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AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura . São Paulo: Martins Fontes, 1976. 1ª ed. Brasileira. I. Conceito de Literatura. A Teoria da Literatura Link evolução semântica : (p. 24-25) 2 - Eis a evolução semântica do vocábulo “literatura” até ao limiar do romantismo. Tal evolução, porém, não se quedou aí, mas prosseguiu ao longo dos séculos XIX e XX. Vejamos, em rápido esboço, as mais relevantes acepções adquiridas pela palavra neste período de tempo: a) Conjunto da produção literária de uma época – literatura do século XVIII, literatura victoriana -, ou de uma região – pense-se na famosa distinção de Mme. de Staël entre “literatura do norte” e “literatura do sul”, etc. Trata-se de uma particularização do sentido que a palavra apresenta na obra de Lessing acima mencionada (Briefe die Literatur betreffend). b) Conjunto de obras que se particularizam e ganham feição especial quer pela sua origem, quer pela sua temática ou pela sua intenção: literatura feminina, literatura de terror, literatura revolucionária, literatura de evasão, etc. c) Bibliografia existente acerca de um determinado assunto. Ex: “Sobre o barroco existe uma literatura abundante...”. Este sentido é próprio da língua alemã, donde transitou para outras línguas. d) Retórica, expressão artificial. Verlaine, no seu poema Art poétique, escreveu: “Et tout le reste est littérature”, identificando pejorativamente “literatura” e falsidade retórica. Este significado depreciativo do vocábulo data do final do século XIX e é de origem francesa. Com fundamento nesta acepção de “literatura”, originou-se e tem-se difundido a antinomia “poesia-literatura”, assim formulada por um grande poeta espanhol contemporâneo: “[...] ao demônio da Literatura, que é somente o rebelde e sujo anjo caído da Poesia.” 1 e) Por elipse, emprega-se simplesmente “literatura” em vez de história da literatura. f) Por metonímia, “literatura” significa também manual de história da literatura. g) “Literatura” pode significar ainda conhecimento organizado do fenômeno literário. Trata-se de um sentido caracteristicamente universitário da palavra e manifesta-se em expressões como literatura comparada, literatura geral, etc. 3 - A história da evolução semântica da palavra imediatamente nos revela a dificuldade de estabelecer um conceito incontroverso de literatura. Como é óbvio, dos múltiplos sentidos mencionados apenas nos interessa o de literatura como atividade estética, e, conseqüentemente, como os produtos, as obras daí resultantes. Não cedamos, 1 Gerardo Diego, Poesía Española Contemporánea, Madrid, Taurus, 1959, p. 387.

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AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976. 1ª ed. Brasileira.

I. Conceito de Literatura. A Teoria da Literatura

Link evolução semântica: (p. 24-25)

2 - Eis a evolução semântica do vocábulo “literatura” até ao limiar do romantismo. Tal evolução, porém, não se quedou aí, mas prosseguiu ao longo dos séculos XIX e XX. Vejamos, em rápido esboço, as mais relevantes acepções adquiridas pela palavra neste período de tempo:

a) Conjunto da produção literária de uma época – literatura do século XVIII, literatura victoriana -, ou de uma região – pense-se na famosa distinção de Mme. de Staël entre “literatura do norte” e “literatura do sul”, etc. Trata-se de uma particularização do sentido que a palavra apresenta na obra de Lessing acima mencionada (Briefe die Literatur betreffend).

b) Conjunto de obras que se particularizam e ganham feição especial quer pela sua origem, quer pela sua temática ou pela sua intenção: literatura feminina, literatura de terror, literatura revolucionária, literatura de evasão, etc.

c) Bibliografia existente acerca de um determinado assunto. Ex: “Sobre o barroco existe uma literatura abundante...”. Este sentido é próprio da língua alemã, donde transitou para outras línguas.

d) Retórica, expressão artificial. Verlaine, no seu poema Art poétique, escreveu: “Et tout le reste est littérature”, identificando pejorativamente “literatura” e falsidade retórica. Este significado depreciativo do vocábulo data do final do século XIX e é de origem francesa. Com fundamento nesta acepção de “literatura”, originou-se e tem-se difundido a antinomia “poesia-literatura”, assim formulada por um grande poeta espanhol contemporâneo: “[...] ao demônio da Literatura, que é somente o rebelde e sujo anjo caído da Poesia.”1

e) Por elipse, emprega-se simplesmente “literatura” em vez de história da literatura.

f) Por metonímia, “literatura” significa também manual de história da literatura.

g) “Literatura” pode significar ainda conhecimento organizado do fenômeno literário. Trata-se de um sentido caracteristicamente universitário da palavra e manifesta-se em expressões como literatura comparada, literatura geral, etc.

3 - A história da evolução semântica da palavra imediatamente nos revela a dificuldade de estabelecer um conceito incontroverso de literatura. Como é óbvio, dos múltiplos sentidos mencionados apenas nos interessa o de literatura como atividade estética, e, conseqüentemente, como os produtos, as obras daí resultantes. Não cedamos,

1 Gerardo Diego, Poesía Española Contemporánea, Madrid, Taurus, 1959, p. 387.

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porém, à ilusão de tentar definir por meio de uma breve fórmula a natureza e o âmbito da literatura, pois tais fórmulas, muitas vezes inexatas, são sempre insuficientes.

II – Funções da Literatura

Link arte poética: (pg. 82-83)

2. (...)

Os conhecidos versos de Horácio que assinalam com finalidade da poesia aut prodesse aut delectare, não implicam um conceito de poesia autônoma, de uma poesia exclusivamente fiel a valores poéticos, ao lado de uma poesia pedagógica. O prazer, o dulce referido por Horácio e mencionado por uma longa tradição literária européia de raiz horaciana, conduz antes a uma concepção hedonista da poesia, o que constitui ainda um meio de tornar dependente, e quantas vezes de subalternizar lastimavelmente, a obra poética.

De feito, até meados do século XVIII, confere-se à literatura, quase sem exceção, ou uma finalidade hedonista ou uma finalidade pedagógico-moralista. E dizemos quase sem exceção, porque alguns casos se podem mencionar nos quais se patenteia com maior ou menor acuidade a consciência da autonomia da literatura. Calímaco, por exemplo, característico representante da cultura helenística, procura e cultiva uma poesia original, rica de belos efeitos sonoros, de ritmos novos e gráceis, alheia a motivações morais. Séculos mais tarde, alguns trovadores provençais transformaram a sua atividade poética numa autêntica religião da arte, consagrando-se de modo total à criação do poema e ao seu aperfeiçoamento formal, excluindo dos seus propósitos qualquer intenção utilitária. Um fino conhecedor da literatura medieval, o Prof. Antonio Viscardi, escreve a este respeito: “O que conta é a fé nova da arte, em que todos observam e praticam com devoção sincera”. Desta fé nasce o sentido trovadoresco da arte que é o fim de si mesma. A arte pela arte é descoberta dos trovadores”.

Link evasão: (pg. 100-107)

4. Já atrás nos referimos, acerca das doutrinas da arte pela arte, a uma importante finalidade freqüentemente assinalada à literatura: a evasão. Em termos genéricos, a evasão significa sempre a fuga do eu a determinadas condições da vida e do mundo, de um mundo imaginário, diverso daquele de que se foge, e que funciona como sedativo, como ideal compensação, como objetivação de sonhos e de aspirações.

A evasão, como fenômeno literário, é verificável quer no escritor quer no leitor. Deixando para ulterior e breve análise o caso deste último, examinemos primeiramente os principais aspectos da evasão no plano do criador literário.

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Na origem da necessidade que o escritor experimenta de se evadir, podem atuar diversos motivos. Entre os mais relevantes, contam-se os seguintes:

a) Conflito com a sociedade: o escritor sente a mediocridade, a vileza e a injustiça da sociedade que o rodeia e, numa atitude de amargura e de desprezo, foge a essa sociedade e refugia-se na literatura. Este problema da incompreensão e do conflito entre o escritor e a sociedade agravou-se singularmente a partir do pré-romantismo, em virtude sobretudo das doutrinas de Rousseau acerca da corrupção imposta ao homem pela sociedade, e atingiu com o romantismo uma tensão exasperada. Nesta oposição em que se defrontam o escritor e a sociedade, desempenha primacial papel o sentimento de unicidade que existe em todo artista autêntico.

b) Problemas e sofrimentos íntimos que torturam a alma do escritor e aos quais este foge pelo caminho da evasão. A inquietação e o desespero dos românticos – o mal du siècle – estão na origem da fuga ao circunstante e do anélito por uma realidade desconhecida. (...) O tédio, o sentimento de abandono e de solidão, a angústia de um destino frustrado constituem outros tantos motivos que abrem aporta da evasão.

c) Recusa de um universo finito, absurdo e radicalmente imperfeito. Geralmente, esta recusa envolve um sentido metafísico, pois implica uma tomada de posição perante os problemas da existência de Deus, da finalidade do mundo, do significado do destino humano, etc. Lembremos a revolta dos românticos ante o mundo finito, ou a fuga dos surrealistas de um mundo falsificado pela razão.

A evasão do escritor pode realizar-se, no plano da criação literária, de diferentes modos:

1. Transformando a literatura numa autêntica religião, numa atividade tiranicamente absorvente no seio da qual o artista, empolgado pelas torturas e pelos êxtases da sua criação, esquece o mundo e a vida. Flaubert e Henry James são dois altíssimos exemplos desta evasão através do culto fanático da arte.

2. Evasão no tempo, buscando em épocas remotas a beleza, a grandiosidade e o encanto que o presente é incapaz de oferecer. Assim os românticos cultivaram freqüentemente, pelo mero gosto da evasão, os temas medievais, tal como os poetas da arte pela arte, como vimos, se deleitaram com a antigüidade greco-latina. (...)

3. Evasão no espaço, manifestando-se pelo gosto de paisagens, de figuras e de costumes exóticos. O Oriente constituiu em todos os tempos copiosa fonte de exotismo, mas não devemos esquecer outras regiões igualmente importantes sob este aspecto, como a Espanha e a Itália para os românticos (Gautier, Mérimée, Stendhal) e as vastas regiões americanas para alguns autores pré-românticos e românticos (Prévost, Saint-Pierre, Chateubriand, escritores indianistas do romantismo brasileiro, etc.)

(...)

4. A infância constitui um domínio privilegiado da evasão literária. Perante os tormentos, as desilusões e as derrocadas da idade adulta, o escritor evoca sonhadoramente o tempo perdido da infância, paraíso distante onde vivem a pureza, a inocência, a promessa e os mitos fascinantes. (...)

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5. A criação de personagens constitui outro processo freqüentemente utilizado pelo escritor, particularmente pelo romancista, para se evadir. A personagem, plasmada segundo os mais secretos desejos e desígnios do artista, apresenta as qualidades e vive as aventuras que o escritor para si baldadamente apetecera. (...)

6. O sonho, os paraísos artificiais provocados pelas drogas e pelas bebidas, a orgia, etc., representam outros processos de evasão com larga projeção na literatura. A literatura romântica e simbolista oferece muitos exemplos destas formas de evasão.

(...)

Link conhecimento2: (p. 107-112)

5. Na estética platônica aparece já o problema da literatura como conhecimento, embora o filósofo conclua pela impossibilidade de a obra poética poder ser um adequado veículo de conhecimento. Segundo Platão, a imitação poética não constitui um processo revelador da verdade, assim se opondo à filosofia que, partindo das coisas e dos seres, ascende à consideração das Idéias, realidade última e fundamental; a poesia, com efeito, limita-se a fornecer uma cópia, uma imitação das coisas e dos seres que, por sua vez, são uma mera imagem (phantasma) das Idéias. Quer dizer, por conseguinte, que a poesia é uma imitação de imitações e criadoras de vãs aparências2.

Este mesmo problema assume excepcional relevo em Aristóteles, pois na Poética claramente se afirma que “a Poesia é mais filosófica e mais elevada do que a História, pois a Poesia conta de preferência o geral e, a História, o particular”3. Por conseguinte, enquanto Platão condena a mimese poética como meio inadequado de alcançar a verdade, Aristóteles considera-a como instrumento válido sob o ponto de vista gnosiológico: o poeta, diferentemente do historiador, não representa fatos ou situações particulares; o poeta cria um mundo coerente em que os acontecimentos são representados na sua universalidade, segundo a lei da probabilidade ou da necessidade, assim esclarecendo a natureza profana da ação humana e dos seus móbeis. O conhecimento assim proposto pela obra literária atua depois no real, pois se a obra poética é “uma construção formal baseada em elementos do mundo real”, o conhecimento proporcionado por essa obra tem de iluminar aspectos da realidade que a permite4.

Apenas com o romantismo e a época contemporânea voltou a ser debatido, com profundidade e amplidão, o problema da literatura como conhecimento. Na estética romântica, a poesia é concebida como a única via de conhecimento da realidade profunda do ser, pois o universo aparece povoado de coisas e de formas que, aparentemente inertes e desprovidas de significado, constituem a presença simbólica de uma realidade misteriosa e invisível. O mundo é um gigantesco poema, uma vasta rede de hieróglifos, e o poeta decifra este enigma, penetra na realidade invisível e, através da palavra simbólica, revela a face oculta das coisas. Schelling afirma que a “natureza é um poema de sinais secretos e misteriosos” e von Arnim refere-se à poesia como a forma de conhecimento da realidade

2 Platão, República, 597 d-e.3 Aristóteles, poética.4 Cf. David Daiches, Critical approaches to literature, London, Longmans, 1956, p.37.

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íntima do universo: o poeta é o vidente que alcança e interpreta o desconhecido, reencontrando a unidade primordial que se reflete analogicamente nas coisas. “As obras poéticas, acentua von Arnim, não são verdadeiras daquela verdade que esperamos da história e que exigimos dos nossos semelhantes, nas nossas relações humanas; elas não seriam o que procuramos, o que nos procura, se pudessem pertencer inteiramente à terra. Porque toda a obra poética reconduz ao seio da comunidade eterna o mundo que, ao tornar-se terrestre, daí se exilou. Chamamos videntes aos poetas sagrados; chamamos vidência de uma espécie superior à criação poética...”5.

Nestes princípios da estética romântica encontra-se já explicitamente formulado o tema do poeta vidente de Rimbaud, o poeta da aventura luciferiana rumo ao desconhecido: “Digo que é necessário ser vidente, fazer-se vidente. – O Poeta torna-se vidente através de um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. [...] Inefável tortura em que tem necessidade de toda a fé, de toda a força sobre-humana, em que se torna, entre todos, o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, - e o supremo Sábio! – Porque chega ao desconhecido!”6 Assim a poesia se identifica com a experiência mágica e a linguagem poética se transforma em veículo do conhecimento absoluto, ou se volve mesmo, por força encantatória, em criadora de realidade.

Através sobretudo de Rimbaud e de Lautréamont, a herança romântica da poesia como vidência é retomada pelo surrealismo, que concebe o poema como revelação das profundezas vertiginosas do eu e dos segredos da supra-realidade, como instrumento de perquisição psicológica e cósmica. A escrita automática representa a mensagem através da qual o mistério cósmico – o “acaso objetivo” (le hasard objectif), na terminologia do movimento surrealista – se desnuda ao homem; e a intuição poética, segundo Breton, fornece o fio que ensina o caminho da gnose, isto é, o conhecimento da realidade supra-sensível, “invisivelmente visível num eterno mistério”7.

Contemporaneamente, a questão da literatura como conhecimento tem preocupado particularmente a chamada estética simbólica ou semântica – representada sobretudo por Ernest Cassirer e Susanne Langer - 8, para a qual a literatura, longe de constituir uma diversão ou atividade lúdica, representa a revelação, através das formas simbólicas da linguagem, das infinitas potencialidades obscuramente pressentidas na alma do homem. Cassirer afirma que a poesia é “a revelação da nossa vida pessoal” e que toda a arte proporciona um conhecimento da vida interior, contraposto ao conhecimento da vida exterior oferecido pela ciência, e Susanne Langer igualmente considera a literatura como revelação “do caráter da subjetividade”, opondo o modo discursivo, próprio do conhecimento científico, ao modo apresentativo, próprio do conhecimento proporcionado pela arte9.

5 Texto reproduzido em Jacques Charpier & Pierre Seghers, L’art poétique, Paris, Seghers, 1956, pp 261-262.6 Rimbaud, Oeuvres, Paris, Garnier, 1960, p.346.7 André Breton, Manifestes du surréalisme, Paris, Gallimard, 1963, p. 188.8 De Ernest Cassirer, v. An essay on man, New Haven, 1944 (trad. Portuguesa, Ensaio sobre o homem, Lisboa, Guimarães Editores, 1960); e de Susanne Langer, v. Philosophy in a new key, Cambridge, Mass., 1942; Feeling and form, New York, Scribner’s, 1953, e Problems of art: Tem philosophical lectures, NewYork, Scribner’s, 1957. 9 Cassirer, Na essay on man, p. 169, e Susanne Langer, Feeling and form, p. 374. Leia-se o que acerca deste ponto escreveu Jorge de Lima: “Primeiramente (e isso não é invenção de Maritain, nem de Maurice de Corte, Maurice Deuval e outros que têm se preocupado com os problemas da ontologia da poesia), porque a poesia é hoje no consenso unânime de todos os últimos grandes poetas da humanidade, e de todas as línguas e raças,

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Para alguns estetas e críticos, porém, a literatura constitui um domínio perfeitamente alheio ao conhecimento, pois enquanto este dependeria do raciocínio e da mente, aquela vincular-se-ia ao sentimento e ao coração, limitando-se a comunicar emoções10. A literatura, com efeito, não é uma filosofia disfarçada, nem o conhecimento que transmite se identifica com conceitos abstratos ou princípios científicos. Todavia, a ruptura total entre literatura e atividade cognoscitiva representa uma inaceitável mutilação do fenômeno literário, pois toda a obra literária autêntica traduz uma experiência humana e diz algo acerca do homem e do mundo. “Objetivação, de caráter qualitativo, do espírito do homem”11, a literatura exprime sempre determinados valores, dá forma a uma cosmovisão, revela almas – em suma, constitui um conhecimento. Mesmo quando se transforma em jogo e se degrada em fator de entretenimento, a literatura conserva ainda a sua capacidade cognoscitiva, pois reflete a estrutura do universo em que se situam os que assim a cultivam. Longe de ser um divertimento de diletantes, a literatura afirma-se como meio privilegiado de exploração e de conhecimento da realidade interior, do eu profundo que as convenções sociais, os hábitos e as exigências pragmáticas mascaram continuamente: “A arte digna deste nome – escreve Marcel Proust – deve exprimir a nossa essência subjetiva e incomunicável. [...] O que não tivemos que decifrar, esclarecer através do nosso esforço pessoal, o que era claro antes de nós, não nos pertence. Não vem de nós próprios senão o que arrancamos da obscuridade que está em nós e que os outros não conhecem”12.

Através dos tempos, a literatura tem sido o mais fecundo instrumento de análise e de compreensão do homem e das suas relações com o mundo. Sófocles, Shakespeare, Cervantes, Rousseau, Dostoievski, Kafka, etc., representam novos modos de compreender o homem e a vida e revelam verdades humanas que antes delas se desconheciam ou apenas eram pressentidas. Antes de Rousseau, nunca o homem analisara com tanto impudor e tanta volúpia a sua intimidade, nem descobrira as delícias e a importância psicológica e moral dos estados de rêverie; antes de Kafka, ignoravam-se muitos aspectos do universo tentacular, labiríntico e absurdo em que vive o homem moderno. Pense-se, por exemplo, que apenas os escritores pré-românticos e românticos exprimiram a tristeza das coisas em si mesmas: constitui hoje um deslavado lugar-comum da tristeza do luar, mas foi Goethe quem primeiro revelou essa tristeza, tal como Chateaubriand revelou a melancolia dos sinos e Laforgue a solidão e abandono dos domingos:

Fuir? Où aller, par ce printemps?

Dehors, dimance, rien à faire...13.

um modo de conhecimento; se bem um conhecimento que não seja ordenado ao discurso ou ao raciocínio mas à simples fruição poética. Eis uma verdade que ninguém poderia negar, a menos que pretendesse tapar o sol com peneira e esquecer a mensagem poética profunda de um Baudelaire, Rimbaud e tantos outros.

[...] a poesia é hoje um modo de conhecimento, afetivo embora, conatural embora, ainda que imperfeito e fazendo mesmo dessa imperfeição a sua grandeza, e por mais paradoxal que pareça, a sua perfeição mesma” (Obra completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1958, vol. I, p. 67).10 V., por exemplo, Lino Granieri, Estética pura, Bari, Edizioni Nerio, 1962, p.226.11 Wilbur Marshall Urban, Lenguage y realidad, México, Fondo de Cultura Econômica, 1952, pp. 394-395.12 Marcel Proust, A la recherche du temps perdu, Paris, Gallimard, (Bibliothèque de la Pléiade), 1956, t. III, p. 885. Sobre a finalidade cognitiva atribuída por Marcel Proust à arte, v. Henri Bonnet, L’eudémonisme esthétique de Proust, Paris, Vrin, 1949, e Jacques J. Zéphir, La personalité humaine dans l’oeuvre de Marcel Proust, Paris, Minard, 1959, pp. 240 ss.13 Jules Laforgue, Poésis, Paris, Colin, 1959, p.234.

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Link catarse: (pg. 113-114)

6. Data de Aristóteles o problema da catarse como finalidade da literatura. Na Poética, afirma explicitamente o Estagirita que a função própria da poesia é o prazer (hedone), não um prazer grosseiro e corruptor, mas puro e elevado. Este prazer oferecido pela poesia não deve por conseguinte ser considerado como simples manifestação lúdica, devendo antes ser entendido segundo uma perspectiva ética, como se conclui da famosa definição de tragédia estabelecida por Aristóteles: “A tragédia é uma imitação da ação, elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem temperada, com formas diferentes em cada parte, que se serve da ação e não da narração, e que, por meio da comiseração e do temor, provoca a purificação de tais paixões”.

Não é fácil interpretar com inteira segurança este passo dessa obra tão obscura que é a Poética. Já no entardecer do século XVI, um comentarista de Aristóteles, Paolo Beni, coligia doze interpretações diferentes a seu respeito; e nos séculos subseqüentes, outras se lhes juntariam... Aristóteles tomou o vocábulo “catarse” da linguagem médica, onde designava um processo purificador que limpa o corpo de elementos nocivos. O filósofo, todavia, ao caracterizar o efeito catártico da tragédia, não tem em mente um processo de depuração terapêutica ou mística, mas um processo purificador de natureza psicológico-intelectual: no mundo torvo e informe das paixões e das forças instintivas, a poesia trágica, concebida como uma espécie de mediadora entre a sensibilidade e o logos, instaura uma disciplina iluminante, impedindo a desmesura da agitação passional. Aristóteles, com efeito, não advoga a extirpação dos impulsos irracionais, mas sim a sua clarificação racional, a sua purgação dos elementos excessivos e viciosos. “Assistir a uma dor fictícia de outrem leva a um desafogo inócuo de paixões como o temor e a piedade” e desta higiene homeopática da alma resulta um prazer superior e benfazejo.

A questão dos efeitos catárticos da literatura só voltou a interessar os espíritos muitos séculos após Aristóteles, quando, no século XVI, depois da década de trinta – naquele período em que findava il pieno Rinascimento e se iniciava il tardo Rinascimento, segundo a terminologia de Croce -, a Poética começou a solicitar a atenção dos estudiosos e a dar origem a um poderoso movimento de teorização literária. Neste movimento, o problema da catarse e das suas implicações morais aparece como ponto fundamental de reflexão e o texto da Poética que trata da tragédia e dos seus efeitos catárticos é objeto de múltiplas e divergentes interpretações.

(...)

Link literatura comprometida: (pg. 119-129)

Fala-se muito, no nosso tempo, de literatura comprometida e de compromisso literário. Tais fórmulas, e as doutrinas que elas recobrem, definem as feições de uma época da cultura européia: o período da última conflagração mundial e sobretudo dos anos subseqüentes, quando as correntes neo-realistas e existencialistas se difundiram e

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triunfaram por toda uma Europa ocidental desorganizada, coberta de ruínas sangrentas e dominada pela angústia.

O tema do compromisso é fundamental, pelas suas implicações e conseqüências, nas filosofias existencialistas. O homem, no dizer de Heidegger, não é um receptáculo, isto é, uma passividade recolhendo dados no mundo, mas um estar-no-mundo, não no sentido espacial e físico de estar em, mas no sentido de presença ativa, de estar em relação fundadora, constitutiva com o mundo.

(...)

Quando Jean-Paul Sartre lança ombros à tarefa de expor a sua concepção de literatura, num ensaio mundialmente célebre (Qu’est-ce que la littérature?), estes tópicos da filosofia de Heidegger influenciam visível e naturalmente o teor e o encadeamento das suas idéias. A aliança destes elementos com determinados princípios do marxismo define a orientação do referido ensaio, o documento mais relevante das teorias acerca do compromisso da literatura.

[...]

8. Torna-se necessário efetuar uma distinção nítida entre literatura comprometida ou, para usar um vocábulo francês muito em moda, literatura “engagée”, e literatura planificada ou dirigida. Na literatura comprometida, a defesa de determinados valores morais, políticos e sociais nasce de uma decisão livre do escritor; na literatura planificada, os valores a defender e a exaltar e os objetivos a atingir são impostos coativamente por um poder alheio ao escritor, quase sempre um poder político, com o conseqüente cerceamento, ou até aniquilação, da liberdade do artista.

[...]

Link gêneros literários: (pg. 205-209)

IV. Gêneros Literários

1. O conceito de gênero literário tem sofrido múltiplas variações históricas desde a antigüidade helênica até aos nossos dias e permanece como um dos mais árduos da estética literária. Aliás, o problema dos gêneros literários conexiona-se intimamente com outros problemas de fundamental magnitude, como as relações do individual e do universal, as relações entre visão do mundo e forma artística, a existência ou inexistência de regras, etc., e estas implicações agravam a complexidade do assunto. Existem ou não existem os gêneros literários? Se existem, como deve ser concebida a sua existência? E qual a sua função, o seu valor

Considerando a questão numa perspectiva diacrônica, encontramos para estas perguntas muitas e discordantes respostas. E como os valores literários se afirmam e atuam na história, o modo mais adequado de abordar o problema dos gêneros literários será adotar

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a perspectiva diacrônica e analisar as mais significativas soluções concedidas a tal problema no transcurso da história.

2. Platão, no livro III da República, distingue três grandes divisões dentro da poesia: a poesia mimética ou dramática, a poesia não mimética ou lírica e a poesia mista ou épica. Trata-se da primeira referência teorética ao problema dos gêneros literários. Importa observar, porém, que aquela distinção é abolida no livro X do mencionado diálogo, passando aí o filósofo a considerar toda a poesia como mimética. As razões desta alteração não são bem conhecidas, supondo-se, todavia, que entre a redação do livro III e do livro X tenha mediado um certo período de tempo, durante o qual Platão teria modificado os seus pontos de vista. A estética platônica orienta-se logicamente para a abolição dos gêneros literários, pois procura captar a universalidade e a unicidade da arte, desprezando a arte como poikilia, isto é, como multiplicidade e diversidade.

A Poética de Aristóteles constitui a primeira reflexão profunda acerca da existência e da caracterização dos gêneros literários e ainda hoje permanece como um dos textos fundamentais sobre esta matéria. Logo no início da Poética se lê o seguinte: “Falaremos da Arte Poética em si e das suas modalidades, do efeito de cada uma delas, do processo de composição a adotar, se se quiser produzir uma obra bela, e ainda do número e qualidade das suas partes. (...) E assim o Estagirita estabelece as modalidades, ou gêneros, de poesia:

a) Segundo os meios diversos com que se realiza a mimese. Como já sabemos, para Aristóteles a mimese é o fundamento de todas as artes, diversificando-se estas consoante o meio com que cada uma se realiza a mimese. (...)

b) Segundo os objetos diversos da mimese. Incidindo a mimese sobre pessoas que atuam, e podendo ser as pessoas nobres ou ignóbeis, virtuosas ou não virtuosas, melhores ou piores do que a média humana, é óbvio que as composições poéticas diversificar-se-ão conforme os objetos imitados. (...)

c) Segundo os diversos modos da mimese. Duas formas poéticas, utilizando os mesmos meios de mimese e imitando o mesmo objeto, podem ainda distinguir-se consoante os modos diversos como se realiza a mimese. Aristóteles considera dois modos fundamentais da mimese poética: um modo narrativo e um modo dramático. No primeiro caso, o poeta narra em seu próprio nome ou narra assumindo personalidades diversas; no segundo caso, os atores representam diretamente a ação, “como se fossem eles próprios as personagens vivas e operantes”.

[...]

3. Horácio, com alguns preceitos da sua Epistula ad pisones, ocupa um lugar de relevo na evolução do conceito de gênero literário, sobretudo pela influência exercida na poética e na retórica dos séculos XVI, XVII e XVIII.

Horácio concebe o gênero literário como correspondendo a uma certa tradição formal e sendo simultaneamente caracterizado por um determinado tom. Quer dizer, o gênero define-se mediante um determinado metro, por exemplo, e mediante um conteúdo específico.

(...) O poeta deve portanto escolher, conforme os assuntos tratados, as convenientes modalidades métricas ou estilísticas, de maneira a não exprimir um tema cômico num

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metro próprio da tragédia ou, pelo contrário, um tema trágico num estilo pertencente à comédia. (...) Horácio foi deste modo conduzido a conceber os gêneros como entidades perfeitamente distintas, correspondendo a distintos movimentos psicológicos, pelo que o poeta deve mantê-los rigorosamente separados, de modo a evitar, por exemplo, qualquer hibridismo entre o gênero cômico e o gênero trágico. (...) Assim se fixava a famosa regra da unidade de tom, de tão larga aceitação no classicismo francês e na estética neoclássica, que prescreve a separação absoluta dos diversos gêneros.

Link concepções românticas: (p.215-216)

A doutrina romântica acerca dos gêneros literários é multiforme e, por vezes, contraditória. Não encontramos uma solução unitária, embora se possa apontar como princípio comum a todos românticos a condenação da teoria clássica dos gêneros literários, em nome da liberdade e da espontaneidade criadoras, da unicidade da obra literária, etc. Todavia, a atitude radicalmente negativa do Sturm und drang não foi em geral aceita pelos românticos, que, se afirmavam por um lado o caráter absoluto da arte, não deixavam de reconhecer, por outro, a multiplicidade e a diversidade das obras artísticas existentes. E verifica-se, na verdade, que alguns românticos buscaram estabelecer novas teorias dos gêneros literários, fundamentando-se não em elementos externos e formalistas, mas em elementos intrínsecos e filosóficos.

(...)

Um aspecto muito importante da teoria romântica dos gêneros literários diz respeito à defesa do hibridismo dos gêneros. O texto mais famoso sobre esta matéria, texto que representou um pendão de revolta, é sem dúvida o prefácio de Cromwel (1827) de Victor Hugo. Nessas páginas agressivas e tumultuosas, Hugo condena a regra da unidade de tom e a pureza dos gêneros literários em nome da própria vida, de que a arte deve ser a expressão.

[...]

Link concepções cientifistas: (p. 217-8)

6. Nas últimas décadas do século XIX, novamente foi definida a substancialidade dos gêneros literários, especialmente por Brunetière (1849-1906), crítico e professor universitário francês. Brunetière, influenciado pelo dogmatismo da doutrina clássica, concebe os gêneros como entidades substancialmente existentes, como essências literárias providas de um significado e de um dinamismo próprios, não como simples palavras ou categorias arbitrárias, e, seduzido pelas teorias evolucionistas aplicadas por Darwin ao domínio biológico, procura aproximar o gênero literário da espécie biológica. Deste modo, Brunetière apresenta o gênero literário como um organismo que nasce, se desenvolve, envelhece e morre, ou se transforma. A tragédia francesa, por exemplo, teria nascido com Jodelle, atingiria a maturidade com Corneille, entraria em declínio com Voltaire e morreria antes de Victor Hugo. Tal como algumas espécies biológicas desaparecem, vencidas por

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outras mais fortes, e mais bem apetrechadas, assim alguns gêneros literários morreriam, dominados por outros mais vigorosos. (...)

Link croce: (p. 219-220)

O problema dos gêneros literários adquiriu nova acuidade precisamente na reflexão estética de Benedetto Croce, sendo bem visível no pensamento do grande esteta italiano o intuito polêmico de combater e invalidar as congeminações dogmatistas de Bruntière.

Croce identifica a poesia – e a arte em geral – com a forma da atividade teorética que é a intuição, conhecimento do individual, das coisas singulares, produtora de imagens – em suma, forma de conhecimento oposta ao conhecimento lógico. A intuição é concomitantemente expressão, pois a intuição distingue-se da sensação, do fluxo sensorial, enquanto forma, e esta forma constitui a expressão. Intuir é exprimir. A poesia, como toda a arte, revela-se portanto como intuição-expressão: conhecimento e representação do individual, elaboração alógica, e por conseguinte irrepetível, de determinados conteúdos. A obra poética, consequentemente, é una e indivisível, porque “cada expressão é uma expressão única”.

Link concepções do século XX: (p. 225-227)

A moderna poética, desenganada de quaisquer tentações dogmáticas e absolutistas, procurando na história a sua fundamentação, reabilitou o conceito de gênero literário. Mencionaremos apenas dois grandes nomes da poética e da crítica literária contemporâneas, dois autores profundamente distintos na formação, na ideologia e nos métodos de investigação, que repensaram com delonga e rigor o conceito de gênero literário, concedendo-lhe na sua obra um lugar preponderante.

Emil Staiger, ao publicar em 1952 a sua obra Grundbegriffe der Poetik [Conceitos fundamentais de poética], mostrou qual o caminho seguro no estudo dos gêneros literários. Condenando uma poética apriorística e anti-histórica, Staiger acentua a necessidade de a poética se apoiar firmemente na história, na tradição formal concreta e histórica da literatura, já que a essência do homem é a temporalidade. Retomando a tradicional tripartição de lírica, épica e drama, reformulou-a profundamente, substituindo estas formas substantivas pelos conceitos estilísticos de lírico, épico e dramático. O que permite fundamentar a existência destes conceitos básicos da poética? A própria realidade do ser humano, pois “os conceitos do lírico, do épico e do dramático são termos da ciência literária para representar possibilidades fundamentais da existência humana em geral; e existe uma lírica, uma épica e uma dramática porque as esferas do emocional, do intuitivo e do lógico constituem finalmente a própria essência do homem, tanto na sua unidade como na sua sucessão, tal como aparecem refletidas na infância, na juventude e na maturidade”.

(...)

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Lukács revelou sempre ao longo da sua obra um profundo interesse pelo problema dos gêneros literários. Já na sua juvenil Teoria do romance, redigida entre 1914-1915, abundam as observações acerca dos elementos que permitem distinguir a narrativa e a lírica, a narrativa e o drama, o romance e a epopéia. Estas reflexões juvenis, inspiradas na estética hegeliana, ganharam corpo e densidade na obra intitulada O romance histórico, onde se encontra uma pormenorizada diferenciação entre o romance e o drama. O que permite, segundo Lukács, distinguir estes dois gêneros literários? Fundamentalmente, essa diferenciação repousa no fato de o romance e o drama corresponderem a visões diferentes da realidade, o que implica necessariamente diversidade de conteúdo e de forma. Por outro lado, impõe-se tomar em conta fatores de ordem sociológica ou sociocultural: a natureza do público a que se destina o romance e o drama, bem como a estrutura da sociedade em que os gêneros literários são criados e/ou cultivados. Efetivamente, como acentua Lukács nas páginas que na sua Estética consagrou ao problema da continuidade e da descontinuidade da esfera estética, a determinação histórico-social “é tão intensa que pode levar a extinção de determinados gêneros (a épica clássica) ou ao nascimento de outros novos (o romance)”.

O estruturalismo, desenvolvendo algumas tentativas realizadas pelo formalismo russo, tem procurado definir os gêneros a partir dos elementos constitutivos das respectivas estruturas lingüísticas, embora os resultados obtidos nem sempre sejam muito fecundos. Roman Jakobson, num importante estudo publicado há pouco, relacionou as particularidades dos gêneros literários com a participação, ao lado da função poética – que é a dominante -, das outras funções da linguagem. Assim, a épica, centrada sobre a terceira pessoa, envolve a função referencial da linguagem; a lírica, orientada para a primeira pessoa, prende-se estreitamente com a função emotiva; a dramática implica a segunda pessoa com função apelativa.

Link tempo1: (p.293-306)

IV. O Romance

[...]

O tempo da diegese está delimitado e caracterizado por indicações estritamente cronológicas relativas ao calendário do ano civil – anos, meses, dias, horas -, por informações ligadas ainda a este calendário, mas apresentando sobretudo um significado cósmico – ritmo das estações, ritmo dos dias e das noites -, por dados concernentes a uma determinada época histórica, etc.

O tempo diegético pode ser muito extenso – como n’Os Buddenbrook de Thomas Mann – ou relativamente curto como em Luto no Paraíso de Juan Goytisolo. Quer seja extenso, quer seja curto, é possível, em geral, medir com suficiente rigor o tempo diegético.

Pelo contrário, o tempo da narrativa, ou do discurso, é de difícil medição. Poder-se-á medir este tempo por meio da paginação? Mas a página é uma unidade variável, em função da mancha tipográfica e em função do tipo de letra; a página pode estar compactamente ocupada com frases ou pode apresentar numerosos espaços em branco. Poder-se-á fazer coincidir o tempo da narrativa com o tempo que é necessário dispender para a sua leitura? O tempo exigido pela leitura de um texto, porém, é igualmente um

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critério variável e aleatório. A velocidade da leitura modifica-se de leitor para leitor, e nem sequer é constante no mesmo leitor, de modo que é impossível estabelecer um padrão ideal suscetível de normalizar, digamos assim, essa velocidade de leitura.

As relações entre o tempo diegético e o tempo narrativo assumem uma importância capital na organização do romance.

A coincidência perfeita entre o desenvolvimento cronológico da diegese e a sucessão, no discurso, dos acontecimentos diegéticos, não se encontra possivelmente em nenhum romance. Aos desencontros entre a ordem dos acontecimentos no plano da diegese e a ordem por que aparecem narrados no discurso, daremos a designação de anacronias.

A tradição épica greco-latina oferece um exemplo famoso de anacronia, ao preceituar que o poema épico deve ser iniciado in media res. Deste modo, o começo do discurso corresponde a um momento já adiantado da diegese, obrigando tal técnica, como é óbvio, a narrar depois no discurso o que acontecera antes na diegese.

O começo da narrativa in media res é freqüente no romance. Pode mesmo acontecer que o romancista principie o discurso in ultimas res, digamos assim, de maneira que as páginas iniciais narram, eventualmente com ligeiras modulações, a situação com que se encerra a sintagmática diegética. (...) O romance policial adota, nas suas linhas fundamentais, este tipo de abertura narrativa -, mas que também, e um pouco paradoxalmente, informa logo ab initio o leitor do destino final da personagem.

Tanto o início da narrativa in media res como in ultimas res obriga o romancista a narrar posteriormente os antecedentes diegéticos dos episódios e das situações que figuram na abertura do romance. Quer dizer, em relação à temporalidade do segmento diegético primeiramente narrado, o romancista institui uma temporalidade segunda, dando assim lugar a um anacronia. No caso de início in media res, a anacronia depois de ocupar uma extensão maior ou menor da sintagmática do discurso, é reabsorvida pela primeira narrativa, que continua a desenvolver-se após aquela interrupção; no caso do início in ultimas res, a anacronia apresenta-se como a narrativa de base, ocupando a quase totalidade do discurso.

A esta espécie de anacronias, constituídas por recuos no tempo, dá-se em geral a designação de flash-back e daremos nós, seguindo a mencionada terminologia de Gérard Genette, a denominação de analepse.

A analepse é um recurso de que os romancistas se servem com freqüência, porque permite comodamente esclarecer o narratório sobre os antecedentes de uma determinada situação – sobretudo quando essa situação se encontra no início da narrativa – e sobre uma personagem introduzida pela primeira vez no discurso ou neste reintroduzida, após disparição mais ou menos prolongada. A narrativa analéptica desempenha uma função muito relevante no romance naturalista, em estreita interdependência com a concepção positivista do mundo que rege este romance. Após a apresentação das personagens principais, o romancista naturalista recorre logicamente a analepses mais ou menos extensas para analisar, segundo a ótica positivista, as forças determinantes – hereditariedade, influência do meio, constituição fisiológica e temperamental – que modelam aquelas personagens.

A analepse constitui uma técnica utilizada pelo romance de todas as épocas – no século XVIII, Sterne escreveu essa obra-prima da narrativa analéptica que é Tristam

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Shandy -, não podendo de modo nenhum ser considerada uma descoberta do romance do século XX, fundado em especial na capacidade retrospectiva da memória.

(...)

A anacronia pode consistir, porém, numa antecipação, no plano do discurso, de um fato ou de uma situação que, em obediência à cronologia diegética, só deviam ser narrados mais tarde. A esta espécie de anacronia daremos a denominação de prolepse.

A prolepse é menos freqüente do que a analepse, sendo mesmo bastante rara a sua ocorrência no romance do século XIX. O romance que mais fácil e logicamente acolhe prolepses é o romance de narrador autodiegético, pois este narrador, que organiza a narrativa segundo um modelo explicitamente retrospectivo, não tem dificuldade de, a respeito de um acontecimento diegético, evocar um outro que lhe é cronologicamente posterior. No romance contemporâneo, porém, as prolepses podem abundar mesmo sem a existência de um narrador autodiegético, como comprova, por exemplo, Enseada amena de Augusto Abelaira.

Além das anacronias, outra espécie de tensões e desencontros se institui entre o tempo diegético e o tempo narrativo, dizendo respeito à duração dos acontecimentos na sucessão diegética e à duração da sintagmática narrativa em que tais acontecimentos são relatados.

A coincidência perfeita entre duração da diegese e do discurso será possível? Tal isocronia só será de admitir num caso: quando o discurso reproduzir fielmente, sem qualquer intervenção do narrador, um diálogo da diegese. No capítulo VII de Agulha no palheiro de Camilo, após um diálogo entre Paulina e Eugenia, o narrador comenta: “Este diálogo, que parece estirado, correu em menos de quatro minutos”. Qualquer leitor que leia em voz alta, sem pressas nem demoras, o citado diálogo e registre o tempo de sua leitura, verificará que esta dura um pouco mais de três minutos, coincidindo portanto esta duração com a temporalidade diegética indicada pelo narrador.

Todavia, nem em tal caso se pode rigorosamente falar de absoluta igualdade entre o segmento diegético e o segmento narrativo, pois que, como observa pertinentemente Gérard Genette, o discurso não reproduz “a velocidade com a qual aquelas palavras foram pronunciadas, nem os eventuais tempos mortos da conversação”. De qualquer modo, é nos segmentos do discurso constituídos exclusiva, ou predominantemente, por diálogos – segmentos que a crítica anglo-americana, na esteira de Henry James e Percy Lubbock, chama cenas (scenes) – que se verifica uma isocronia relativa – uma tendência para ela – entre o tempo diegético e o tempo narrativo. Pondo de lado estes casos, o que o romance apresenta são anisocronias, diferenças de duração, entre esses dois tempos.

O narrador pode relatar velozmente, através de fragmentos do discurso que denominaremos resumos (na crítica de língua inglesa, summaires), acontecimentos diegéticos ocorridos em longos períodos de tempo. Fernando Namora condensa nesta meia dúzia de linhas sucessos que se desenrolaram durante grande parte da noite: “Tinham perdido a noite na ceifa dos tojos e a segurar a burra sobre as labaredas da fogueira. Aquilo acabara numa gritaria dos diabos, quando Alice, presa à garupa do animal, viu que o pai e o compadre não escolhiam os meios de manter a besta amarrada ao sacrifício. Berrando uns com os outros, lambidos pelo fogo, como danados, pareciam demônios fugidos do

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inferno”14. O resumo pode ser mais condensado ainda, bastando escassas palavras para referir uma temporalidade diegética muito dilatada: “E nesse ano passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos murcharam. Outros anos passaram.”15

Tais resumos extremamente condensados avizinham-se das elipses, anisocronias resultantes do fato de o narrador excluir do discurso determinados acontecimentos diegéticos, dando assim origem a mais ou menos extensos vazios narrativos. A elipse é um processo fundamental da técnica narrativa, pois nenhum narrador pode relatar com estrita fidelidade todos os pormenores da diegese. Umas vezes, o narrador informa explicitamente o leitor de que eliminou da narrativa um certo número de fatos, por irrelevantes, monótonos, maçadores, escabrosos, etc.; outras vezes, porém, a elipse não é assinalada especificamente no texto, devendo o leitor identificá-la pela análise das sintagmáticas diegética e narrativa. Estas elipses implícitas desempenham uma função muito importante no romance contemporâneo: já não se trata de aliviar o texto de pormenores diegéticos destituídos de interesse ou chocantes para o leitor, mas de elidir intencionalmente do discurso elementos diegéticos fundamentais, que o leitor terá de reconstituir, baseando-se nas informações fragmentárias que o texto lhe oferece.

As anisocronias podem resultar, porém, do fato de uma temporalidade narrativa longa. As descrições e as análises minuciosas de um fato, de uma ação, de um gesto, de um estado de alma, podem gerar um tempo do discurso superior ao tempo da diegese, determinando, com as suas pausas, um ritmo vagaroso da narrativa. Igual conseqüência dimana das digressões que o narrador pode inserir no discurso e que suspendem a progressão da diegese. A principal causa, porém, de alongamento da temporalidade narrativa em relação à temporalidade diegética consiste na possibilidade que o narrador detém de instaurar uma espécie de narrativa segunda que se vem enxertar na diegese primária – ou, talvez melhor, que nasce desta diegese primária e que se desenvolve, por vezes, dentro dela como uma espécie de metástase diegética -, explorando as virtualidades da memória e da retrospecção e devassando o enredado mundo interior das personagens. A utilização de tais técnicas narrativas permitiu a Claude Mauriac escrever um romance de duas centenas de páginas, L’Agrandissement, cuja diegese primária, digamos assim, tem como limites cronológicos os breves minutos em que perdura uma luz vermelha dos sinais de trânsito. A um tempo objetivo tão escasso corresponde portanto um tempo psicológico, existencial, bastante dilatado. A extensão do tempo do discurso é gerada pela dimensão deste tempo psicológico.

O monólogo interior constitui uma das técnicas mais utilizadas pelos romancistas contemporâneos a fim de representarem os meandros e as complicações da corrente de consciência de uma personagem e assim poderem analisar a urdidura do tempo interior.

A técnica do monólogo interior foi inventada por Édouard Dujardin (1861-1949), obscuro escritor francês que publicou, em 1887, um romance em que o monólogo interior era abundantemente utilizado – Les lauriers sont coupés. James Joyce reconheceu em Dujardin o inspirador da técnica dos monólogos interiores de Ulisses, arrancando assim do olvido o romancista gaulês.

Num livrinho com o título de Le monologue intéieur, publicado em 1931, Dujardin caracterizou assim o monólogo interior: “o monólogo interior, como qualquer monólogo, é

14 Fernando Namora, O trigo e o joio, 8ª ed., Lisboa. Publicações Europa-América, 1972, p. 317.15 Eça de Queiróz, Os maias, p.689.

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um discurso da personagem posta em cena e tem como objetivos introduzir-nos diretamente na vida interior dessa personagem sem que o autor intervenha com explicações ou comentários, e, como qualquer monólogo, é um discurso sem auditor e um discurso não pronunciado; mas diferencia-se do monólogo tradicional pelo seguinte: quanto à sua matéria, é uma expressão do pensamento mais íntimo, mais próximo do inconsciente; quanto ao seu espírito, é um discurso anterior a qualquer organização lógica, reproduzindo esse pensamento no seu estado nascente e com aspecto de recém-vindo; quanto à sua forma, realiza-se em frases diretas reduzidas ao mínimo de sintaxe”. Esta definição de Dujardin pode ser com razão criticada nalguns pontos, mas oferece uma noção aceitável dos caracteres fundamentais do monólogo interior: é um monólogo não pronunciado, que se desenrola na interioridade da personagem – e há determinados estados psicofisiológicos particularmente favoráveis à eclosão do monólogo interior: rêverie, insônias, cansaço, etc.-, que não tem outro auditor que não seja a própria personagem e que se apresenta sob uma forma desordenada e até caótica – sintaxe extremamente frouxa, pontuação escassa ou nula, grande liberdade, sob todos os pontos de vista, no uso do léxico, etc. -, sem qualquer intervenção do narrador e fluindo à medida que as idéias e as imagens, ora insólitas ora triviais, ora incongruentes ora verossímeis, vão aparecendo, se vão atraindo ou repelindo na consciência da personagem. O monólogo interior é, pois, uma técnica adequada à representação dos conteúdos e processos da consciência – e não apenas dos conteúdos mais próximos do inconsciente, como afirma Dujardin -, diferenciando-se do monólogo tradicional, direto ou indireto, pelo fato de captar os conteúdos psíquicos no seu estado incoativo, na confusão e na desordem que caracterizam o fluxo da consciência, sem a intervenção disciplinadora e esclarecedora do narrador.

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AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1983. 5ª ed. Vol. 1.

[o que está em cinza não está no site]

4. Gêneros Literários

Link concepções clássicas: (p. 340-347)

4.2. Os gêneros literários nas poéticas de Platão e de Aristóteles

Platão, no livro III de A República., estabeleceu uma fundamentação e uma classificação dos gêneros literários que, tanto pela sua relevância intrínseca como pela sua influência ulterior, devem ser consideradas como um dos marcos fundamentais da genologia, isto é, da teoria dos gêneros literários.

Segundo Platão, todos os textos literários (“tudo quanto dizem os prosadores e poetas”) são “uma narrativa de acontecimentos passados, presentes e futuros”. Na categoria global da diegese, distingue Platão três modalidades: a simples narrativa, a imitação ou mímese e uma modalidade mista, conformada pela associação das duas anteriores modalidades. A simples narrativa, ou narrativa estreme, ocorre quando «é o próprio poeta que fala e não tenta voltar o nosso pensamento para outro lado, como se fosse outra pessoa que dissesse, e não ele»; a imitação, ou mímese, verifica-se quando o poeta como que se oculta e fala «como se fosse outra pessoa», procurando assemelhar «o mais possível o seu estilo ao da pessoa cuja fala anunciou», sem intromissão de um discurso explícita e formalmente sustentado pelo próprio poeta (“[...] é quando se tiram as palavras do poeta no meio das falas, e fica só o diálogo”); a modalidade mista da narrativa comporta segmentos de simples narrativa e segmentos de imitação. Estas três modalidades do discurso consubstanciam-se em três macro-estruturas literárias, em cada uma das quais são discrimináveis diversos gêneros: “em poesia e em prosa há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes que é a tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta – é nos ditirambos que pode encontrar-se de preferência; e outra ainda constituída por ambas, que se usa na composição da epopéia e de muitos outros gêneros [...]”.

Assim, Platão lança os fundamentos de uma divisão tripartida dos gêneros literários, distinguindo e identificando o gênero imitativo ou mimético, em que se incluem a tragédia e a comédia, o gênero narrativo puro, prevalentemente representado pelo ditirambo, e o gênero misto, no qual avulta a epopéia. Nesta tripartição, não é claro, nem a nível conceptual nem a nível terminológico, o estatuto da poesia lírica (...).

Segundo Aristóteles, a matriz e o fundamento da poesia consistem na imitação: «Parece haver, em geral, duas causas, e duas causas naturais, na gênese da Poesia. Uma é que imitar é uma qualidade congênita nos homens, desde a infância (e nisso diferem dos outros animais, em serem os mais dados à imitação e em adquirirem, por meio dela, os seus primeiros conhecimentos); a outra, que todos apreciam as imitações.» A mímese poética,

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que não é uma literal e passiva cópia da realidade, uma vez que apreende o geral presente nos seres e nos eventos particulares – e, por isso mesmo, a poesia se aparenta com a filosofia –, incide sobre «os homens em ação», sobre os seus caracteres (ethe), as suas paixões (pathe) e as suas ações (praxeis). A imitação constitui, por conseguinte, o princípio unificador subjacente a todos os textos poéticos, mas representa também o princípio diferenciador destes mesmos textos, visto que se consubstancia com meios diversos, se ocupa de objetos diversos e se realiza segundo modos diversos.

Consoante os meios diversos com que se consubstancia a mímese, torna-se possível distinguir, por exemplo, a poesia ditirâmbica e os nomos, por um lado, pois que são gêneros em que o poeta utiliza simultaneamente o ritmo, o canto e o verso, e a comédia e a tragédia, por outro, pois que são gêneros em que o poeta usa aqueles mesmos elementos só parcialmente (assim, na tragédia e na comédia o canto é apenas utilizado nas partes líricas).

Se se tomar em consideração a variedade dos objetos da mímese poética, isto é, dos «homens em ação», os gêneros literários diversificar-se-ão conforme esses homens, sob o ponto de vista moral, forem superiores, inferiores ou semelhantes à média humana. Os poemas épicos de Homero representam os homens melhores, as obras de Cleofonte figuram-nos semelhantes e as paródias de Hegemão de Taso imitam-nos piores. A tragédia tende a imitar os homens melhores do que os homens reais e a comédia tende a imitá-los piores; a epopéia assemelha-se à tragédia por ser uma «imitação de homens superiores».

Finalmente, da diversidade dos modos por que se processa a imitação procedem importantes diferenciações, já que o poeta pode imitar os mesmos objetos e utilizar idênticos meios, mas adotar modos distintos de mímese. Aristóteles contrapõe o modo imitativo, a imitação narrativa, ao modo dramático, em que o poeta apresenta «todos os imitados como operantes e atuantes». No modo narrativo, é necessário discriminar dois submodos: o poeta narrador pode converter-se «até certo ponto em outro», como acontece com Homero, narrando através de uma personagem, ou pode narrar diretamente, por si mesmo e sem mudar. (...) O modo narrativo permite que o poema épico tenha uma extensão superior à da tragédia: nesta última, não é possível imitar várias partes da ação como desenvolvendo-se ao mesmo tempo, mas apenas a parte que os atores representam na cena», ao passo que, na epopéia, precisamente por se tratar de uma narração, o poeta pode «apresentar muitas partes realizando-se simultaneamente, graças às quais, se são apropriadas, aumenta a amplitude do poema». Esta variedade de episódios da epopéia contribui para dar esplendor ao poema e para recrear o seu ouvinte.

(...)

4.3. A doutrina horaciana sobre os gêneros literários

A Epístola ad Pisones, ou Ars poetica, de Horácio mergulha as suas raízes doutrinárias na tradição da poética aristotélica, não decerto pelo conhecimento direto da obra do Estagirita, mas pela mediação de várias influências assimiladas pelo poeta latino, em particular a influência de Neoptólemo de Pário, um teorizador da época helenística vinculado ao magistério de Aristóteles e da escola peripatética sobre matérias de estética literária. Sem possuir a sistematicidade e a profundeza analítica da Poética de Aristóteles, a

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Epístola. ad Pisones dedica todavia importantes. reflexões e juízos à problemática dos gêneros literários, tendo desempenhado, ao longo da Idade Média e sobretudo desde o Renascimento até ao neoclassicismo setecentista, uma função historicamente muito produtiva na constituição de teorias e no estabelecimento de preceitos atinentes àquela problemática.

Não se encontram explicitamente formuladas em Horácio, ao contrário do que se verifica em Platão e Aristóteles, uma caracterização e uma classificação dos gêneros literários em grandes categorias – e.g., a distinção entre o modo dramático e o modo narrativo –, embora esquemas conceptuais de teor similar estejam subjacentes a muitos dos preceitos da Epístola ad Pisones.

Horácio concebe o gênero literário como conformado por uma determinada tradição formal, na qual avulta o metro, por uma determinada temática e por uma determinada relação que, em função de fatores formais e temáticos, se estabelece com os receptores. (...)

O poeta deve adotar, em conformidade com os temas tratados, as convenientes modalidades métricas e estilísticas. A infração desta norma, que em termos de gramática do texto poderíamos considerar como reguladora da coerência textual, desqualifica radicalmente o poeta.

(...) Horácio concebia portanto os gêneros literários como entidades perfeitamente diferenciadas entre si, configuradas por distintos caracteres temáticos e formais, devendo o poeta mantê-los cuidadosamente separados, de modo a evitar, por exemplo, qualquer hibridismo entre o gênero cômico e o gênero trágico (...).

Embora Horácio faça referência a diversos tipos de composições líricas - hinos, encômios e epinícios, poemas eróticos e escólios –, a lírica, como categoria genérica, não aparece adequadamente caracterizada e delimitada na Epístola ad Pisones.

4.9 – Reformulações do conceito de genérico na teoria da literatura contemporânea

Link formalismo Russo: (p. 370-373)

(...)

O formalismo russo, cuja fundamentação anti-idealista e cujo “novo pathos de positivismo científico” foram realçados por Eikhenbaum, atribuiu logicamente ao gênero, quer na praxis da literatura, quer na metalinguagem da teoria, da crítica e da história literárias, uma importância de primeiro plano. Com efeito, um princípio teorético essencial do formalismo russo consiste na afirmação de que a “soledade” e a “singularidade” de cada obra literária não existem, porque todo o texto “faz parte do sistema da literatura, entra em correlação com este mediante o gênero [...]”. Como escreve Tomachevski num dos capítulos da sua obra intitulada Teoria da literatura, o gênero define-se como um conjunto sistêmico de processos construtivos, quer a nível técnico-formal, manifestando-se tais caracteres do gênero como os processos dominantes na criação da obra literária.(...)

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Rejeitando qualquer dogmatismo reducionista que originaria uma classificação rígida e estática, os formalistas russos conceberam o gênero literário como um aentidade evolutiva, cujas transformações adquirem sentido no quadro geral do sistema literário e na correlação deste sistema com as mudanças operadas no sistema social, e por isso advogaram uma classificação historicamente descritiva dos gêneros. (...)

(...)

Com a herança teórica e metodológica do formalismo russo se relaciona ainda a caracterização dos gêneros literários proposta por Jakobson, baseada na função da linguagem que exerce o papel de subdominante em cada gênero (o papel de função dominante, de acordo com a concepção jakobsoniana da literariedade, é exercido pela função poética): o gênero épico, concentrado sobre a terceira pessoa, põe em destaque a função referencial; o gênero lírico, orientado para a primeira pessoa, está vinculado estreitamente à função emotiva; o gênero dramático, “poesia da segunda pessoa”, apresenta como subdominante a função conativa e “caracteriza-se como suplicatório ou exortativo conforme a primeira pessoa esteja nele subordinado à segunda ou a segunda à primeira”.

Link Frye: (p. 375-379)

Uma das mais ambiciosas e originais sínteses da problemática teorética dos gêneros literários foi elaborada por Northrop Frye, na sua obra Anatomia da crítica (1957). Logo na “Introdução polêmica” deste livro brilhante e, às vezes, paradoxal, Northrop Frye enumera entre os problemas mais importantes da poética a delimitação e a caracterização das “categorias primárias da literatura”, sublinhando enfaticamente: “Descobrimos que a teoria crítica dos gêneros parou precisamente onde Aristóteles deixou-a”. Como outros investigadores contemporâneos, Frye admira na Poética de Aristóteles o modelo epistemológico e metodológico que a teoria da literatura do nosso tempo, orientada por ideais de racionalidade científica, pode e deve utilizar na análise dos fatos e dos problemas surgidos posteriormente a Aristóteles. (...)

Em primeiro lugar, Frye estabelece uma teoria dos modos ficcionais, inspirando-se na caracterização aristotélica dos caracteres das ficções poéticas, os quais podem ser melhores, iguais ou piores “do que nós somos”. Tal classificação dos modos ficcionais, que não apresenta quaisquer implicações moralísticas, é ideada em função da capacidade de ação do herói das obras de ficção e da sua relação com os outros homens e com o meio. (...)

Por outro lado, Northrop Frye estabelece a existência de quatro categorias narrativas mais amplas do que os gêneros literários geralmente admitidos e logicamente anteriores a eles. Estas categorias, que Frye mythoi, fundam-se na oposição e na interação do ideal com o atual, do mundo da inocência com o mundo da experiência: o “romance” é o mythos do mundo da inocência e do desejo; a ironia ou a sátira enraízam-se no mundo defectivo do real e da experiência; a tragédia representa o movimento da inocência, através da hamartia ou falta, até à catástrofe; a comédia caracteriza-se pelo movimento ascensional do mundo da experiência, através de complicações ameaçadoras. (...)

Finalmente, Northrop Frye constrói uma teoria dos gêneros, partindo do princípio de que as distinções genéricas em literatura têm como fundamento o radical de apresentação: as palavras podem ser representadas, como se em ação, perante o espectador; podem ser

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recitadas ante um ouvinte; podem ser cantadas ou entoadas; podem, enfim, ser escritas para um leitor. (...)

O epos constitui aquele gênero literário em que o autor ou um recitador narram oralmente, dizem os textos, peranteum auditório postado à sua frente. (...)

O gênero lírico caracteriza-se pelo ocultamento, pela separação do auditório em relação ao poeta. O poeta lírico pretende em geral falar consigo mesmo ou com um particular interlocutor. (...)

O gênero dramático caracteriza-se pelo ocultamento, pela separação do autor em relação ao seu auditório, cabendo aos caracteres internos da história representada dirigirem-se diretamente a este mesmo auditório.

Ao gênero literário cujo radical de apresentação “é a palavra impressa ou escrita”, tal como acontece nos romances e nos ensaios, concede Frye a designação de ficção, embora reconhecendo que se trata de uma escolha arbitrária. Na ficção, ao contrário do que acontece no epos, tende a dominar a prosa, porque o ritmo contínuo desta adequa-se melhor à “forma contínua do livro”.

Link Emil Staiger: (p. 381-382)

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Numerosos e importantes estudos sobre os gêneros literários se têm ficado a dever, nas últimas décadas, a investigadores que se inserem na grande tradição do idealismo e do historicismo germânico. Entre esses estudos, avulta a obra de Emil Staiger intitulada Grundbegriffe der Poetik [Conceitos fundamentais da Poética]. Condenando uma poética apriorística e anti-histórica, Staiger acentua a necessidade de a poética se apoiar firmemente na história, na tradição formal concreta e histórica da literatura, já que a essência do homem reside na sua temporalidade. Retomando a tradicional tripartição de lírica, épica e drama, reformulou-a profundamente, substituindo estas formas substantivas e substancialistas pelas designações adjetivais e pelos conceitos estilísticos de lírico, épico e dramático. O que permite fundamentar a existência destes conceitos básicos da poética? A própria realidade do ser humano, pois “os conceitos do lírico, do épico e do dramático são termos da ciência literária para representar possibilidades fundamentais da existência humana em geral; e existe uma lírica, uma épica e uma dramática, porque as esferas do emocional, do intuitivo e do lógico constituem em última instância a própria essência do homem, tanto na sua unidade como na sua sucessão, tal como aparecem refletidas na infância, na juventude e na maturidade”. Staiger caracteriza o lírico como recordação, o épico como observação e o dramático como expectativa. Tais caracteres distintivos conexionam–se obviamente como a tridimencionalidade do tempo existencial: a recordação implica o passado, a observação situa-se no presente, a expectativa no futuro. Deste modo, a poética alia-se intimamente à ontologia e à antropologia e a análise dos gêneros literários volve-se em reflexão sobre a problemática existencial do homem, sobre a problemática do “ser e do tempo”.