6880841 flor do pantano patricia potter digitalizado

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  • flor do pntano patrcia potter

    digitalizado porprojeto_romances

    [email protected]

    flor do pntano(swampfire)

    patrcia potter

    este livro faz parte do projeto_romances, sem fins lucrativos e de fs para fs. a

    comercializao deste produto estritamente proibida.

    resumo:um campo de batalha no era lugar para jovens ricas e mimadas. mas a dor e a

    revolta de perder o noivo instigaram em samantha chatam vontade de lutar contra o prprio pai, lutar par vingar a morte do homem amado.

    determinada, vestiu-se de rapaz e juntou-se ao grupo rebelde que tentava libertar a carolina do sul do julgo dos ingleses.

    a cada dia crescia a admirao do major connor o'neil pelo "garoto" corajoso que no hesitava em arriscar a vida em misses perigosas. apegava-se ao jovem de modos

    estranhos sem suspeitar que sob os trajes rudes havia uma bela mulher, que se debatia no drama de no poder revelar sua identidade. principalmente a ele, que odiava a todos da famlia chatam, e a quem passou a amar desesperadamente.

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  • flor do pntano patrcia potter

    nota da autora

    a batalha de eutaw springs foi a maior de todas no conflito nas carolinas.no norte, george washington derrotou cornwallis um ms depois, em

    yorktown, e a guerra, para todos os efeitos, estava terminada. yorktown foi ltima batalha verdadeira, embora ainda acontecessem alguns confrontos de menor importncia entre os ingleses e os espanhis e franceses que haviam ido em socorro da jovem nao americana. charleston foi um dos ltimos redutos britnicos a se renderem e sua queda deu-se no comeo de 1782.

    francis marion, um solteiro convicto, retornou sua fazenda incendiada pelos ingleses e casou-se com uma prima distante, esther vdeau.

    muitos relatos sobre marion so falhos e contraditrios, mas todos concordam ao revelar que ele era tanto tmido como audacioso, duro e sentimental, esperto e tambm religioso. seu bando de rebeldes recebia rapazes de at catorze anos de idade e marion era conhecido pelo cuidado que dedicava aos jovens soldados.

    embora fosse um mestre da guerra, ele a desprezava, no hesitando em desligar de seu regimento qualquer soldado que cometesse atrocidades contra uma famlia tory ou um militar inimigo, jamais aceitando desculpas por atos de crueldade.

    muitas das aventuras narradas neste livro realmente aconteceram, como, por exemplo, a captura do general o'mara, o incndio do forte motte, o ataque a georgetown e vrias outras.

    algumas pessoas tambm existiram. peter horry e billy james foram companheiros de marion na vida real.

    para finalizar, devo dizer que procurei ao mximo ser fiel nas descries do carter de francis marion e dos costumes da poca.

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    prlogo

    samantha despertou de um sono inquieto, ouvindo o som de cascos batendo no cho crestado pelo calor intenso daquele vero. durante a noite debatera-se entre pesadelos causados pela preocupao e pelo medo, acordando vrias vezes, desejando e ao mesmo tempo temendo que amanhecesse.

    afastando as sensaes desagradveis experimentadas na escurido, deixou que cada parte de seu corpo fosse devagar recebendo energia. sorriu, pensando que aquele seria o dia de seu casamento.

    saiu da cama e correu para a janela, abrindo as cortinas verdes. tudo o que acontecesse nas horas seguintes teria importncia decisiva: as condies de tempo, as entradas e sadas do pai, as tarefas dos escravos.

    escancarou a janela, deliciando-se por um momento com o odor de jasmim e de magnlia misturado forte fragrncia dos loureiros. o perfume da natureza parecia celebrar aquele recanto estuante de vida da carolina do sul.

    uma carruagem desaparecia numa curva da estrada poeirenta e samantha admirou-se ao ver que o pai saa to cedo, imaginando o que o fizera contrariar seus hbitos. os primeiros raios de luz apenas tingiam o horizonte de rosa e dourado, prenunciando o nascer do sol. aquela aurora colorida era a primeira de sua nova vida, que compartilharia com brendan.

    respirou profundamente, enchendo os pulmes com o ar perfumado e ainda fresco. aos poucos, o dia se transformaria numa fornalha, mas nem aquilo a perturbaria quando estivesse junto de brendan, fugindo com ele.

    o corao da moa apertou-se de medo, mas aquela sensao desapareceu ao ser suplantada pela felicidade que a invadiu de repente. no devia pensar nas conseqncias do que faria, quando estava a um passo de realizar seu sonho de amor. seu pai ficaria furioso, certamente, mas teria de aceitar o casamento. no teria outra escolha. e, afinal, a unio dos dois jovens poderia acabar de uma vez por todas com a inimizade de duas famlias. portanto, o ato de rebeldia acabaria por tornar-se benfico para todos.

    os pensamentos de otimismo marcante conseguiram acalm-la. tudo daria certo. iria ao encontro de brendan no lugar combinado e os dois viajariam para charleston, onde um amigo que era ministro os casaria. outro amigo lhes oferecera a casa que possua na cidade por um ms: tempo suficiente para que a situao se definisse. o que aconteceria depois ia depender das atitudes de suas famlias, mas os noivos estavam preparados para enfrentar a vida sozinhos, se fosse necessrio. encontrariam foras no amor que os

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  • flor do pntano patrcia potter

    unia para vencer todos os obstculos."para o inferno com a poltica", ela pensou. "que se danem todos os tories

    e os whigs que dividiram a parquia em duas e cavaram o abismo de dio entre meu pai e os o'neill.

    percebendo que pensamentos amargos ameaavam anuviar sua paz de esprito, ela os espantou. poltica e desavenas nada tinham a ver com ela e brendan, cujo amor florescera no decorrer dos anos, desde que eram crianas.

    afastou-se da janela e colocou-se na frente do grande espelho que pendia de uma parede, olhando-se criticamente. achava seu rosto pequeno demais e os lbios muito carnudos, mas gostava dos olhos imensos, de um tom escuro de azul. gostava tambm dos longos cabelos negros que brilhavam como o rico mogno que decorava todos os cmodos da casa-grande de chatham oaks. o corpo era esguio, cheio de curvas, e o rosto refletia intensa vivacidade. brendan a chamava de "alegre fada dos bosques", mas samantha preferiria ser chamada de "minha bela". de qualquer forma, fada ou bela, naquela noite j seria a sra. brendan 0'neill.

    colocando um ponto final nos devaneios, rapidamente trocou a camisola por um vestido azul e amarrou os cabelos com uma fita da mesma cor. depois de uma ligeira toalete, desceu a escada correndo, ansiosa por saber onde o pai fora to cedo e a que horas pretendia voltar. talvez ficasse em monck's corner at a noite. pela barulheira de cascos com que fora despertada, ele fora acompanhado de guardas, porque desde o incio da guerra o distrito de williamsburg tornara-se um lugar perigoso, tanto para os homens do partido tory como para os do partido whig.

    foi para a cozinha, seu lugar predileto na parte da manh. a velha cozinheira, maudie, praticamente a criara e era sua principal fonte de carinho e tambm de informao. ao aproximar-se da porta, parou admirada com o tom de aflio que percebeu na voz da escrava.

    o que vou diz pobre menina?angel, a filha de maudie, tambm no parecia muito tranqila quando

    respondeu pergunta da me. nada. o sinh disse que vai bate em quem fala quarqu coisa. o sinh brendan tudo na vida da menina samantha. ela precisa sabe. no sou eu que vou conta.intrigada, samantha entrou na cozinha abrindo a porta de repente. contar o qu, maudie?o silncio caiu na cozinha e as duas negras baixaram os olhos. maudie insistiu samantha , o que est acontecendo? o que que eu

    preciso saber?a velha escrava desmanchou-se em lgrimas e tomou uma das mos de

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  • flor do pntano patrcia potter

    samantha. seu pai sabe que a menina e o sinh brendan... interrompeu-se para

    engolir o bolo que se formara na garganta. os dois vo ter um duelo agora de manh.

    um grito involuntrio, carregado da mais profunda dor, escapou dos sbios de samantha.

    no! papai o matar! brendan no tem a habilidade dele! antes que qualquer das duas escravas pudesse abrir a boca para dizer

    alguma coisa, samantha saiu correndo pela porta da cozinha, indo em direo s cocheiras. rapidamente encilhou sua gua e subiu na cerca para montar. sundance, sentindo a inquietao da dona, no precisou de incentivo para lanar-se a galope.

    a moa conhecia muito bem o local usado para duelos. era uma clareira adorvel, cercada por gigantescos ciprestes, a cerca de oito quilmetros da fazenda do pai. ela sempre considerara obsceno um lugar to lindo ser destinado a receber inimigos que se enfrentavam em disputas que inevitavelmente terminavam com uma morte. sempre que passava pelo lugar era assaltada por um estremecimento de horror.

    todavia, dirigia-se para l, correndo em desespero.inclinou-se sobre o pescoo da gua e incitou-a a galopar com mais

    rapidez. precisava impedir o pai de bater-se com brendan. o amor dos dois no podia terminar daquela maneira cruel e sangrenta.

    ela no tomava conhecimento dos galhos que lhe arranhavam as pernas e rasgavam a saia do vestido, assim como nem percebera que a fita escorregara dos cabelos, que esvoaavam livremente a seu redor.

    mais rpido, sundance, por favor. voc precisa ir mais rpido!no demorou muito a avistar a clareira, tomada de esperana. chegaria a

    tempo de interromper o duelo e evitar que seu pai assassinasse o homem que naquele dia ia tornar-se seu marido.

    o barulho de tiros de pistola quebrou a quietude da manh e quando samantha desmontou, percebeu o estranho silncio que cara sobre a clareira. nem os pssaros chilreavam mais e ela no ouviu o farfalhar das folhas agitadas pelos saltos dos esquilos que infestavam os bosques da regio.

    como se estivesse vivendo um pesadelo, aproximou-se da figura estendida no cho.

    os cabelos dourados de brendan brilhavam aos primeiros raios do sol e seus olhos, azuis como os dela, estavam abertos, fixos no cu. a camisa de linho branco ostentava uma mancha vermelha que se alastrava pavorosamente.

    ela colocou a cabea dele no colo, abraando-a com desespero.

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  • flor do pntano patrcia potter

    brendan murmurou. brendan, no me abandone. eu te amo! no me deixe sozinha, por favor, querido.

    no sentia as lgrimas que lhe banhavam o rosto, nem via o ameaador vulto do pai. tambm no percebeu a aproximao do cavaleiro que chegara ao local alguns segundos depois dela.

    o homem desceu do cavalo e rispidamente agarrou-a pelo brao, fazendo-a levantar-se e empurrando-a para longe.

    ajoelhando-se ao lado do morto, ele gentilmente fechou-lhe os olhos e depois fitou samantha com fria e sofrimento profundo estampados no rosto plido.

    est contente com o que fez? foi voc quem o matou! voc o matou pela mo de seu pai!

    depois, vagarosamente, connor o'neill ergueu o corpo do irmo e atravessou-o na sela do cavalo. montando tambm, segurando o cadver com uma das mos, lentamente desapareceu no caminho que saa do bosque.

    samantha deixou-se cair ao lado da poa de sangue que a terra comeava a absorver, soluando, sufocada por uma dor insuportvel.

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    captulo i

    completamente desanimada, samantha permanecia sentada perto da janela de seu quarto trancado, olhando para as rvores que pareciam chorar grossas lgrimas de musco cinzento-prateado. os velhos carvalhos tinham uma aparncia lgubre e ela imaginou como um dia pudera ach-los encantadores, como algo mgico que alimentava sua fantasia. como tudo a seu redor, eram tristes, montonos e decadentes.

    o cu carrancudo, coberto de nuvens escuras, trazia sua lembrana os olhos cinzentos e angustiados de connor 0'neill e a cruel acusao que ele lhe lanara ao rosto naquele dia terrvel, um ano atrs.

    oh, brendan ela falou baixinho na solido que a rodeava como pesada mortalha. preciso de voc, meu amor.

    debruou-se na janela e suspirou. conservava a mesma beleza, mas no ntimo sentia-se vazia, como uma boneca. a magreza fizera desaparecer as curvas suaves, deixando-a com o corpo reto, muito diferente do de uma moa de dezenove anos, em pleno esplendor da juventude. os longos cabelos negros caam em desalinho ao redor do rosto mido e plido. o fulgor que sempre brilhara nos olhos azuis dera lugar a uma expresso melanclica e torturada.

    naquele dia tivera outra briga violenta com o pai, o que resultara em nova recluso no quarto. era uma prisioneira em seu prprio lar. desde a manh do duelo, quando ele a arrastara do local da morte de brendan, as discusses se tornavam cada vez piores.

    naquele dia de dolorosa lembrana, quando chegaram em casa, erguera as mos manchadas de sangue, para que o pai as visse, quase em estado de choque, trmula e soluante.

    eu odeio voc, pai. e o odiarei at o dia da minha morte declarara com voz fria.

    o rosto do homem tingira-se de vermelho, e erguendo uma das mos pesadas, esbofeteara-a com tal fora que a moa cara ao cho. no desviara os olhos azuis do rosto enfurecido e seu olhar dolorido era frio e acusador. incapaz de continuar a encar-la, robert chatham virara as costas.

    eu a avisei, samantha. disse para ficar longe daquele imundo rebelde irlands. agora voc destruiu sua reputao e pode perder a esperana de conseguir um bom casamento. tudo foi culpa sua, no minha.

    no podia ser culpada de nada. ela e brendan haviam se amado com fervor ingnuo e apenas desejado estar juntos. ela deixara-se ficar no cho,

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  • flor do pntano patrcia potter

    escondendo o rosto entre as mos, sentindo que sua vida se desfazia em mil pedaos.

    a ira de robert chatham diminura ligeiramente, mas jamais a perdoaria por haver destrudo seus sonhos de uma aliana vantajosa atravs do casamento da filha com um homem prspero e digno de confiana. uma reputao manchada nunca readquiria a pureza.

    v para seu quarto ele ordenara com aspereza. e fique l at aprender a respeitar seu pai. respeitar e obedecer.

    respeito! ela cuspira a palavra. nunca!levantara-se do cho e sara da sala olhando para o vestido que o sangue

    de brendan enodoara. s ao chegar ao quarto abandonara-se completamente dor, jogando-se na cama e gritando com a boca apertada no travesseiro.

    permanecera reclusa durante trs semanas, sobrevivendo apenas a po e gua, conforme as ordens do pai que desejava obrig-la a pedir perdo e a concordar em obedecer-lhe cegamente. maudie s vezes arriscava-se a mandar alguma guloseima s escondidas, mas samantha nem as tocava. naqueles dias de luto e sofrimento, a comida no a atraa, servindo apenas para no deix-la morrer de fome. at pensara em recusar qualquer alimento, mas o instinto de sobrevivncia derrotara seu propsito.

    esmigalhar o po entre os dedos e dar o farelo aos passarinhos tornara-se um exerccio habitual, que a impedia de enlouquecer pensando demais no que acontecera.

    o castigo terminara quando o pai vira como ela estava emagrecendo. robert assustara-se com a aparncia doentia e o silncio teimoso da filha e ordenara que ela descesse para as refeies. ela obedecera, mas os momentos que passavam juntos haviam sido torturantes.

    durante os meses seguintes, acontecera uma espcie de trgua. samantha respondia o que lhe perguntavam e s. era corts com os convidados do pai, mas nunca amigvel. muitos afastavam-se dela, repelidos pela atitude distante e gelada, apesar da beleza de samantha ter aumentado, sua aparncia tornando-se quase etrea.

    a casa era cada vez mais visitada por oficiais britnicos e pelos amigos tories de robert chatham. na guerra pela independncia do novo pas, os estados unidos da amrica, charleston cara no comeo daquele ano de 1782 e os ingleses enchiam williamsburg, cometendo violncias contra aqueles que no se juntavam a eles na luta. samantha, ao receb-los ao lado do pai, desprezava-os em silncio, mantendo uma atitude de mera polidez.

    agindo daquela forma conseguira manter qualquer possvel pretendente a distncia, at que o coronel william foxworth apareceu em cena.

    ela passava por uma porta, quando ouviu algum com sotaque ingls falando com o pai. ia continuar seu caminho, mas parou ao ouvir o nome da

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    famlia o'neill. o senhor ser generosamente recompensado por esta informao o

    ingls prometeu. eu quero que eles morram. os dois robert chatham respondeu. sero enviados para um navio-priso. muitos dos prisioneiros morrem

    logo. e o que acontecer com esses dois se no concordarem em lutar do nosso lado.

    os o'neill? o pai perguntou com espanto. nunca! so obstinados, como todos os irlandeses. no so leais para com o rei, nem reconhecem qualquer autoridade. so uns baderneiros.

    sabe que tem direito a receber alguma propriedade em troca de suas valiosas informaes o ingls comentou.

    houve um instante de silncio. a fazenda deles? robert sugeriu em voz baixa. e sua. queremos a carolina do sul nas mos de ingleses leais coroa,

    como o senhor.samantha no pde mais conter-se. abriu a porta de repente e encarou o

    pai. no tem mais nenhuma honra? acusou-o, ignorando o homem vestido

    de vermelho. no se satisfez matando brendan? quer mais sangue em suas mos, pai?

    o rosto de robert chatham ficou lvido, enquanto ele olhava do rosto enfurecido da filha para o do estarrecido ingls.

    saia j daqui! conversarei com voc mais tarde. saia, samantha! gritou, fitando a moa com raiva mal contida.

    por favor, papai. no faa mais nada contra os 0'neill. j no errou bastante?

    voc se esqueceu? eles mataram sua me! agora saia, antes que eu mande um escravo arrast-la para fora.

    a moa sabia que ele no hesitaria em cumprir a ameaa. virou-se bruscamente e saiu da sala, batendo a porta atrs de si.

    robert voltou-se para o oficial e ia pedir desculpas quando notou um lampejo de interesse nos olhos frios.

    que moa adorvel! apenas um pouco impulsiva demais. e nada obediente o dono da casa disse, irritado. minha filha

    jovem demais e reage exageradamente a tudo. um dom valioso, se bem dirigido o ingls ponderou com crescente

    interesse. est comprometida?robert chatham pensou rpido. positivamente o oficial estava interessado

    em sua filha e era bem apresentvel, alm de bem situado na vida. no respondeu. no h ningum na vida dela.

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  • flor do pntano patrcia potter

    gostaria de poder visit-la... se isso lhe for agradvel, senhor. e se a moa concordar, claro.

    naturalmente. ser uma honra. e quanto a sua filha? vai aceitar me ver? ela parece simpatizar com a

    causa dos rebeldes. samantha no tem nenhuma definio poltica, mas teve uma paixo

    infantil por um rebelde. e o que aconteceu com ele? est morto robert respondeu, laconicamente. william foxworth

    olhou-o com curiosidade, mas no fez mais perguntas. desejava tornar a ver aquela garota voluntariosa e tentar faz-la aproveitar o gnio forte de maneira mais produtiva. encantara-se com a beleza frgil.

    estarei preso ao dever nos prximos dias, mas, se permitir, virei visitar a srta. samantha quando estiver livre.

    sim, sim, tem minha aprovao. mudando de assunto, e os 0'neill? sero presos hoje tarde. timo robert chatham disse com um sorriso mesquinho. talvez

    com o desaparecimento deles consigamos estabelecer a ordem por aqui.logo depois, os dois homens se despediam. robert chatham subiu ao

    quarto da filha. ela estava lendo e nem ergueu os olhos do livro quando o pai se aproximou. aquela atitude displicente o irritou e ele arrancou-lhe o livro das mos.

    a despeito de seus modos deselegantes e de sua conduta imperdovel, o coronel william foxworth deseja visit-la de vez em quando robert anunciou.

    eu no o receberei. no receberei nenhum invasor assassino. receber, sim, ou... ou, o qu? j fez o mximo de mal que podia me fazer, pai. a que voc se engana.ela sentiu um arrepio de medo subir-lhe pelo corpo. subitamente, soube

    que o homem que chamava de pai seria capaz de qualquer coisa se fosse contrariado.

    voc receber o coronel ele decidiu. e o tratar com gentileza, ouviu bem?

    samantha mordeu o lbio, frustrada. sim murmurou, finalmente. vai ficar neste quarto durante trs dias, por causa do atrevimento de

    hoje. balanou o livro no ar. e sem nada que a distraia. quero que pense no modo como vem agindo e que se decida a mudar de atitude.

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  • flor do pntano patrcia potter

    aquilo acontecera dois dias antes. teria de suportar mais um antes de ser libertada, antes de poder novamente cavalgar contra o vento, galopando com fria para esquecer seus tormentos.

    samantha mexia-se inquietamente, enquanto o coronel william foxworth apresentava seu convite para o baile dos oficiais no sbado seguinte.

    passara a desprezar a pedante arrogncia do homem e sua persistncia em tentar cortej-la, algo que a repugnava. jamais soubera olhar com simpatia para um assassino, um incendirio como aquele. se no comeo o tratava com indiferena, com o correr do tempo chegara a v-lo como a um inimigo. era um homem bonito, de maneira fria e impessoal e provavelmente estava acostumado a brincar com os coraes das mulheres. o uniforme vermelho tinha corte perfeito e ajustava-se insinuantemente ao corpo bem talhado. os olhos azuis pareciam desbotados e tinham uma expresso glida, em nada comparveis com os olhos da cor do mar profundo de brendan. o que mais detestava, porm, era dos cabelos cuidadosamente empoados e amarrados na nuca com uma fita de cetim.

    outras moas com certeza o achariam atraente, mas samantha sentia apenas repulsa. ele assemelhava-se a uma serpente, enrodilhada, sempre pronta a atacar inimigos e inocentes da mesma forma.

    seu pai deseja que voc v ao baile ele dizia. acha que deve sair mais, ver novas pessoas.

    samantha encarou-o, reconhecendo uma ameaa velada em suas palavras. a atrevida autoconfiana do coronel crescera incrivelmente no decorrer dos meses, certamente com o encorajamento de robert chatham. o oficial sabia que ela no aceitava com agrado suas atenes, pois ela mesma o dissera, explicando que o recebia apenas por temer as ameaas do pai, mas no desistia de atorment-la.

    no tenho me sentido bem, coronel! replicou friamente, procurando vencer a nusea que a tomava. minha companhia no seria agradvel.

    sua companhia sempre me agradar, srta. samantha. sua beleza supre a falta de gentileza em relao minha pessoa.

    ele estendeu a mo e tomou uma mecha dos cabelos negros entre os dedos.

    seus cabelos so lindos e me encantam. ela afastou a cabea num gesto brusco.

    coronel foxworth, o senhor age com demasiada liberdade. e penso que devo recusar seu generoso convite. no tenho condies de ir ao baile, doente.

    o sorriso era forado e um lampejo de raiva passou pelos olhos claros. veremos, samantha. talvez esteja melhor amanh. mandarei o mdico

    do regimento vir aqui examin-la.

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  • flor do pntano patrcia potter

    isso no ser necessrio, coronel. estarei tima na segunda-feira.ele ergueu-se, plido de raiva. teria apreciado uma recusa desafiadora,

    mas desacat-lo daquela maneira j era ir longe demais. por um momento imaginou se ela valia tanto esforo, mas logo afastou o pensamento, pensando na fazenda e na riqueza do pai daquela jovem renitente. era filha nica e herdaria tudo, logicamente com o marido. ele era o terceiro filho de um nobre ingls e nada possua alm de um ttulo sem valor. com a morte do pai, quem herdaria tudo seria seu irmo mais velho, portanto era importante que se casasse com uma moa rica.

    engolindo a ira, tomou a mo delicada que ela lhe oferecia em despedida e beijou-a.

    voltarei amanh para v-la. talvez j esteja melhor. duvido ela respondeu com sarcasmo. henry o acompanhar at a

    porta.

    sem mais uma palavra, samantha tocou a sineta para chamar o escravo e saiu da sala, deixando o pretendente fumegando de raiva e frustrao.

    irritada com o encontro indesejado, foi para o quarto e trocou o vestido de seda por um de algodo leve e fresco, de mangas ajustadas at os cotovelos que depois se abriam num largo babado arrematado por rendas de linho. iria cavalgar e esquecer o pretendente pertinaz e o sofrimento intolervel em que sua vida se transformara.

    esperou at ver o antiptico william foxworth sair da fazenda. no desejava correr o risco de tornar a encontr-lo e ter de explicar sua miraculosa recuperao.

    depois, correu para o estbulo e ficou olhando hector colocar os arreios em sundance. desejava poder montar, como quando era criana, sem sela, apertando as pernas contra o corpo do animal, livre como uma ndia, mas o pai proibira tal procedimento indecoroso e ameaara chicotear hector se o jovem escravo se submetesse aos caprichos dela.

    quando a gua j estava pronta, samantha a acariciou e deu-lhe uma ma, admirando a pelagem ouro-plido que cintilava ao sol.

    a me de sundance fora sua primeira montaria de tamanho grande depois dos vrios pneis da infncia e samantha a adorava. chorara durante muitos dias quando a gua morrera ao dar luz a bela potranquinha que se transformara naquele magnfico animal dourado. todo o amor que havia no corao da menina, j rf, se transferira para sundance, que correspondia ao sentimento, sempre acompanhando a dona por todos os lugares e obedecendo-lhe com docilidade extrema, dando a impresso de captar seus pensamentos.

    a cada dia, depois da morte de brendan, passava mais tempo com a gua,

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  • flor do pntano patrcia potter

    escovando o plo luzidio, mimando-a e conversando com ela em voz suave. sundance era seu nico objeto de afeto.

    com um tapinha carinhoso no pescoo do animal, ela montou, tomando a direo do rio. j estava no tempo de visitar a caverna, o lugar onde ela e brendan haviam se encontrado tantas vezes e onde se reuniriam para a fuga no dia em que ele morrera. evitara ir l durante o ano que se seguira tragdia, sabendo que no suportaria as lembranas, mas j se sentia com foras para recordar os doces encontros e os momentos em que haviam rido de bobagens, cheios de entusiasmo pela vida.

    a caverna ficava na unha demarcatria da fazenda chatham oaks, abaixo da propriedade dos 0'neill, glen woods, da qual era separada por duas outras fazendas. a floresta pantanosa onde corria o pee dee fora o refgio das duas crianas amigas, que depois se haviam tornado dois jovens enamorados. fora o irmo de brendan, connor, quem lhes mostrara a caverna, pedindo segredo. aquele lugar fora o recanto favorito dos trs e nenhum deles jamais sequer pensaria em revelar sua existncia aos adultos.

    samantha adorara connor, na poca. ele era bem mais velho que ela e brendan, mas embora j fosse um rapaz quando os outros dois s tinham dez anos de idade, mostrava-se gentil e carinhoso ensinando-lhes novas brincadeiras e contando histrias fabulosas de outros tempos e outras terras. nunca os tratava com ares de superioridade, mesmo quando lhes desvendavam os segredos da floresta, compartilhando com eles o conhecimento que possua da natureza, que amava profundamente.

    um dia, connor decidira ensin-los a atirar e rira muito quando samantha mostrara possuir mais aptido que brendan, que no ficara zangado, mas aplaudira sua habilidade com genuna admirao. fora ento que ela percebera que aquele menino era especial e que o amaria sempre.

    depois, a tragdia se abatera sobre suas vidas. a me de connor e brendan morrera e, no muito tempo aps, a me de samantha tambm se fora. robert chatham culpara os o'neill pela morte da esposa e houve ameaas e tiroteios. os fatos que envolveram aqueles acontecimentos no haviam sido esclarecidos para samantha que, no entanto, fora proibida de tornar a ver os amigos. a briga dos adultos no afetou os dois jovens apaixonados que continuaram a se encontrar, desenvolvendo a arte de mentir e escapar vigilncia dos pais. quando se viam, costumavam explorar os bosques ou simplesmente sentar-se na caverna e conversar.

    brendan lhe dissera que o irmo concordara com o pai que toda a ligao com os chatham deveria ser cortada, de modo que samantha ficara sem falar com connor, apenas vendo-o por rpidos instantes quando se cruzavam na estrada ou se encontravam em georgetown. depois, ele fora para a inglaterra, de onde s voltara no incio da guerra, para seguir quase que

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  • flor do pntano patrcia potter

    imediatamente para o norte.fora s na manh do duelo que tornara a v-lo de perto e, apesar de sua

    rispidez, ela nunca se esqueceria de sua bondade e pacincia com as duas crianas que o adoravam. assim, tornava-se muito difcil imagin-lo encerrado num navio-priso, de onde talvez no sasse vivo.

    a caverna fora encoberta pelo mato e apesar de conhecer sua localizao muito bem, ela teve dificuldade em encontr-la. finalmente descobriu a entrada e afastou a cortina de vegetao que a vedava, penetrando naquele santurio de recordaes.

    o sol iluminava o lugar fracamente, mal atravessando as folhas e ramos que se entrelaavam na entrada. ela sentou-se no cho, observando o jogo de luz e sombra nas paredes de pedra. lgrimas formaram-se em seus olhos enquanto pensava nas horas felizes passadas ali, nos risos, nas conversas e nos planos para o futuro. sob o peso das lembranas, escondeu o rosto nas mos e chorou longamente por brendan, por connor e por si mesma.

    muito tempo depois notou que as sombras tornavam-se mais espessas, sinal de que j entardecia. precisava voltar para casa antes que o pai mandasse grupos de homens sua procura. olhou em volta e encontrou a pulseira de sementes que brendan fizera para ela. ficara feia com o tempo, mas uma de ouro puro no seria mais bonita a seus olhos. pegou-a, pensando em lev-la para casa, mas desistiu. o pai dera para entrar em seu quarto sem se fazer anunciar e ela desconfiava que at mexia em suas coisas. o bracelete ficaria mais seguro onde estava.

    havia tambm dois pacotes de roupas que ela e o namorado pretendiam levar na fuga. as peas estavam midas e cheirando levemente a bolor, mas achavam-se ainda em bom estado. ela encontrou a cala grosseira e a camisa que roubara do depsito da fazenda. os dois viajariam parte do caminho disfarados, para no chamar ateno inutilmente.

    por fim, levantou-se do cho, relutando em sair daquele lugar querido, mas no havia alternativa.

    encontrou sundance pastando tranqilamente e montou-a sem dificuldade, subindo numa pedra. sem olhar para trs, fez a gua retomar o caminho de volta a trote ligeiro.

    quando chegou aos portes da entrada de chatham oaks, desmontou e levou sundance para o estbulo sem pressa, dando tempo para que o corpo do animal esfriasse depois da corrida. fora um dia muito quente e haviam percorrido uma longa distncia. hector falava com um mascate e no percebeu sua presena. rpida, samantha entrou pela porta dos fundos para no perturbar um momento de descontrao to raro para os escravos.

    tirou os arreios da gua e escovou-a at que o plo brilhasse. quando saiu do estbulo, admirou-se de ver hector ainda envolvido na conversa. de

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    repente, ao ouvir o nome "marion", escondeu-se atrs da pesada porta. foi isso que maudie ouviu hector dizia. o coronel foxworth disse

    ao patro que tarleton estava preparando uma armadilha para o coronel marion, na fazenda coursey.

    haver algo mais que uma armadilha para tarleton, graas a voc, hector. tome cuidado, rapaz. voltarei na semana que vem.

    o escravo virou-se para a porta do estbulo e, ao ver a moa, ficou visivelmente assustado.

    srta. samantha, eu... eu no a vi.ela percebeu a perturbao do escravo e apressou-se em tranqiliz-lo. no se preocupe, hector. no direi a ningum o que ouvi. ele relaxou,

    conseguindo sorrir. eram da mesma idade e, de certa forma, haviam crescido juntos. ela o ensinara a ler e a escrever, a despeito da proibio de alfabetizar os escravos. hector falava to bem quanto ela mesma, embora muitas vezes adotasse o linguajar truncado dos outros negros como medida de proteo. um escravo com alguma cultura era visto com desconfiana pelos senhores, pois a educao podia fazer germinar neles idias de subverso.

    voc est ajudando a raposa do pntano, no , hector? ela adivinhou.

    o medo voltou ao rosto humilde. no, senhorita ele respondeu, sem convenc-la da mentira. fique tranqilo, hector. no tenho nenhum amor pelos ingleses.

    guardarei seu segredo. ela comeou a afastar-se, mas logo retornou. sabe de uma coisa? tambm quero ajudar.

    a senhorita? mas muito perigoso! menos perigoso para mim do que para voc. quem suspeitaria da filha

    de um dos tories mais fervorosos da carolina do sul? sua voz tornou-se amarga. quero ajudar, preciso. pelos o'neill e principalmente por brendan.

    o escravo fitou-a, indeciso. ela teria valor inestimvel para a causa e todos na fazenda conheciam bem a coragem e determinao daquela moa delicada.

    ter de ser um segredo entre ns dois, senhorita ele disse por fim. ningum mais dever saber. a senhorita me contar o que descobrir e eu passarei a informao para o coronel marion atravs do mascate.

    por que est fazendo isso, hector?ele olhou para o cho e depois voltou a encar-la. sou apenas um escravo, senhorita, mas acho que, se as colnias se

    libertarem da inglaterra, eu e os de minha raa teremos mais esperana de liberdade.

    a tristeza que viu nos olhos escuros a espantou. escravos faziam parte do

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    mundo em que nascera e nunca lhe ocorrera que eles pudessem no estar contentes com sua condio. colocou uma das mos no ombro dele, demonstrando compreenso.

    ajudarei em tudo que puder para que isso se torne realidade, hector. juntarei informaes e as passarei para voc.

    na hora do jantar, robert chatham estava irritado. o coronel foxworth me disse que voc no aceitou seu convite para o

    baile.

    ela sorriu de forma encantadora, o que o surpreendeu. mudei de idia, pai. diga-lhe amanh, quando vocs dois sarem juntos

    para queimar mais algumas casas. samantha! no quero que fale comigo nesse tom! procurou conter a

    irritao. fico contente em saber que concordou em ir ao baile. ele um excelente jovem e possui um bom nome. ser um marido digno de voc.

    no. irei ao baile com ele, mas nunca o aceitarei como marido. nunca! pense nisso, samantha o pai insistiu. ele j deu a entender que

    pretende pedir sua mo, se voc o encorajar, pelo menos um pouco.era de seu interesse fingir que aceitava pensar no assunto, mas no fundo

    do corao samantha jurou que morreria, se fosse necessrio, para no se casar com william foxworth.

    captulo ii

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    connor achava que nunca mais na vida conseguiria tirar o mau cheiro do navio-priso de sua pele, ou pelo menos de sua lembrana. aquilo o perseguiria enquanto vivesse, aquele odor ftido!

    os o'neill haviam sido presos duas semanas antes, sendo obrigados a assistir a destruio de sua casa por um incndio quando se recusaram a juntar-se a um regimento tory e jurar fidelidade coroa. com pulsos amarrados, foram jogados para dentro de um carroo juntamente com outros simpatizantes do partido whig. um pouco antes da partida, um dos criados leais introduzira uma faca no cinto de connor. aquilo apenas servira para complicar a situao. nem comeara a cortar as cordas que o prendiam quando foi descoberto por um oficial vigilante que lhe tomara a faca e, na chegada a charleston, denunciara-o s autoridades britnicas como rebelde contumaz.

    pai e filho haviam sido separados dos outros prisioneiros e postos sob vigilncia especial, depois de receberem argolas de metal nos tornozelos e serem amarrados juntos pelos ps. uma corrente pesada ligava-os a outros prisioneiros considerados perigosos e recalcitrantes.

    deitado no poro mais profundo do navio, connor ainda podia ouvir o som humilhante do martelo fechando a argola volta de sua perna e ecoar-lhe na mente. suas dores eram constantes, por causa dos ferimentos causados pelo metal afundando em sua carne, mas aquele sofrimento era menor se comparado ao cheiro.

    os navios serviam, na realidade, de moradias da morte. o ar viciado era cheio de emanaes ptridas da febre maligna, de contaminao mortal e do odor horrvel de suor, comida podre e dejetos. o calor sufocante tornava a respirao quase impossvel, mas connor e o pai ainda conseguiam manter-se vivos naquele, inferno.

    estava sempre to escuro que um mal podia distinguir as feies do outro. subiam ao convs apenas durante duas horas por dia, tempo suficiente at para que os prisioneiros conseguissem readaptar os olhos luz e lavar-se rapidamente tentando escapar, em vo, sujeira que lhes penetrava nos poros. no havia nem sabo e s dispunham da gua do mar, cujo sal deixava a pele irritada e ardida.

    os alimentos eram nojentos. po seco, carne de porco estragada, sebo e ervilhas visguentas. recebiam menos de dois teros da rao consumida por um homem normal e a fome tornava-se uma tortura constante.

    connor via o pai enfraquecer. a fora de nimo do mais velho dos o'neill ficara combalida quinze meses atrs, por ocasio da morte de brendan, e a misria infinita do navio-priso apenas lhe levava o que restava.

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    connor s vezes se perguntava por que tentava continuar vivo. outros se rendiam morte ou at a procuravam para fugir ao sofrimento desumano.

    mas o jovem 0'neill tinha metas a atingir. soubera por intermdio de outros prisioneiros que fora robert chatham quem os denunciara aos tories, recebendo em troca glen woods, a propriedade que lhes fora confiscada. mas o infame pagaria por todos os segundos de tormentos que connor e o pai passassem naquele inferno. e pagaria muito caro.

    connor contava os dias para no perder a noo do tempo. ficar perdido na solido, sem nenhuma ligao com a realidade, seria resignar-se loucura que rondava incessantemente os prisioneiros. j fazia quatro meses que haviam sido levados a bordo da priso flutuante e, medida que os dias interminveis se sucediam, entregou-se nica atividade possvel naquele chiqueiro. procurava lembrar-se, palavra por palavra, pgina por pgina, dos livros que lera. sempre possura memria prodigiosa e chegara o momento de usar o dom proveitosamente. conseguia lembrar-se de livros inteiros com detalhes preciosos e os recitava em voz alta, procurando distrair o pai e os companheiros de infortnio. a distrao os ajudava a agarrar-se vida e inflava nimo nos espritos cansados e abatidos pela privao e pela brutalidade.

    e foi ento que a varola infestou o navio.o mau cheiro tornou-se pior que nunca quando o odor horrivelmente

    adocicado da molstia misturou-se aos outros. os presos gritavam pedindo mdicos, mas nenhum tinha permisso para entrar. a morte comeou sua sinistra colheita e apenas os mais fortes resistiram aos golpes de sua foice.

    connor j ficara imunizado quando apanhara a doena no comeo da guerra, durante um surto que caiu sobre o corpo de milcia onde ele servia, mas o pai, gerald 0'neill, estava merc da peste, e no tinha mais foras nem desejos de lutar contra a horrenda molstia. morreu lentamente, lanando fracos gemidos que se perdiam no clamor de pragas e gritos dos outros moribundos e dos que continuavam sos, embora exaustos e revoltados.

    a ltima palavra que murmurou foi o nome de brendan, e aquilo penetrou no corao de connor como um punhal de angstia. embora fosse o primognito, sempre soubera que o irmo mais moo fora o favorito. gerald procurara disfarar o sentimento, mas no havia como esconder o brilho de seu olhar quando fitava o filho loiro e radiante como o sol. connor no se ressentia com a preferncia, porque ele prprio amara o irmo de modo especial. brendan nascera para o riso e para a alegria, como os pais. fora sempre cheio de humor travesso, mas nunca chegara malcia ou ao desrespeito. naquele corao feliz existia apenas um amor irreprimvel pela vida.

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    connor, por outro lado, sempre fora srio e responsvel e s vezes chegava a se indagar por que era to diferente do resto da famlia. desde pequeno, olhara o mundo com solenidade e arvorara-se no afeioado anjo da guarda do irmo, doze anos mais novo. e os cuidados haviam se ampliado, abrangendo o pai e a fazenda, quando a me morrera e gerald passara a beber mais que o normal, procurando esquecimento para a sua dor. durante os ltimos dez anos, connor fora, para todos os efeitos, o senhor de glen woods, uma das mais ricas plantaes de ndigo para a extrao do anil usado no tingimento de tecidos, de toda a regio do rio pee dee.

    contudo, aos trinta e dois anos, fora lanado num navio-priso, depois de ver a casa da famlia queimada e a fazenda confiscada. no era mais dono de nada e ficara completamente s.

    segurando o corpo do pai nos braos, connor pensou que talvez o velho tivesse tido sorte, afinal. a morte era infinitamente prefervel vida desumana que levavam naquele poro imundo. passou uma das mos pela cabea de gerald, tentando dar algum aspecto de dignidade cabeleira suja e arrepiada e sentiu enojado os piolhos que a infestavam, desrespeitando o horror que o homem sentira pela sujeira e pelos parasitas durante toda a sua vida.

    mal podendo mover-se, por causa das correntes que o prendiam aos companheiros e s paredes, connor continuava agarrado ao cadver, sem coragem de comunicar a morte de gerald aos guardas. sabia do tratamento brutal dado aos corpos dos infelizes que ali morriam. eram atirados como lixo aos barcos que faziam o transporte de carregamentos entre o navio e a praia e depois enterrados na areia, a pouca profundidade. as tempestades geralmente desenterravam os cadveres e no era fato incomum v-los arrastados para o mar e depois devolvidos praia incessantemente pelas ondas. connor pretendia implorar permisso para sepultar o pai de modo mais digno, embora aquilo ferisse profundamente seu orgulho. falaria com algum oficial quando subisse para o convs na hora de tomar sol. falar com os guardas que trabalhavam nos pores, bajuladores desavergonhados dos tories, seria intil. sem a mnima piedade, divertiam-se em infligir todas as humilhaes possveis aos miserveis prisioneiros.

    pensando em tudo o que acontecera, connor sentiu o dio crescer em seu peito e dominar a tristeza. mais um o'neill morrera por causa dos chatham. nunca imaginara que o dio pudesse transformar-se num sentimento to obsessivo a ponto de ser a nica razo para a sobrevivncia, quando seria mil vezes melhor morrer. ele ficaria vivo apenas para poder destruir robert chatham e tudo o que lhe pertencia, depois de faz-lo experimentar toda a agonia que ele prprio sofrera.

    no momento de subir para o convs ele esperou pacientemente que as

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    correntes fossem soltas da parede e ento ergueu o corpo de gerald nos braos, o que s foi possvel porque o velho perdera muito peso, tendo ficado to leve quanto uma criana. os guardas no fizeram nenhuma pergunta, acostumados a verem muitos prisioneiros necessitando da assistncia dos companheiros.

    chegando em cima, connor franziu os olhos, ajustando-os luz, ficando contente por o cu estar nublado e sem a claridade intensa que provocava uma dor aguda. amaldioou mais uma vez aquele inferno, onde at o sol maravilhoso era temido. com os olhos lacrimejantes, procurou um oficial ingls.

    viu um fitando o fardo que ele levava nos braos e logo notou que o oficial encaminhava-se para seu lado.

    esse homem est morto o oficial disse com raiva, dirigindo-se aos guardas tories. por que no foi retirado mais cedo? por que ainda est acorrentado aos outros?

    um dos guardas tomou a si a tarefa de responder, enfrentando a irritao do soldado.

    ningum nos comunicou a morte, senhor.o ingls olhou com certa piedade para connor. tirem as correntes do morto! ordenou.ia retirar-se, mas connor impediu-o, dando um passo frente. senhor... sim? o oficial perguntou com impacincia. ele meu pai. poderia me dar permisso para enterr-lo? na praia.o ingls estudou o prisioneiro demoradamente. as roupas achavam-se em

    frangalhos, o rosto imundo e barbudo, mas havia dignidade no porte do infeliz. ele odiava trabalhar naqueles navios-prises, mas fora mandado para um deles quando sua embarcao afundara deixando-o sem um posto por algum tempo. fazia trs meses que estava ali e rezava todas as noites para ir embora. virou-se para os guardas.

    tirem as correntes dos dois. depois, olhou para o prisioneiro. seu nome?

    connor o'neill. vou permitir que v para terra com o prximo grupo de servio. pode

    enterr-lo e marcar o lugar da sepultura. obrigado. no preciso agradecer. acredito que voc faria o mesmo por mim.mais tarde, j na praia, connor encheu-se de repentina e louca esperana.

    era a primeira vez em quatro meses que se via sem correntes e pensou que talvez houvesse uma chance, mesmo nfima, de escapar.

    enterrou o pai numa colina suave, embaixo de um carvalho antigo e

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    frondoso. tomou emprestado o machado de um dos prisioneiros que cortava lenha e fez uma cruz tosca. o esforo o deixou exausto e ele sentou-se beira do tmulo, enquanto os outros se afastavam cortando e juntando lenha para os foges dos navios. os guardas acompanharam os presos, e num gesto de bondade, deixaram connor alguns instantes sozinho junto sepultura do pai. todos o achavam fraco demais para correr e fugir.

    connor descansou durante alguns minutos e depois comeou a recuar para o bosque. j havia desaparecido por entre as rvores quando um dos guardas olhou para trs e descobriu que ele no se achava mais vista. o fugitivo ouviu o grito de alarme e desistiu de qualquer idia de ser discreto, comeando a correr, fazendo os galhos secos estalarem sob seus ps. sua imensa vontade de fugir para vingar-se manteve-o frente dos perseguidores durante algum tempo, at que suas pernas enfraquecidas dobraram-se sob o corpo, fazendo-o cair. arrastou-se para o meio das moitas e cobriu-se com folhas. passos soaram apressados, ultrapassando o lugar onde ele se escondera, voltando vagarosamente um pouco depois. um guarda revirava os montes de folhas secas com o mosquete, atirando de vez em quando. connor, porm, estava determinado a no voltar para o navio, preferindo morrer. quando o mosquete inevitavelmente atingiu-o com a ponta pesada do cano, ele virou-se rapidamente, empurrando a arma. mas o guarda j a disparara e uma bola de ferro incandescente penetrou-lhe o peito. o movimento todo desequilibrou o guarda e connor aproveitou-se para segurar a arma com todas as suas foras, acabando por arranc-la das mos do homem. erguendo-a no ar, atingiu o guarda na cabea, com a coronha, deixando-o desacordado. antes de ir embora, pegou o embornal de plvora que o guarda carregava e colocou-o no ombro. segurando a arma pesada como uma muleta, apoiando-a embaixo do brao, ele desapareceu na floresta densa.

    atormentado pela fome, pela exausto e pela dor, connor cambaleava de uma rvore para a outra, at que sua fora de vontade no foi mais suficiente para sustent-lo. capturara alguns caranguejos na noite anterior, arriscando-se a ser visto na praia clara, mas seu estmago, debilitado pelos meses de comida estragada e insuficiente, recusara a carne adocicada.

    a fome tornara-se um inimigo feroz, minando sua energia, deixando-o tonto e esquecido da necessidade de andar sem cessar. competia em tortura com a dor lancinante do ferimento que o percorria como fogo lquido. ele sabia que a ferida no era fatal, mas temia o sangramento e a infeco que inevitavelmente adviria se no encontrasse algum que o ajudasse. precisava de socorro urgente.

    aquela parte da regio das carolinas abrigava tanto patriotas que lutavam pelo reconhecimento da independncia do pas, assinada em 4 de julho de

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    1776, como de americanos ainda fiis ao governo britnico, os tories, que eram apoiados por soldados ingleses. ele precisava ser cuidadoso para no cair nas mos das pessoas erradas. no sobreviveria a uma volta aos navios-prises e na verdade preferia morrer a ser preso novamente. encontrava-se extenuado. usara toda sua resistncia na tentativa de fugir e cada passo representava um esforo sobre-humano. no mais podendo manter-se de p, desabou ao lado de um tronco cado e mergulhou em misericordiosa inconscincia.

    ele ouviu a voz que soava fracamente em seus ouvidos, como um eco repercutindo num vale distante. mal distinguindo as palavras, conseguiu mover-se o bastante para procurar o mosquete. no o encontrou.

    me! me! dizia uma voz infantil. me, encontrei um estranho. ele est ferido.

    connor tentou livrar-se da nebulosidade que lhe toldava os olhos, procurando focalizar o rosto da pessoa que falava, mas a dor voltou em ondas quentes e ele fez uma careta quando sentiu uma calosa mo tocando-lhe a face. gemeu, quase no podendo suportar a dor no lado do corpo.

    est tudo bem, senhor disse uma voz de mulher. descanse. eu o ajudarei.

    lutando para readquirir conscincia total, ele ouviu a mulher falar com outra pessoa.

    deve ser por causa deste homem que os malditos "lagostas" esto revirando a floresta. bem, se depender de mim, no o encontraro. johnny, v buscar cobertores, ataduras e um pouco de usque de seu pai. e tome cuidado. fique de olhos bem abertos.

    connor no conseguia ver a mulher. quis sentar-se, mas ela colocou a mo em seu ombro, impedindo-o.

    onde... onde estou? em santee ela explicou. se quem estou pensando, no entendo

    como chegou to longe, fraco como est. roubei um barco ele respondeu devagar, sabendo que encontrara

    uma amiga. onde est? no era um barco muito bom murmurou com um trao de ironia que

    no escapou a ela. afundou. vamos arrumar-lhe outro. no pode ficar aqui muito tempo. esto

    procurando pelo senhor por toda a extenso da costa e o que querem a todo custo.

    o garoto voltou com o que a me pedira e ficou olhando com vida curiosidade enquanto ela tirava os trapos que haviam restado da camisa. ela tocou a pele intumescida e vermelha que circundava o ferimento provocado

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    pela bala, fazendo connor soltar uma praga abafada. no est com bom aspecto, senhor, mas podia estar pior. vou lavar com

    usque, mas melhor tomar um grande gole primeiro.ele sabia o que o esperava. seria uma verdadeira agonia quando o lcool

    casse na ferida aberta. tomou ento um longo trago da botelha de loua e colocou o pedacinho de madeira que johnny lhe estendera, entre os dentes. a dor foi pior do que ele imaginara, mais violenta que qualquer outra que j sentira. era como se todo o lado de seu corpo explodisse em chamas, e ele mordeu o pedao de madeira para no gritar.

    pronto a mulher murmurou. acabou.ele olhou para cima, procurando concentrar-se no rosto dela e ignorar a

    dor horrvel que o transpassava. no meio do nevoeiro que insistia em envolv-lo, viu uma mulher alta e ossuda com o rosto prematuramente envelhecido por duros trabalhos e muita preocupao.

    ela endireitou o corpo e passou as mos pelo avental. vou buscar algo para o senhor comer. procure ficar o mais bem

    escondido possvel. johnny montar guarda. nem sei como poderei agradecer tudo o que est fazendo por mim,

    senhora. no quero que entre em encrencas por minha causa, portanto vou-me embora.

    as encrencas j passaram por aqui ela disse com amargura. os "lagostas" levaram meu john h um ano. nunca mais tive notcias dele, nem sei se est morto ou vivo. dizem que muitos prisioneiros foram mandados para exrcitos ingleses que esto lutando em outros lugares. ela cuspiu no cho. ns nunca tivemos muita coisa, s uns acres de terra, mas meu marido era um homem bom e trabalhador. assim, tudo o que puder fazer para prejudicar aquela gente, farei. e johnny tambm. bem, vou buscar um pouco de ensopado.

    a comida estava deliciosa e connor comeu tudo, sentindo-se mais forte. conseguiu sorrir, embora com dificuldade.

    gostaria de poder lhe pagar, senhora.ela esticou o corpo e seu porte orgulhoso de repente a deixou bonita. estarei paga se o senhor conseguir fugir deles. bem, acho que devia

    dormir um pouco. eu o levaria para a nossa cabana se pudesse, mas os tories j estiveram aqui e desconfio que vo voltar.

    quando connor voltou a acordar, o cu estava escurecendo. as primeiras estrelas plidas piscavam entre as nuvens pesadas e logo seria noite fechada. ele olhou ao redor e viu um po e uma botija de gua que a mulher deixara para ele. o ferimento ainda doa bastante, mas o alimento e o sono o haviam fortalecido, deixando-o em melhor estado de nimo.

    subitamente ouviu um rudo na gua, logo alm de onde ele repousava, e

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    ficou tenso. suspirou aliviado ao ouvir a voz de johnny. senhor? ainda estou no mesmo lugar, johnny.o menino apareceu ento num pequeno barco. os "lagostas" esto espalhados por toda a parte. mame acha que o

    senhor precisa partir.connor ps-se a apalpar o cho com ansiedade e o garoto sorriu. se a arma que est procurando, escondi-a numa moita logo atrs do

    senhor. fiquei com medo que no fosse um patriota, mas s no comeo.o homem examinou o rostinho vivo do menino. gostaria de poder deix-la para voc, johnny, mas precisarei de alguma

    proteo. pensou um pouco. mas prometo, que lhe mandarei um rifle. darei um jeito. qual o seu nome completo e o de sua me?

    meu nome johnny brown e o de mame, ellie. no. esse o apelido. o nome dela ellen brown. ellen no um nome bonito? o garoto perguntou com orgulho.

    sim, e sua me tambm uma mulher bonita. diga a ela que eu disse isso. e diga-lhe que serei eternamente grato a vocs dois.

    johnny desceu para a margem e ajudou connor a entrar no barco. colocando o mosquete e o saco de plvora perto da bolsa de comida que o garoto trouxera na pequena embarcao, connor pegou o remo.

    adeus, senhor o menino sussurrou.era uma boa coisa que a noite estivesse to escura, com o cu nublado

    encobrindo o brilho do luar. connor ainda se sentia fraco, tendo perdido, calculava, uns dez quilos de peso nos meses de confinamento. a dor no flanco persistia, mas seu otimismo retornara. estava alimentado, tinha um barco ligeiro e um rio que o levaria at em casa. e, o mais valioso de tudo, era um homem livre.

    durante os dias seguintes, viajou nas horas noturnas, escondendo-se quando comeava a clarear. percebia que diversas patrulhas corriam a rea, mas at aquele momento tivera sorte em conseguir esconder o barco e a si mesmo com perfeio. durante o dia, quando era obrigado a ficar quieto, deitado em algum lugar, planejava as etapas seguintes da viagem e o que faria quando ela terminasse. iria juntar-se a francis marion que, ouvira dizer, estava em snow island, a ilha que ficava na confluncia do rio pee dee e do riacho lynch. francis fora seu comandante na ilha sullivan e os dois haviam feito uma amizade slida. connor acompanhara o amigo nos primeiros ataques contra os tories e do acampamento dele que executaria sua vingana.

    o desejo de vingar-se era a fora que o impulsionava, diminua seus sofrimentos fsicos e amenizava a dor pela perda de tudo o que amara.

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    tornara-se sua nica razo de viver.j viajava pelo rio trs dias seguidos e comeava a ficar impaciente com a

    demora. contudo, no podia locomover-se a no ser durante a noite e mesmo assim precisava ir devagar e cautelosamente, pois, no percurso cheio de curvas do rio, arriscava-se a encontrar uma inesperada patrulha inglesa.

    sua proviso de alimentos terminara e o ferimento deixara de doer to fortemente. esses dois fatores contriburam para que ele relaxasse um pouco na cautela. alm disso, sabia estar perto da fazenda que lhe pertencera, o que aumentava sua impacincia. apressando as remadas, deixou que os pensamentos divagassem e no viu o brilho de uma fogueira um pouco adiante. alto! quem vem l?

    a interpelao rspida despertou-o do devaneio e ele amaldioou sua falta de cuidado. no sabia se havia sido visto ou se a sentinela apenas ouvira o rudo do remo cortando a gua. rapidamente levou o barco para a margem e apanhou a arma antes de desembarcar e desaparecer no mato rasteiro. sentiu-se como um animal caado, mas o mosquete infundia-lhe alguma confiana. no hesitaria em atirar para defender-se.

    ele caara nas margens do pee dee durante toda a sua vida e aquele bosque no apresentava mistrios. conhecia cada rvore daquele trecho, que se estendia a menos de um quilometro e meio de glen woods.

    ouviu passos correndo nas trilhas arenosas. seus perseguidores mostravam-se incautos, o que melhorava a situao. ele esperou pacientemente escondido atrs de um velho cipreste at que os passos de apenas um homem aproximaram-se. viu de relance a cor vermelha de um uniforme e sorriu. estava com sorte. os tories da rea conheciam os bosques tanto quanto ele, mas os soldados ingleses eram uns paspalhos naquela regio e pagariam caro pela imprudncia.

    quando o soldado chegou ao alcance de seu brao, ele desceu a coronha do mosquete sobre o inimigo, que caiu silenciosamente, enquanto um filete de sangue lhe escorria da cabea ferida. connor esperou pela outra sentinela, pois de acordo com o som de passos que ouvira no comeo, devia haver mais uma.

    um rudo atrs dele o fez virar com o mosquete apontado. ele e o segundo soldado viram-se ao mesmo tempo, mas connor foi mais rpido. atirou e ficou olhando o homem cair devagar, tendo no rosto uma expresso de surpresa e terror. naquele instante, o p de connor foi puxado e ele perdeu o equilbrio, enquanto o mosquete que segurava bateu com fora no ferimento do flanco reabrindo-o e fazendo o sangue escorrer. debateu-se ao cair e uma das mos atingiu o primeiro soldado que voltara a si e o atacara. viu o brilho de uma faca na mo do homem e teve tempo apenas de desviar o corpo para no ser atingido. sem parar para pensar como o soldado

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    se recuperara to depressa, comeou a lutar pela vida. com fora e agilidade extraordinrias, agarrou o pulso do ingls e apertou-o com violncia. a faca voou para o meio do mato quando o soldado abriu a mo.

    os dois estavam feridos, mas lutavam igualmente pela sobrevivncia, o que lhes dava maior fora. rolaram por baixo das rvores, procurando golpear-se. connor sentiu-se zonzo com a nova perda de sangue e decidiu que precisava acabar logo com a luta. com uma das mos, prendeu o ingls ao cho e com a outra procurou algo que servisse de arma. finalmente sentiu nos dedos o contato frio de uma pedra e segurou-a. ergueu o brao e o desceu, fechando os olhos ao ouvir o som horrvel da pedra batendo na cabea do adversrio. o homem parou de lutar e ficou largado. connor sentou-se, envolvido pela vertigem. sua camisa estava empapada de sangue, mas ele precisava sair dali.

    examinou o corpo do soldado, certificando-se de que estava mesmo morto e depois considerou a situao. no podia adivinhar quando os dois sentinelas seriam rendidos, mas provavelmente no demoraria para que os colegas chegassem. o ferimento reaberto no permitiria que fosse muito longe, porque doa demais e o mnimo movimento aumentava a hemorragia. por outro lado, no podia ficar ali, pois os bosques fervilhavam de soldados e americanos tories.

    a caverna. nunca mais fora l, depois que a mostrara a brendan e garota chatham. de certa forma, dera o lugar de presente aos dois e renunciara ao direito de ir l. escondida num enrugamento esquisito do terreno, a caverna jamais seria descoberta por quem no soubesse de sua existncia. ele prprio a encontrara por acaso, quando um de seus ces perseguira um coelho e o bichinho entrara l para esconder-se.

    naquele lugar que fora seu refgio na infncia e na adolescncia, esperaria que suas foras voltassem. depois, iria ao encontro de marion.

    captulo iii

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    samantha brincava com sundance, mas seu pensamento estava longe. escondeu a ma atrs das costas e deixou que a gua a procurasse, esfregando o focinho em seus cabelos, bufando em seu pescoo e finalmente, com um suave relincho de satisfao, encontrasse a fruta.

    ficou olhando a ma desaparecer na boca vida, invejando a felicidade ingnua de sundance. se houvesse algo no mundo que pudesse devolver-lhe um pouco da antiga alegria, j se daria por feliz, mas continuava mergulhada num poo fundo de tristeza.

    andara escutando novamente atrs das portas, uma atividade para a qual demonstrara um talento insuspeitado e o que a deixara profundamente aborrecida.

    aproximando a cabea do pescoo da gua, esfregou o rosto na crina farta. o animal meneou a cabea e relinchou baixinho, pressentindo que sua dona no estava bem.

    samantha suspirou, sem saber o que fazer. desempenhara o papel de espi com perfeio e excitada com o que fazia, prestando ajuda aos rebeldes e ao mesmo tempo vingando-se do pai e de roxworth, mostrava no rosto corado e no brilho do olhar que algo mudara em seu ntimo. aquela animao, porm, fora mal interpretada pelo pretendente, que a julgara propensa a aceit-lo como noivo.

    o baile transcorrera tranqilamente. bastava-lhe sorrir para que os oficialmente ingleses tropeassem uns nos outros para terem o prazer de falar com ela. discorriam sobre suas exploraes, suas prximas "misses perigosas" e acabavam por pedir abertamente sobre os planos do coronel tarleton para apanhar a maldita raposa do pntano e acabavam por implorar permisso para visit-la. ela apenas sorria da corte cerrada e ocupava-se em decorar datas, nomes de lugares e nmeros de regimentos, corando de vez em quando de pura excitao. excitao exagerada. no fim da noite, no pde deixar de perceber o olhar intrigado que fuxworth lhe lanou, nem a expresso de surpresa no rosto do pai.

    ento, naquele dia, quase uma semana depois do baile, ouvira os dois tramando novamente.

    quero uma definio foxworth dizia irritado quando ela encostou-se porta da biblioteca para ouvir.

    desejo esse casamento tanto quanto voc o pai respondeu. dou meu consentimento e juro que ela concorda. tenho meios para for-la.

    estou certo de que sim, meu caro robert, mas acredito que no ser necessrio agir pela fora. vejo interesse nos olhos dela. como todas as moas, est se divertindo um pouco antes de aceitar a proposta. o oficial riu baixinho.

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    no est preocupado com outras coisas? 0'neill, por exemplo? oh, no creio que v muito longe. acharam um bocado de sangue por

    onde ele passou e o homem deve estar muito enfraquecido depois de passar meses num navio-priso. logo o encontraro morto em algum lugar.

    o pai soltou uma exclamao de desgosto. como ele conseguiu fugir, afinal? voc me garantiu que ningum escapa

    de um navio daqueles.samantha ouviu o risinho sarcstico do homem que desejava ser seu

    marido. o pai dele morreu e um tenente de corao mole permitiu que ele fosse

    praia enterrar o velho. o oficial pagar caro por esse estpido ato de piedade, pode crer.

    a moa estremeceu ao ouvir o relato de foxworth, mas recuperou-se depressa quando os dois homens caminharam para a porta. saiu correndo pelo corredor e invadiu a cozinha com a desculpa de querer pegar uma ma.

    connor estava vivo! gerald o'neill morrera! pensou no velho, como o conhecera anos atrs. gentil, como connor, possua fartos cabelos ruivos e um talento muito especial para contar histrias. sempre gostara de contar fbulas a respeito do povo pequenino que vivia nos bosques e de suas travessuras. uma lgrima rolou pelo rosto macio, embora ela imaginasse que nunca mais fosse capaz de chorar.

    por favor, ajude connor a salvar-se ela rezou baixinho, dirigindo-se ao seu deus particular, diferente daquele descrito pelos ministros da igreja, capaz de crueldades.

    ela no rezara muito nos ltimos tempos, mas seu deus no deixaria de ouvi-la, porque no era vingativo, nem vaidoso. era um deus feito de amor.

    de repente, o resto da conversa voltou-lhe mente. agarrada ao pescoo de sundance, suspirou desanimada.

    no posso me casar com ele disse baixinho.no sabia a que meios o pai recorreria para for-la, mas podia imaginar

    que, com sua maldade e prepotncia, no hesitaria em usar coisas e pessoas que ela amava para chantagea-la. no havia mais dvidas nem escolhas a fazer. precisava desaparecer antes que robert pudesse amea-la, pois o pai, duro e severo como era, se sentiria na obrigao de cumprir as ameaas mesmo depois que ela sumisse.

    tinha de ir embora. mas para onde? no tinha parentes ou amigos. o pai a isolara do mundo e no hesitara em denegrir sua imagem para que ningum a procurasse. quando desafiara brendan publicamente para o duelo, robert chatham acusara-o de ser amante da filha na frente de vrios homens, como mais tarde lhe contaram.

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    ela ficara marcada aos olhos dos amigos de brendan, que a culpavam pela morte, e as poucas moas que freqentavam chatham oaks com os pais haviam desaparecido, certamente temendo manchar sua reputao. no que aquilo a preocupasse. sua perda fora dolorosa demais para que lamentasse a evaso de falsos amigos, mas de repente via-se sozinha no mundo. tivera contato com os oficiais ingleses no baile, encantando-os, mas pedir qualquer ajuda a um deles estava fora de cogitao.

    voc ela disse, beijando o pescoo da gua tudo o que me resta.o animal esfregou o focinho em seu rosto, retribuindo o carinho, mas

    samantha nem conseguiu sorrir. uma mulher sozinha e sem dinheiro no tinha qualquer esperana de fuga, mas nada a deteria. e de forma nenhuma deixaria sundance. onde quer que fosse, sua amiga a acompanharia.

    se ela fosse um rapaz, poderia ir ao pntanos, juntar-se ao coronel marion e seus homens. o apelido de raposa do pntano fora dado a ele pelo adversrio, tarleton, que o chamara daquele modo num momento de frustrao por no conseguir apanh-lo. o apelido pegara e os homens de marion, em vez de o acharem insultoso, haviam-no adotado com orgulho. os patriotas de toda a regio gostavam de contar os feitos audaciosos da raposa, elevando-o quase ao nvel de lenda, para desespero dos britnicos e do partido tory.

    samantha passou os dedos pelos longos cabelos. poderia disfarar-se de rapaz e entrar para as fileiras de marion, onde, ela sabia, havia rebeldes que no passavam de meninos. um deles era filho do prprio coronel e j fora visto lutando ao lado do pai. vestida de homem, ficaria igualzinha a um jovem adolescente, se no fosse por aqueles cabelos exuberantes.

    seria possvel colocar em prtica aquela idia louca? ela cavalgava to bem quanto um homem e desde criana sempre tivera um dom notvel para a representao e o disfarce, mas seria possvel enganar um bando de soldados por muito tempo?

    animou-se quando pensou nas valiosas informaes que tinha para passar ao coronel francis marion, porque hector ainda no tivera oportunidade de passar adiante tudo o que ela conseguira saber no baile. seria um bom passaporte.

    suspirou pensando nos cabelos longos e brilhantes. teria de cort-lo e, tendo crescido numa fazenda de ndigo, sabia que usando um pouco da planta para tingi-los, eles perderiam o brilho completamente. tambm passaria um pouco na pele, para deix-la spera. amarraria os seios e no precisava se preocupar com o resto do corpo, ainda bastante anguloso por causa do peso que perdera depois da morte de brendan, alimentara-se apenas para no morrer de fome, pois as refeies, como tudo em sua vida, j no lhe davam

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    nenhum prazer.de repente, tomou uma deciso. iria embora naquela noite. primeiro,

    chegaria at a caverna, onde vestiria as roupas masculinas que j estavam l. depois, rumaria para snow island, o reduto da raposa do pntano. chegaria l, de qualquer jeito. tinha de chegar.

    samantha pegou a tesoura e hesitou, olhando para sua imagem no espelho. por que seus cabelos pareciam to maravilhosos naquela noite? talvez as coisas parecessem mais preciosas quando prestes a serem destrudas. as longas mechas brilhavam quando as escovava antes de dormir e a luz das velas apenas as deixavam mais encantadoras. pensou como brendan adorava seus cabelos e como costumava entrelaar os dedos nos fios sedosos.

    brendan ela murmurou. por que voc no est aqui comigo?por mais que fizesse, nunca conseguia sufocar a dor surda e constante

    que a ausncia dele lhe causava.criando coragem, inclinou-se por cima do tampo da penteadeira,

    aproximando o rosto do espelho e ergueu a tesoura. depois que comeasse a cortar as mechas, no haveria volta. pensou em foxworth e no modo possessivo com que ele tocara naqueles cabelos, poucas horas antes, quando fora visit-la. quase gritara de repulsa, mas simplesmente afastara a cabea, mantendo um sorriso gelado no rosto,

    a admirao do oficial ingls pelos cabelos que brendan tanto amara acabou por dar-lhe a coragem de que necessitava. agarrou um punhado dos fios brilhantes e, j sem nenhuma hesitao, comeou a cortar. tosou as mechas deixando-as bem curtas, como as de um menino, ignorando a moda masculina que ditava cabelos pelos ombros, amarrados cuidadosamente na nuca. no podia imaginar quando faria novo corte e do modo como estavam, os cabelos demorariam bastante a crescer. deu-se por satisfeita. ia fazer papel de menino e um garoto no se importaria com a moda. o que restara dos cabelos magnficos continuava brilhante e lindamente ondulado, atribuindo sua aparncia muita feminilidade. pegou o frasco que enchera com uma mistura de ndigo e gua e esfregou o lquido marrom na cabea. penteou os cabelos para trs e tornou a olhar-se no espelho, maravilhando-se com a transformao que sofrera. o rosto continuava delicado e finamente cinzelado, mas a bela pele macia tambm sofreria mudana radical. passou a lquido nas faces, no queixo e na testa, e daquela vez foi uma pessoa estranha que ela viu no espelho.

    no havia mais nada que lembrasse a jovem mulher de minutos antes. samantha se transformara num rapazinho do campo, de sorriso malicioso e pele morena e spera. apenas as roupas destoavam, mas aquilo seria remediado quando chegasse caverna e trocasse o vestido rodado por cala e camisa.

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    cuidadosamente apanhou os cabelos que caram no cho, enrolou tudo num papel e colocou o embrulho na bolsa que levaria consigo. no podia deixar nenhuma pista de seus atos. depois, sentou-se escrivaninha e preparou-se para escrever. mergulhou a pena no tinteiro e rabiscou palavras apressadas no papel fino e caro que tirara da gaveta.

    "papai,

    no posso me casar com o coronel foxworth. vou para o norte, onde pretendo ganhar a vida como governanta. no tente me encontrar. seria intil.

    samantha."

    todas as outras pessoas da casa j se haviam recolhido muitas horas atrs. ela vestiu uma longa capa, colocando o capuz na cabea tosada. olhou ao redor do quarto onde dormira durante toda sua vida at aquele momento. seu olhar caiu sobre um retrato em miniatura da me, pintado por um grande artista. sentiu-se tentada a lev-lo consigo, mas desistiu. se o vissem em seu poder, seria desmascarada. uma lgrima rolou pelo rosto artificialmente bronzeado, sem deixar sinal. a tintura aplicada sobre a pele resistia bastante gua.

    no havia tempo para recordaes tristes. embrulhou-se na capa e abriu a porta do quarto silenciosamente.

    no teve dificuldade alguma em sair da casa. conhecia cada centmetro do cho onde pisava e evitou as tbuas do assoalho que rangiam. em poucos instantes, achava-se no ptio dos fundos, de onde se dirigiu para as cocheiras. a lua cheia, como uma rainha, olhava friamente para a terra, iluminando tudo, enquanto as estrelas, aos milhes, rodeavam-na como sditos dedicados. normalmente, samantha pararia para admirar a beleza do cu, mas naquela noite desgostava-se com a luminosidade exagerada que clareava todos os caminhos, sem nenhuma discrio.

    devagarzinho, abriu a porta da cocheira onde deixava sundance e caminhou para a baia onde a gua, feliz por v-la, relinchava baixinho.

    quietinha pediu num murmrio, acariciando o focinho que procurava alcan-la. no tenho ma, agora, sundance.

    comeou a puxar o animal para fora da baia, consciente da imprudncia de lev-la. todos nas redondezas conheciam a gua dourada, de raa pura, da fazenda dos chatham. mas seria impossvel deix-la. inventaria uma histria qualquer para explicar a posse do animal.

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    onde vai com essa gua?a voz conhecida, mas inesperada assustou-a, deixando-a imvel. os

    tratadores de cavalos no passavam as noites nas cocheiras, a menos que um dos animais estivesse doente.

    quem est a? hector perguntou, aproximando-se com um lampio que iluminou o rosto da moa.

    sou eu, hector! ela gritou. samantha.ele estendeu a mo e puxou o capuz para baixo, expondo os cabelos

    curtos. soltou uma exclamao de espanto. reconhecia a voz da jovem, o porte e a capa que vira tantas vezes, mas o rosto era estranho e a linda cabeleira desaparecera.

    srta. samantha! no posso acreditar!ela sorriu satisfeita. se conseguira enganar hector, que crescera a seu

    lado, enganaria qualquer outra pessoa. apagou o lampio com um sopro e pegou o escravo pelo brao, continuando a andar para a porta.

    sou eu mesma, hector. estou indo embora. no posso mais ficar aqui com o homem que matou brendan e agora quer me forar a casar com algum que desprezo.

    mas aonde vai? e melhor no saber. de repente, ela preocupou-se com o jovem,

    meu pai sabe que voc est na cocheira a estas horas? no. damen estava inquieto e vim ver o que ele tinha. a senhorita sabe

    como gosto desse cavalo.ela sorriu. sei, sim. bem, se meu pai no imagina que voc est aqui, no pode

    saber que me viu, portanto no haver perigo de represlias. bateu com carinho no ombro do escravo. preciso ir. sempre me lembrarei de voc e maudie. diga a ela que eu a amo.

    temerosa de que a coragem a abandonasse, a jovem levou o animal para trs de um grupo de rvores e passou-lhe as rdeas pelo pescoo. jogou um cobertor no lombo da gua e olhou em volta, procurando um lugar para subir e montar. encontrou um tronco cado e, com um salto gracioso, montou. murmurando palavras de carinho para sundance, partiu em trote largo para a caverna.

    samantha calculou que faltavam cerca de trs horas para amanhecer quando alcanou seu destino. ficaria na caverna apenas o tempo necessrio para pegar as roupas escondidas ali havia mais de um ano e a pulseira de sementes que brendan fizera para ela.

    passando uma perna por cima do lombo de sundance, escorregou cuidadosamente para o cho. sabendo que a gua no fugiria, amarrou as rdeas frouxamente a uma rvore, para que o animal pudesse pastar

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  • flor do pntano patrcia potter

    vontade. tirou a capa pesada e pegou a bolsa de viagem que continha os cabelos cortados, fsforos, velas e comida. a seguir, entrou na caverna escura. o luar no atravessava a cortina de vegetao que cobria a entrada e tudo estava imerso na mais completa escurido. ela tropeou e a bolsa voou de suas mos. nervosa, abaixou-se para procur-la e apalpou o cho. no podia perder tempo, pois planejava continuar viagem antes do nascer do sol.

    subitamente sua mo tocou algo macio e ela retraiu-se, assustada. a seguir, criando coragem, voltou a tocar o objeto e percebeu tratar-se de um corpo humano. pegou um p que no se moveu, mas tinha calor, de modo que ela deduziu que a pessoa estava viva.

    continuou a procurar a bolsa e finalmente encontrou-a. mexeu no contedo at achar as velas e os fsforos e sem perda de tempo riscou um dos palitos de encontro parede rochosa da caverna. encostou a chama no pavio de uma das velas, acendendo-a. cautelosamente, aproximou-se do corpo estirado no cho e quando se inclinou a luz bruxuleante bateu num rosto plido e barbado. no conseguiu sufocar uma exclamao de espanto profundo ao reconhecer connor 0'neill.

    ajoelhou-se ao lado dele. connor murmurou, desolada. o que fizeram com voc?ela fez a luz da vela percorrer o longo corpo magro e coberto de trapos. a

    camisa estava empastada de sangue e no lado do trax a mancha estava mida e quente. ele ainda sangrava. quando a luz alcanou os ps, ela estremeceu vendo uma argola de ferro soldada ao redor de um dos tornozelos.

    ele gemeu, e ela levou uma das mos ao rosto maltratado, acariciando-o levemente.

    connor?sua pergunta ansiosa caiu no silncio e ela percebeu que ele estava

    inconsciente. o rosto era gelado ao tato, apesar da temperatura razoavelmente quente daquele final de outubro.

    oh, connor, o que devo fazer?ela procurou lembrar-se dos textos dos livros de medicina. como a

    maioria das senhoras das fazendas, muitas vezes fora chamada para dar assistncia aos escravos doentes, mas seu conhecimento no passava de simples noes sobre o uso de ervas para a febre e de compressas para curar cortes. o pai sempre chamara o mdico para tratar de ferimentos e doenas mais srias. ela sabia, porm, que a queda de temperatura do corpo advinha depois de grande perda de sangue e que geralmente prenunciava a morte.

    calor. era de calor que ele precisava. derramando um pouco de cera derretida no cho, fixou a vela e correu para fora. tirou o cobertor

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    estendido de sobre o lombo de sundance e pegou todos os gravetos secos que pde carregar.

    de volta ao interior da caverna, acendeu uma pequena fogueira e cobriu connor com o cobertor ainda quente do corpo de sundance. depois, procurou as duas trouxas de roupas ali guardadas para a fuga com brendan e vestiu trajes masculinos, pensando o tempo todo no que poderia fazer para ajudar connor, finalmente resolveu que teria de voltar a chatham oaks e falar com hector. ele poderia pegar alguns remdios guardados por maudie e entrar em contato com um dos homens do coronel marion. talvez a raposa do pntano mandasse um mdico e levasse o ferido embora. uma vez ouvira dizer que connor j cavalgara ao lado do chefe dos rebeldes e marion era conhecido por sua lealdade aos amigos.

    j transformada num rapazinho imberbe, ela ajeitou o cobertor ao redor do corpo de connor e soprou a vela.

    chegou a chatham oaks pouco antes da alvorada. amarrou sundance num lugar escondido e deslizou silenciosamente por entre as rvores, chegando s cabanas dos escravos. procurou a porta de hector e bateu de leve. o rapaz atendeu quase que imediatamente.

    pela segunda vez, em questo de horas, olhou-a assombrado.ela entrou depressa e encarou-o. voc precisa me ajudar, hector. encontrei connor o'neill. ele est

    gravemente ferido... na caverna. quero que consiga remdios e faa chegar um recado ao coronel marion.

    falava apressadamente e seu rosto mostrava profunda angstia. subitamente, deixou-se cair sentada no cho e escondeu o rosto nas mos.

    ele vai morrer, hector, e no posso suportar essa idia. no posso. no agentarei a morte de mais um oneill.

    o jovem escravo estendeu as mos para ela, ajudando-a a se levantar. no se desespere, senhorita. vou buscar remdios com maudie. fique

    aqui, quietinha.dentro de minutos, o rapaz retornava com um pacote nas mos.

    no disse a ela que a senhorita estava aqui. apenas expliquei que havia uma pessoa doente.

    obrigada, hector. e melhor a senhorita ir embora. quando seu pai acordar vai mandar

    todos os escravos sarem sua procura. vou mandar o recado ao coronel marion. no se preocupe. hoje noite algum ir caverna ajud-la.

    ela olhou para o rosto escuro, onde se via preocupao verdadeira. sorriu, sabendo que podia confiar nele. explicou com preciso como se chegava caverna.

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    hector ela finalizou , preciso de um balde e de sabo. ele no discutiu, pegando o prprio balde, onde colocou bastante sabo de cinza e o pacote com remdios que conseguira de maudie.

    obrigada ela murmurou, segurando o balde com as duas mos. nunca me esquecerei de voc, hector.

    ele abriu a porta e ficou olhando o vulto mido desaparecer entre as rvores.

    quando samantha chegou caverna, a tmida luz do sol j se filtrava para dentro do lugar. um novo dia comeava, e nas prximas horas a regio ficaria tumultuada com as buscas que certamente seriam feitas. haveria grupos procurando por ela e outros perseguindo connor. deixar sundance fora seria o mesmo que sair gritando para chamar a ateno, de modo que ela levou a gua para dentro, contente por haver bastante espao para todos. foi um pouco difcil fazer o animal passar pela entrada estreita, mas depois o lugar alargava-se, entrando pela colina.

    a fogueira que ela fizera reduzira-se a brasas e connor continuava deitado na mesma posio em que o deixara. tocou o rosto dele e sentiu a pele um pouco mais morna, o que lhe reavivou as esperanas.

    ela no atiou o fogo, deixando as brasas se apagarem, pensando que a fumaa poderia ser vista luz do dia. esvaziou o balde e foi at o rio buscar gua, voltando rapidamente. aqueceu um pouco de gua numa pequena vasilha, colocando-a sobre as brasas que morriam devagar e juntou cerca de uma colherada de goma extrada do tronco do lamo branco. rasgou um pedao do vestido que usara naquela noite e fez uma compressa com o lquido grosso, aplicando-a sobre o ferimento nas costelas de connor.

    o corpo estremeceu sob o estimulo da dor e um gemido escapou dos lbios descorados. aos poucos, os msculos relaxaram e samantha percebeu que a poo j exercia um efeito sedativo sobre a ferida.

    com a claridade do dia, foi possvel examinar melhor a figura do homem mergulhado na inconscincia. a moa nunca vira algum to sujo, mas aquilo no tinha importncia. ela se lembrava do rosto bronzeado do sol, dos cabelos de um belo tom claro de castanho, dos olhos cinzentos e expressivos. as faces agora estavam emaciadas e a pele esticava-se sobre os ossos. o corpo que j fora robusto mostrava-se extremamente magro e coberto de cortes, arranhes e picadas de insetos infeccionadas. a argola de ferro ao redor do tornozelo lacerara a carne e enquanto ele vivesse carregaria as cicatrizes daquela humilhao.

    ela encheu-se de compaixo. como algum poderia infligir tanto sofrimento a outro ser humano, esquecendo-se de todas as leis de amor ao prximo? e que fora sobrenatural manteria um homem vivo depois de

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    tantos reveses?pegou outro pedao do vestido rasgado, o balde com gua e um pedao de

    sabo e sentou-se perto dele. delicadamente comeou a lav-lo, comeando pelo rosto e descendo para o peito, limpando bem a rea que contornava o ferimento. no se atrevia a esfregar muito, receando provocar dor, mas uma boa camada de sujeira saiu no pano molhado e ele se sentiria melhor quando acordasse.

    aquele pensamento a fez imaginar o que aconteceria depois. no sabia o que lhe diria e nem como explicaria sua presena na caverna. lembrou-se das palavras duras que ele lhe dirigira no dia do duelo. ele certamente se tornara ainda mais revoltado e cheio de dio depois que o pai morrera no meio de tormentos provocados por robert chatham, o mesmo homem que matara brendan e de quem ela tinha a infelicidade de ser filha.

    depois de limp-lo da melhor forma possvel, samantha encostou-se parede da caverna. no dormira a noite toda e sentia-se exausta. dentro de alguns minutos, mergulhou em sono profundo.

    acordou ouvindo a voz de connor. ele remexia-se embaixo do cobertor e tinha os olhos abertos, mas sem nenhuma expresso. samantha compreendeu que delirava. tocou o rosto agitado e a pele estava gelada.

    chatham... eu vou mat-lo... destru-lo... acabar com todos os chatham... oh, brendan. papai!... chatham pagar por tudo...

    samantha sentiu-se vergastada pelo