86980247 agricultura familiar camponesa na construcao do futuro

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Outubro de 2009

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  • Outubro de 2009

  • CONSELHO EDITORIALClaudia Schmitt - CPDA/UFRRJ Programa de Ps-graduao de Cincias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

    Eugnio Ferrari - CTA/ZM Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, MG Ghislaine Duque - UFCG Universidade Federal de Campina Grande; e PatacJean Marc von der Weid - AS-PTA Agricultura Familiar e AgroecologiaJos Antnio Costabeber - Emater Ass. Riograndense de Empreendimentos de Assistncia Tcnica e Extenso Rural, RS

    Maria Emlia Pacheco - Fase Federao de rgos para a Assistncia Social e Educacional, RJRomier Sousa - GTNA Grupo de Trabalho em Agroecologia na Amaznia Slvio Gomes de Almeida - AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia Tatiana Deane de S - Embrapa Empresa Brasileira de Pesquisa e Agropecuria

    EQUIPE EXECUTIVAEdio - Paulo PetersenProduo - Adriana Galvo FreireBase de subscritores - Ndia Maria Miceli de OliveiraCopidesque - Rosa L. Peralta e Glucia CruzReviso - Glucia Cruz e Sheila DunaevitsTraduo - Rosa L. Peralta e Gabriel B. FernandesFoto da capa - Luciano SilveiraProjeto grfico e diagramao - I Graficci

    Impresso - Grfica ReprosetTiragem - 10.000

    A AS-PTA estimula que os leitores circulem livremente os artigos aqui publicados. Sempre que for necessria a reproduo total ou parcial de algum desses artigos, solicitamos que a Revista Agriculturas: experincias em agroecologia seja citada como fonte.

    Apoios:PETERSEN, PAULO (org.)

    Agricultura familiar camponesa na construo do futuro / Paulo Petersen (org) - Rio de Janeiro: AS-PTA, 2009.

    168p.:il.; 24cm

    ISBN: 978-85-87116-14-7

    1- Agricultura familiar; 2- Agricultura Camponesa; 3- De-senvolvimento Rural; 4- Agroecologia; I. Petersen, Paulo. II. AS-PTA. III. Ttulo.

    CDD 338.10981

    EXPERINCIAS EM AGROECOLOGIA

    Revista Agriculturas: experincias em agroecologiaEdio Especial

    www.agriculturas.leisa.info

    Rua Candelria, n. 9, 6 andar. Centro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil 20091-904

    Telefone: 55(21) 2253-8317 Fax: 55(21)2233-8363

    E-mail: [email protected]

  • Sumrio

    Introduo ................................................................................................... 05Sete teses sobre a agricultura camponesa ............................................... 17Jan Douwe van der Ploeg

    O agricultor familiar no Brasil: um ator social da ................................... 33construo do futuroMaria de Nazareth Baudel Wanderley

    Um novo lugar para a agricultura ............................................................. 47Jean Marc von der Weid

    Construo e desafios do campo agroecolgico brasileiro .................... 67Slvio Gomes de Almeida

    A construo de uma Cincia a servio do campesinato ....................... 85 Paulo Petersen, Fbio Kessler Dal Soglio e Francisco Roberto Caporal

    Agroecologia e Economia Solidria: trajetrias, .................................. 105confluncias e desafiosCludia Job Schmitt e Daniel Tygel

    Socioambientalismo: coerncias conceituais e prticas ...................... 129entre os movimentosMarijane Vieira Lisboa

    Um olhar ecofeminista sobre as lutas por sustentabilidade ............... 139 no mundo ruralEmma Siliprandi

    A Agroecologia e os movimentos sociais do campo ............................ 153Depoimentos de Alberto Broch, Altemir Tortelli e Joo Pedro Stdile

    Publicaes .............................................................................................. 163

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    O mundo contemporneo atravessa uma crise sem precedentes. No se trata de um fenmeno conjuntural, mas do esgotamento de um projeto civilizacional que tem o seu fundamento no ato de acumular riquezas nas mos de minorias, sem considerar os limites naturais e humanos neces-srios a sua prpria reproduo. A decorrncia imediata desse projeto falido, mas ainda vigente, o alastramento, o agravamento e a interconexo de males que acom-panham a humanidade desde sempre e a instalao de uma crise sistmica global. Em face da abrangncia, profundidade e complexidade dessa crise, j se tornou lugar-co-mum a afirmao de que nos encontramos diante de uma encruzilhada histrica. De fato, a combinao de uma populao mundial crescente e cada vez mais urbanizada com a degradao acelerada dos recursos naturais e as mudanas climticas globais molda um cenrio perturbador que nos confronta com dilemas decisivos.

    Como alimentar uma populao mundial crescente? Como superar a pobreza e o desemprego estrutural? Como manter os nveis de produtividade alcanados pela agricultura industrial sem dar continuidade ao uso intensivo de combustveis fsseis e deteriorao da base biofsica que sustenta os processos produtivos da agricultura? Como construir mecanismos de adaptao dos sistemas agrcolas s j inevitveis mudanas climticas globais? Como assegurar a viabilidade da agricultura frente a mercados cada vez mais imprevisveis, competitivos e subordinados aos interesses dos setores industrial e financeiro?

    O grande desafio que se apresenta diante de questes com esse nvel de com-plexidade que o futuro j est em grande medida condicionado por decises co-locadas em prtica no passado ou que esto sendo aplicadas no presente com base em projetos e interesses de curto prazo, que esto exatamente no cerne da crise global sistmica que ronda a humanidade. Solues do tipo mais do mesmo continuam sendo propugnadas sem que as razes fundamentais que ocasionaram o atual estado de crise sejam levantadas e enfrentadas. Pelo contrrio, tais proposies nada mais fazem do que prolongar e acentuar a vigncia dos mecanismos geradores da crise, projetando-os para o futuro.

    A Histria, no entanto, j nos ensinou que a abertura de novos horizontes para a Humanidade muitas vezes vem de onde menos se espera. E parece ser exatamente essa a realidade que se desenha nossa vista:

    Introduo

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    Diante de um mundo crescentemente urbanizado, novas ruralidades apontam caminhos fecundos para a redistribuio demogrfica e a descentralizao eco-nmica com a criao de postos de trabalho digno.

    Diante de uma agricultura cada vez mais artificializada, novos mtodos de mane- jo tcnico reconectam a agricultura e a Natureza, assegurando nveis produtivos elevados e a conservao da base ambiental que d sustentao ecolgica agricultura.

    Diante da expanso desmedida de grandes fazendas monocultoras, que operam pela economia de escala, pequenas unidades de produo demonstram que a economia de escopo, viabilizada pela diversidade produtiva e pela integrao de atividades, uma estratgia consistente para conviver com ambientes econmi-cos cada vez mais errticos e opressores.

    Diante do crescimento sem precedentes dos fluxos internacionais das commodi-ties agrcolas promovido pela ordem econmica neoliberal, assistimos reemer-gncia e ao fortalecimento das cadeias curtas de comercializao e revaloriza-o dos produtos locais.

    Diante da crescente mercantilizao da agricultura a montante e a jusante e da disseminao da racionalidade do empreendedorismo capitalista no campo, o afastamento estratgico dos mercados de insumos e de produtos ressurge por meio de trocas no-monetarizadas, fundamentando a moderna economia solidria em tradicionais relaes sociais de reciprocidade.

    Esse conjunto de fenmenos que se insinua de forma quase imperceptvel para o conjunto da sociedade pode ser sintetizado pela noo de recampesinizao do mun-do rural. De fato, quando so considerados em conjunto, esses processos encontram sua coerncia nas motivaes dos camponeses de continuarem existindo e, dentro do possvel, de prosperarem num mundo que lhes cada vez mais hostil. Contrarian-do a antiga previso do inevitvel desaparecimento dos camponeses frente ao avano da agricultura industrial e do capitalismo no campo, so exatamente eles e suas orga-nizaes que se apresentam nos dias de hoje, em plena era neoliberal, como uma das mais significativas foras de resistncia ordem hegemnica da globalizao. Alm de expressarem capacidade para resistir ao poder econmico e poltico-ideolgico que nega a sua permanncia enquanto modo de vida e modo de produo, as respostas camponesas a esse mundo hostil podem tambm ser interpretadas como sinais an-tecipatrios da sociedade democrtica e sustentvel que queremos ver construda e consolidada.

    A recampesinizao, noo proposta por Jan Douwe van der Ploeg, professor da Universidade de Wageningen, Holanda, pode ser interpretada como uma forma de resistncia da agricultura familiar que se expressa como luta por autonomia na era da globalizao (feliz definio que est no ttulo da edio brasileira de seu mais recente livro ver resenha na pgina 164). No artigo elaborado para esta edio especial da Revista Agriculturas (pg. 17), o professor van der Ploeg deixa claro que, aps a moder-nizao agrcola ocorrida a partir dos anos 60 do sculo passado, j no podemos nos ater aos antigos dualismos entre o modo de produo patronal e o familiar, ou o ca-pitalista e o campons, ou ainda do grande e do pequeno produtor. A modernizao baseada nos preceitos tcnico-cientficos da Revoluo Verde introduziu mudanas substanciais nas formas de gesto tcnica e econmica dos sistemas agrcolas, tornan-

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    do esses clssicos dualismos absolutamente inapropriados para a interpretao dos fenmenos socioeconmicos do mundo rural contemporneo.

    A industrializao da agricultura induziu processos de especializao produtiva; a disseminao do empreendedorismo baseado na economia de escala; e uma forte de-pendncia da agricultura a insumos comerciais e a mercados de produtos dominados por grandes complexos agroindustriais. Essas transformaes foram determinantes para a salvao da grande propriedade patronal (antes escravocrata) que domina a paisagem rural brasileira desde os tempos coloniais, razo pela qual so atribudas ao que se convencionou denominar de modernizao conservadora.

    O chamado agronegcio a expresso atual dessa antiga agricultura patronal mo-nocultora. De fato, representa a verso mais acabada de um estilo de desenvolvimen-to orientado de fora para dentro, cujo trao mais caracterstico uma racionalidade econmica movida pelas expectativas de curto prazo para a recuperao do capital investido, em detrimento de quaisquer preocupaes com o bem-estar social e com a integridade do meio ambiente.

    Mas a lgica tcnico-econmica da modernizao tem sido assimilada tambm por parcelas significativas da agricultura familiar que perderam muito de sua natureza camponesa. Configurou-se assim um novo modo de produo: a agricultura familiar empresarial. A principal caracterstica que distingue o modo empresarial de produo do tpico modo campons est no fato de que essa estratgia de reproduo eco-nmica e social coloca a agricultura familiar em posio de permanente e crescente dependncia em relao aos mercados de insumos e de produtos. No entanto, essa nova e mais complexa realidade no pode ser interpretada como um novo dualismo que situa o modo empresarial e o modo campons em campos opostos. A agricultu-ra familiar empresarial retm o essencial da existncia camponesa, que exatamente a centralidade do trabalho na famlia, a preservao do patrimnio familiar e a busca pela otimizao das rendas. Nesse sentido, em vez da viso de plos em oposio, que induz a interpretaes empobrecedoras da atual realidade do mundo rural e a enfoques maniquestas do processo histrico, a noo de recampesinizao nos ajuda a compreender esse cenrio a partir de perspectivas mais matizadas referenciadas ao grau de campesinidade da agricultura familiar.

    No presente contexto de expanso desenfreada dos imprios alimentares (numa outra feliz definio de Ploeg), o conceito de recampesinizao pode ser apreendido por sua dimenso quantitativa o aumento do nmero de famlias camponesas, com a de-mocratizao da estrutura agrria e por sua dimenso qualitativa o fortalecimento da natureza camponesa na parcela da agricultura familiar que assimilou elementos do modo empresarial de produo em decorrncia dos processos de modernizao.

    Dessa forma, alm de situar a presena da agricultura familiar no processo hist-rico, a noo de recampesinizao evidencia que o sentido desse processo no uni-direcional, como proclamam os arautos da modernizao. Os estudos do professor van der Ploeg demonstram que os atuais processos de recampesinizao no podem em absoluto ser confundidos com um retorno ao passado. Pelo contrrio, indicam caminhos consistentes para que o futuro seja enfrentado de forma a atalharmos a en-cruzilhada civilizacional em que nos metemos. Isso porque, ao contrrio dos modos de produo capitalista e empresarial, a agricultura familiar camponesa constroi o seu progresso a partir do emprego de seu trabalho e de seus conhecimentos na valoriza-o dos potenciais ecolgicos e socioculturais locais. Assim construdo, o progresso

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    do campons contribui diretamente para o progresso da sociedade em que ele est inserido. Para usar o jargo corrente das cincias sociais, trata-se de um modo de produo multifuncional: alm da funo essencial de produzir alimentos em quanti-dade, qualidade e diversidade, ele molda estilos de desenvolvimento rural que mantm relaes positivas com os ecossistemas, criando empregos estveis e dignos, dinami-zando as economias regionais por meio da diversificao de atividades e se adaptando com flexibilidade a mudanas de contextos climticos, econmicos e socioculturais. Em suma: induz processos de desenvolvimento triplamente vencedores social, econmica e ambientalmente , dando assim concretude ao ideal de sustentabilidade.

    Mas para que essas virtualidades do modo de produo da agricultura familiar camponesa sejam efetivamente valorizadas necessrio que ela conquiste espao na sociedade em termos fsicos, econmicos e poltico-ideolgicos. A professora Maria Nazareth Baudel Wanderley, da Universidade Federal de Pernambuco, argumenta em seu artigo (pg. 33) que as condies que prevaleceram na formao do mundo rural brasileiro operaram sistematicamente no sentido de bloquear a expanso do espao do campesinato. Destaca, nesse sentido, o papel decisivo que o Estado brasileiro desempenhou historicamente em defesa da empresa agromercantil como elemento privilegiado para a ocupao dos territrios rurais e para a orientao do desenvolvi-mento rural. A modernizao da agricultura brasileira ocorrida no bojo da Revoluo Verde, a partir da dcada de 1960, foi mais uma expresso desse papel determinante do Estado. Segundo Nazareth, apesar da carga histrica de sua lgica extensiva, antisso-cial e predatria, a reafirmao do lugar central da grande propriedade ocorreu como um voto de confiana na sua capacidade de vencer suas limitaes tcnico-econmicas e adotar uma dinmica empresarial moderna.

    Ao mesmo tempo, porm, a professora chama a ateno para o fato de que essa opo no era a nica possvel naquele momento histrico. Tratava-se de uma alter-nativa deliberada e amparada mais em motivaes poltico-ideolgicas do que em argumentos de carter tcnico ou econmico. Uma das razes essenciais apontadas por ela para essa escolha foi a negao da agricultura familiar como forma de produ-o merecedora do mesmo voto de confiana dado ao patronato rural. Para legitimar a opo poltica pela grande propriedade perante a sociedade, foi necessria a criao de um conjunto de mistificaes acerca do campesinato, que passou a ser associado ao atraso e precariedade, sendo considerado, portanto, um segmento social que no condizia em nada com a ideologia do progresso ento em voga.

    De l para c, fruto da ao de movimentos sociais do campo, houve muitas mu-danas no ambiente poltico e ideolgico. A agricultura familiar hoje reconhecida pelo Estado, contando inclusive com uma lei que a define e que estabelece diretrizes para a formulao de polticas pblicas especficas (Lei n. 11.326, de 2006). Apesar desse avano no plano oficial, seguiram-se novas contradies: se verdade que nun-ca antes neste pas foram investidos tantos recursos pblicos na agricultura familiar, tambm verdade que nunca antes o grande capital agroindustrial e financeiro se apropriou tanto das riquezas geradas pelo trabalho de agricultores e agricultoras familiares e pela explorao dos ecossistemas onde eles(as) vivem e produzem. Essa aparente contradio se deve ao fato de que, mais uma vez, o modo de produo reconhecido como merecedor do apoio estatal aquele definido por Ploeg como empresarial. A agricultura camponesa permanece sendo frequentemente considera-da por parcela significativa de estudiosos do mundo rural e tomadores de decises como um resduo histrico em vias de extino.

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    Assim, a despeito das fartas evidncias da insustentabilidade da agricultura in-dustrial, ela permanece sendo incentivada pelas polticas pblicas, seja em unidades de produo capitalistas ou em unidades familiares empresariais. A insistncia nesse mo-delo nos dias de hoje, sem que uma reao social de vulto detenha sua reproduo, s pode ser explicada pela permanente reiterao de uma determinada concepo de modernidade que est entranhada no imaginrio coletivo. Se certo que a Cin-cia dotou a Humanidade de instrumentos poderosos para a produo de conheci-mento visando a compreenso e a interveno na realidade, no se pode esquecer que o desenvolvimento das teorias cientficas, como qualquer outra prtica social, fortemente condicionado pelas relaes de poder na sociedade. S assim podemos entender a emergncia das sofisticadas teorias raciais no sculo XIX, em plena era de expansionismo europeu. Nesse sentido, da mesma forma que as cincias jogam luzes sobre a realidade social, projetam sombras que conformam uma imagem do mundo que serve de amlgama ideolgico ao sistema de dominao social que legitimam.

    Um dos elementos encobertos pelas grandes sombras projetadas pelas cincias sociais sobre o mundo rural contemporneo refere-se ao modus operandi campons e suas relaes com o conjunto da sociedade. Da a relevncia de trabalhos intelec-tuais como os de van der Ploeg e Narazeth Wanderley. Ao ajudarem a interpretar os fenmenos sociais rurais por ngulos heterodoxos, essas contribuies funcionam como um poderoso instrumento de conhecimento em apoio consistncia dos pro-cessos polticos na sociedade. Como diz Nazareth, est na hora de a sociedade brasilei-ra no apenas dar um voto de confiana a esses agricultores (camponeses), mas sobretudo reconhecer sua capacidade de assumir, efetivamente, seu papel enquanto ator social, prota-gonista da construo de outra agricultura e de um outro meio rural no nosso pas.

    Somente assim, assumindo explicitamente a responsabilidade poltica de interfe-rir no devir histrico, que uma cincia comprometida com valores ticos universais poder contribuir para a construo do outro mundo possvel de que tanto se fala. As cincias esto convocadas a exercer essa postura decisiva ao iluminar a realidade atual por ngulos distintos dos propostos pelas teorias cristalizadas em dogmas que vm dificultando a visualizao de trajetrias exequveis rumo a esse outro mundo. Felizmente, mudanas nessa direo esto em curso: em vez de continuar decretando o inexorvel desaparecimento do campesinato, as cincias sociais contribuem ao en-tendimento de que os camponeses permanecem entre ns para ficar e que o mundo estaria muito pior se eles houvessem efetivamente desaparecido; em vez de conti-nuar se fiando na crescente capacidade humana de controlar a Natureza por meio do aporte intensivo de energia e insumos industriais, as cincias agrrias comeam a compreender que a agricultura a arte da co-produo entre o ser humano e a Natureza e que os camponeses so os grandes mestres dessa arte.

    **********

    A implantao de estratgias consistentes rumo a padres mais sustentveis de desenvolvimento rural no se far sem que se dissemine uma compreenso ampla das causas estruturais da insustentabilidade da agricultura moderna e, por extenso, do conjunto das sociedades contemporneas. Jean Marc von der Weid, da AS-PTA, analisa fatores essenciais subjacentes aos modernos sistemas agrcolas que, juntos, contribuem para as mltiplas crises que vivenciamos: a alimentar, a energtica, a climtica, a ambiental, a social e a econmica (pg. 47). Por se reali-

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    mentarem mutuamente, essas crises no podem ser apreendidas fora de um siste-ma complexo de relaes causais que est ancorado nos arranjos sociais, polticos, ideolgicos e financeiros atualmente hegemnicos.

    Esses arranjos foram estabelecidos para viabilizar a rpida disseminao global dos padres de produo, transformao, distribuio e consumo de alimentos domi-nados por grandes corporaes empresariais e trouxeram, como consequncia, uma profunda reorientao na multimilenar lgica de apropriao dos recursos naturais pela agricultura, sobretudo ao distanci-la dos processos ecolgicos responsveis pela reproduo da integridade ambiental dos agroecossistemas.

    A Agroecologia apresentada como um enfoque cientfico que fornece as dire-trizes conceituais e metodolgicas para a orientao de processos voltados refun-dao da agricultura na Natureza por meio da construo de analogias estruturais e funcionais entre os ecossistemas naturais e os agroecossistemas. Alm disso, o enfo-que agroecolgico visa a intensificao produtiva da agricultura em bases sustentveis por meio da integrao entre os saberes cientficos institucionalizados e a sabedoria local de domnio popular.Weid apresenta algumas evidncias empricas que se multi-plicam em todas as regies do mundo e que comprovam que a perspectiva agroeco-lgica possui vigncia histrica ao oferecer respostas consistentes para a sada dessa crise multidimensional vivenciada pelas sociedades contemporneas.

    Apesar dessas fartas evidncias, a hegemonia mundial do modelo da agricultura industrial se mantm graas obstinada resistncia a transformaes por parte da aliana de elites agrrias, agroindustriais e financeiras reunidas em torno do agro-negcio, assim como sua influncia decisiva sobre a concepo de legislaes e polticas executadas nacional e internacionalmente. De fato, sem as regulamentaes e os subsdios estatais e de organismos multilaterais que criam as condies econ-micas e institucionais necessrias para a manuteno da agricultura industrial, novos rumos para o desenvolvimento das agriculturas no mundo j teriam sido tomados em resposta aos crticos desafios socioambientais de nossos tempos. Nesse sentido, a disseminao da perspectiva agroecolgica apresenta-se como um grande empre-endimento poltico, j que interpela diretamente o sistema de poder que sustenta a insustentabilidade do agronegcio.

    Slvio Gomes de Almeida, da AS-PTA, nos apresenta um ponto de vista sobre a construo do movimento agroecolgico no Brasil, descrevendo-o como um tributo s histricas lutas dos movimentos sociais do campo (pg. 67). Tomando como referncia as mobilizaes camponesas nas dcadas de 1950 e 1960, quando o projeto de rpida industrializao e urbanizao impulsionado pelo Estado cobrava alto preo s comu-nidades rurais, o artigo explica como a crescente incorporao da perspectiva agroe-colgica pelos movimentos nos dias de hoje agrega e enriquece suas antigas bandeiras de luta, sobretudo pela democratizao da terra. Demonstra tambm que, antes de ser apropriada como bandeira de luta, a Agroecologia j vinha sendo exercitada como prtica social por meio de um amplo processo de experimentao que se capilarizou em todas as regies brasileiras com base na interao entre organizaes da agricultura familiar e entidades de assessoria proponentes desse novo enfoque para o desenvolvi-mento rural. Foi justamente o adensamento dessas experincias e a criao de espaos de intercmbio entre seus protagonistas que constituram o fator decisivo para que es-sas iniciativas inovadoras, mas ainda pouco visveis, comeassem a ganhar notoriedade. Apesar das vrias formas de manifestao dessa experimentao social, como seria de

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    se esperar em um pas com tamanha sociobiodiversidade, esses intercmbios propicia-ram a paulatina construo de identidades comuns em torno a princpios norteadores de um projeto popular e democrtico para o campo brasileiro.

    A criao da Articulao Nacional de Agroecologia (ANA), em 2002, resulta exatamente desse caldo cultural criado pela intensificao dos intercmbios entre os portadores das experincias agroecolgicas. Como diz Slvio Almeida: concebida como uma rede de redes e de organizaes, ela se estruturou e fundamenta sua vitalidade na confluncia de vontades coletivas de pavimentar os caminhos do campo agroecolgico e contribuir para que ele se amplie e se fortalea no pas.

    Por ser uma perspectiva cientfica aberta ao dilogo de saberes, a Agroecologia vai ao encontro do gnio criativo de agricultores familiares com o intuito de forta-lecer suas capacidades de inovar nos processos de gesto da base de recursos de que dispem para o processo produtivo. Com esse embasamento epistemolgico, a Agroecologia se constroi por meio da sinergia entre diferentes formas de produo de conhecimento, estabelecendo as dinmicas sociais de desenvolvimento local como dispositivo metodolgico central para a criao de ambientes de interao entre pesquisadores e agricultores.

    nesse sentido que a Agroecologia pode ser definida como uma cincia a ser-vio da recampesinizao, tal como proponho juntamente com Fbio Kessler Dal Soglio, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Francisco Roberto Caporal, da Secretaria da Agricultura Familiar do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (pg. 85). Argumentamos que, na atual conjuntura histrica, primordial a articulao das trajetrias de construo da Agroecologia nas instituies cientfico-acadmicas e nas organizaes da sociedade civil para que a perspectiva agroecolgica seja ampla e efetivamente incorporada como enfoque orientador de transformaes estruturais na agricultura brasileira. a partir desse contexto que apresentamos o sentido e os desafios da Associao Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia), instituio que integramos no momento como membros da diretoria.

    Outro elemento estratgico na promoo dessas transformaes no mundo rural disseminao da crtica ao modelo agrcola dominante. Ao mesmo tempo, essencial que essa crtica se traduza em proposies concretas para o conjunto da sociedade e ganhe crescente densidade em termos de sustentao social e poltica. Afinal, nos marcos da gesto democrtica, uma proposta transformadora com esse grau de abrangncia e profundidade s ter vigncia se for assumida como projeto de nao por amplos setores sociais. Trata-se, portanto, de um desafio de enorme envergadura, uma vez que o enfoque tcnico da agricultura industrial e a perspectiva econmica do agronegcio permanecem profundamente enraizados na conscincia coletiva como referncias nicas de progresso e de modernidade.

    Certamente, o Estado dever assumir um papel essencial na conduo dessas transies, seja no plano prtico ou das mentalidades. Entretanto, ser ilusrio aguardar pela iniciativa exclusiva do Estado, ainda mais nesse momento em que ele perdeu muito do seu poder regulador em virtude da globalizao neoliberal que deu ao processo histrico um sentido cada vez mais favorvel s corporaes transnacionais. Nesse contexto de enfraquecimento do Estado nacional como instrumento privilegiado de induo do desenvolvimento, abandona-se a ideia de um projeto nacional soberano que seja capaz de enfrentar as disfunes que esto na raiz das mazelas atuais. Em vez dessa atribuio, o Estado assume o papel de gestor do capitalismo internacional, tornando-se

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    refm das determinaes de curto prazo que, com o passar do tempo, transformam-se na essncia da poltica. Na melhor das hipteses, implantam polticas atenuadoras das tenses sociais, sem colocar em xeque os fundamentos estruturais que fazem com que as riquezas sociais sejam carreadas para engordar o capital transnacional.

    Essa nova forma de estruturao do poder nas sociedades modernas repousa na posio de vanguarda que as corporaes empresariais assumiram na conduo da inovao cientfico-tecnolgica. A dependncia tecnolgica cada vez maior imposta pelas empresas transnacionais condio essencial para a manuteno da sua fora poltica e econmica. Mas, para que essa imposio seja aceita, torna-se necessria a criao e a disseminao de valores ideolgicos que apresentam as tecnologias como indispensveis. E, assim, a dependncia tecnolgica converte-se em dependncia cul-tural, criando um crculo vicioso que leva autorreproduo do sistema hegemnico e que atrofia as capacidades inventivas locais necessrias a todo e qualquer processo de desenvolvimento endgeno.

    No entanto, essa caracterstica de reproduo do poder imperial das corpora-es transnacionais tambm pode ser seu p de barro. Como na mitologia bblica, a proposta agroecolgica seria como a pedrinha que, ao ser atirada pelo povo, destruiu os ps de barro que sustentavam o imprio babilnio. Esse potencial transformador da Agroecologia vem de duas frentes complementares: de um lado, ela se associa a uma tradio cientfica orientada reconstruo da autonomia tecnolgica e que retoma a noo da agricultura como a arte da localidade; por outro, ela se alia a movi-mentos sociais cujas bandeiras entram em confronto com a ideologia que legitima o ordenamento social e econmico excludente que prevalece na agricultura.

    Ao mobilizar agricultores, consumidores, profissionais das cincias agrrias e sociais, gestores pblicos e outros atores locais, que direta ou indiretamente incidem sobre os rumos do desenvolvimento, as redes sociais de inovao agroecolgica for-mam um movimento de disputa pelo territrio. Ao passo que a lgica empresarial do agronegcio promove a crescente desterritorializao da agricultura familiar, as redes agroecolgicas tm no territrio o seu principal elemento de identidade.

    A construo de nveis crescentes de autonomia uma ideia-chave nessas redes sociais. Alm de romper com a dependncia material, ao refundar a agricultura na natureza e na sociedade do entorno, essas dinmicas revitalizam laos de sociabilida-de e valores substantivos para a ordenao da vida social e econmica. Dessa forma a inventividade local orientada para a criao e o aprimoramento de mtodos mais eficientes de gesto tcnica dos agroecossistemas, assim como d origem a atores sociais coletivos portadores de projetos prprios de desenvolvimento que em nada tm a ver com a pura racionalidade mercantil.

    Essa fundamentao do movimento agroecolgico em valores ticos associados ao bem-estar coletivo e ao compromisso com as futuras geraes o fator essencial que vem permitindo a sua aproximao com outros movimentos sociais que militam em defesa da democratizao e da sustentabilidade da sociedade. As convergncias se expressam tanto em termos materiais, com a articulao de bandeiras de luta, quanto tericos, com a identificao de princpios e estratgias comuns. Ao mesmo tempo em que essas convergncias vm permitindo que a proposio da Agroeco-logia seja compreendida e posta em prtica por ativistas mais identificados a outros movimentos sociais, proporcionam o enriquecimento do prprio campo agroecol-gico com os aportes tericos e polticos trazidos por outras lutas sociais.

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    Por meio dessa rica construo poltica verificada na sociedade civil brasileira, vo se criando as condies materiais e simblicas para que a ordem neoliberal que sustenta o agronegcio seja confrontada na prtica. Nesta edio, apresentamos trs exemplos de como essas aproximaes vm ocorrendo e os desafios que suscitam.

    As convergncias entre o movimento agroecolgico e o campo da Economia Solidria so descritas e analisadas por Cludia Job Schmitt, do Centro de Ps-Gradu-ao em Desenvolvimento Agrcola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e por Daniel Tygel, do Frum Brasileiro de Economia Solidria (FBES) (pg. 105). Como revelam os autores, essa aproximao se d pela prpria essncia da tradio cultural camponesa de regular socialmente os mecanismos de troca (sejam eles mo-netarizados ou no) por meio de relaes de reciprocidade. A construo de cadeias curtas de comercializao, os empreendimentos associativos, a gesto de recursos coletivos (gua, sementes, terra, etc.), os mutires e os sistemas de troca-dia so alguns exemplos de dispositivos sociais que permitem que o campesinato construa uma relativa autonomia em relao ao intercmbio capitalista.

    Marijane Lisboa, da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), nos apresenta alguns dos pontos de confluncia do campo agroecolgico com o movi-mento socioambientalista (pg. 129). Aps uma breve descrio do processo consti-tutivo do movimento ambientalista no final do sculo XIX, que surge como reao aos efeitos negativos da industrializao que j se faziam sentir nas sociedades do pri-meiro mundo, a autora relata como ele foi se complexificando e assumindo diferentes nfases que correspondem a variados campos de interesse da luta social relacionada interao entre sociedade e Natureza.

    Embora desde o perodo imperial houvesse uma rica tradio de crtica ambien-tal que relacionava os efeitos devastadores dos padres de explorao agrcola com a explorao do trabalho escravo, somente nas primeiras dcadas do sculo passado que essa questo foi abordada de forma mais sistemtica. E, sendo a agricultura ao mesmo tempo uma das maiores causadoras e vtimas da degradao ambiental, pou-co a pouco as crises social e ambiental passaram a ser compreendidas como faces da mesma moeda de um estilo de desenvolvimento insustentvel, amadurecendo as condies para a emergncia do socioambientalismo.

    Presentemente esse movimento tem sido capaz de mobilizar populaes rurais tradicionais contra a violao de seus direitos territoriais promovida por grandes projetos de infraestrutura, muito frequentemente voltados para a expanso do agro-negcio. Outros temas, tais como a luta contra os transgnicos e os agrotxicos e a crtica ao projeto governamental dos agrocombustveis, tambm tm suscitado alian-as estratgicas efetivas entre o socioambientalismo e o campo agroecolgico.

    Outra dimenso essencial relacionada ao aprofundamento da democracia e construo de um projeto civilizacional mais avanado refere-se ao enfrentamento das desigualdades sociais de gnero. Emma Siliprandi, doutora em Desenvolvimento Sustentvel pela Universidade de Braslia, d uma importante contribuio a esse debate ao focar com maior especificidade a luta ecofeminista no mundo rural, em particular no universo da agricultura familiar (pg. 139).

    Com base em um conjunto de depoimentos colhidos durante sua pesquisa de doutorado, Siliprandi apresenta correlaes positivas entre processos de transio agroecolgica e o empoderamento de mulheres, seja no mbito dos ncleos familia-

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    res ou de suas comunidades e organizaes. Entretanto, chama a ateno para o fato de que essas correlaes no podem ser interpretadas como mecanismos automti-cos e intrnsecos. Os contraexemplos esto a para deixar claro que a superao da dominao masculina nas sociedades patriarcais, tambm encontrada no meio rural brasileiro, exige estratgias mltiplas voltadas para a emancipao poltica, econmi-ca e social das agricultoras. Como alerta a autora, a Agroecologia no cumprir seus propsitos de ser uma teoria para a ao emancipatria dos camponeses se tambm no se ocupar, terica e praticamente, do enfrentamento das questes da subordinao das mulheres agricultoras.

    Em seguida, reproduzimos os depoimentos de trs grandes lideranas de movi-mentos e organizaes da agricultura familiar e camponesa do Brasil colhidos espe-cialmente para esta edio: Alberto Erclio Broch, presidente da Confederao Nacio-nal dos Trabalhadores na Agricultura (Contag); Altemir Antnio Tortelli, coordenador geral da Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Regio Sul do Brasil (Fetraf-Sul); e Joo Pedro Stdile, membro da Coordenao Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Via Campesina Brasil (pg. 153).

    Pela importncia que representam como foras polticas socialmente ativas e reconhecidas e pela potencialidade que encerram para mobilizar as foras vivas do campo brasileiro, o futuro da agricultura familiar camponesa no pas depende em grande parte das opes desses movimentos e sua capacidade de traduzir em projeto poltico coletivo as estratgias de resistncia e de inovao que esto sendo constru-das autonomamente pela iniciativa dos produtores e produtoras familiares.

    Numa seo final (pg. 164), apresentamos resenhas de um pequeno conjunto de publicaes recentes sobre o tema do campesinato na formao da nacionalidade brasileira, suas formas especficas de existncia social e econmica e sua importncia atual e futura para a construo de uma sociedade mais democrtica e sustentvel.

    Os textos reunidos nesta edio convergem para a ideia de que a agricultu-ra familiar camponesa ser um elemento essencial na construo de um futuro possvel. Sua luta cotidiana pela sobrevivncia aqui encarada como a luta pela sobrevivncia desse futuro. Em vez de desaparecer diante das conjunturas cada vez mais asfixiantes, como proclamam muitos tericos e polticos, o campesinato se redefine como um ator contemporneo portador de uma fora que une o passado e o futuro da humanidade.

    Essa aposta pode ser interpretada como uma utopia irrealizvel frente ao mundo perverso que se apresenta diante de ns. Mas nesse mesmo mundo, em que o fim da histria j foi decretado, que o modo de vida e de produo campons irrompe como poderosa arma contra a descrena e o empobrecimento cultural da sociedade. Por enquanto, a agricultura familiar camponesa vivencia o paradoxo da onipresena e, ao mesmo tempo, da invisibilidade. Sua contribuio para a construo de um outro mundo possvel se apresenta ainda como um potencial no concretizado, mas j possvel vislumbrar promessas de realizao que ensejam o encontro entre o mundo idealizado e o mundo real.

    Paulo PetersenDiretor-Executivo da AS-PTA

    [email protected]

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    1. A agricultura camponesa constitui parte altamente relevante e indispensvel da agricultura mundial

    Embora com peso relativo e interrelaes que variam consideravelmente, pra-ticamente todos os sistemas agrcolas no mundo atual resultam de trs arranjos poltico-econmicos distintos, porm combinados (Fig. 1). So eles: a produo ca-pitalista, na qual a relao salrio-trabalho central, a agricultura empresarial e a agricultura camponesa.

    A principal diferena entre as duas ltimas formas que a agricultura camponesa fortemente baseada no capital ecolgico (especialmente a natureza viva), enquanto a agricultura empresarial afasta-se progressivamente da natureza. Insumos e outros fatores artificiais de crescimento substituem os recursos naturais, o que significa que a agricultura est sendo industrializada.

    Ao mesmo tempo, a dependncia do capital financeiro torna-se a principal ca-racterstica da agricultura empresarial, favorecendo a economia de escala e rpidos (embora frequentemente parciais) aumentos de produtividade.

    Em termos quantitativos, os camponeses so a maior parcela, se no a maioria esmagadora da populao agrcola do mundo.

    enorme e indispensvel sua contribuio para a produo de alimentos, a ge-rao de emprego e renda, a sustentabilidade e o desenvolvimento de modo geral.

    Especialmente sob as condies atuais (crise econ-mica e financeira global que se combina com crises alimentares peridicas), o modo de produo cam-pons deve ser valorizado como um dos principais elementos de qualquer que seja o projeto adotado

    para fazer frente aos dilemas atuais.

    Sete teses sobre a agricultura camponesa

    Jan Douwe van der Ploeg

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    2. A atual luta por autonomia determinante para a agricultura camponesa

    Para falar do lugar que os camponeses ocupam na sociedade podemos utilizar o conceito de condio camponesa. A agricultura camponesa (ou o modo de pro-duo campons) tem origem e est imersa nessa condio. A condio camponesa consiste na luta por autonomia e por progresso, como uma forma de construo e reproduo de um meio de vida rural em um contexto adverso caracterizado por relaes de dependncia, marginalizao e privao (Fig. 2).

    Figura 1. A diferenciao da agricultura mundial

    agricultura capitalista agricultura empresarial

    agricultura camponesa

    Figura 2. Coreografia da condio camponesa

    Sobrevivncia Mercados

    Ret

    roal

    imen

    ta

    o

    Out

    ras

    ativ

    idad

    es

    Coproduo

    Base de recursos auto-gerida

    Luta por autonomia

    Ambiente hostil

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    Apesar das muitas diferenas entre a agricultura dos pases desenvolvidos e a dos pases em desenvolvimento, importante notar que ambas esto submetidas a elevados nveis de dependncia. As vias e os mecanismos dessa dependncia, assim como o grau de privao, marginalizao e insegurana associadas, podem variar, mas os agricultores nas duas regies esto confrontados com um ambiente hostil. Nos pases desenvolvidos, o fenmeno se d por meio de diferentes formas de presso sobre a agricultura,1 esquemas regulatrios e pelo poder do agronegcio.

    A luta por autonomia, resultante dessa condio, tem como objetivo e ma-terializa-se na criao e no desenvolvimento de uma base de recursos autogerida, envolvendo tanto recursos sociais como naturais (conhecimento, redes, fora de trabalho, terra, gado, canais de irrigao, terraos, esterco, cultivos, etc.). A terra constitui pilar central dessa base de recursos, no s do ponto de vista material, mas tambm simblico. Ela representa o suporte para atingir um certo nvel de in-dependncia. Ela , assim como foi, o porto seguro a partir do qual o mundo hostil deve ser encarado e confrontado. Da vem a centralidade da terra em muitas das lutas camponesas do passado e do presente.

    Essa base de recursos, por sua vez, propicia diferentes formas de coproduo entre o ser humano e a natureza viva. A coproduo (ou seja, o processo de produ-o agrcola) modelada a fim de comportar, tanto quanto possvel, os interesses e as expectativas da famlia camponesa. dessa forma que interage com o mercado: en-quanto uma parte vendida, a outra usada para a reproduo da propriedade e da famlia camponesa. Assim, permite, direta e indiretamente, a sobrevivncia da famlia e de suas projees futuras. A coproduo tambm retroalimenta e fortalece a base de recursos, melhorando, portanto, o prprio processo de coproduo. Esse processo se d por meio de melhorias qualitativas: tornando a terra mais frtil, cruzando vacas mais produtivas, selecionando as melhores mudas, construindo melhores instalaes de armazenagem, ampliando o conhecimento, tornando a forragem compatvel com as necessidades do rebanho, etc. Alm de retroalimentarem positivamente a copro-duo, tais melhorias qualitativas podem traduzir-se em ampliao da autonomia. De-pendendo das particularidades da conjuntura socioeconmica prevalecente, a sobre-vivncia e o desenvolvimento da base de recursos autogerida podem ser fortalecidos por meio da insero em outras atividades no-agrcolas. Tomadas em conjunto, essas relaes so concatenadas num fluxo de atividades estrategicamente ordenado ao longo do tempo.

    3. A luta por autonomia fundamentalmente implica e funciona como a construo, o uso e o desenvolvimento contnuo do capital ecolgico

    A agricultura camponesa tende a se basear principalmente em um capital de recursos no-mercantilizado associado a uma circulao de recursos tambm no-mercantilizada. Isso est sintetizado na Figura 3 (derivada do trabalho de Victor Tole-do), na qual a letra N refere-se a natureza; S, a sociedade; e P, a produo camponesa. A produo camponesa baseada numa relao de troca no-mercatilizada com a natureza. Ela somente se insere na troca de mercadorias para vender seus produtos finais. Consequentemente, os circuitos de mercadorias no ocupam papel central na

    1 Squeeze on agriculture, no original. O autor refere-se tesoura de preos representada pelo aumento dos custos de produo e queda da remunerao pelos produtos agrcolas. (nota do Editor)

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    mobilizao de recursos. Se no todos, pelo menos a maioria dos recursos resulta da coproduo do ser humano com a natureza viva (por exemplo, terra bem fertilizada e trabalhada, gado cuidadosamente selecionado e reproduzido, sementes selecionadas). Se, no entanto, os circuitos de mercadorias comeam a exercer um papel de maior relevncia na mobilizao de recursos, a produo agrcola passa a se tornar parte do universo da agricultura empresarial (e/ou capitalista).

    Nesse sentido, os nveis de campenizao tornam-se essenciais para a anlise da agricultura. Esses nveis variam no tempo e no espao. A agricultura camponesa menos dependente dos mercados para o acesso a insumos e outros meios de pro-duo. Para ela, esses meios e insumos so parte integrante do estoque disponvel de capital ecolgico. No so adquiridos nos mercados como acontece na agricultura empresarial. Sendo assim, a agricultura camponesa de fato autossuficiente (ou autoabastecida).

    Consequentemente, a produo camponesa visa: a) a reproduo, a melhoria e a ampliao do capital ecolgico; b) a produo de excedentes comercializveis (por meio do uso do capital ecolgico disponvel); e c) a criao de redes e arranjos insti-tucionais que permitam tanto a produo como sua reproduo.

    Figura 3. Trocas econmicas - trocas ecolgicas

    P

    N

    S

    SN

    Trocas econmicas

    Trocas ecolgicas

    4. A centralidade do capital ecolgico ajuda a desenvolver (de forma sustentvel) a produo agrcola, mesmo sob condies altamente adversas

    A posio especfica ocupada pelo campesinato na sociedade como um todo condio camponesa tem implicaes importantes sobre a maneira como a agri-cultura camponesa se estrutura. A primeira, e provavelmente a mais importante de todas essas implicaes, que a agricultura camponesa est voltada para produzir

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    tanto valor agregado quanto possvel sob as circunstncias dadas, e que seu desen-volvimento visa, acima de tudo, aumentar o valor agregado2 na unidade produtiva. Esse foco na criao e ampliao do valor agregado reflete a condio camponesa: o ambiente hostil enfrentado por meio da gerao independente de renda no curto, mdio e longo prazo.

    Por mais que a centralidade da produo de valor agregado possa parecer autoevidente, essa caracterstica claramente distingue a agricultura camponesa dos outros tipos de agricultura. Embora o modo empresarial tambm se oriente para a produo de valor agregado, o seu progresso construdo essencialmente pelo au-mento de escala da produo, o que muitas vezes viabilizado pela aquisio de ou-tras unidades produtivas (frequentemente as pequenas). Dessa forma, a apropriao das oportunidades de produzir valor agregado tambm faz parte da sua estratgia.3 A agricultura capitalista centra-se na produo de lucros, mesmo que isso implique a reduo do valor agregado total.

    Essa distino entre o padro campons e os padres empresarial e capitalista de produo essencial para a compreenso das dinmicas de desenvolvimento rural. Enquanto empresrios e capitalistas geram crescimento no plano de suas uni-dades de produo, mas com estagnao ou decrscimo do volume total de valor agregado em nvel local e regional, o progresso construdo pelo campons reverte-se tambm em progresso para a comunidade e para a regio.

    O ambiente no qual a agricultura est inserida influencia significativamente os nveis de valor agregado e a forma como se desdobraro ao longo do tempo. A agri-cultura camponesa, em particular, precisa de espao para realizar seus potenciais. Se tal espao poltico-econmico no estiver disponvel, em razo de interaes negativas entre a agricultura camponesa e a sociedade qual ela pertence, a capa-cidade de concretizar esses potenciais ser bloqueada.

    Uma segunda caracterstica que distingue a agricultura camponesa que a base de recursos disponvel para cada unidade de produo e consumo limitada e est sob crescente presso. Isso decorre de mecanismos internos, tais como questes envolvendo herana, que implicam principalmente a partilha de recursos entre um nmero crescente de ncleos familiares. Tambm se deve a presses externas so-bre os recursos como, por exemplo, mudanas climticas e/ou usurpao de recur-sos por interesses de grandes corporaes voltadas para a exportao.

    Os camponeses no procuraro compensar essas presses aumentando sua base de recursos por meio do estabelecimento de relaes de dependncia subs-tanciais e duradouras com os mercados de insumos, uma vez que isso se choca com a busca por autonomia e implicaria tambm altos custos de transao. A (relativa) escassez de recursos disponveis eleva a importncia do aprimoramento da eficin-

    2 Valor agregado corresponde nova riqueza gerada pelo trabalho da famlia agricultora no processo pro-dutivo. expressa na diferena entre o valor monetrio dos bens produzidos e os custos tcnicos da produo (consumos intermedirios). O VA um importante indicador do grau de autonomia produ-tiva e de eficincia no uso dos recursos disponveis nos sistemas agrcolas. Sistemas com altos valores de produo e baixo VA empregam grande parte do seu faturamento na remunerao de agentes externos, como fornecedores de insumos e servios.(nota do Editor) 3 Um exemplo vem do plano do governo holands e da indstria leiteira de promover o aumento mdio da escala de produo de 60 vacas para um nmero entre 300 e 500 cabeas. Para que esse plano seja im-plantado, muitas famlias tero que vender seus recursos que sero acumulados para viabilizar a expanso das unidades empresariais.

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    cia tcnica. Na agricultura camponesa, isso significa obter nveis mximos de sadas com os recursos disponveis, mas sem deteriorar sua qualidade.

    Uma terceira caracterstica diz respeito composio quantitativa da base de recursos: a fora de trabalho ser sempre relativamente abundante, enquanto os meios de trabalho (terra, animais, etc.) sero relativamente escassos. Em asso-ciao com a primeira das caractersticas distintivas, isso significa que a produo camponesa tende a ser intensiva: a produo por cada unidade de trabalho ser re-lativamente alta e a trajetria de desenvolvimento ser moldada como um contnuo processo de intensificao baseado no trabalho.

    Tambm importante considerar a natureza qualitativa das interrelaes pr-prias base de recursos. Isso traz tona a quarta caracterstica do campesinato: a base de recursos no pode ser separada em categorias de elementos opostos e contraditrios trabalho versus capital, ou trabalho manual versus atividade inte-lectual. Ao contrrio, os recursos materiais e sociais disponveis se articulam numa unidade orgnica que pertence e controlada por aqueles envolvidos diretamente no processo do trabalho. As regras que governam as interrelaes entre os atores envolvidos (e que definem suas relaes com os recursos) so tipicamente deri-vadas e incorporadas cultura local, incluindo as relaes de gnero. Os tipos de equilbrio interno da famlia camponesa descritos na obra de Chayanov4 (p. ex., aqueles entre penosidade do trabalho e satisfao de necessidades) tambm cum-prem papel importante.

    Uma quinta caracterstica (que d sequncia s anteriores) diz respeito cen-tralidade do trabalho: a produtividade e o futuro progresso da unidade produtiva camponesa dependem criticamente da quantidade e da qualidade da fora de traba-lho. Aspectos a isso relacionados incluem a importncia do investimento de traba-lho (terraos, sistemas de irrigao, instalaes, gado cuidadosamente melhorado e selecionado, etc.), a natureza das tecnologias empregadas (foco na habilidade em oposio mecanicidade) e a inventividade camponesa.

    Em sexto lugar, deve-se fazer referncia especificidade das relaes esta-belecidas entre a unidade de produo camponesa e os mercados. A agricultura camponesa est tipicamente enraizada em (e ao mesmo tempo envolve) uma repro-duo relativamente autnoma e historicamente garantida. Cada ciclo de produo apoia-se sobre os recursos produzidos e reproduzidos ao longo dos ciclos ante-riores. Nesse sentido, eles entram no processo como valor de uso, como meios e instrumentos de trabalho (em suma: como no-mercadorias) que so usados para produzir mercadorias e ao mesmo tempo reproduzir a unidade de produo. Esse padro se contrasta completamente com a reproduo dependente do mercado, na qual a maioria dos recursos, seno todos, so mobilizados por meio dos merca-dos, entrando no processo produtivo como mercadorias.

    Do ponto de vista neoclssico, so irrelevantes as diferenas entre a situao de autoabastecimento ativamente construdo (ou seja, uma reproduo relativa-mente autnoma e historicamente garantida) e aquela caracterizada por alta de-pendncia do mercado. Entretanto, vistas desde uma perspectiva neoinstitucional, ambas as situaes representam tpicos exemplos de um dilema bsico: fazer ou

    4 Alexander Chayanov (1888-1930). Estudioso russo que foi chefe da seo agrria da Academia de Cincias da URSS e um dos principais expoentes da Escola da Organizao da Produo, que tinha como objetivo central apoiar os camponeses na melhoria da gesto dos recursos disponveis. (N. T.)

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    comprar? A resposta camponesa tpica para esse dilema to relevante para os pases desenvolvidos quanto para os pases em desenvolvimento.5

    As caractersticas acima apresentadas conjugam-se para compor a peculiar natureza da agricultura camponesa. Embora seja quase sempre mal compreendida e materialmente distorcida, ela orientada primordialmente para a busca e a subse-quente criao de valor agregado e emprego produtivo. J nas formas empresariais e capitalistas de agricultura, os lucros e os nveis de renda podem ser aumentados com a reduo do trabalho investido. As duas modalidades no s se desenvolvem por meio de fluxos contnuos de sada do trabalho da agricultura, como tambm contribuem para o fenmeno. Isso no acontece nas unidades camponesas e, quan-do acontece, representa um retrocesso. Na produo camponesa, a emancipao (enfrentando com xito o ambiente hostil) coincide necessariamente com a amplia-o do valor agregado total por unidade de produo. Isso ocorre em decorrncia de um lento, porm persistente, aprimoramento da base de recursos e/ou da me-lhoria da eficincia tcnica.

    5. O mercado global e os imprios alimentares geram crises agrrias e alimentares permanentes

    A atual crise agrria emerge a partir da interao entre (1) a parcial, ainda que progressiva, industrializao da agricultura, (2) a introduo do mercado global como princpio ordenador da produo e comercializao agrcola e (3) a reestru-turao da indstria de processamento, de grandes empresas de comercializao e de cadeias de supermercados em imprios alimentares que exercem um poder mo-noplico crescente sobre as relaes que encadeiam a produo, o processamento, a distribuio e o consumo de alimentos. A fuso desses trs processos, criando um novo e global regime alimentar, est afetando profundamente a natureza da produ-o agrcola, os ecossistemas nos quais a agricultura est enraizada, a qualidade do alimento e as suas formas de distribuio.

    A industrializao da agricultura um processo que tem em vista especialmen-te os modos empresarial e capitalista de produo agrcola. Ela envolve diversas dimenses, muitas das quais se relacionam com as explicaes para a crise atual. A industrializao da agricultura implica uma desconexo frequentemente ex-trema da agricultura com a natureza e com as localidades: fatores naturais (tais como fertilidade do solo, bom esterco, variedades cuidadosamente selecionadas e raas localmente adaptadas) tm sido progressivamente substitudos por fatores artificiais que se expressam na forma de insumos externos e novos equipamentos tecnolgicos. Em vez de ser construda em funo do capital ecolgico, a produo agrcola se tornou dependente do capital industrial e financeiro. Isso fez com que os custos variveis se tornassem uma parte relativamente alta e rgida do custo de produo total, assim como reduziu drasticamente o excedente (ou margem) por unidade de produto final.

    5 A economia neoclssica privilegia o mercado como elemento central de construo social. Tem como o princpio ordenador a livre iniciativa individual e a busca do equilbrio timo entre essas iniciativas que, em tese, beneficiaria o conjunto da sociedade. As perspectivas institucionalistas rejeitam a idia das prefe-rncias individuais em equilbrio timo pela ao dos mercados e enfatiza os espaos institucionais (que incluem os agentes do mercado) na determinao das opes econmicas da sociedade. (nota do Editor)

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    O segundo processo a reestruturao de mercados sob a gide do projeto neoliberal que se tornou dominante a partir da metade da dcada de 1990. Nesse sentido, o Acordo Agrcola da Organizao Mundial do Comrcio um marco im-portante (WEIS, 2007). Embora apenas 15% da produo agrcola mundial cruzem fronteiras (tornando-se, portanto, parte de um mercado de fato global), os 85% res-tantes (que circulam em mercados nacionais, regionais e/ou locais) agora so alinha-dos pelos nveis de preos, tendncias e relaes que governam o mercado global.

    A diferenciao previamente existente de mercados interconectados, local ou regionalmente centrados, que em certo nvel refletia a especificidade dos preos relativos dos fatores em termos local ou regional, est sendo reestruturada em um mercado global cada vez mais caracterizado por um mesmo conjunto de nveis e ndices de preos.

    Esse mercado global permite, simultaneamente, enormes fluxos de mercadorias entre diferentes partes do globo. Essa possibilidade, junto com a extensiva mercantili-zao de todos os principais recursos (p. ex.: terra, gua, sementes), criou uma carac-terstica completamente nova na agricultura e no mercado mundial de alimentos, isto , a deslocalizao de grandes sistemas agrcolas. Antes, a produo de aspargos era tradicional em reas como Navarra, na Espanha, mas era desconhecida, por exemplo, no Peru. Nos ltimos anos, o Peru tornou-se o maior exportador mundial de aspar-gos. O sistema aspargo agora segue rumo China, onde encontra condies ainda melhores. Essa deslocalizao aplica-se hoje a todos os produtos frescos. E aplica-se a qualquer lugar, introduzindo, assim, considervel insegurana e turbulncia.

    Polanyi certa vez escreveu que deixar o destino da terra e das pessoas nas mos do mercado equivalente sua aniquilao (1957: 131). Essas palavras condizem agora mais do que nunca com os mercados agrcola e alimentar ativamente globalizados. Atualmente, essa turbulncia no se reflete s em abruptas flutuaes de preos, mas tambm ameaa a prpria continuidade de muitos sistemas agrcolas. Mais do que qualquer outra coisa, a insegurana que foi globalizada.

    O mercado agrcola e alimentar liberalizado tornou-se uma arena na qual dife-rentes grupos do agronegcio passaram a disputar posio hegemnica. Por meio de uma srie acelerada de apropriaes, que foram facilitadas pela oferta praticamente ilimitada de crdito do mercado de capitais, os novos imprios alimentares foram construdos de forma a controlar crescentemente amplos segmentos da produo, processamento, distribuio e consumo globais de alimentos.

    Paralelamente expanso continuada de imprios alimentares j bem estabe-lecidos, como Nestl, Unilever e Monsanto, muitos novos surgiram nos ltimos 20 anos, incluindo Ahold, Parmalat e Vion, o imprio da carne do noroeste europeu recentemente criado. Alguns desses grupos mostraram a vulnerabilidade particular desses conglomerados. A Ahold esteve perto da falncia em 2002 e, mais tarde, no mesmo ano, a Parmalat colapsou, deixando uma dvida total de 14 bilhes de euros. Os imprios alimentares detm considervel monoplio de poder: est se tornando cada vez mais difcil, se no impossvel, para os agricultores venderem seus produtos e para os consumidores comprarem sua comida independentemente dos circuitos controlados por eles.

    Os imprios alimentares representam cada vez mais a mo visvel que go-verna uma variedade de mercados por meio do controle sobre importantes elos

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    de ligao dentro e, especialmente, entre diferentes mercados. Por conseguinte, novos liames foram construdos entre espaos de pobreza e espaos de riqueza no campo da produo de alimentos. Produtos de elevado valor, tais como aspar-gos, vegetais, frangos, sunos, carne bovina, laticnios e flores, agora so produ-zidos, respectivamente, no Peru, Qunia, Tailndia, Brasil, Argentina, Polnia e Colmbia (se bem que amanh podem mudar-se para pases como China, Ucrnia e Madagascar) e transportados, frequentemente por via area, para o noroeste europeu e metrpoles dos Estados Unidos. Essas novas ligaes permitem uma enorme acumulao de riqueza e ao mesmo tempo exercem uma descomunal presso em outros espaos.

    Na interface desses trs processos, assistimos criao de uma crise agrria global e persistente. Inicialmente, a liberalizao dos mercados agrcola e alimentar e a emergncia de imprios alimentares induziram um recrudescimento sem prece-dentes da presso sobre a agricultura que se traduz cada vez mais em dificuldades para os agricultores continuarem a produzir (pois os preos esto muito baixos).

    Em segundo lugar, os imprios alimentares ampliaram consideravelmente o hiato existente entre os preos oferecidos pela produo primria e aqueles pa-gos pelos consumidores. Os elevados preos pagos pelos consumidores agravam a fome e a subnutrio crnica no somente em pases em desenvolvimento, mas tambm em pases desenvolvidos (onde, por exemplo, fenmenos como bancos de alimentos esto se tornando cada vez mais comuns). Atualmente, um bilho de pessoas (!) esto confrontadas cronicamente com fome e subnutrio.

    Em terceiro lugar, a liberalizao dos mercados e, especialmente, as operaes globais dos imprios alimentares provocaram elevados nveis de turbulncia, que agora caracterizam no s o mercado global stricto sensu, como tambm a articula-o dos muitos mercados alimentares nacionais e regionais que conectam material-mente a produo com o consumo de alimentos.

    Entretanto, esses mesmos efeitos esto crescentemente se contrapondo aos requisitos intrnsecos das agriculturas empresarial e capitalista. Esses modos de produo precisam de previsibilidade (em oposio a turbulncias), preos que compensem tanto as obrigaes financeiras como os custos relacionados aos cres-centes aportes de insumos (em oposio presso) e preos aos consumidores que permitam um aumento de demanda (em oposio aos preos que produzem considervel retrao no consumo e excluso de consumidores dos mercados de alimentos). Em resumo: os mesmos imprios alimentares que requerem produo agrcola industrial (para viabilizar a distribuio de grandes quantidades de matria-prima padronizada e barata para posterior processamento e comercializao), es-to contribuindo para destru-la. Essa contradio particular (que se intensificou em razo da liberalizao) tem provocado o surgimento de uma variedade de novos e permanentes fenmenos: pobreza (especialmente entre grandes produtores), re-duzida margem de manobra devido a esquemas regulatrios asfixiantes (em parte impostos pelos imprios alimentares e, em parte, por agncias estatais), contnua degradao do capital ecolgico e um aumento substancial da quantidade e intensi-dade de tensionamentos entre agricultores e a sociedade em geral. O crescimento abrupto no nmero de escndalos alimentares somente uma das muitas expresses de tais tensionamentos (nos EUA, o nmero de escndalos divulgados triplicou nos ltimos 10 anos).

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    6. Se de um lado os campesinatos do mundo esto sofrendo com as muitas consequncias do ordenamento imperial da produo de alimentos, por outro eles constituem a maior resposta

    At recentemente, a resistncia foi geralmente conceituada como um fenmeno que ocorre do lado de fora das j bem estabelecidas rotinas que estruturam o tra-balho e os processos de produo. Isso se aplica especialmente quelas formas de resistncia que se expressam como lutas abertas: greves, protestos, bloqueio de es-tradas, ocupaes, operaes tartaruga, etc. Porm, a luta pode tambm se dar pelas beiradas, como no caso da resistncia cotidiana, a oculta e camuflada resistncia que foi magistralmente descrita por James Scott em sua obra Weapons of the Weak (As armas dos fracos, em traduo livre), de 1985. No entanto, h outros campos de ao nos quais a resistncia se materializa. Esses campos de ao esto localizados dentro dos espaos de produo. Nos anos 1960 e 1970, testemunhamos um amplo leque de expresses urbanas, que foram teoricamente elaboradas na tradio do operaismo italiano (HOLLOWAY, 2002). Em tais formas de resistncia, as estruturas tcnico-institucionais de trabalho e dos processos produtivos so ativamente alteradas. Roti-nas, ritmos, padres de cooperao, sequncias, mas tambm mquinas, seus ajustes e misturas de materiais utilizados, so todos alterados visando melhorar o trabalho e os processos produtivos e alinh-los aos interesses, expectativas e experincias dos trabalhadores envolvidos. Assim, temos trs formas de resistncia (Figura 4), todas interconectadas por uma mirade de interrelaes ligadas no tempo e no espao.

    Figura 4. Formas interrelacionadas de resistncia

    luta velada/sabotagem luta aberta

    Intervenes na organizao do trabalho e da produo:

    introduo de alteraes

    O que quero destacar que a terceira forma de resistncia a interveno direta nos processos produtivos e no trabalho e sua alterao est onipresente na agricultura de hoje. Est presente no florescimento da Agroecologia, assim como a principal fora motriz das muitas formas de desenvolvimento rural autctone que estamos testemunhando na Europa. A resistncia encontrada em uma ampla gama de prticas heterogneas e crescentemente interligadas, por meio das quais o campesinato se constitui como essencialmente diferente. Essas prticas s podem ser

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    entendidas como uma expresso, se no como uma materializao, da resistncia. A resistncia reside nos campos, na forma como o bom adubo preparado, as vacas nobres so cruzadas, as propriedades bonitas so construdas. Por mais ultrapassadas e irrelevantes que essas prticas possam parecer quando consideradas isoladamente, no atual contexto, elas tem cada vez mais assumido o papel de veculo pelo qual a resistncia se expressa e organizada.

    A resistncia reside tambm na criao de novas unidades camponesas de pro-duo e consumo em reas que em outras circunstncias permaneceriam improdu-tivas ou seriam destinadas produo em larga escala de cultivos para exportao. Reside ainda na apropriao de reas naturais pelos agricultores. Em suma: a resistn-cia reside na multiplicidade de reaes (ou respostas ativamente construdas) que tiveram continuidade e/ou que foram criadas, no intuito de confrontar os modos de ordena-mento que atualmente dominam nossas sociedades.

    Uma caracterstica importante dessas novas formas de resistncia, especialmen-te relevante para a sustentabilidade, que elas conduzem busca e construo de solues locais para problemas globais. Evitam roteiros prontos. Isso resulta em um rico repertrio: a heterogeneidade das muitas respostas torna-se, assim, tambm uma fora propulsora que induz novos processos de aprendizagem.

    Esse padro reflete as novas relaes que atualmente dominam em muitas par-tes do mundo: confrontaes diretas so cada vez mais difceis, quando no contra-producentes, e ao mesmo tempo as solues globais esto cada vez mais desacredi-tadas. Portanto, essas novas respostas seguem um caminho diferente:

    A resistncia no mais uma forma de reao, mas sim de produo e ao [...]. Resistncia no mais aquela dos trabalhadores da fbrica; uma resistncia completamente nova baseada na inventividade [...] e na cooperao autnoma entre sujeitos produtores [e consumidores]. a capacidade de desenvolver novas potencia-lidades constitutivas que vo alm das formas prevalecentes de dominao (NEGRI, 2006: 54).

    Considero que essa uma boa descrio da multiplicidade de respostas en-volvidas. A resistncia do terceiro tipo difcil de ser percebida. Est em todo lugar, assume mltiplas formas e frequentemente inspiradora no sentido que reconecta as pessoas, as atividades e os projetos. Prov um fluxo constante e muitas vezes inesperado de expresses que volta e meia superam as limitaes impostas pelos modos dominantes de ordenamento. Essas resistncias so a expresso de crtica e de rebelio, um desvio das normas estabelecidas que engendra superioridade. In-dividualmente, essas expresses so inocentes e inofensivas, mas tomadas em seu conjunto tornam-se poderosas e podem mudar o panorama atual.

    7. A resistncia camponesa a principal fora motriz da produo de alimentos

    As respostas para a atual crise agrria (especialmente em relao aos preos baixos e flutuantes, nveis crescentes dos custos e dificuldades associadas com o re-financiamento das dvidas) diferem consideravelmente. Basicamente, os agricultores capitalistas tendem a fechar suas fazendas-empresas, enquanto os agricultores empre-srios tendem a desativar seus negcios agrcolas ao mesmo tempo em que redire-

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    cionam seus recursos para outros domnios no-agrcolas. A agricultura camponesa relativamente menos afetada: est menos endividada e requer muito menos aportes externos. Isso no quer dizer que os campesinatos do mundo passam inclumes pela crise. Pelo contrrio, eles so gravemente afetados. Mas a sua maneira de reagir difere estruturalmente daquela escolhida pelos agricultores empresariais e capitalistas.

    Os camponeses no desativam (nem fecham completamente) suas unidades de produo agrcola. Ao contrrio, eles tendem a resistir de modos distintos, mas mutuamente interrelacionados: primeiramente, eles tentam, tanto quanto possvel, aumentar a produo. A quantidade e a qualidade de seu prprio trabalho (familiar) continuam sendo aqui um fator-chave. Qualquer reduo da produo total contra-riaria imediatamente seus prprios interesses. Em segundo lugar, eles procuram redu-zir os custos monetrios enraizando ainda mais o processo de produo agrcola no capital ecolgico disponvel. Em terceiro lugar, eles se engajam, onde for possvel, em lutas, arranjos institucionais e na construo de redes que lhes proporcionem melho-res preos, maior segurana e melhor acesso aos recursos escassos. Em quarto lugar, o campons procura, sempre que necessrio, cintos de segurana (p. ex., pluriatividade e multifuncionalidade) que lhe permitam continuar produzindo (e proteger sua base de recursos), mesmo sob condies de extrema dificuldade.

    Juntas, essas formas de resistncia ajudam a defender, se no a aumentar, o valor agregado (ou renda) da unidade de produo camponesa. Na situao atual elas tambm se apresentam como a principal fora motriz da produo de alimentos. O aumento da produo total de alimentos e a emancipao dos produtores so, no contexto da agricultura camponesa, coincidentes: uma tem implicaes sobre a outra e vice-versa.

    H duas outras questes que vm mente de maneira quase inevitvel:

    O desenvolvimento da agricultura camponesa ambientalmente sustentvel?1. Os diferentes campesinatos so capazes de alimentar o mundo?2.

    Em relao primeira questo, penso ser impossvel alegar que as pessoas em situao de misria sejam sempre e sob qualquer circunstncia ambientalistas. Na linha de Martinez-Alier, pode-se dizer com segurana que isso falta total de noo (2002: viii). No entanto, como argumenta Martinez-Alier, na distribuio ecolgicos dos conflitos, os pobres esto frequentemente do lado da conservao dos recursos e de um ambiente limpo (ibid). Isso se deve posio que ocupam na atual constelao impe-rial, assim como aos meios pelos quais eles esto construindo nveis de autonomia. Alm disso, h outras razes importantes que explicam por que os pobres podem criar arranjos produtivos ambientalmente mais sustentveis. Sem entrar em maiores detalhes, os mecanismos apresentados a seguir parecem ser importantes:

    a. Quando os espaos de produo so organizados em termos de coproduo (ou seja, com base no encontro, na interao e na mtua transformao do ser humano e da natureza viva), a produo ser mais alinhada aos ecossistemas lo-cais. Isso evita os muitos tensionamentos inerentes s formas mais padronizadas e industrializadas de organizao e produo.

    b. Ao serem confrontados com mercados que cada vez mais impem custos cres-centes e preos finais baixos ou defasados, muitos produtores respondem com o fortalecimento da coproduo: aumentam o enraizamento de seus processos produtivos no uso e na reproduo da natureza (ou capital ecolgico). Nesse sentido, a resistncia flui em direo a novos padres de sustentabilidade.

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    29c. Os consumidores valorizam cada vez mais a autenticidade, os produtos recm-colhidos, o sabor e a diversidade e esto dispostos a remunerar produtores engajados em novas e apropriadas formas de sustentabilidade. Esse processo requer o compartilhamento do conhecimento a respeito da origem dos produ-tos e servios, o que ajuda a criar e sustentar mercados que oferecem preos diferenciados (um pouco acima do valor convencional).

    d. As economias camponesas, assim como muitas economias informais urbanas, possuem um padro em que os recursos naturais (terra, gua, animais, madeira, combustvel, etc.) so escassos e no tm um carter mercantil. Ento, h uma forte tendncia para sua conservao e proteo. Esse um contraste marcante em relao aos processos produtivos estruturados nos moldes do Imprio. Nes-tes, os animais, por exemplo, so objetos descartveis, enquanto nas economias camponesas eles so recursos preciosos e zelosamente cuidados.

    e. medida que mais unidades de produo buscam uma transio para padres poliprodutivos ou multifuncionais (em parte como resposta s incertezas dos mercados globalizados), h uma maior necessidade de externalidades positivas. Novamente, isso se traduz (ainda que indiretamente) em contribuies positivas para a sustentabilidade.

    f. Finalmente, quero fazer referncia notvel capacidade dos camponeses de ela-borar mecanismos de converso que diferem das transaes comerciais. Os mercados operam cada vez mais como o domnio exclusivo onde se organizam todas as conexes, transformaes e tradues.6 Com a prtica da resistncia, esto sendo criados ou mantidos modos contrastantes, como a reciprocidade, trocas socialmente mediadas e empreendimentos voltados para o autoabastecimento, que permitem s pessoas se organizarem para alm dos limites do mercado. Suas contribuies para a construo da sustentabilidade podem ser consider-veis. Como Marsden observou recentemente:

    6 Em um mundo ordenado pela lgica de um Imprio, as converses ocorrem por meio de transaes monetrias, e cada transao deve ser rentvel por si s. Para o Imprio, o valor de troca e a rentabilidade dominam qualquer outro tipo de valor de uso (HOLLOWAY, 2002, p. 262) ou, de acordo com Burawoy, o modo de troca oprime o modo de produo (2007, p. 4). Consequentemente, recursos, trabalho, conhe-cimento, produtos, servios ou o que quer que seja, so todos convertidos em mercadorias. Assim, muitas relaes tornam-se impossveis, muitos recursos so inutilizados, muitas vidas so desperdiadas e muitas converses so impedidas.

    (...) penso ser impossvel alegar que as pessoas em situao de misria sejam

    sempre e sob qualquer circunstncia ambientalistas. No entanto, na

    distribuio dos conflitos ecolgicos, os pobres esto frequentemente do lado da conservao dos recursos e de um

    ambiente limpo.

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    possvel reconstruir o desenvolvimento rural em formas que aumentem as in-teraes com a economia externa e maximizem, ao mesmo tempo, o valor social e econmico inerente s reas rurais [...]. No entanto, isso no ocorrer exclusivamente pelos mecanismos de mercado (2003).

    Tomados em seu conjunto, esses pontos tm o potencial de transformar um mundo caracterizado, de um lado, por srios problemas de sustentabilidade e, por outro, por milhes, seno bilhes de pessoas cujos destinos s podem ser pensados em termos da prtica da resistncia cotidiana.

    Por ltimo, devemos abordar a questo do potencial de os camponeses alimen-tarem o mundo (especialmente em 2050, quando a presso demogrfica atingir seu pice). Partimos da premissa bsica de que a agricultura camponesa, do ponto de vista produtivo, superior aos demais modos de produo agrcola. Isso foi amplamente demonstrado, por exemplo, nos estudos realizados na dcada de 1960 pelo Comit Interamericano de Desenvolvimento Agrcola (Cida) na Amrica Latina. O mesmo se aplica para o continente asitico. Mesmo sob condies adversas, os camponeses pro-duzem muito mais por hectare (e tambm por quantidade disponvel de gua, etc.) do que as agriculturas empresarial e capitalista. Esse ponto foi enfatizado recentemente por Griffin et al. no Journal of Agrarian Change.

    A superioridade produtiva da agricultura camponesa visvel no s nas naes em desenvolvimento, como tambm, por exemplo, na Europa. No livro Camponeses e Imprios Alimentares7 eu demonstrei como tal fenmeno se d na Itlia. Com base em um estudo longitudinal de 30 anos, foi possvel verificar que a agricultura cam-ponesa (na regio de Emilia Romagna, em 1971) produzia (com as demais condies mantidas iguais) 33% a mais do que a empresarial. Essa diferena subiu para 48%, em 1979, e para 55%, em 1999.

    Houve (e ainda h) acirrada polmica sobre essa questo da superioridade produtiva. O ponto estratgico, no entanto, que tal superioridade produtiva no est descolada da sociedade e da histria. Basicamente, a superioridade produtiva um potencial. Se ela ser ou no concretizada depende seriamente do que Halamska definiu (numa referncia ao campesinato polons) como o espao.

    Se os camponeses tiverem suficiente espao sociopoltico e econmico, eles podem promover nveis de produtividade e de produo s vezes impressionantes (como no caso da histria agrria holandesa entre 1850 e 1950). Contudo, se esse espao cada vez mais limitado (ou em vias de ser expropriado), ento podem ocorrer drsticos retrocessos. Isso significa que aqueles que tentam promover o campesinato devem contribuir o quanto possvel para a ampliao da autonomia, assim como apoiar as aes voltadas para o fortalecimento da produo e da sus-tentabilidade.

    7 Ver resenha na pgina 164.

    Referncias bibliogrficas:

    BURAWOY, M. Sociology and the Fate of Society. View Point, jan.-jul. 2007. Dispon-vel em: .

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    CIDA (Comit Interamericano de Desenvolvimento Agrcola). Tenencia de la tier-ra y desarollo socio-economico del sector agricola. Peru. Washington DC, 1966.

    CIDA. Bodennutzung und Betriebsfuhrung in einer Latifundio-landwirtschaft. In: FE-DER, E. Gewalt und Ausbeutung, Lateinamerikas Landwirtschaft. Ham-burgo: Hofmann und Campe Verlag, 1973.

    GRIFFIN, K.; RAHMAN, A.Z.; ICKOWITZ, A. Poverty and the Distribution of Land. Journal of Agrarian Change, v. 2, n. 3, p. 279-330, 2002.

    HALAMSKA, M. A Different End of the Peasants. Polish Sociological Review, v. 3, n. 147, p. 205-268, 2004.

    HOLLOWAY, J. Cambiar el mundo sin tomar el poder: el significado de la revo-lucin hoy. Madri: El Viejo Topo, 2002.

    MARSDEN, Terry K. The Condition of Rural Sustainability. Assen: Royal van Gorcum, 2003.

    MARTINEZ-ALIER, J. The Environmentalism of the Poor. Cheltenham: Edward Elgar, 2002.

    PLOEG, J.D. van der. Camponeses e Imprios Alimentares. Porto Alegre: UFR-GS, 2008.

    POLANYI, K. The Great Transformation: the political and economic origins of our time. Boston: Beacon Press, 1957.

    SCOTT, J.C. Weapons of the Weak: everyday forms of peasant resistance. New Haven, Londres: Yale University Press, 1985.

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    IntroduoNo final dos anos 1950 e incio dos anos 1960, momento em que os processos

    de industrializao e de urbanizao se tornavam predominantes, um grande debate polarizou a sociedade brasileira a respeito da necessidade da adequao da agricul-tura s novas exigncias do desenvolvimento do pas. Enfrentavam esse debate novos e velhos atores sociais, representando interesses divergentes e distintas concepes de desenvolvimento, particularmente do desenvolvimento rural. Seu desfecho ocor-reu j no contexto do golpe de estado e da implantao do regime militar no pas, expressando-se, mais diretamente, por meio do Estatuto da Terra, promulgado ainda em 1964 pelo Presidente Castelo Branco.

    Neste pequeno artigo, a lembrana desses fatos histricos visa nos ajudar hoje a compreender em que circunstncias a sociedade brasileira escolheu o seu caminho para o desenvolvimento da agricultura e do mundo rural. Tambm permite visualizar as tenses geradas nesse longo e profundo campo de conflitos, cujos funda-mentos se do pelo acesso terra e aos demais recursos produtivos, bem como pelo reconhecimento dos atores sociais capazes de se tornar os portadores do progresso social no mundo rural.

    No centro, a defesa da propriedade

    Nesse mesmo perodo, salvo alguns setores agrcolas que tinham sua superio-ridade garantida pelo estratgico apoio do Estado, a agricultura se caracterizava, em seu conjunto o que inclui a grande propriedade como uma atividade tradicional, cuja expanso era assegurada pelo crescimento extensivo do uso da terra e da fora de trabalho. Vale a pena retomar aqui a anlise desenvolvida por Celso Furtado, a respeito dessa lgica tradicional da agricultura brasileira que ele denomina agricultura itinerante, para quem duas questes so centrais: o progresso tcnico e a distribuio da renda e da marginalizao social. Para ele, a predominncia da grande propriedade

    O agricultor familiar no Brasil: um ator social da

    construo do futuroMaria de Nazareth Baudel Wanderley

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    estava fortemente associada ao aumento da explorao da mo-de-obra, imobili-zao de grandes quantidades de terra, perpetuao do uso de tcnicas agrcolas rudimentares e crescente destruio dos recursos naturais. Em suas palavras,

    ... o controle da propriedade da terra por uma minoria impediu que frutificasse todo ensaio de atividade agrcola independente da empresa agromercantil. Visto o pro-blema de outro ngulo, esta conseguiu reduzir a populao no escrava a um potencial de mo-de-obra sua disposio. (FURTADO, 1972, p. 97)

    Enfatizando a dimenso poltica, que considera a grande propriedade como um sistema de poder, Celso Furtado conclui sua anlise com as seguintes reflexes:

    Quando se observa com uma ampla perspectiva a organizao da agricultura brasileira, percebe-se claramente nela um elemento invariante que o sistema de privilgios concedidos empresa agromercantil, instrumento de ocupao econmica da Amrica Portuguesa. Esse sistema de privilgios, que se apoiava inicialmente na escravido, pode sobreviver em um pas de terras abundantes e clima tropical graas a uma engenhosa articulao do controle da propriedade da terra com a prtica da agri-cultura itinerante. A sua sobrevivncia est assim diretamente ligada persistncia de formas predatrias de agricultura e uma das causas primrias da extrema concen-trao da renda nacional. Sem um tratamento de fundo desse problema, dificilmente desenvolvimento significar no Brasil mais do que modernizao de uma fachada, margem da qual permanece a grande massa da populao do pas. (FURTADO, 1972, p. 122)

    A necessidade do setor agrcola de se adaptar s novas exigncias da sociedade moderna, urbano-industrial, parecia ser uma convico de largos segmentos sociais. O prprio presidente Castelo Branco, em sua mensagem ao Congresso encaminhan-do o Projeto do Estatuto da Terra, reconheceu que

    O incremento da demanda de alimentos em face do crescimento da populao e das profundas modificaes organizacionais geradas pela industrializao e pela concentrao urbana obrigou em toda parte a modificao das estruturas agrrias. (p. 12)

    No centro das atenes, portanto, o sistema de propriedade da terra:

    Impossvel dissociar-se o baixo nvel da produtividade agrcola do Pas do sistema de propriedade, posse e uso da terra... Mantendo a terra inativa ou mal aproveitada, o proprietrio absentesta ou descuidado veda ou dificulta o acesso dos trabalhadores da terra ao meio que necessitam para viver e produzir. (MIRAD. INCRA, s/d, p. 13)

    E a mensagem presidencial enftica ao apontar as consequncias sociais dessa situao:

    Representando cerca de 52% do contingente demogrfico ativo na agricultura, essa populao sem terra tem estado praticamente alijada dos benefcios do nosso progresso, formando um vazio socioeconmico, tremendamente mais srio do que os nossos vazios geogrficos. (MIRAD. INCRA, s/d, p. 12)

    No entanto, duas questes polarizavam as posies em conflito: que atores so-ciais poderiam assumir o projeto de modernizao da agricultura e que projeto seria

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    esse. Caio Prado Jnior explica essa polarizao com toda clareza, ao distinguir os projetos que visavam analisar e corrigir a deplorvel situao de misria material e moral da populao trabalhadora do campo brasileiro

    (...) daqueles que diziam respeito ao negcio da agropecuria e que interessam, sobretudo, nas condies atuais, grandes proprietrios e fazendeiros, como sejam, en-tre outros, reduo dos custos de produo (...), comercializao e financiamento da produo etc. (PRADO JNIOR, 1981, p, 22)

    Ainda em 1964, j implantado o novo governo oriundo do golpe militar e aps o desbaratamento e a eliminao dos movimentos camponeses, o Estatuto da Terra definiu a poltica agrcola como o conjunto de providncias de amparo propriedade da terra (artigo 1, pargrafo 2) e escolheu a empresa rural como o modelo de unidade de produo a ser estimulado pelas polticas propostas.

    Empresa rural () o empreendimento de pessoa fsica ou jurdica, pblica ou privada, que explore econmica e racionalmente imvel rural dentro de condio de rendimento econmico da regio em que se situe e que explore rea mnima agricul-tvel do imvel segundo padres fixados pblica e previamente pelo poder executivo. (Estatuto da Terra, artigo 4, VI).

    No ato de sua promulgao, a prpria impreciso dessa definio favoreceu que, na prtica, os propsitos da lei terminassem sendo compreendidos como o amparo grande propriedade e empresa criada sobre sua base.

    O contraste evidente entre a concepo empregada por esse texto legal e a que prevaleceu nos marcos regulatrios adotados, na mesma poca, em outros pases. A ttulo de exemplo, podemos citar a Lei de Orientao Agrcola, de 1960, que definiu a poltica agrcola da Frana, cujo modelo ideal uma unidade de produo baseada na capacidade de trabalho de dois trabalhadores, numa clara referncia as-sociao entre famlia e estabelecimento produtivo. Nos termos do dispositivo legal francs, dentre os objetivos da poltica agrcola, encontra-se o de

    (...) promover e favorecer uma estrutura de explorao de tipo familiar, suscetvel de utilizar da melhor forma possvel os modernos mtodos tcnicos de produo e de permitir o pleno emprego do trabalho e do capital produtivo. (Lei de Orientao Agrcola, 1960)

    Como afirma Claude Servolin:

    Se o estabelecimento familiar moderno tem sua origem em um passado longn-quo, sua generalizao e seu desenvolvimento [grifo do autor] no curso da histria contempornea s podem ser compreendidos se se admite que nossas sociedades, de alguma forma, o preferiram a outras formas possveis de estabelecimentos. (SERVO-LIN, 1989, p. 27)

    A respeito dos Estados Unidos, Jos Eli da Veiga, mesmo sendo fortemente crtico do que considera o mito americano da agricultura familiar, afirma que:

    A agricultura familiar parece ter sido a forma mais adequada para o forneci-mento a preos constantes ou decrescentes porque no criava nenhuma dificuldade intensificao da produo, incorporando todas as inovaes tecnolgicas... (VEIGA, 2007, p. 125)

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