6b linguagem e experiência linguística ausente · prof. maria carlota rosa - ufrj/ dept. de...

34
PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 1 Os surdos profundos LEF140 Prof. Maria Carlota Rosa 6B – Linguagem e experiência linguística ausente

Upload: lamduong

Post on 13-Dec-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 1

Os surdos profundos

LEF140Prof. Maria Carlota Rosa

6B – Linguagem e experiência linguística ausente

Hellen Keller (Apud Northern & Downs, 2002: 4)

... sou tão surda quanto cega. Os problemas dasurdez são mais profundos e muito maiscomplexos, senão mais importantes, do que osda cegueira. A surdez é um infortúnio muito pior,porque significa a perda dos estímulos maisvitais – o som da voz que traz a linguagem, ativao pensamento e nos mantém na companhiaintelectual dos homens.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 2

Se não se der às crianças surdas outra alternativa que não uma língua oral, sem a audição pode-se criar uma situação de isolamento, e o desenvolvimento linguístico tornar-se muito difícil.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 3

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 4

O feto nasce com bilhões de neurônios com trilhões de conexões que, no caso do córtex auditivo, esperam a estimulação auditiva para fortalecê-los [....]. Se não houver estimulação, como no caso da surdez, as sinapses entram em um processo denominado “definhamento”. [....]Um lactente surdo que cresce sem a capacidade de ouvir a fala tem cada vez menos sinapses disponíveis para desenvolver percepções auditivas e suas habilidades de linguagem associadas.

(Northern & Downs, 2002: 3)

5

Mas para os pais não é simples perceber os problemas de audição, porque até os 4 meses “as respostas auditivas são limitadas e, em grande parte, reflexas” (Northern & Downs,2002: 108). A figura ao lado (extraída de Northern & Downs, 2002:107) demonstra que somente por volta de um ano de idade a criança começa a localizar de fato a direção na origem do estímulo auditivo.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 6

Crianças surdas com pais ouvintesTrês em cada 1000 crianças nascem com perda auditiva bilateral significativa e permanente.

Outras três em 1000adquirirão a surdez noinício da infância

(Northern & Downs,2002:4).

Cerca de 90 a 96% dascrianças com surdez pré-linguística − isto é, quenasceram surdas ou ficaramsurdas até os três anos − têmpais ouvintes (Mogford, 1997:114; Pinker, 1994: 39) que,em geral, não são usuários deuma língua de sinais ou não ausam como um falante nativo.

• A referência que aqui se faz à surdez é sempre acasos de perda auditiva profunda bilateral.

• As perdas auditivas são classificadas quanto ao grau,levando em conta o melhor ouvido. Partindo daaudição normal, tem-se diferentes níveis de perda.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 7

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 8

(Northern & Downs, 2002: 17)

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 9

Graus de deficiência auditiva(Goldfeld, 2000:97)

leve: de 26 a 40 dB;moderada: 41 a 70 dB;severa: 71 a 90 dB;

profunda: a partir de 91dB.

mas nas CRIANÇAS

(Northern & Downs, 2002: 19-21)

leve:15-30 dB NA;moderada: 31-50 dB NA;severa: 50-70 dB NA;profunda: a partir de 71dB NA*.

*O decibel não é uma medida absoluta. “Nas medidas audiométricas, o nível de referência para o decibel mostrado nos audiogramas é o nível basal da audição normal biológica, ou o 0 dB NA (nível de audição).(Northern & Downs, 2002: 8-9).

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 10

• Para as crianças, “a deficiência se inicia a cada decibel de perda auditiva superior a 15 dB NA. [....] os lactentes e outras crianças pequenas que estão começando a aprender as relações da fala precisam ouvir todos os sons claramente para implantar solidamente as percepções”.

(Northern &¨Downs, 2002: 14)

• Para os adultos, perdas acima de 25dB são consideradas incapacitantes.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 11

É possível crescer sem ter uma língua?

Os diferentes médicos que a atenderam não perceberam a surdez e a diagnosticaram como “retardada ou emocionalmente perturbada”. Apenas aos 31 anos um neurologista percebeu que o problema da paciente era surdez.

Com a intervenção, “Chelsea” passou a ouvir. Não conseguiu, porém, no tocante à língua, alcançar um mínimo de estrutura gramatical, embora tenha aprendido vocabulário razoável (cerca de 2000 palavras), tenha aprendido a ler, a escrever, a comunicar-se e tenha até mesmo arranjado um emprego.

“Chelsea”,Califórnia

(EU

A)

31

an

os

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 12

Breakfast eating girlBanana the eatThe woman is bus the goingI Wanda be drive come

Alguns exemplos (extraídos de Steinberg, Nagata, Aline, 2001: 137)

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 13

vocabulário x sintaxe

(mas observe que o artigo acompanha o nome)

Há outros casos conhecidos, contados em livro

Um deles está no livro de Anne M. Bolanger (e Adair N. Renning).

I Was #87: A Deaf Woman’s Ordeal of Misdiagnosis, Institutionalization, and Abuse

é a história da autora, que conseguiu sobreviver a um diagnóstico de retardo e às consequências desse erro.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 14

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 15

O jornalista Dave Bakke escreveu God Knows His Name: The True Story of John Doe No 24, assim resumido no Google books:

Police found John Doe No. 24 in the early morning hours of October 11, 1945, in Jacksonville, Illinois. Unable to communicate, the deaf and mute teenager was labeled “ feeble minded” and sentenced by a judge to the nightmarish jumble of the Lincoln State School and Colony in Jacksonville. He remained in the Illinois mental health care system for over thirty years and died at the Sharon Oaks Nursing Home in Peoria on November 28, 1993. Deaf, mute, and later blind, the young black man survived institutionalized hell: beatings, hunger, overcrowding, and the dehumanizing treatment that characterized state institutions through the 1950s. In spite of his environment, he made friends, took on responsibilities, and developed a sense of humor. People who knew him found him remarkable. [....] As death approached for the man known only as John Doe No. 24, his one-time nurse Donna Romine reflected sadly on his mystery. “ Ah, well,” she said, “ God knows his name.”

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 16

Talvez a história mais conhecida, porque contada em livro(Dummy, de Ernest Tidyman, 1974)e em filme (Dummy, 1979, dirigido por Frank Perry – título em português “Dummy: um amor diferente”), é a de Donald Lang, que alternou cerca de 30 anos de sua vida entre o presídio e instituições de saúde mental, acusado do homicídio de duas prostitutas.

Uma criança surda não poderia aprender uma língua oral simplesmente lendo lábios?

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 17

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 18

A ideia de uma facilidade natural do surdo em ler lábios de certa forma foi reforçada em programas de televisão

“nasceram surdos e tiveram que aprender a leitura dos lábios para comunicar-se com as outras pessoas”Fantástico, 26/06/2006https://www.youtube.com/watch?v=HUfBCmMGWKw

“As crianças surdas elas passam por um programa de estimulação à leitura labial. Elas são de uma certa forma ensinadas desde cedo a ... a fazer uso desse recurso que vai assim ser assim fundamental para ela entender o que o outro está falando.” Fantástico, 19/06/2006https://www.youtube.com/watch?v=bsf62HCwa6s

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 19

Não é bem assim que acontece. Somente as crianças assistidas pelos serviços de fonoaudiologia é que passam pelo treinamento de leitura labial.”(Prof. Deize Vieira dos Santos – comunicação pessoal 08/06/2015)

A ideia muito comum de que as criançassurdas com níveis de perda de audiçãomuito elevados podem aprender comfacilidade uma língua oral lançando mãoda leitura labial é ingênua e, como notaSacks (1989: 43), não leva em conta queuma criança com surdez pré-linguísticaprofunda não tem qualquer inclinaçãoinata para falar.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 20

Apenas com o auxílio da visão, comodistinguir , por exemplo:• duas consoantes como /p/ e /b/, em tudo

idênticas a não ser pela vibração das cordasvocais?

• ou como /m/ e /b/, que se distinguem pelomovimento do véu palatino?

• ou perceber onde está o acento?• ou perceber as diferentes curvas melódicas

que diferenciam uma pergunta de umaafirmação?

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 21

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 22

SAENKO, LIVESCU, GLASS & DARREL. 2005

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 23

• Quando já se conhece uma língua, há estratégias para compreender a fala mesmo no contexto em que há muito ruído de fundo.

• Como se conhece a língua e o contexto, há expectativa quanto ao que será dito e é possível preencher lacunas. E ouvir o que o ruído à nossa volta impediu de ouvir de fato.

Warren, 1970: o Efeito da Restauração Fonêmica

O estudo de Richard M. Warren publicado em 1970 demonstrava que, ao ouvir uma frase em que havia um ruído estranho (como uma tossida) no lugar de um dado fonema, os sujeitos pesquisados não percebiam a ausência do fonema e ainda consideravam que a tosse tinha acontecido em outra parte da frase.

Por outro lado, se no lugar do fonema houvesse apenas silêncio, este era identificado e corretamente localizado.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 24

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 25

Warren & Warren, 1970: o contextoIt was found that the *eel was on the axle

shoetableorange

Na posição assinalada com o asterisco, em lugar de uma consoante era inserido um ruído não linguístico (tosse, por exemplo), de modo que a consoante inicial não era pronunciada.

Os participantes, por conseguinte, não podiam ouvir a consoante inicial, porque ela não era dita.

the wheel was on the axle (‘a roda estava no eixo’)the heel was on the shoe (‘o salto estava no sapato’)the meal was on the table (‘a refeição estava na mesa’)the peel was on the orange (‘a casca estava na laranja’)

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 26

Face à solicitação para dizerem o que tinham ouvido, os participantes recompunham a frase, ajudados pelo contexto, e afirmavam ter ouvido uma das frases seguintes:

the wheel was on the axle (‘a roda estava no eixo’)the heel was on the shoe (‘o salto estava no sapato’)the meal was on the table (‘a refeição estava na mesa’)the peel was on the orange (‘a casca estava na laranja’)

E também a tosse, mas em outro lugar.

Newman, 2004: testando o efeito da restauração fonêmica em crianças

Embora as crianças também possam interpretar o sinal acústico num ambiente com ruído, demonstraram maior dificuldade que os adultos.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 27

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 28

E uma criança surda aprendendo uma língua oral?

Se o indivíduo nasceu surdo ou se tornousurdo antes dos três anos, sofrerá “grandedificuldade em relação à aquisição dalinguagem” (Goldfeld, 2000: 97), e o atrasona linguagem será o principal aspecto geradopela surdez (vide Goldfeld, 2000: 97), amenos que tenha como alternativa umalíngua de sinais.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 29

Aos 12 meses

Nenhum balbucio ou imitação vocal diferenciada

Aos 18 meses

Não usa palavras simples

Aos 24 meses

Menos de 10 palavras simples

Aos 30 meses

Menos de 100 palavras

Nenhuma combinação de duas palavras

Fala ininteligível

Aos 36 meses

Menos de 100 palavras

Nenhuma sentença telegráfica

Clareza na fala inferior a 50%

Aos 48 meses

Menos de 600 palavras

Não usa sentenças simples

Clareza da fala inferior a 80 %

Reconhecimento de deficiências auditivas na criança

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 30

BERKE, Jamie. Deaf History - Deaf, Not Retarded. https://www.verywell.com/deaf-history-deaf-not-

retarded-1046548

CURTISS, Susan.1977. Genie: A Psycholinguistic study of a modern-day “wild child”. New York/

San Francisco/ London: Academic Press.

CURTISS, Susan; FROMKIN, Victoria; KRASHEN, Stephen; RIGLER, David & RIGLER, Marilyn. 1974.

The linguistic development of Genie. In: LUST, Barbara C. & FOLEY, Claire. 2004. First language

acquisition: The essential readings. Malden: Blackwell, 2005. p.126-154.

DAVIS, Kingsley. 1947. American Journal of Sociology, 52 (5): 432-437. Mar. 1947

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 32

GOLDFELD, Marcia. 2000. Surdez. In: GOLDFELD, Marcia, org. 2000. Fundamentos em Fonoaudiologia: linguagem. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2003. p. 97-112.

MASON, Marie K. 1942. Learning to Speak After Six and One-half Years of Silence . Journal of Speech Disorders,

7: 295-304. December 1942.

MOGFORD, K. 1988. Oral language acquisition in the prelinguistically deaf. In: BISHOP, Dorothy & MOGFORD, Kay, eds. 1988. Language development in exceptional circumstances. Hove & New York: Psychology Press. p.110-131.

NEWMAN, Rochelle S. 2004. Perceptual restoration in children versus adults.Applied Psycholinguistics, 25: 481–493.

NORTHERN, Jerry L. & DOWNS, Marion P. 2002. Audição na infância. Trad. Antonio F. D. Paulo; Maria de Fátima Azevedo. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005.

PINKER, Steven. 1994. The language instinct: How the mind creates language. New York: William Morrow.

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 33

SAENKO, Kate; LIVESCU, Karen; GLASS, James & DARREL, Trevor. 2005. Productiondomain modeling of pronunciation for visual speech recognition. Proceedings of theInternational Conference on Acoustics, Speech, and Signal Processing, pp. 473-476, Philadelphia, March 2005. Disponível emhttp://ttic.uchicago.edu/~klivescu/papers/saenko_etal_ICASSP05.pdf

STERNBERG, Robert J. 2006. Psicologia Cognitiva. 4a. ed.Trad. Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2008.

WARREN, Richard M. 1970. Perceptual restoration of missing speech sounds. Science, 167 (3917): 392-393. Disponível em:http://www.ling.upenn.edu/courses/Fall_2013/ling520/Warren70.pdf

Warren , Richard M. & Warren, Roslyn P. 1970. Auditory Illusions and Confusions. Scientific American, 223: 30-36. Disponível em:http://wexler.free.fr/library/files/warren%20%281970%29%20auditory%20illusions%20and%20confusions.pdf

ZEMLIN, Willard R. 1998. Princípios de Anatomia e Fisiologia em Fonoaudiologia. Trad. Terezinha Oppido. Porto Alegre: Artmed, 2000.

[email protected]

PROF. MARIA CARLOTA ROSA - UFRJ/ DEPT. DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA 34