sobre o revisionismo, por deciso partidria, encerrou-se a seu favor. com

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    29

    essa soluo, o comit executivo do spd, ainda que contra a sua vontade, abriu uma caixa de pandora: pela primeira vez numa grande organizao poltica com exceo da igreja catlica questes tericas e vises de mundo eram levadas do campo do debate intelectual para a poltica e a eram decididas; um abuso intelectual que pouco depois deveria se tornar um processo natural no movimento comunista.

    mas por enquanto continuava a vigorar a idia da superao do capitalismo com todas as suas conseqncias, embora o comit executivo do spd, composto pelos velhos lutadores da poca da lei contra os socialistas, j no fosse to revolucionrio, atuando pragmaticamente. alm disso, o spd conseguira algo bastante curioso: a alemanha prussiana crescentemente imperialista, com seu militarismo, seu anti-semitismo oculto, seu delrio colonialista e seu fetichismo do vesturio, havia criado uma sociedade proletria prpria, um contramundo com instituies prprias e proteo contra as inclemncias no somente da vida proletria.

    o quarto estado, como era chamado por Theodor Fontane, o romancista da poca anterior i guerra mundial o proletariado, o operariado, a classe trabalhadora, como Karl marx, entre outros, o qualificava , tinha sido metralhado pela primeira vez durante a rebelio dos teceles da silsia em 1844. Quando o jovem gerhardt hauptmann, meio sculo mais tarde, levou esse escndalo ao palco do Deutscher Theater [Teatro alemo] em berlim, o imperador renunciou a seu camarote. na alemanha prussiana da poca gui-lhermina,* produto da fracassada revoluo de 1848 e da guerra vitoriosa contra a ustria em 1866, uma alemanha construda a

    * poca guilhermina: perodo de governo do imperador alemo guilherme ii (1888-1918). caracterizado pela modernizao na economia, cincia e tcnica, pela reao no plano da poltica interna e pelo militarismo, assim como por um imperialismo e colonialismo agressivos. ponto culminante de uma cultura pretensiosa, composta de um historicismo exagerado e um teatralismo encenado publicamente. conduziu ruptura civilizacional representada pela i guerra mundial.

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    30

    partir de vrias peas em 1871 na sala dos espelhos em versalhes, aps a vitria contra uma Frana todo-poderosa durante sculos apesar de tantas convulses, o proletariado era considerado lixo.

    Foi o jovem movimento operrio alemo, influenciado pelo judeu exilado Karl marx e dirigido pelo judeu grandiloqente Ferdinand Lassalle, que lhe deu pela primeira vez autoconscincia. pessoas de origem judaica, que freqentemente haviam abandona-do a religio, representavam, antes da i guerra mundial, um papel importante no movimento proletrio alemo; o mesmo ocorreu nos primeiros anos do Kpd (o qual, no entanto, nos ltimos anos antes de sua destruio, se converteu voluntariamente e sem esforo, pelo menos no que se refere a sua bancada parlamentar, num partido livre de judeus). os desprezados na sociedade capitalista-feudal alem, aqui trabalhadores, acol filhos da burguesia culta judaica assimilada, entre eles eduard bernstein e Karl Kautsky, tinham-se encontrado e criado uma nova fora poltica. Tambm na burguesia culta tradicional muitos judeus assimilados, como albert einstein e stefan Zweig, eram bem-sucedidos, enquanto que na virada do sculo o apogeu da influncia judaica sobre as elites econmicas j h muito havia sido ultrapassado. ao no conseguirem fugir da ale-manha, eles ou seus descendentes acabaram todos em auschwitz, ou em outros campos de extermnio, caso de mathilde Jacob, a mo direita de Rosa Luxemburg, freqentemente subestimada. o cheque para comprar sua liberdade das mos dos nazistas s chegou dos estados unidos quando ela j tinha sido levada de trem para Theresienstadt.

    com o debate sobre o revisionismo, os oito membros do comit executivo do spd viam-se perante um problema difcil, do qual nem Karl Kautsky nem a muito jovem Rosa Luxemburg, recm-entrada na poltica, tinham conscincia. no entender desses oito, eduard bernstein no fundo tinha razo; no entanto, parecia-lhes perigoso desfazer-se sem maior cerimnia da teoria com a qual acreditavam manter unida a sua contra-sociedade. na parte que

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    31

    lhes cabia da sociedade alem, fortemente dividida e dotada uma viso de mundo socialista prpria, pensavam ser aqueles que em terra de cegos tinham um olho; e, de certa maneira, isso era ver-dade. por essa razo, acreditavam que o revisionismo de eduard bernstein amea ava seu projeto, um projeto extraordinariamente bem-sucedido: a cada ano maior nmero de membros no sindicato e no partido, na associao esportiva e na liga contra o lcool, na cooperativa de consumo e na associao dos livres pensadores, a cada eleio mais cadeiras no parlamento. Tudo o que parecia per-turbar esse ascenso incessante precisava ser reprimido mesmo que se tratasse de um companheiro com tantos mritos como eduard bernstein, com quem naturalmente continuavam mantendo as an-tigas relaes de amizade fora do protocolo oficial. o empate entre os guardies da organizao e os vigilantes da ideologia sempre foi tratado cuidadosamente pelos dirigentes do spd.

    Rosa Luxemburg, que no pertencia ao crculo interno do spd um crculo de homens mais velhos e de homens idosos e que, na melhor das hipteses, s podia desconfiar de algo, mas no sabia de nada, estava por cima nessa poca. o co-presidente do spd, august bebel, bom sujeito e ao mesmo tempo um ttico que queria proteger sua obra do fracasso, gostava da jovem, mas tambm a utilizava para seus fins. ela, por seu lado, estava fran-camente fascinada pelo velho e grande homem. num congresso do partido daqueles anos deixou escapar publicamente perante todos august, eu te amo.

    Quando Rosa Luxemburg, em 1906, camuf lada como a jornalista alem anna matschke, caiu na armadilha da polcia tsarista em varsvia, bebel tomou todas as providncias para lhe proteger a vida e libert-la da priso. porm, aps ser libertada, ela recusou sua oferta de apoio financeiro pessoal com recursos do comit executivo, assim como na priso recusou a tentativa de pedir ao chanceler do Reich a interveno diplomtica junto aos russos para que fosse libertada. em primeiro lugar, insistia em ser

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    32

    cidad, no sentido da Revoluo Francesa autoconsciente, ciosa de sua liberdade, o que era uma raridade na alemanha. Recusando a gratido que a obrigasse a qualquer dependncia, estava disposta a pagar um preo alto, por vezes muito alto, at mesmo alto de-mais, como pensava uma de suas amigas. Rosa Luxemburg odiava esconder-se, s se sentindo livre na luta aberta.

    ela odiava a fraqueza precisamente o que se havia difundido entre os antigos heris da poca da lei contra os socialistas. num domingo do incio de 1907, Rosa Luxemburg e sua velha amiga de stuttgart, clara Zetkin, uma decidida pioneira da emancipao feminina, foram convidadas a comer na casa da famlia de Karl Kautsky. as duas mulheres foram dar um passeio e se atrasaram. august bebel, presidente do spd, que tambm estava presente, comentou brincando que durante a espera haviam temido o pior. Rosa respondeu com bom humor que caso uma desgraa lhes acontecesse algum dia, deveriam escrever sobre suas lpides: aqui repousam os dois ltimos homens da socialdemocracia alem.

    em 1907, os estrategistas do spd sofreram seu Waterloo nas eleies para o Reichstag. eles no tinham nada de srio a contrapor campanha ultranacionalista dos partidos burgueses e monrquicos contra os camaradas sem ptria do spd. assim, o grande partido dos trabalhadores alemes, mal-acostumado com o sucesso, perdeu distritos eleitorais em massa e, conseqentemente, cadeiras, ainda que mais uma vez tivessem aumentado os votos absolutos. pela primeira vez, a contra-sociedade proletria chegava aos seus limites, os quais foram sendo mostrados de forma cada vez mais perceptvel pela sociedade guilhermina majoritria. nessa sociedade, os polticos governantes, com uma atitude cada vez mais imperialista, haviam conseguido enraizar profundamente o sonho de um lugar ao sol e, assim, o delrio nacionalista. isso tambm surtiu efeito no ambiente proletrio.

    a liderana do spd precisava entender que sua contra-socie-dade proletria se esgotava precisamente na medida em que se

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    33

    desenvolvia com sucesso. as duas sociedades s podiam coexistir uma ao lado da outra, e uma contra a outra enquanto ambas se mantivessem separadas. porm, desde os anos de 1880, a sociedade majoritria, por muito tempo hermeticamente isolada dos de bai-xo, fazia, entre as camadas proletarizadas, a propaganda cada vez mais eficaz de uma oferta de integrao ideolgica: o nacionalismo. de modo particularmente claro nas eleies de 1907, ele surgiu como um instrumento apropriado para limitar e fazer retroceder a influncia da socialdemocracia.

    no entanto, isso significava em termos estratgicos um fra-casso da ttica socialdemocrata, desenvolvida para eliminar o capitalismo. Teoria e prtica encontravam-se, assim, numa relao curio sa e tensa. Teoricamente tratava-se o resultado do debate sobre o revisionismo havia enfatizado isso mais uma vez de uma coerente superao do capitalismo, ou seja, tratava-se da ideologia socialista, da qual a liderana do spd esperava um alto poder de coeso. contudo, praticava-se o que era muito menos perigoso para as prprias organizaes o caminho dos compromissos e um parlamentarismo cada vez mais desdentado. Finalmente, a socie-dade majoritria tradicional que em algum momento se tornaria sociedade minoritria devia ser superada com os votos de uma sociedade proletria em permanente expanso e, assim, o socialismo seria introduzido de modo pacfico. no mnimo desde as eleies de 1907, a liderana do spd pressentiu que sua concepo, levada prtica, era falsa e que jamais alcanaria a maioria dos votos no conjunto da sociedade. alis, a propagada concepo terica do caminho revolucionrio no tinha importncia na prtica.

    Tratava-se de escolher entre dois cenrios: ou se empreendia uma luta ofensiva pelo socialismo como, naturalmente, exigiam Rosa Luxemburg e a esquerda com o nmero de adeptos do socialismo estagnado, inclusive diminuindo em termos estratgicos, correndo assim o risco de perder, no s a influncia sobre parte dos prprios adeptos atrada pelo nacionalismo, mas tambm, devido previsvel

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    34

    perda de influncia, de destruir o poder da organizao estabelecida. ou ento se derrubariam silenciosamente os conceitos vigentes at a e se mudava de direo sem fazer barulho. a liderana do spd escolheu a ltima opo: ela queria, enquanto tivesse fora suficiente, em vez de continuar a construir a prpria contra-sociedade, tentar integr-la na sociedade burguesa, fazendo pelo menos um esforo para compartilhar o poder. o que implicava naturalmente abando-nar o objetivo da superao do capitalismo; em vez disso, no futuro, devia-se apenas cont-lo. exteriormente quase nada mudara; em contrapartida, interiormente mudara quase tudo. essa deciso a favor da integrao estratgica sociedade guilhermina foi realizada pelo spd comeando com a aprovao dos crditos de guerra em 4 de agosto de 1914, continuou com a participao no governo, desejada pelo menos desde 1907, em 3 de outubro de 1918, e culminou com a destruio do movimento operrio, em 2 de maio de 1933.

    a esquerda socialista-internacionalista perdeu em 1907, aos olhos da liderana do spd, sua funo de garantir uma viso de mundo que unisse todos. muitos membros da esquerda, em difi-culdades com o crescente isolamento, renegaram suas convices e transformaram-se em soldados do partido, que logo estariam dispostos a qualquer trabalho sujo por quase nada. pela primeira vez, veio luz um fenmeno que at hoje se lamenta: a maior parte da esquerda no mantm pela vida afora uma poltica socialista-revolucionria, ou seja, voltada para a superao do capitalismo, mas a partir de um certo ponto reconcilia-se com a vida e apenas alega que faz poltica de esquerda.

    depois de 1907, a esquerda dentro do spd reduziu-se a alguns poucos que no aceitaram capitular. a partir de 1911, formou-se ao redor de Franz mehring e Rosa Luxemburg um esquadro dos justos ao qual, aps o comeo da guerra, tambm se uniu Karl Liebknecht, enquanto importantes membros da esquerda, como o organizador da escola do partido, heinrich schulz, se renderam definitivamente ao nacionalismo.

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    35

    o enraizamento de Rosa Luxemburg no spd, na poca dessas reorientaes secretas, j no era to forte como antes de sua viagem polnia russa revolucionria. em vista das lutas revolucionrias na Rssia, sobretudo em vista da greve de massas, ela renunciou a algumas posies marxistas ortodoxas. no fundamental mudou principalmente sua relao com a organizao proletria. segun-do o cnone marxista, uma organizao forte era considerada a pr-condio decisiva para a ao em geral, e para a ao revolu-cionria em particular. Rosa Luxemburg chegou nesse momento convico de que o sistema organizativo do spd se havia trans-formado num entrave para qualquer ao, sobretudo para a ao revolucionria. a liderana do spd via na ao um perigo crescente para a existncia das organizaes, considerando mais importante proteg-las da destruio por parte do estado policial-militar, do que agir contra a sociedade majoritria posio presente j antes de 1907, porm mais clara a partir de 1907.

    na Rssia, Rosa Luxemburg tinha vivenciado como a orga-nizao se formava a partir da ao revolucionria, a partir, por exemplo, da greve poltica de massas em suma, como a ao precedia a organizao. com a idia da greve poltica de massas na bagagem ela tinha ido, em 1906, ao congresso do spd, onde sofreu um rotundo fracasso. posteriormente, a brochura greve de massas, partido e sindicatos, que ela havia escrito especialmente para esse congresso, revelou-se como o ponto de partida terico para a autonomia da esquerda dentro do spd, embora Rosa Luxemburg tivesse com esse trabalho uma inteno totalmente oposta: ela no queria separar-se do spd e, sim ganhar o spd para a poltica revolucionria em caso de necessidade ganhar apenas a base do partido contra uma liderana cada vez mais conservadora. segundo o raciocnio poltico socialde mocrata, com sua defesa da greve po-ltica de massas, Rosa Luxemburg tinha se aventurado em terreno minado. na socialde mocracia, a defesa da greve geral e da greve poltica de massas era considerada uma manifestao aberrante de

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    36

    um movimento que devia ser combatido com todas as foras: o anarquismo. no comeo dos anos de 1870, Karl marx havia tido uma briga terrvel com mikhail bakunin, socialista russo que, durante a revoluo de 1848, estivera nas barricadas de dresden. marx acreditava que a libertao da classe operria da explorao e da opresso decorreria de leis histricas cujas causas ltimas se encontravam na economia. no bastava a vontade de mudar. para fazer poltica revolucionria era necessrio conhecer essas leis e agir de acordo com elas, quer dizer, acelerar permanentemente o avano para uma sociedade sem explorao nem opresso. bakunin, em contra partida, era um socialista que argumentava em termos morais e ticos, para quem o indivduo e sua libertao vinham em primeiro lugar. bakunin via na vontade de agir, alimentada pela conscincia das injustias gritantes produzidas pelo capitalismo, e na agitao, elementos essenciais da poltica revolucionria. os anarquistas no queriam fazer uso da greve apenas como arma nos conflitos econmicos entre capital e trabalho, como faziam os sindicatos de tendncia socialdemocrata, mas queriam sobretudo us-la na luta poltica. alguns at esperavam, com uma greve geral, derrubar todo o sistema.

    com marx e bakunin, e mais ainda com seus discpulos, que freqentemente no passaram de epgonos, enfrentaram-se irreconciliavelmente o chamado socialismo cientfico e o chama-do socialismo libertrio, tambm denominado anarquismo. se considerarmos a questo sobriamente, veremos entre ambos os lados uma srie de importantes aspectos em comum, que foram intencionalmente postos em segundo plano. em vez disso, os dois homens, que estavam ficando velhos, alimentaram ainda mais, com sua inimizade pessoal, divergncias sem dvida existentes, legando assim esquerda um cisma presente at hoje, embora totalmente absurdo. pelo menos no fundamental as duas correntes quase no se distinguiam quanto aos fins, residindo as divergncias reais na questo do caminho a seguir. aqui, pela primeira vez, comeou

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    37

    um conflito que dividiria a esquerda no sculo 20 em grupos e grupsculos cada vez menores e mais sectrios: os leninistas com suas fragmentaes, os trotskistas com mais fragmentaes ainda, os maostas ... quem quiser que complete a lista.

    cada um tem razo, j ironizava Kurt Tucholsky. cada um desses grupos pensava ser o nico que conhecia o caminho correto para sair do vale de lgrimas do capitalismo e combatia todos os outros infiis de acordo com o seguinte modelo: quanto mais prximas suas idias estiverem das nossas, tanto mais perigosas so por isso, devemos combater seus portadores da maneira mais eficaz. a esquerda europia passou boa parte do sculo 20 nessa infantilidade, enquanto o capitalismo se desenvolvia esplendida-mente, e gerava as guerras mais devastadoras.

    s os estalinistas, vestidos de marxistas-leninistas, teriam xito. os estalinistas, como no princpio chamaram a si mesmos s muito mais tarde o estalinismo se converteu num estigma meticulosamente evitado , surgiram de um grupo de jovens revolucionrios . eles se distinguiam dos velhos em torno de Lenin e de seu crculo, ao qual alis no s pertenciam velhos mas tambm muitos emigrantes mais jovens e cultivados, espe-cialmente em relao a 3 pontos: como no haviam praticamente tido experincia da emigrao, possuam, antes de mais nada, um horizonte impregnado pelas circunstncias russas semibrbaras; a luta revolucionria na Rssia no lhes dava quase tempo para uma formao intelectual sistemtica, sem falar de um trabalho terico srio; assim, sua teoria movia-se nas categorias preto-branco, amigo-inimigo. especialmente nos anos da guerra civil, aps a Revoluo de outubro, aprenderam a ser brutalmente impiedo-sos, mas os velhos, e tambm muitos contemporneos, no os levavam totalmente a srio.

    como no ocorreu a revoluo mundial, cujo comeo, para os bolcheviques, tinha sido a Revoluo de outubro, eles passaram a manobrar entre as foras de classe, fazendo crescentes concesses

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    38

    burguesia urbana e rural. a Rssia sovitica estava em vias de tornar-se um pas em desenvolvimento em direo ao capitalis-mo, e o fim do domnio bolchevique parecia apenas uma questo de tempo. a partir de 1927, stalin passou de secretrio-geral do pcus ditadura sem limites, estabelecendo um regime radical de esquerda totalitrio, no qual uma sociedade igualitria e in-capaz de qualquer forma de resistncia propagandeada como socialismo foi sistematicamente assassinada por meio do terror. o furor no fazia pausa perante ningum: camponeses, operrios, intelectuais, funcionrios...

    o pensamento de Rosa Luxemburg representava um perigo incalculvel para a dominao estalinista. o que ela abominava a ditadura de uma clique, a liderana usurpada em lugar da hegemonia fundada no consenso, a substituio do debate polti-co pelo terror policial, a burocracia como o elemento ativo mais importante na sociedade, o kitsch no lugar da cultura constitua o fundamento essencial da dominao estalinista.

    os estalinistas estabeleceram a consolidao do seu poder no centro de todas as suas reflexes e aes. para eles, a teoria con-sistia em agitao e propaganda agitprop com a funo prioritria de justificar e enfeitar a poltica em curso. em comum com o marxismo e com marx esse sistema s tinha o nome. ao contrrio, marx e com ele, Rosa Luxemburg eram perigosos para a dominao estalinista. particularmente Rosa Luxemburg, que j havia criticado incisivamente o comeo da dominao bol-chevique, precisava ser calada postumamente. em contra partida, no era possvel fazer o mesmo com marx. ele era imprescindvel para a propaganda afinal, o estalinismo apresentava-se como marxismo-leninismo, desencorajando muita gente a estudar os textos de marx. alm disso, a recepo das idias de marx, muito dispersas, no era assim to fcil; para que seu estudo colocasse em dvida o socialismo realmente existente era necessrio um trabalho sistemtico. mesmo assim, a obra de marx continuou

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    39

    sendo subversiva. Jovens que, no incio de sua atuao poltica, tinham muitas vezes sido fervorosos partidrios de stalin, aps debater seriamente os escritos de marx, foram se tornando cada vez mais crticos da situao dominante.

    no poucas pessoas, entre eles muitos intelectuais, sobretudo no exterior, viam a unio sovitica como socialista. interpreta-vam o estalinismo como inevitvel, mas como um fenmeno que no alterava a essncia do socialismo, como a nica alternativa guerra, explorao e represso engendradas pelo capitalismo. cercados pela aura da Revoluo de outubro de 1917, e depois de 1945 fortalecidos tambm pela vitria sobre o nazifascismo, os estalinistas conseguiram impressionar de tal modo macias for-as antica pitalistas que muitas dentre elas se deixaram manietar pelo menos durante algum tempo. assim sendo, as tendncias emancipadoras, como por exemplo as que Rosa Luxemburg havia perseguido, perderam evidentemente a base. no ser partidrio da unio sovitica e, ainda assim, fazer poltica socialista era, nessas condies, um desafio mais do que exigente.

    assim como, na alemanha dos anos de 1920 os nacional-socia listas tomaram emprestado o vocabulrio e as vestimentas do movimento operrio, os estalinistas se enfeitaram, a partir da Rssia, com um iderio e pretenses pelos quais qualquer pessoa que os quisesse ver transformados em realidade pagava com a li-berdade, s vezes igualmente com a vida, pelo menos nos lugares onde o estalinismo havia chegado ao poder.

    Rosa Luxemburg livrou-se de tudo isso. ela vivenciou, com toda a inocncia, somente o incio desse processo absurdo. e tambm no tentou escapar do enfrentamento entre marxistas e anarquistas um enfrentamento que adquiriu carter genocida na guerra civil espanhola (1936-1939), quando o marxismo sovitico convergiu totalmente para o estalinismo. ao contrrio, durante toda a vida, Rosa Luxemburg demarcou-se verbalmente de modo incisivo em relao ao anarquismo e na verdade tanto mais forte-

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    40

    mente quanto mais dele se aproximava. sua defesa de mais ao e menos cuidados com a organizao com sua burocracia crescente e sua pachorrenta autosuficncia e ainda mais a defesa da greve poltica de massas levaram acusao macia de que ela queria contrabandear o anarquismo para dentro da socialdemocracia e, com isso, questionar todas as conquistas obtidas.

    Rosa Luxemburg desafiou todos esses ataques, ao preo de ficar politicamente isolada durante anos. Transcorriam os anos anteriores i guerra mundial, quando seu aliado mais prximo na socialdemocracia alem, Karl Kautsky, inventava continuamente novas teorias marxistas para justificar a poltica de adaptao ao regime guilhermino praticada pelo comit executivo do spd; como conseqncia, os dois se afastaram para sempre. para Rosa Luxem-burg, o marxismo comeou a se transformar num insulto.

    apesar de ter entrado para o movimento socialdemocrata como marxista sincera, ela quase nunca se qualificou a si mesma como marxista algo que, no entanto, no era comum nos partidos da segunda internacional. na primeira dcada do novo sculo, ela havia deixado para trs muitos embora no todos, como mos-tramos dogmas do marxismo kautskista e havia encontrado seu prprio caminho para a obra de marx e a aplicao de seu mtodo. nesse campo, nenhum de seus contemporneos lhe chegava aos ps (para no falar de pessoas como Ruth Fischer, ernst Thlmann e Walter ulbricht, que depois de 1923 assumiram a direo do partido comunista de cuja fundao Rosa Luxemburg participara no ano novo de 1918). a partir de 1910, ela usava as palavras marxistas e marxismo principalmente entre aspas, e quase sempre com inteno depreciativa.

    Quando no incio da guerra mundial Karl Kautsky, usando o marxismo, se aventurou a explicar a adeso do spd poltica de unio nacional com o imprio em guerra, Rosa Luxemburg s podia dirigir sarcasmos irritados contra esse ismo: Quando a guerra explodiu, a socialdemocracia alem apressou-se em enfeitar o

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    41

    saqueio do imperialismo alemo com um escudo ideolgico tirado do quarto de despejos do marxismo, declarando que se tratava da expedio libertadora contra o tsarismo russo, desejada por nossos velhos mestres em 1848.

    o nico ismo que Rosa Luxemburg sempre aceitou era sem dvida o socialismo, que lhe bastava totalmente para o seu objeti-vo. no discurso ao congresso de fundao do partido comunista alemo, em 31 de dezembro de 1918, no qual participaram pessoas de esquerda de vrias tendncias, muitas partidrias declaradas das idias de marx, ela voltou mais uma vez ao marxismo. para no assustar ningum, diferentemente de outras vezes, no polemizou contra o marxismo em geral, mas distinguiu o marxismo oficial do marxismo verdadeiro, no falsificado, embora preferisse ou-tra referncia para o novo partido. ela no disse: voltamos ao marxismo, e sim: voltamos a marx, voltamos sua bandeira. ao declararmos hoje em nosso programa que nossa tarefa imediata no outra seno resumida em poucas palavras fazer do socialismo uma verdade e um fato, e destruir radicalmente o capitalismo, colocamo-nos no terreno em que marx e engels se encontravam em 1848 e cujos princpios nunca abandonaram.

    no sculo 20, inmeras pessoas em todo o mundo se sacrifica-ram e deram a vida pelos ideais do marxismo, isto , pela abolio de toda forma de opresso e de explorao. mas foram tradas e ma-nipuladas por polticos sem escrpulos unicamente voltados para o poder, inclusive genocidas, que com o marxismo fundamentaram e justificaram praticamente tudo: desde a afirmao, no incio dos anos de 1930, de que os socialdemocratas eram socialfascistas, at o pacto entre as duas ditaduras totalitrias na europa, passando pela conspirao de hitler e stalin contra o povo polons em 1939, para culminar na represso primavera de praga em 1968. no somente stalin, beria e molotov, mas tambm mao Tse-tung e pol pot se consideravam bons marxistas, executando suas polticas de extermnio sob a bandeira do marxismo.

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    42

    Entre socialdemocratas e bolcheviques

    rosa Luxemburg errou...; ela errou...; ela errou...; ela errou...; ela errou... mas apesar de todos os seus erros ela foi e continua sendo uma guia.

    Lenin, 1922

    ...o caminho no leva ttica revolucionria pela maioria, ele leva maioria pela da ttica revolucionria.

    Rosa Luxemburg, 1918

    Rosa Luxemburg no tratava a greve poltica de massas, como freqentemente se afirma, como uma forma de luta em si. para ela a greve poltica de massas era antes sinnimo de toda uma gama de aes, com as quais as massas proletrias se qualificavam a si mesmas na luta contra o regime econmico e poltico domi-nante, devendo, assim, emancipar-se igualmente da tutela de suas lideranas. mas Rosa Luxemburg tinha algumas iluses sobre as massas proletrias.

    por um lado, os cartistas* na inglaterra e, por outro, Karl marx na alemanha haviam acreditado, na primeira metade do sculo 19, ter finalmente encontrado no proletariado o sujeito social que a esquerda procurava h sculos, e que permitiria tornar realidade suas idias para melhorar o mundo. na socialdemocracia do final do sculo, essa interpretao continuava inquestionvel, indepen-dentemente de o sujeito ser reformador ou revolucionrio. mais tarde, no estalinismo, ela seria levada ao absurdo. por um lado, os trabalhadores que haviam ficado na produo e, mais ainda, a populao rural que, com medidas coercitivas, havia sido conver-tida em operariado como na poca inicial do capitalismo, foram despojados de seus direitos polticos e em alguns pases foram inclusive submetidos a uma explorao intensificada. por outro

    * cartistas: antigo movimento operrio britnico; tinha como programa a Peoples Charter (Carta do Povo, 1837/1838), uma proposta de constituio que previa o sufrgio universal e secreto, eleies anuais e remunerao dos deputados.

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    43

    lado, celebrava-se oficialmente um endeusamento da classe tra-balhadora que, na fase inicial, era acompanhado por uma prtica especial no momento do recrutamento de quadros dispostos a fazer qualquer coisa: eram qualificados para ser pessoas de primeira categoria e, conseqentemente, ascenderem nova classe dominan-te aqueles que pudessem demonstrar ter antecedentes puramente proletrios; de todos os outros era preciso desconfiar ainda mais ainda que muitas foras no proletrias fossem simplesmente imprescindveis.

    Tal concepo socioracista do proletariado no se encontrava em Rosa Luxemburg. no seu entender, pertencia classe trabalha-dora quem nela e com ela se engajasse contra as condies domi-nantes, no importando sua origem ou estado social. a prtica, no o status, era seu critrio. ela entendia a classe como movimento.

    no entanto, tampouco ela estava totalmente livre da crena de que o trabalhador era o escolhido. diferentemente da liderana do spd secretamente desiludida ela esperava dos trabalhadores uma afinidade quase sociogentica com uma atitude anticapitalista, se no revolucionria. no entender de Rosa Luxemburg, era tarefa da poltica despertar e libertar essa atitude por meio da prtica do movimento, por assim dizer, era tarefa da poltica dar classe o beijo para que despertasse. ela se manteve apegada a essa idia at morrer, mesmo quando mais de uma vez caiu em desespero em relao s massas proletrias, quase se arriscando a ficar louca. Quando, em 4 de agosto de 1914, a bancada do spd no Reichstag aprovou os crditos de guerra e grande parte das massas proletrias, coroada de flores, partiu para os campos de batalha vida de saques e honra, Rosa Luxemburg considerou seriamente suicidar-se, para deixar um marco e sacudir as massas. seu alter ego francs pelo menos em questes de guerra e paz , o socialista e pacifista Jean Jaurs, foi assassinado naqueles dias por fanticos franceses a favor da guerra. Tambm na Frana nada aconteceu, tambm ali as massas proletrias marcharam alegremente para o matadouro.

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    44

    no final das contas, a esquerda no foi feliz com seu sujeito revolucionrio, a classe trabalhadora, ainda que em uma perspectiva sociolgica os trabalhadores sejam o maior grupo da sociedade entre aqueles que, pelo menos temporariamente, se entusiasmaram por idias revolucionrias, ou inclusive por aes revolucionrias. no plano internacional, no comeo do sculo 20, duas tendncias foram relevantes na esquerda, segundo a forma como atuavam em relao classe operria, e ainda hoje vale a pena consider-las mais minuciosa-mente: a esquerda alem, a do crculo em torno de Rosa Luxemburg, e a esquerda russa, a dos bolcheviques em torno de Lenin.

    as duas tendncias interpretaram o trabalho de adaptao da socialdemocracia alem ento considerada modelo por muitos partidos e movimentos proletrios de outros pases, sobretudo aqueles reunidos na segunda internacional como desvio e traio dos dirigentes polticos. a idia de que a classe trabalhadora como clas-se no aspirava ao socialismo, mas que somente produzia o maior nmero de pessoas interessadas nos ideais socialistas, foi finalmente suprimida por elas. ambas as tendncias defendiam uma concepo de poltica segundo a qual a esquerda socialista-internacionalista formava a parte do proletariado politicamente mais esclarecida e, conseqentemente, seu brao poltico. e ambas as tendncias viam na conquista de uma influncia decisiva sobre a classe trabalhadora a condio para um mundo melhor. para elas o socialismo continuou sendo misso da classe trabalhadora. para ambas as tendncias era impensvel a idia de que o movimento visando o socialismo no fosse um movimento dos trabalhadores. o mrito permanente das duas tendncias foi ter mantido as idias socialistas no espao po-ltico diferentemente do spd, que no mximo s queria que elas permanecessem como um valor.

    no entanto, as duas tendncias divergiam fundamentalmente em um ponto: enquanto Lenin pensava, de acordo com Karl Kautsky, que o proletariado no podia se tornar consciente por conta prpria de que era portador do socialismo e, por isso, essa conscincia tinha

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    45

    que ser introduzida de fora, para Rosa Luxemburg o socialismo no consistia em uma teoria da qual as pessoas se apropriavam para agir de acordo com ela como se fossem os dez mandamentos. es-clarecimento por meio de tutela no s era para ela profundamente repugnante, mas tambm no final das contas contradizia o ideal libertador do socialismo. a seu ver, o proletariado devia adquirir conscincia de suas tarefas pela prtica vivida pela experincia dos prprios xitos e ainda mais das prprias derrotas e se convencer assim da alternativa entre socialismo ou barbrie.

    Rosa Luxemburg entendia a formao cultural, que tinha para ela um significado fundamental no por acaso iniciou, com Franz mehring, a escola do spd, e l dava aulas , no como um meio para introduzir a conscincia que faltava, isto , para impor alguma coisa a algum. ela entendia a formao cultural como auxlio para o auto-auxlio. para Rosa Luxemburg, a emancipao no comeava, como foi sempre o caso, apenas depois da conquista do poder (por via parla-mentar ou revolucionria), e sim no movimento. no seu entender, ela era impensvel sem a aquisio de uma formao cultural ampla.

    por isso, atribua ao partido uma funo diferente da que lhe davam, por um lado, a velha socialdemocracia alem e, por outro, os bolcheviques russos. enquanto para os primeiros o partido se transformava cada vez mais numa associao eleitoral, que devia conquistar a maior quantidade possvel de cadeiras no parlamento e que, aps a derrota eleitoral de 1907, estava disposto a fazer cada vez mais concesses ao chauvinismo e ao militarismo na alemanha, para os segundos, o partido era uma maquinaria, com a qual se devia conquistar o poder por meio de uma revoluo, a fim de eliminar todo o mal da histria anterior. no fim das contas, quanto mais xito tinham, tanto mais a relao com a classe em favor da qual atuavam era instrumental e tutelar. para Rosa Luxemburg ambas as variantes eram um horror. Lenin no lhe podia perdoar esse desvio. alguns anos aps a morte dela, ele ainda proclamou de forma jesutica um quntuplo ela errou ..., antes de deixar escapar um mas...

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    46

    na questo parlamentar, Rosa Luxemburg sentia-se prxima de Friedrich engels, que considerava o parlamento uma tribuna para a propaganda revolucionria, e nada mais. para ela a sociedade s podia se emancipar se o proletariado se emancipasse. emancipao pela prtica, por uma modificao progressiva na correlao de foras, era segundo ela o nico caminho que fazia sentido para a emancipao. no que Rosa Luxemburg desejava era central no o permanente crescimento numrico dos membros das organizaes proletrias e dos eleitores, e sim o crescimento da autoconscincia e da capacidade de ao poltica. o partido devia fazer propostas classe trabalhadora e deixar que ela decidisse, mesmo correndo o risco da rejeio, e isso tinha de ser aceito em cada caso especfico.

    um problema que Rosa Luxemburg no resolveu foi a questo da revoluo apesar de ser e talvez precisamente por ser uma revolucio-nria. Tambm aqui ela era mais forte na polmica do que na exposio de algo positivo. pelo menos num ponto ela sabia exatamente o que no queria: qualquer forma de blan quismo. Louis auguste blanqui (1805-1881), que passou a maior parte da vida na priso, havia desenvolvido a idia de uma liga secreta rigidamente organizada, que conquistaria o poder por meio de um golpe de estado e em seguida introduziria o so-cialismo. pela primeira vez, em 1904, Rosa Luxemburg havia criticado Lenin e os bolcheviques por terem tal propsito: o partido de novo tipo de Lenin, o partido bolchevique de revolucionrios profissionais, era mais um partido blanquista que um partido operrio e, quando chegasse o momento poltico oportuno, no se importaria com os interesses da classe trabalhadora. Rosa Luxemburg nem sequer podia imaginar como teria razo nesse ponto. depois de assumir o poder e diferentemente do que postulava a teoria, os bolcheviques, dbeis nume ri camente, no se apoiaram tanto na classe trabalhadora e em seu movimento, e sim num movimento de soldados revolucionrio-campons. por iniciativa de Trotsky, criaram um novo poder militar, leal a eles o exrcito vermelho e, com isso, tanto uma base social, quanto uma base de poder poltico para si mesmos. inclusive depois

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    47

    do extermnio de todo o seu comando em 1938,* esse exrcito, ao lado do aparato estalinista do partido e do estado e da polcia poltica, continuou sendo, at 1991, a base decisiva do poder bolchevique. a atual situao poltica na Rssia tambm no pode ser entendida sem esses trs elementos que aparentemente, como natural, se adaptaram nova realidade.

    a concepo revolucionria de Lenin no somente estava orien-tada para o poder, mas tambm era mecnica: com um partido de luta, numa situao revolucionria, devia ocorrer a ruptura no lugar da sociedade em que a transformao fosse mais fcil. esse ponto consistia no poder de estado, que devia ser conquistado e nunca mais devolvido. em seguida, a sociedade, com o auxlio do poder de estado, devia ser transformada a partir de cima, comeando pelas relaes de propriedade. aquilo que na teoria era dissimulado por uma suave aparncia divina produziu na prtica algo pouco divino: o socialismo realmente existente. este atravessou 3 fases: a fase revolucionria at 1927/1928, a totalitria at 1953, e a de uma ditadura burocrtica em lenta decomposio at 1989/1991. no final, caiu como uma rvore oca; as runas sociais que deixou encontram-se principalmente em seu pas natal, a Rssia, at hoje num estado deplorvel sem falar dos milhes de pessoas assassinadas durante a fase totalitria.

    Rosa Luxemburg, em contrapartida, era animada por um respei-to sagrado por toda forma de vida. a botnica e amiga dos animais detestava tudo que era mecnico; seu pensamento era orgnico. en-quanto Lenin planejava e organizava a grande ruptura, ela investigava antes as mudanas duradouras, no to facilmente reversveis quanto a tomada do poder poltico. ela no queria a tomada do poder por

    * depois que, desde 1934, stalin e seu grupo fizeram exterminar os lderes polticos do bolchevismo revolucionrio, em 1938 quase todo o comando e o corpo de oficiais do exrcito vermelho foram assassinados cerca de 20 mil homens. no total, caram vti-mas do terror estalinista mais de 10 milhes de pessoas de camponeses a professores universitrios, de revolucionrios profissionais a filhos de agentes secretos que estavam a servio do poder sovitico no exterior.

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    48

    um pequeno grupo, a dominao da maioria por uma minoria, e sim ver a classe trabalhadora amadurecer e emancipar-se, at... nesse ponto, no pde desenvolver suas idias at o fim.

    Foi precisamente no que se refere revoluo que Rosa Luxem-burg menos se libertou do marxismo tradicional. ela pensava com as categorias da Revoluo Francesa de 1789, na melhor das hip-teses, com as da comuna de paris de 1871. no conseguiu resolver a contradio entre emancipao e revoluo, entre emancipao e violncia. ela no inseria a revoluo em sua idia de emancipao como um elemento que fazia parte do conflito; nesse ponto, no conseguiu se libertar da esperana (retomando o jovem marx) de que a revoluo abriria as portas da liberdade. no fundo, Rosa Lu-xemburg no via a alternativa ao capitalismo no desenvolvimento de sua prpria idia democrtica de emancipao, e sim numa revo-luo tradicional, um erro que ela e outros dirigentes do partido comunista alemo, fundado na passagem do ano de 1918, pagaram com a vida.

    em vez de considerar de fato as revolues como locomotivas da histria universal que ao explodirem atenuam as contradies existentes e podem abrir caminhos para os processos democrticos, ela permaneceu presa idia de que a revoluo socialista, diferen-temente da revoluo burguesa, levaria a algo inteiramente dife-rente do ponto de vista qualitativo (com isso no estamos dizendo nada contra as revolues elas sempre existiro , e sim contra as esperanas de redeno atravs das revolues.). no entanto, Rosa Luxemburg isso mostra sua grandeza tinha total conscincia de que lhe faltavam respostas convincentes para vrias questes. nas suas ltimas horas de vida, esperando ser novamente presa, ela planejava se dedicar na priso a uma ampla anlise da revoluo recm-vivida.

    no teria comeado do zero, uma vez que dispunha de um qua-dro geral que lhe permitiria desenvolver sua concepo de revoluo. na teoria da acumulao ela havia procurado analisar as causas do

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    49

    imperialismo. partia da idia de que a economia capitalista requeria um crescimento permanente e, por isso, sempre precisaria submeter partes cada vez maiores do mundo no capitalista nas colnias at que no existisse mais nenhuma economia no capitalista e o capitalismo se transformasse numa catstrofe, que ela denominava barbrie. era tarefa das massas proletrias e de seu partido adiantar-se a esse fato com a transio ao socialismo. assim, apoiando-se em marx, ela formulou a alternativa, muitas vezes mal compreendida, socialismo ou barbrie.

    era evidente para Rosa Luxemburg que essa transio seria realizada por uma realpolitik revolucionria que empregasse todos os meios, inclusive as reformas, e ainda que no considerasse a revoluo como totalmente desejvel, pelo menos a considerava como muito provvel. contudo, no fim das contas, ela mesma no tinha clareza de como se comportaria numa revoluo. essa era a grande diferena em relao a Lenin, que sabia exatamente o que queria: tomar o poder na primeira ocasio favorvel, tomar todo o poder, e depois se veria o que fazer.

    e havia ainda uma outra diferena o problema da separao, em termos organizativos, em relao socialdemocracia. enquanto os bolcheviques consideravam a questo organizativa como ponto de partida de toda prtica revolucionria e atuavam de acordo com isso, Rosa Luxemburg havia tirado a concluso contrria da revoluo russa de 1905-1907. ela pensava que a esquerda devia permanecer tanto tempo quanto possvel nos grandes partidos socialdemocratas e, assim, ficar prxima da classe trabalhadora.

    por essa razo recusou-se veementemente a sair do spd aps o incio da guerra, apesar da traio do 4 de agosto de 1914. com efeito, ela formou com Franz mehring o grupo internacional, logo chamado grupo spartakus, mas o fez dentro da socialdemocracia. Quando em 1917 o spd se dividiu perante a questo da guerra ou da paz, Rosa Luxemburg e seus amigos, conservando sua autono-mia poltica, foram para o partido social-democrata independente

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    50

    (uspd). um partido prprio ela considerava prejudicial. pensava que se uma revoluo ocorresse, o movimento das massas tal como se dera na Rssia, em 1905, com os sovietes produziria as formas organizativas correspondentes. por isso, s concordou que o grupo spartakus se transformasse em Liga spartakus independente aps o incio da revoluo. o partido comunista alemo ela no estava feliz com o nome era produto dessa revoluo.

    Na revoluo errada

    rosa Luxemburg procurava, em artigos e manifestos, esclarecer o proletariado sobre o sentido da revoluo... mas quantos trabalhadores e

    quantos soldados entendiam Liebknecht e Luxemburg? A cabea dos soldados estava confusa. Liebknecht era quem tinha desejado a paz e

    gritado abaixo a guerra. Para o soldado isso era bom... Agora o homem clamava por nova guerra, a guerra dos oprimidos contra os opressores... o soldado no conseguia entender. E o que sabiam eles de Luxemburg? ...

    As massas no entendiam nenhum dos dois...Fritz heckert, 1921

    em 1913, em bockenheim, perto de Frankfurt do meno, Rosa Luxemburg havia feito um apelo aos soldados para que, em caso de guerra, se recusassem a obedecer; foi condenada a um ano de priso, que comeou a cumprir no incio de 1915, na priso feminina da rua barnim, em berlim. depois disso permaneceu pouco tempo em liberdade. at a revoluo de novembro ficou detida em priso preventiva na cidade silesiana de Wronke, e em breslau, enquanto o grupo spartakus realizava um trabalho difcil e perigoso de propaganda clandestina contra a guerra. visivelmente envelheci-da, com o cabelo quase branco, a mulher de 47 anos lanou-se revoluo no dia 8 de novembro de 1918.

    e uma vez mais contava com as massas proletrias. a direo do spd, que durante 4 anos havia apoiado a matana de milhes de traba-lhadores nos campos de batalha da guerra mundial, foi recompensada por sua lealdade no dia 3 de outubro de 1918 entrando no governo.

  • J R n s c h t R u m p f ( o R g . )

    51

    acreditava naquele momento ter finalmente alcanado seu objetivo, a repartio do poder entre a velha sociedade e a contra-sociedade proletria. por isso, quando em novembro de 1918 o movimento re-volucionrio dos soldados varreu essa repartio do poder, a direo socialdemocrata formou uma aliana com o comando destitudo das Foras armadas e salvou o militarismo para as elites alems.

    o grupo spartakus, que durante anos havia trabalhado pela revoluo, e apesar de seu abnegado trabalho contra a guerra, exercia uma influncia quando muito marginal sobre essa revoluo. ele s comeou a agir quando tudo j tinha acontecido: o imperador tinha fugido, a guerra tinha acabado, a Repblica tinha sido proclamada, a jornada de trabalho de 8 horas sido introduzida, o voto censitrio das trs classes na prssia havia desaparecido. To rpido quanto surgiu, o movimento dos soldados voltou a se desintegrar em maridos e filhos que queriam apenas uma coisa: voltar para casa.

    a esquerda em torno de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg, com o olhar fixado numa classe operria cansada, acreditando por um breve perodo de tempo que ela tivesse sido revolucionada, compreendeu tarde demais que, na sua maioria, a classe operria no s no queria uma revoluo, como tampouco podia comear algo srio com a Repblica que o movimento de soldados lhe dei-xara como herana. essa Repblica no era filha do movimento operrio. a liderana do spd, satisfeita com a repartio do poder, no havia desejado a Repblica. Tampouco o uspd, com os olhos fixados no fim da guerra. e tampouco o grupo spartakus, que pensava na revoluo anticapitalista.

    para as massas proletrias, o voto das trs classes na prssia, em termos polticos, havia sido, quando muito, um problema cuja soluo teria sido igualmente possvel numa monarquia constitucio-nal. Foi antes por descuido que os alemes perderam a monarquia de brandenburgo-prssia e os outros governantes dinsticos. paz e po, assim como uma situao poltica um pouco mais moderna, mais aberta ao mundo, era na verdade tudo o que desejavam. em

  • R o s a L u x e m b u R g o u o p R e o d a L i b e R d a d e

    52

    vez disso, obtiveram uma Repblica, condies semelhantes a uma guerra civil durante muitos anos e, no final, tambm uma inflao galopante que expropriou a classe mdia at o osso, fazendo com que nas cidades as pessoas esfomeadas esquartejassem cavalos vivos.

    era 1923, o cadver semidecomposto de Rosa Luxemburg j tinha sido enterrado h tempo em Friedrichsfelde; durante vrios meses seu corpo ficara na gua, somente pela bolsa e o medalho pde ser identificado. a primeira onda da guerra civil em janeiro de 1919 lhe havia custado a vida: quando explodiram as lutas de rua no centro de berlim, at hoje erroneamente chamadas de in-surreio spartakista, ela perante a alternativa de posicionar-se a favor ou contra uma ao desesperada se decidiu pelo apoio propagandstico, tal como Karl marx em 1871 durante a comuna de paris. porm Karl marx o fez de um abrigo seguro: ele vivia em Londres, ao passo que Rosa Luxemburg caiu nas mos de seus assassinos no bairro de Wilmersdorf. gustav noske (spd), recm-nomeado comandante-em-chefe das Foras armadas, havia dado, como se pde comprovar h alguns anos, sua beno.

    Ultrajada e glorificada mas tambm necessria?

    Eles (Parvus e rosa Luxemburg) inventaram um modelo utpico e semimenchevique, o da revoluo permanente (uma

    caricatura do modelo de revoluo de marx), atravessado por uma completa negao menchevique da poltica de

    alianas entre a classe operria e o campesinato, opondo-o ao modelo bolchevique da ditadura revolucionria-democrtica

    do proletaria