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Moenia 18 (2012), 489-497. ISSN: 1137-2346. A origem oriental de Jacinto (sobre A cidade e as serras de Eça de Queirós) Sérgio Guimarães de SOUSA Universidade do Minho RESUMO: Em A cidade e as serras, publicado em 1901, Eça de Queirós apresenta-nos um singular protagonista com um não menos singular trajeto: Jacinto, milionário português radicado em Paris, a padecer de uma existência entediante, não obstante —e essa é que é a grande singularidade do he- rói— viver rodeado de tudo o que a tecnologia da época oferece, que vem a descobrir, afastado dos gadgets e da cidade, a felicidade de uma vida campestre simples em Portugal. Esta célebre perso- nagem de Eça tem sido das mais estudadas. E bastante se tem discutido sobre a sua origem. Ora, não deixa de ser curioso ninguém ainda a ter confrontado com um protagonista de Júlio Verne. Refiro-me ao chinês, e também ele milionário, Kin-Fo, personagem principal de Les tribulations d’un chinois en Chine. Da comparação, ressaltam inegáveis pontos de contacto entre Jacinto e Kin-Fo, sobretudo o facto de o chinês, tal como o português, se achar a braços com um tédio shopenhaueriano; e, ponto fundamental, o facto de beneficiar da mesma tecnologia que se acha no 202, o apartamento parisiense de Jacinto. Dada a anterioridade da obra de Verne (1879), não custa a crer que Les tribulationste- nha servido de inspiração ao romance de Eça. P ALAVRAS-CHAVE: Modernidade, tecnologia, cidade, campo, origem. ABSTRACT: In A cidade e as serras, published in 1901, Eça de Queirós introduces a peculiar pro- tagonist with a no less peculiar lifecourse: Jacinto, a Portuguese millionaire living in Paris and leading a boring existence despite his being surrounded by everything the technology of the time was disco- vering and could provide. Quite unexpectedly, Jacinto decides to leave all gadgets behind for a simple country life in Portugal. This celebrated character is one of the most studied characters ever penned by Queirós. Quite a lot has been said about his genesis. It is remarkable that nobody has ever asso- ciated Jacinto to any of those created by Jules Verne. I am thinking about the Chinese millionaire, Kin-fo, the main character in Les tribulations d’un chinois en Chine. Out of such a comparison, quite a lot of coincidences emerge primarily, that of sharing the same technology Jacinto enjoys in his 202, his Parisian apartment, as well as the most fundamental one: their shared shopenhauerian tedium. Since Verne’s novel precedes (1879) the one by Queirós, it would not be farfetched to consider Les Tribulationsto have influenced Queirós in his novel. KEYWORDS: Modernity, technology, country, city, origin. Recibido: 1-11-2011. Aceptado: 1-12-2011.

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  • Moenia 18 (2012), 489-497. ISSN: 1137-2346.

    A origem oriental de Jacinto (sobre A cidade e as serras de Ea de Queirs)

    Srgio Guimares de SOUSA

    Universidade do Minho

    RESUMO: Em A cidade e as serras, publicado em 1901, Ea de Queirs apresenta-nos um singular protagonista com um no menos singular trajeto: Jacinto, milionrio portugus radicado em Paris, a padecer de uma existncia entediante, no obstante e essa que a grande singularidade do he-ri viver rodeado de tudo o que a tecnologia da poca oferece, que vem a descobrir, afastado dos gadgets e da cidade, a felicidade de uma vida campestre simples em Portugal. Esta clebre perso-nagem de Ea tem sido das mais estudadas. E bastante se tem discutido sobre a sua origem. Ora, no deixa de ser curioso ningum ainda a ter confrontado com um protagonista de Jlio Verne. Refiro-me ao chins, e tambm ele milionrio, Kin-Fo, personagem principal de Les tribulations dun chinois en Chine. Da comparao, ressaltam inegveis pontos de contacto entre Jacinto e Kin-Fo, sobretudo o facto de o chins, tal como o portugus, se achar a braos com um tdio shopenhaueriano; e, ponto fundamental, o facto de beneficiar da mesma tecnologia que se acha no 202, o apartamento parisiense de Jacinto. Dada a anterioridade da obra de Verne (1879), no custa a crer que Les tribulations te-nha servido de inspirao ao romance de Ea. PALAVRAS-CHAVE: Modernidade, tecnologia, cidade, campo, origem. ABSTRACT: In A cidade e as serras, published in 1901, Ea de Queirs introduces a peculiar pro-tagonist with a no less peculiar lifecourse: Jacinto, a Portuguese millionaire living in Paris and leading a boring existence despite his being surrounded by everything the technology of the time was disco-vering and could provide. Quite unexpectedly, Jacinto decides to leave all gadgets behind for a simple country life in Portugal. This celebrated character is one of the most studied characters ever penned by Queirs. Quite a lot has been said about his genesis. It is remarkable that nobody has ever asso-ciated Jacinto to any of those created by Jules Verne. I am thinking about the Chinese millionaire, Kin-fo, the main character in Les tribulations dun chinois en Chine. Out of such a comparison, quite a lot of coincidences emerge primarily, that of sharing the same technology Jacinto enjoys in his 202, his Parisian apartment, as well as the most fundamental one: their shared shopenhauerian tedium. Since Vernes novel precedes (1879) the one by Queirs, it would not be farfetched to consider Les Tribulations to have influenced Queirs in his novel. KEYWORDS: Modernity, technology, country, city, origin.

    Recibido: 1-11-2011. Aceptado: 1-12-2011.

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    Le bonheur est dans ltude et le travail. Acqurir la plus grande somme possible de connaissances, cest chercher se rendre heureux! [] (Jules Verne, Les Tribulations dun Chinois en Chine, 1879).

    Enquanto inteligncia, e felicidade que dela se tira pela incansvel acumulao das noes, s te peo que compares Renan e o Grilo [] (Ea de Queirs, A cidade e as serras, 1901).

    1. Das mltiplas (re)leituras de que tem sido alvo A cidade e as serras, muitas vezes ressalta a confrontao crtica de Jacinto, protagonista a partir do qual mltiplas conexes se afiguram possveis, com outras figuras proeminentes. Desde logo, ocorre a inevitvel comparao com o seu antecessor queirosiano mais explcito, o Jacinto do conto Civili-zao, cotejo fatal a partir do momento em que A cidade e as serras se l, e seria difcil no faz-lo, como prolongamento romanesco desse conto. Como no ver que ambos os Ja-cintos se assemelham na condio e no impulso que os define? A princpio nitidamente mo-vidos pelo ideal de acumular cincia, tecnologia e erudio, evoluem, a despeito da moder-nidade filosfico-tecnolgica e da crena inicialmente cega no progresso e nos seus avata-res, para um percurso existencial que, em jeito de reviso ideolgica, desemboca na simpli-cidade campestre; e ambos assim descobrem o que uma vida boa. A perfeita realizao de cada um consiste no abandono do saber (o das mquinas e o dos livros), enciclopedica-mente acumulado, trocando esse ethos mecnico e livresco pela simplicidade da Me-natureza (se quisermos, pela conhecida metfora da natureza como um livro aberto). Enfim, no obstante divergncias mais ou menos pontuais, no ser necessria clarividncia espe-cial para notar o quanto o morador do n. 202 parece efetivamente assaz tributrio do Ja-cinto do Jasmineiro, o que sustenta em larga poro a hiptese do conto como texto-em-brio do romance. Frank F. Sousa recenseou j com demora tanto as evidentes simetrias como as diferenas (cfr. Sousa 1996: 159-70), algumas do domnio do pormenor distintivo, o que diz bem do rigor da anlise.

    Jacinto, porm, como muito bem demonstrou o crtico, ganha em ser lido luz de outras confrontaes menos previsveis, ou aparentemente menos previsveis. Nesse sen-tido, e com inegvel pertinncia, Frank F. Sousa, que tambm no deixa com inteira justeza de enfatizar a parceria Jacinto / Z Fernandes sob a ptica dos modelos clssicos do Qui-xote e da Odisseia (e de recorrer conhecida distino nietzscheana entre viso apolnea e dionisaca), Frank F. Sousa, dizia, alarga a comparao a dois outros textos de Ea, Um dia de chuva, sem data, mas provavelmente escrito depois de 1885, segundo cr; e o en-saio sobre Antero de Quental, Um Gnio que era um Santo, que viria a ser publicado no In Memoriam (1896), e que permite, de facto, compaginar a figura de Antero com a de Ja-cinto.

    Dir-se-ia faltar neste rol de afinidades talvez a mais bvia de todas, descontando, como evidente, a afinidade umbilical, digamos assim, de Jacinto com o seu homnimo do conto Civilizao. Refiro-me, bom de ver, e j fora da especificidade da narrativa quei-rosiana, a Bouvard et Pcuchet. Em boa verdade, Frank F. Sousa no desconsidera a rele-

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    vncia em Ea desta narrativa de Flaubert, na medida em que menciona a mais-valia da in-curso comparativa, in extremis, na pgina final do seu estudo. Ou seja, se no leu A cidade e as serras sob o pano de fundo de Bouvard et Pcuchet, no descarta, todavia, a con-venincia do escrutnio, atestada por algumas conexes plausveis e imediatamente percep-tveis entre os dois textos, ainda que gerais, isto , insuficientes para especularmos sem mais uma indexao:

    Flaubert, como se sabe, no pde terminar Bouvard et Pcuchet, romance que tem afi-nidades indesmentveis com A cidade e as serras, sendo ambas obras inconclusas (ou por re-ver, no caso de Ea), que falam do esgotamento do saber enciclopdico (livresco, terico) e do esgotamento da crena no progresso (op. cit.: 212).

    De resto, outro crtico, Osvaldo Manuel Silvestre, num ensaio verdadeiramente no-tvel, detm-se a refletir justamente sobre as ressonncias desta inconclusa obra de Flaubert no ltimo Ea, que comporta, como sabemos, A cidade e as serras. Neste caso, o que est em pauta no tanto o que avizinha Bouvard et Pcuchet de Jacinto (e de Fradique), antes o que obsta contiguidade entre os textos. Bouvard et Pcuchet, por exemplo, nutre-se de um programa enciclopdico farsesco que no encontra eco nA cidade e as serras1.

    2. Ora bem, convir sublinhar agora que todas as afinidades de Jacinto acima referidas, exceptuando as que se prendem com o Jacinto do conto Civilizao, que atulhava no seu palcio livros e mquinas (nos dois Jacintos o triunfo da mquina anda a compasso com a acumulao de saber, acumulao enciclopdica que se perfaz pela insinuao em tudo o que stio de volumes indisciplinados), afinidades perfeitamente legtimas e estimulantes do ponto de vista heurstico e hermenutico, como que rasuram um aspecto nada despi-ciendo da personagem, se no mesmo decisivo, desde logo porque marcadamente caracte-rstico. Trata-se da sua modernidade tecnolgica, ou, se se preferir, esse seu lado avanado, que o leva a adotar a tecnologia, embora com as consequncias rocambolescas que se sabe. Noutros termos, se o impacto do saber livresco e enciclopdico em Jacinto favorece razes para situ-lo na rbita de certas influncias, ainda que com distncias devidas, resta ver se o saber mais emprico, o que radica na tecnologia (e que acaba por ser um saber que no es-

    1 Escreve, a dado passo, Osvaldo Silvestre: no estou convencido que essas obras de Ea [A cidade e as serras e A Correspondncia de Fradique Mendes] e sobretudo o Fradique sejam boas leitoras de Bouvard et Pcuchet, pela simples razo de que a sua enciclopdia do sculo XIX, se tende ao crtico, no tende identicamente farsa. Por outras palavras, em Flaubert a crtica j autocrtica e o saber j o saber do no-saber, ou melhor, o da sageza insupervel do idiota. Em Ea, o idiota sempre um proliferante Ou-tro e o heri, chame-se Fradique ou Jacinto, uma encarnao da Razo Crtica. Em consequncia, a ironia deste Ea vive desse fundamento securizante que d pelo nome de Fradique ou Jacinto, alegorias do saber enciclopdico a partir dos quais se define o horizonte do pensvel e do risvel. O seu impensado , contudo, a impossibilidade, tematizada por Flaubert no Bouvart et Pcuchet, de uma contiguidade e continuidade on-tolgica de sabedoria e idiotia. A conscincia dessa essencial contiguidade define a sageza das personagens flaubertianas, tanto quanto a sua inconscincia define a arrogncia parisiense das queirosianas (Silvestre 2004: 980).

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    tar altura do saber superiormente real e concreto da terra, que acarreta uma des-especiali-zao tcnico-cientfica), encontra filiao algures.

    No ser nada descabido, ao que creio, comear por sublinhar o contexto (le a parle collectif, diria a scio-crtica). Isto , no poucos textos da poca refletem sobre esse novo e controverso horizonte que a inveno tcnico-tecnolgica anuncia2. Textos eviden-temente cientficos mas tambm ensasticos, jornalsticos e, claro est, ficcionais. Deste l-timo tipo de textos exemplo suficiente A Grande Quimera. Nesta obra, de 1919, o que pa-rece estar em causa o imperativo tico de a cincia construir um mundo novo sob a forma da eletricidade e de outros avanos modernos. Em diversas partes do livro fica patente a crena fervorosa do cientista (o protagonista Manuel de S) no papel fundamental da cin-cia ao servio de uma nova era feita de concrdia e felicidade, o que equivale a dizer, neste caso, que a crena na cincia , antes de mais, a taxativa f num messianismo utpico3. No difcil perceber que este romance de Teixeira de Queirs (Bento Moreno)4, escritor com reconhecido talento na arte da efabulao (pelo menos a que se espera, como evidente, de um romancista na viragem do sculo XIX para o XX), retira boa parte da sua pertinncia pelo debate que suscita em torno das implicaes do conhecimento no progresso civilizacional e, mais especificamente, dos vezos ideolgicos que evidencia esse debate5. De resto, o tema

    2 Anote-se que a presena da mquina em Oitocentos se pode ler, como fez Amrico Antnio Lin-deza Diogo, enquanto domesticao da cultura. Processo menos histrico e mais econmico, a domestica-o da cultura, de que Jacinto exemplo flagrante, afigura-se possvel no contexto de uma economia capita-lista que mais no do que uma economia de cultura. O retorno singeleza pastoral, por assim dizer, signi-fica o logro dessa economia e efetiva-se pela imposio de prticas culturais que no arredam o sujeito da terra e das suas correspondentes frmulas de excelncia emprica. (cfr. Diogo, 2001: 71.) 3 Eis um exemplo: Com o invento da dinamite, os sonhos de Manuel de S adquiriam plasticidade. As cincias naturais traziam terra maldita, o imaginado paraso. O brao do obreiro j descansava som-bra das aplicaes do calor e com as descobertas da eletricidade. S faltava que a qumica fabricasse o sus-tento dirio dum homem, representado numa pastilha alimentar, como o desejou Berthelot, para haver feli-cidade completa sobre a terra. Depois disto, os grandes problemas do proletariado inquieto teriam a soluo natural, e a equiparao dos homens pelo nivelamento satisfatrio das necessidades urgentes da vida, estaria realizada. Os qumicos e outros sbios substituiriam o Deus antigo e omnipotente, facultando colectivi-dade social, com mui pequeno esforo, tudo quanto ela precisa para ser ditosa. Estas crenas tornavam-no feliz e satisfeito; trazia o semblante, sempre cheio de ideias alegres (Queirs, 1919: 63). 4 Responsvel por uma obra, a vrios ttulos, merecedora de ateno e demora e, no entanto, algo afastada dos leitores e da crtica literria. Vale a pena aqui citar as palavras de lvaro Salema: Francisco Teixeira de Queirs (1848-1919) foi durante todo um sculo e continua a ser uma das mais persistentes vtimas do nosso martirolgio dos escritores esquecidos. A tremenda sombra de Ea de Queirs pode ter sido, em funda raiz, a razo da penumbra em que a sua obra de novelista mergulhou. Mas outros perodos houve em que seria justificvel a sua ressurreio para novas camadas de escritores e de consequentes leito-res a que as caractersticas dessa obra deveriam ter motivado um despertar merecido. Nunca assim sucedeu. Exceptuando um ou outro especialista da histria literria moderna em Portugal [], rarssimos a tm lem-brado em alongados decnios (Salema,1982: 125). 5 J noutra narrativa anterior, A Caridade em Lisboa (1901), composta por dois volumes, subintitula-dos respectivamente A Esmola e A Dor, a crena na cincia anda a compasso com a esperana de melhorar o mundo, minorando os sofrimentos causados pela misria. Isto nota-se essencialmente no segundo volume. No primeiro, temos sobretudo a narrao da beneficncia de um grupo de senhoras da alta burguesia e da aristocracia que, com notrio zelo, decidem organizar-se em torno de uma associao (A Esmola), aju-

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    do avano (inexorvel, apetece dizer) da cincia e das suas consequncias, nefastas ou boas, um tema, insista-se, a que a literatura dos finais de Oitocentos e dos incios de Novecen-tos no foi impermevel e ao qual, diga-se, dificilmente escaparia (o efeito pregnante do tema deve-se, obviamente, notria presena deste na esfera pblica e da sua inegvel re-levncia na construo histrica e, sobretudo, poltica do sculo XIX em diante; e podemos medir o em diante pelas primeiras dcadas do sculo XX, por exemplo). Deste ponto de vis-ta, Teixeira de Queirs forosamente nunca seria um caso singular. E no necessrio ser-se um fino conhecedor da histria da literatura portuguesa moderna para se saber que em sede literria lusa o romance que porventura melhor tratou desta questo precisamente A cidade e as serras. Jacinto um consumidor daquilo que os cientistas produzem e bem de-pressa, como sabemos, ficar desapontado com o progresso que a cincia, bastante circuns-crita inveno mecnica, lhe faculta, acabando por abraar, sem grandes resistncias, uma vida pastoral, longe da cidade e da panplia de engenhos que nela desfrutava. Este regresso ao campo, numa condio que o abeira de um certo primitivismo, pelo menos luz de um fim de sculo fortemente apostado em domar a natureza e impor a fora civilizadora do homem, desemboca numa existncia plcida e feliz, longe do tdio que o afetava na urbe. Outrora com tudo o que de mais avanado o dinheiro pudesse comprar, agora com bem pouco, Jacinto, antecipando uma certa cultura new age, regressa s origens de um Portugal profundo que , evidentemente, o Portugal marcadamente rural e, como tal, guiado pela Na-tureza. A renncia ao progresso e civilizao assim como que um retorno Me-natureza e a um estilo de vida despojado e que o robustece6. Se assim , no menos certo,

    dando os mais desfavorecidos. A verdade que deste esforo solidrio sobressai a ideia de que o socorro dos mais pobres mais no (ou pouco mais no ser) do que uma forma de tais senhoras, ao fim e ao resto, ocuparem os seus cios. J no segundo volume, a solidariedade humana fica mais evidente. Nele, um fil-sofo epicurista (Joo da Terra), um mdico (Julio Esteves), um qumico (Manuel de S) e um capitalista (Cludio de Mendona) fundam um hospital, vocacionado para crianas e idosos e ainda, ponto fundamen-tal, um laboratrio, destinado a apoiar a prtica hospitalar. Esta parceria entre a cincia, representada pelo laboratrio, e a solidariedade, significada pelo hospital, reveladora da crena de que o desenvolvimento cientfico poderia muito bem constituir o advento de uma era de maior justia social. J o mesmo no acon-tece nA grande quimera, que recupera as personagens da narrativa anterior. Neste caso, assistimos a um claro desencantamento da cincia. Manuel, coadjuvado por um funcionrio, investe o tempo no fabrico de uma bomba, destinada, segundo cr, a melhorar consideravelmente a humanidade. Semelhante inveno possibilitaria, pois, abrir rasgos na natureza, cumprindo em milsimos de segundos o que o homem, com muito esforo, faria em longos e penosos meses ou anos de trabalho. Contudo, o que sucede que o aju-dante de Manuel de S faz explodir o laboratrio, mutilando Favorita, uma criada do qumico, que este bondosamente recolhera na rua e que fora assediada justamente por esse ajudante, que por ela nutria uma paixo arrebatadora e no pouco ridcula. Profundamente abalado com a tragdia, o qumico decide ento desistir da investigao cientfica e, em jeito de exlio, recolhe-se ao Alentejo. Na derradeira pgina do ro-mance, o desfecho disfrico contrariado, porm, pela sugesto de uma desenlace sentimental. Com efeito, Manuel de S, como que tomado por uma epifania sbita, v em Favorita nada menos do que a Vnus de Milo!. Esta percepo esttica da moa inebria-o e abre de imediato portas ao desejo amoroso. 6 J bem antes disso, Camilo, em Corao, Cabea e Estmago, louvara, no sem alguma ironia certo, as virtudes salutares de um regresso simplicidade do campo. S que aqui o que estava em jogo era uma viso da cidade nitidamente romntica. Ou seja, o campo, com o empirismo fisiolgico do estmago que lhe andava associado, resfriava sem merc as volubilidades do esprito romntico, a cada passo atrope-lado pelo corao, que , como sabemos, o rgo que mais expande idealizaes. Numa palavra, Silvestre

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    porm, que o idealismo cientfico de Manuel de S no encontra eco no culto Jacinto, aco-modado num luxo principesco. Apetrechado com o que de mais inovador se apresenta no campo da tcnica, o amigo de Z Fernandes, munido de um arsenal de instrumentos, no abdica de consumir o progresso em prol do seu bem estar. Como quer que seja, uma coisa certa e talvez seja possvel enunci-la em jeito retoricamente de quiasmo do seguinte modo: os saberes implicados tanto nA cidade e as serras como nA grande quimera constituem saberes distintos e encontram-se, em boa lgica, ao servio de um fracasso, na justa medida em que resultam no em propsitos de facto emancipatrios mas em no-saberes; e esse fracasso dos saberes, em boa verdade, que conduz, afinal, ao verdadeiro e ltimo saber, que em Teixeira de Queirs assume a dimenso de uma promissora e plcida felicidade sen-timental, despoletada por uma percepo esttica e j no qumica. Ou, para dizer ento de outra maneira, se nA cidade e as serras, a felicidade no de ordem quantificvel, vale di-zer, no releva da cincia (a Biblioteca do 202) nem da potncia (as mquinas), numa pala-vra, se no decorre de um modo de vida cientista (cfr. Diogo & Sousa 2003: 120), o mesmo se poder razoavelmente dizer, tudo bem considerado, dA Grande Quimera. Em ambas as narrativas, a felicidade supe a renncia a essa vida cientista, comutada por uma propcia vida campestre, que no caso de Manuel de S crvel que venha a ser possivelmente to singela e harmoniosa quanto a de Jacinto.

    Seja como for, a questo da tecnologia no andava arredada da fico, como se v, como no o andou dos jornais. Dito de outra maneira, foi uma das referncias ao futuro (como, alis, hoje sucede com a inestimvel tecnologia digital) que o espao pblico, nas suas diversas latitudes, no deixou de registar, mistificar e, sobretudo, questionar. Seria es-tranho que a fico, a seu modo, no viesse dar conta desse debate, to estranho como hoje improvvel pensar a literatura sem o horizonte cada vez mais presente das tecnologias da informao e da comunicao (o mundo sem cibermundo). Portanto, Jacinto no foi certamente imune a todo esse debate. bem provvel, para no dizer quase certo, que Ea o quisesse resgatar para o campo da sua fico, no destoando nisso de outros autores, com a parafernlia tecnolgica com que inundou o n. 202 (e cujo fracasso recorda The electric house com Buster Keaton). Ea ps, por outras palavras, as de Frank F. Sousa, em evidn-cia de maneira clara e original os recentes progressos da cincia, da tecnologia, da filosofia e as suas consequncias sobre a existncia dos indivduos do fim do sculo XIX (Sousa 1996: 205).

    Mas tudo isto no explica, em bom rigor, a origem precisa do comportamento de Ja-cinto no tocante tecnologia. Ou seja, no restar outra alternativa que no a de pensar o

    da Silva escapa ao ludbrio romntico da cidade, que anda muito prximo de uma comdia de enganos, porque, no fim de contas, recolheu-se franqueza rude do campo. Na cidade, macilento e com aspecto pouco sadio, ver-se-ia condenado a uma errncia sem trguas, condenado a saltar de desiluso em desiluso. O campo, afastado das vicissitudes da cidade e onde a performatividade bem menos evidente e, sobretudo, necessria (no campo as coisas sero o que so e valero nessa proporo), vicissitudes essas que decorrem em larga dose do parecer e no tanto do ser, o campo, dizia, retempera e desfaz as iluses romnticas da urbe. Em suma, a continuar na cidade, na melhor das hipteses, Silvestre da Silva seria um naco e por-ventura um naco conspurcado daquilo que passa a ser quando abraa resolutamente a vida campestre.

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    Jacinto do n. 202, no que tcnica diz respeito, especialmente a que se materializa em gadgets, como apenas a reao criativa de Ea ao progresso tecnolgico que a sua poca re-gista? Alternativa no no sentido de desabonar o contexto, antes, entenda-se, no sentido de o suplementar por algo, vamos dizer, mais palpvel. Respondo dizendo que, a meu ver, Ja-cinto, com o seu peculiar modus vivendi citadino, ganha em ser objecto de mais um con-fronto.

    3. Em 1879, quer dizer, 13 anos antes de Ea publicar o conto Civilizao, bem an-tes do volume pstumo A cidade e as serras e antes, ainda, convm tambm assinal-lo, da edio dO Mandarim, que de 1880, Jlio Verne d estampa um livro intitulado Tribula-tions dun chinois en Chine. A narrativa, a traos largos, conta o trajeto do milionrio Kin-Fo, prestes a casar com a bela L-Ou, mas que subitamente fica falido. Kin-Fo lembra-se ento de um estratagema: subscreve um seguro de vida, beneficiando a namorada em caso de morte; e convence o amigo, o filsofo Wang, sob juramento, a mat-lo no prazo de dois meses. Ora sucede que Kin-Fo, mal o amigo-filsofo parte para cumprir a promessa, e de-pois de subscrever o tal seguro, descobre que, afinal a economia tem destas coisas, novamente rico. Ou melhor, ainda mais capitalista do que era. A partir daqui o milionrio faz, como seria de esperar, tudo o que pode para evitar a mo mortfera de Wang, protegido por dois agentes americanos ao servio da companhia de seguros. As atribulaes deste chins pela China no so sem lembrar as de Teodoro (O mandarim) por essas terras de Ex-tremo-Oriente. Dir-se-ia que Ea colheu inspirao nesta narrativa empolgante de J. Verne7, tanto mais que Teodoro e Kin-Fo comeam por apresentar um tdio motivado por uma no-tria insatisfao existencial, que na personagem de Ea, como sabido, tem a ver com uma existncia medocre. Na de Jlio Verne, o tdio provm do excesso de riqueza que conduz a um modo de vida desprovido de emoo. Kin-Fo dispe de tudo o que o dinheiro capaz de proporcionar, por isso nada parece haver que o possa libertar de uma experincia tedienta. E o tdio assume as propores de uma resistncia lnguida ao. Este aspecto permite, desde j, tecer uma ponte com o Jacinto shopenhaueriano, tambm ele enorme-mente rico e a braos com o tdio (nada o impressiona e nada parece acontecer de novo; a ida para o campo, como se sabe, responder radicalmente a este existncia aborrecida), e deixa pressentir que as afinidades no se ficaro por aqui. De facto, Kin-Fo -nos apresen-tado como un de ces modernes habitants du Cleste Empire, dj europaniss par leurs tudes, leurs voyages, leurs frquentes communications avec les civiliss de lOccident

    7 Aponte-se, j agora, a coincidncia, ou no, entre o facto de um dos guarda-costas de Kin-Fo se chamar Craig e o facto de Teodoro receber a notcia de que fabulosamente rico atravs de Silvestre Ju-liano, correspondente, entre outras, de uma Companhia de Hong-Kong chamada Craig and C.. Refira-se, a propsito, que Craig e Fry (o outro guarda-costas mobilizado pela Companhia de Seguros para proteger Kin-Fo) formam uma parelha de detetives em tudo semelhante aos famosos Dupond/t, que Herg celebri-zou. Alm de um tanto idiotas, comportam-se como se fossem um s. Ou seja, quando Craig comea uma frase, esta logo terminada por Fry. Dir-se-ia que Herg se inspirou, para dizer o mnimo, nesta dupla, por assim dizer, siamesa de detetives. Tanto mais que a certa altura surgem camuflados de chineses, o que lem-bra, evidentemente, o disfarce dos Dupond/t nO ltus azul.

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    (Verne, 2004: 21). E se assim , -o porque Kin-Fo appartenait bien cette catgorie de gens fortuns qui peuvent vivre sans rien faire (op. cit.: 25). Resta dizer o mais relevante (e a bem dizer o mais atpico) deste estatuto: que Kin-Fo, a quem nem sequer falta a fiel e amistosa relao de um Z Fernandes sob a pele do filsofo Wang, Kin-Fo, muito seme-lhana de Jacinto, vive rodeado, que nem de propsito, de modernidade tecnolgica:

    Trs ml au mouvement europen, ctaient les steamers anglais qui transportaient ses mar-chandises, ctait le cble lectrique qui lui donnait le cours de soieries Lyon et de lopium Calcutta. Aucun de ces agentes du progrs, vapeur ou lectricit, ne le trouvait rfractaire, ainsi que le sont la plupart des Chinois, sous linfluence des mandarins et du gouvernement, dont ce progrs diminue peu peu le prestige (op. cit.: 26.).

    Dir-me-o que este conjunto de predicados de Kin-Fo, entre os quais o progresso, ser no s a condio essencial para que seja rico, mas ainda o resultado (ou a ratificao) da sua excepcional condio de chins rico. Em ambas as situaes, nada obriga a que Kin-Fo seja, na proporo de Jacinto, afeto ao progresso tecnolgico no seu quotidiano doms-tico. Responderia com mais um excerto, que transcrevo apesar de longo, porque sejamos claros diz bem do quanto se poder ler Ea como leitor de Jlio Verne, ou, se se preferir, do quando se pode ler Jacinto como uma verso (lusa) possvel de Kin-Fo. Eis o excerto a que me refiro:

    Kin-Fo on la dit et ses gots le prouvent tait un homme de progrs. Aucune in-vention moderne des Occidentaux ne le trouvait rfractaire leur importation. Il appartenait la catgorie de ces fils du Ciel, trop rares encore, que sduisent les sciences physiques et chi-miques. Il ntait donc pas de ces barbares qui couprent les premiers fils lectriques que la maison Reynolds voulut tablir jusquau Wousung dans le but dapprendre plus rapidement larrive des malles anglaises et amricaines, ni de ces mandarins arrirs, qui, pour ne pas laisser le cble sous-marin de Chang-Ha Hong-Kong sattacher un point quelconque du trritoire, obligrent les lectriciens le fixer sur un bateau flottant en pleine rivire !

    Non ! Kin-Fo se joignait ceux de ses compatriotes qui approuvaient le gouverne-ment davoir fond les arsenaux et les chantiers de Fou-Chao sous la direction dingnieurs franais. Aussi possdait-il des actions de la compagnie de ces steamers chinois, qui font le servisse entre Tien-tsin et Chang-Ha dans un intrt purement national, et tait-il intresse dans ces btiments grande vitesse qui depuis Singapore gagnent trois ou quatre jours sur la malle anglaise.

    On a dit que le progrs matriel stait introduit jusque dans son intrieur. En effet, des appareils tlphoniques mettaient en communication les divers btiments de son yamen. Des sonnettes lectriques reliaient les chambres de son habitation. Pendant la saison froide, il faisait du feu et se chauffait sans honte, plus avis en cela que ces concitoyens, qui glent de-vant ltre vide sous leur quadruple vtement. Il sclairait au gaz tout comme linspecteur gnral des douanes de Peking, tout comme le richissime M. Yang, principal propritaire des monts-de-pit de lEmpire du Milieu ! Enfin, ddaignant lemploi surann de lcriture dans sa correspondance intime, le progressif Kin-Fo on le verra bientt avait adopt le phono-graphe, rcemment port par Edison au dernier degr de la perfection. op. cit.: 54-5)

    Passvel, dir-se-ia, de converter o chins aos olhos dos demais numa figura razoa-velmente excntrica, que no destoa da do Jacinto de Paris (repare-se no modo surpreen-dido como Z Fernandes descobre a tecnologia do n. 202), toda esta predileo pela tecno-logia, com o conforto que supe, no impede o milionrio, no obstante o criado Soun (ge-

  • A origem oriental de Jacinto (sobre A cidade e as serras de Ea de Queirs) 497

    nericamente o corresponde de Grilo), de resvalar para a infelicidade, medida pela apatia que ostenta: [Il] avait, dans la partie matrielle de la vie autant que dans sa partie morale, tout ce quil fallait pour tre heureux ! Et il ne ltait pas ! Il avait Soun [um criado] pour dten-dre son apathie quotidienne, et Soun mme ne suffisait pas lui donner le bonheur ! (op. cit.: 55-6). Em suma, como se constata, em notvel ressonncia com Jacinto, Kin-Fo, a des-peito da sua imensa fortuna, sofre de um profundo tdio que a tecnologia do mundo no sabe nem saberia suprir.

    Face aos trechos acima transcritos, diria que no propriamente preciso ser-se um leitor arguto para notar pontos de contacto ntidos entre Jacinto e Kin-Fo. A anterioridade do texto de Verne deixa fortemente suspeitar a sua influncia sobre o de Ea, o que no custa nada a crer num Ea, como se sabe, que muito se nutriu da literatura francesa e que foi leitor de Jlio Verne. Em todo o caso, est por fazer um estudo comparativo destes dois textos, para definir com mais preciso as balizas dessa influncia, estudo, acredito, suscep-tvel de enfatizar, portanto, que se Jacinto se mune de telgrafos, tubos acsticos ou, entre outras tecnologias de ponta, de uma imensa Mquina de Calcular, decerto porque antes dele Kin-Fo tambm usava un tuyau acoustique para comunicar com gente ausente da vista e porque o afortunado chins, entre diversos gadgets, dispunha de um fongrafo, es-pcie de metonmia da civilizao, sem o qual Jacinto, longe ainda de supor a futilidade da tecnologia, receava no superar pura e simplesmente o estado da animalidade: S o fon-grafo, Z Fernandes, me faz verdadeiramente sentir a minha superioridade de ser pensante e me separa do bicho (Queirs 2010: 19).

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