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O JOGO DE AREIA EM TERAPIA CONJUGAL: UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO

Liliane A. P.P. De Carvalho PauloAfranio Sant’anna (O)

RESUMO: Os autores enfocam a comunicação não-verbal na abordagem psicoanalítica de terapia conjugal, propondo o Jogo de Areia como instrumento de intervenção. Além de expor os fundamentos teóricos sobre o tema, também relata um estudo de caso para o qual elegeu-se um casal como sujeitos, que correspondiam a um perfil previamente determinado com as seguintes características: período de união entre um e sete anos; ausência de filhos; classe sócio-econômica média e escolaridade mínima correspondente ao ensino básico. Com o intuito de verificar se tal instrumento em terapia conjugal viabiliza uma interação não-verbal entre o casal e promove uma conscientização de aspectos desconhecidos da relação, solicitou-se aos sujeitos que construíssem juntos um cenário de areia, representando o seu casamento. Depois realizou-se uma entrevista breve e aplicou-se o genograma com a finalidade de obter dados pessoais e de suas famílias de origem e por ser este um instrumento utilizado com regularidade em terapia familiar. Os dados obtidos foram analisados qualitativamente e observou-se que o revelar simultâneo de certas imagens internas pode possibilitar ao casal uma percepção nova e diferente sobre o relacionamento. Pôde ser observado que elementos significativos para o casal foram simbolizados no cenário, sendo estes depois averiguados. Mesmo necessitando de aprofundamento, este estudo considera que o Jogo de Areia pode contribuir para a terapia conjugal, pois promove novas percepções sobre a dinâmica do casal. Os dados levantados não são conclusivos mas sugerem que este pode ser um instrumento valioso em psicodiagnóstico e como um recurso terapêutico em si, do mesmo modo que o Scenotest é empregado atualmente. Pavras-chave: jogo de areia, terapia de casal, comunicação não verbal. SANDPLAY IN COUPLE PSYCHOTHERAPY: A PROPOSAL OF INTERVENTION ABSTRACT: The authors focus on the non verbal communication in the psychoanalytical approach to couples therapy, proposing the sandplay as an instrument of intervention. Not only does it display theoretical basis for the theme but it also gives an account of a study case in which a couple were elected as subjects. This couple corresponded to the profile previously determined with the following characteristics: period of union between one and seven years, absence of children, social middle class and having minimum schooling corresponding to the primary education. In order to verify if that instrument in couples therapy is capable of creating a non verbal interaction between the spouses and promote some awareness of unknown aspects, the subjects were asked to build a scenery on the sand together representing their relationship. After a brief interview a genograma was applied to obtain personal facts and facts about their origin families. Besides this instrument which is commonly used in family therapy. The obtained facts were qualitatively analised and it was observed that when certain inner images were revealed the couple were able to have a new and different perception of the relationship. It can be observed that significative elements to the couple were symbolised in the scenery and later being investigated. Although some further studies are needed this study considers that the sandplay can contribute to couples therapy because it promotes new perceptions of couples dynamic. The facts arisen are not conclusive but they suggest that this can be a valuable instrument in psychodiagnosis and therapeutic resource, the same way the Scenotest is used nowadays. Keywords: sandplay, couple therapy, non verbal communication. O casamento, célula de origem da família, é uma instituição em crise. Atualmente, no Brasil, um em cada quatro matrimônios termina em divórcio. Podem ser enumeradas diversas razões para a ocorrência desse índice alarmante, contudo não deter-se-á sobre elas, e sim, sobre a necessidade premente de amplos estudos no campo da terapia de casal a fim

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de se compreender melhor o fenômeno da conjugalidade e buscar recursos profiláticos e terapêuticos adequados para seus conflitos e distúrbios. Assim, o objetivo deste artigo é investigar a viabilidade do uso do Jogo de Areia em terapia de casal como um recurso não-verbal com finalidades exploratórias e terapêuticas, a partir de uma abordagem junguiana da conjugalidade. Para tanto, realizou-se uma pesquisa teórica complementada por um estudo de caso. O matrimônio implica intimidade, em que um olhar ou um gesto assumem uma gama infinita de variações e expressam diversos significados. A comunicação tem um importante papel na dinâmica conjugal. O dito e o não–dito, circulam pela relação compondo o mito do casal. Um meio provável de avaliar o quão íntimo se é de alguém é mensurar o quanto se pode compreender do outro através do olhar e dos gestos, o quanto pode-se saber do não - dito. Embora o diálogo cumpra um importante papel na integração do casal, não abrange todos as aspectos da relação pois, como falar daquilo que eu mesmo desconheço em mim? A intimidade vivenciada pelo casal pode ser comparada àquela vivida entre mãe e bebê, contudo apresenta um traço diferencial: a escolha. O casamento, segundo Whitaker (1995), é definido a partir da eleição mútua que institui uma relação de compromisso, implicando em continuidade temporal e projeto vital compartilhado. Dessa forma, constitui um modelo adulto de intimidade, uma vez que pressupõe firmar um pacto afetivo espontâneo e de contínua ratificação. A escolha mútua entre os parceiros constitui o vínculo conjugal, selado por um contrato secreto, um acordo nunca dito ou escrito, que regulamenta a reciprocidade e complementaridade das necessidades, anseios e medos do casal. Esse contrato serve de base para a formação da aliança conjugal e de acordo com Miermont (1994), apresenta três níveis: consciente, pré-consciente e inconsciente, sendo que os dois últimos atuam através de manifestações não-verbais. O contrato consciente contém os elementos discriminados pela consciência como os motivos que justificam a escolha amorosa e podem ser nomeados “ Eu gosto de ti por que és assim”. O contrato pré-consciente esconde as metacomunicações não verbalizadas das expectativas de mudar alguns traços parceiro. “ Eu gosto de ti assim, mas nem pense em fazer isso quando casarmos”. O contrato inconsciente, por sua vez, refere-se ao intercâmbio de sentimentos que satisfazem necessidades inconscientes de ambos. Essa troca ocorre por meio de uma comunicação inconsciente entre os cônjuges, a qual exerce um papel decisivo no casamento e tem antecedentes arcaicos na psique, pois segue o modelo da primitiva relação não–verbal mãe–bebê. Segundo Pincus e Dare (1987), esse contrato teria a seguinte forma: Eu tentarei ser algumas das coisas mais importantes que você quer de mim, ainda que algumas delas sejam impossíveis, contraditórias e loucas, desde que você seja para mim algumas das coisas impossíveis, contraditórias e loucas que eu quero que você seja. Não precisamos contar um ao outro o que estas coisas são, mas ficaremos zangados, aborrecidos ou deprimidos se não formos fiéis a isso. (p. 40). A fidelidade às clausulas desses três níveis de contrato possibilita a manutenção da aliança conjugal sem a ocorrência de crises, em uma pretensa estabilidade. Contudo, nem sempre essa harmonia é indicativa de um vínculo saudável. Na maioria das vezes, o casal busca a terapia somente quando enfrenta um período intenso de crise matrimonial. Porém, vale ressaltar que o processo terapêutico conjugal não visa exclusivamente a supressão dos conflitos, pois são justamente as crises que possibilitam

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oportunidades de crescimento individual para os parceiros e também um incremento de criatividade no relacionamento. Existem duas principais vertentes em terapia de casal: o modelo sistêmico e o psicanalítico. O primeiro foi influenciado pelo da escola de Palo Alto e o segundo derivou da teoria de relações objetais de Melanie Klein e foi difundido pela Tavistock Clinic. No entanto, nenhuma das vertentes apresenta homogeneidade, englobando variados enfoques divergentes em perspectiva e procedimento terapêutico. O modelo sistêmico enfatiza o aspecto interpessoal: o casal é um subsistema familiar estruturado em forma de díade. Já o psicanalítico enfatiza o aspecto intrapsíquico, considerando os determinantes profundos da relação, sejam estes reais ou fantasiados. A abordagem da Psicologia Analítica, adotada neste artigo, tem a vantagem de integrar diferentes conceitos, sobretudo em função de que “o que caracteriza o trabalho do analista junguiano de casal não é um modo técnico de trabalhar, mas uma visão de ser humano” (Vargas, 1994, p.108). Por conseguinte, esse autor considera possível inserir a terapia conjugal de abordagem junguiana nos dois modelos. No sistêmico, pelo fato de pressupor um sistema de funcionamento da personalidade arquetipicamente estruturado e, no psicanalítico, por considerar os aspectos inconscientes da psique. Hall (1987) partilha da mesma opinião, apontando que a abordagem junguiana de terapia conjugal não só considera as distorções de comunicação ou os distúrbios vinculares, mas propõe uma visão que congrega ambos aspectos: o interpessoal, na medida em que visa a integração dos papéis de marido/mulher na persona, e o intrapsíquico pois, fundamenta o relacionamento do casal no padrão arquetípico da coniunctio. Segundo Sharp (1993), Coniunctio, é um termo alquímico que define uma operação na qual os opostos de uma massa caótica são separados e depois reunidos em uma forma estável. O Arquétipo da Coniunctio que refere a união e separação, está na base da instituição do casamento e geralmente é responsável pela atração original entre duas pessoas no estágio de enamoramento. Além do papel de homem e mulher, os parceiros exercem os papéis sociais de marido/esposa e de pai/mãe, os quais têm como base as vivências parentais de cada um. Embora Jung (1995) nunca tenha atuado diretamente como terapeuta de casais, foi um precursor no assunto ao publicar em 1925 o artigo “O casamento como relacionamento psíquico”, postulando que quanto maior for o grau de inconsciência do indivíduo a respeito de si mesmo, menor a possibilidade de livre escolha do parceiro. Por essa razão, considera que quando o casamento ocorre na primeira metade da vida, fundamenta-se exclusivamente na projeção de imagens inconscientes do homem e da mulher, denominadas de anima e animus. A anima é uma massa hereditária inconsciente, gravada no sistema vital e proveniente de todas as experiências que os antepassados tiveram com o ser feminino, é uma imagem de mulher que cada homem carrega dentro de si. O mesmo vale para a mulher, que carrega uma imagem de homem interna, denominada animus. O matrimônio enquanto uma escolha psicologicamente diferenciada só é possível se os parceiros tiverem estabelecido uma relação consciente com o seu processo de Individuação, que é o processo de diferenciação psicológica. A meta da individuação não é tornar-se perfeito e sobrepujar a própria psicologia pessoal, mas familiarizar-se com ela. Por essa razão, envolve uma consciência crescente da realidade psíquica única, inclusive das forças e limitações pessoais, e, ao mesmo tempo, implica em uma apreciação mais ampla da humanidade em geral. Dessa forma, segue dois princípios: em primeiro lugar é um processo

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interno e subjetivo de integração, e em segundo, é um processo igualmente indispensável de relacionamento objetivo, segundo Jung (1995). A desigualdade de tempo em que os parceiros iniciam esse processo pode dificultar a relação matrimonial do ponto de vista psicológico. Assim, para atingir o relacionamento individual, o casamento passará por crises, condição indispensável para a tomada de consciência. Guggenbuhl-Craig (1980), retoma a questão apontando duas vias para a conjugalidade. A primeira, considerando o casamento como um meio de individuação, ou seja, descobrir a própria alma através do confronto com o outro. Nesse caso, os conceitos de normalidade matrimonial seriam relativos, pois o caminhar de um casal em direção à individuação é singular e não segue um padrão dos costumes e moral vigentes. A segunda, tratando da concepção do casamento de bem-estar, a qual o autor considera falida, uma vez que a convivência diária e rotineira gera inevitáveis confrontos e conflitos. O casamento é visto por Vargas (1994) como um organismo vivo e criativo, que irá gerar filhos concretos ou simbólicos em diferentes áreas da personalidade humana: biológica, social, cultural, psicológica, etc. Dessa forma, o vínculo conjugal sadio é aquele que permite o desenvolvimento individual dos parceiros e é caracterizado por uma vivência dialética criativa. Isso não significa um estado de perfeito entendimento entre o casal ou ausência de conflitos, mas a elaboração dos mesmos de forma dinâmica, transformando-os em aspectos propulsores de crescimento e enriquecendo a relação. O presente estudo parte da hipótese de que o Jogo de Areia é um instrumento terapêutico que pode contribuir para a vivência dialética entre o casal por facilitar a expressão simbólica do mundo interno e também permitir a representação de aspectos pertinentes à realidade objetiva. O Jogo de Areia é uma modalidade terapêutica inspirada na World Technique de Margareth Lowenfeld e desenvolvida por Dora Kalff. Enfatiza a espontaneidade e criatividade, fundamentando-se em conceitos junguianos. Consiste na montagem de cenas a partir de imagens espontâneas, utilizando-se de miniaturas em uma caixa-de-areia. Esta caixa deve ter a forma retangular rasa com a seguinte dimensão: 72 x 50 x 7 cm. Deve ser construída com material impermeável, a fim de que se possa molhar a areia para facilitar a modelagem do cenário e ser revestida internamente com chapa na cor azul claro, para possibilitar a simbolização da água no fundo e do horizonte nas laterais. A areia deve cobrir metade da altura da caixa, podendo ser utilizada seca ou molhada, desde que separadas em caixas diferentes. Preferencialmente, a areia deve ter sido purificada de detritos e impurezas e especialmente tratada para este fim. Miniaturas dispostas em um armário ou estante são oferecidas aos clientes para a montagem das cenas. Podem ser realistas ou fantásticas, abrangendo diversas categorias, tais como: animais (domésticos, selvagens, répteis, marinhos, pré-históricos, peçonhentos e insetos); construções; brinquedos; armas; objetos; pedras; figuras (humanas, mitológicas, fantásticas e sacras); meios de transporte e objetos . O registro das cenas é feito através de fotografia da cena final e anotações esquemáticas durante a montagem das cenas, especificando a ordem de colocação das peças e possíveis alterações. Geralmente, utiliza-se uma máquina fotográfica de revelação instantânea (Pollaroid), porém pode-se optar por registro em slides ou máquina comum.

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De acordo com Weinrib (1993), o valor do Jogo de Areia repousa no seu caráter vivencial, pois prescinde de regras. É livre e encoraja o espírito lúdico, tornando concreto o mundo interior através de uma representação tridimensional. Para a autora, o priorizar da espontaneidade aliado a um ambiente seguro e confiável, permite o livre expressar de fantasias oriundas de camadas profundas do inconsciente, pertencentes a um estágio pré-verbal da psique. Além disso, considera que as principais metas de um processo terapêutico - expansão da consciência e cura - são possíveis de serem alcançadas através do Jogo de Areia. Tal fato se deve, segundo Kallf (apud Weinrib, 1993), pela ocorrência de um evento sincronístico proporcionada pelo encontro da imagem interna com a externa. Esse encontro simbólico eu-outro é característico da vivência dialética e pode resultar em expansão de consciência para os cônjuges. Embora existam depoimentos de terapeutas sobre os benefícios e validade do uso do Jogo de Areia em psicoterapia de casal, não encontrou-se relatos de casos ou artigos versando especificamente sobre o tema, apenas relatos do Jogo de Areia aplicado em psicoterapia familiar. Em “Sandplay Therapy with children and families”, Carey (1999), estabelece algumas das possibilidades oferecidas pela combinação do Jogo de Areia com a psicoterapia familiar. Primeiramente, ressalta que as dimensões da caixa de areia representam um set físico e simbólico continente para o problema da família. Além disso, oferece a possibilidade de que um membro tenha uma apreensão particularizada do problema ao mesmo tempo em que adquire uma nova percepção de integração e comunicação com o grupo familiar. Em segundo lugar, destaca a observação das alianças familiares, as quais ficam explícitas durante o processo. O Jogo de Areia pode vir a ser uma oportunidade de reestruturá-las, principalmente se forem alianças negativas. É importante salientar que os conteúdos inconscientes são rapidamente revelados ao terapeuta, facilitando a discussão dos padrões familiares. Outro ponto relevante é que o Jogo de Areia tem um apelo imediato com as crianças, podendo ser também um processo de reparação da criança interior dos pais. Carey (1999) também destaca ser possível observar aquilo que existe de único em cada grupo familiar através do Jogo de Areia. Além disso, menciona as vantagens adicionais da experiência tátil com a areia encorajar a expressão de conflitos inconscientes e também de não requerer habilidades artísticas para ser executado. Por último, a autora conclui que o brincar incorporado na terapia possibilita a compreensão dos padrões negativos familiares e também a elaboração de novas perspectivas e soluções. Em função da escassez bibliográfica acerca do tema deste trabalho, buscou-se tecer comparações com outros recursos utilizados em terapia familiar, tais como o Scenotest, em função deste apresentar alguma semelhança quanto aos princípios teóricos e aspectos técnicos do Jogo de Areia. O Scenotest foi desenvolvido por Gerdhild Von Staabs em 1938 a partir da sua experiência clínica em atendimento infantil, contudo indicou a aplicação deste instrumento para vários campos da psicologia aplicada, inclusive na terapia conjugal. Staabs (apud Cervany, 1982) buscou colocar à disposição de seus clientes, um material através do qual eles pudessem reproduzir mais facilmente sua situação cotidiana. Possibilitando assim, que crianças, adolescentes e adultos montassem cenas evocativas de situações, problemas e conflitos vivenciados na estrutura familiar.

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O material que compõe o Scenotest consiste em uma caixa com marionetes de figuras humanas, peças de madeira para construções diversas, personagens simbólicas, representações de natureza e objetos variados. Segundo Cerveny (1982), através da sessão familiar pode-se perceber uma repetição de algo que acontece no cotidiano de uma família. Esta análise fornece a noção do tipo de grupo com o qual se está trabalhando, o tipo de interação que existe entre seus membros, o tipo de ambiente físico em que vive a família, quais as normas, condutas e limites presentes no grupo familiar. Diz ainda que a observação do grupo familiar permite a melhor percepção do indivíduo que está em processo diagnóstico dentro deste grupo e o quanto de influência o mesmo exerce sobre ele. Formula a hipótese de que pode-se usar este instrumento para investigar aspectos interativos do grupo familiar no qual está inserido o sujeito do diagnóstico psicológico. Cerveny (1982) considera que a observação da rede de comunicações é um dos aspectos mais importantes no sentido de oferecer uma visão da estrutura do grupo familiar. Por essa razão, esse recurso é precioso no psicodiagnóstico familiar, uma vez que permite observar a rede de comunicações operante tanto no nível verbal como no não–verbal. A autora discorre sobre a eficiência das mensagens não-verbais, afirmando que esta modalidade é mais eficiente que a verbal; pois se os dois tipos de mensagem entrarem em conflito, os conteúdos verbais são praticamente desprezados. Dessa forma, levanta a hipótese de que, no comportamento social humano, utiliza-se o canal não-verbal para negociar atitudes interpessoais e o canal verbal primariamente para transmitir informação. Por conseguinte, a importância deste tipo de linguagem também ressalta a necessidade de existirem recursos terapêuticos que estimulem essa via. Considerando as semelhanças existentes entre os dois recursos, Scenotest e Jogo de Areia, é possível aplicar o Jogo de Areia com grupos familiares de modo similar, uma vez que este também auxilia na observação do grupo e de seus componentes. Para efeito de comparação, destacar-se-á algumas diferenças entre os dois instrumentos citados. O Scenotest oferece materiais limitados e que são restritos à reprodução quase que única e exclusiva do cotidiano familiar. Já o Jogo de Areia busca oferecer uma imensa variedade de materiais, possibilitando a simbolização tanto de aspectos cotidianos como também de outros relacionados ao mundo fantástico. O cenário do Jogo de Areia não é restrito ao modelo de estruturação de uma casa, podendo ser construído de acordo com a imaginação do paciente. Além disso, deve-se ressaltar a importância da areia como fator terapêutico em si, pois o sentido do tato é uma dos meios precoces pelo qual o indivíduo descobre o mundo. O que vai ao encontro de Oaklander (1980) que enfatiza a importância de experiências sensórias como recursos terapêuticos. Em razão de sua amplitude de recursos e variações de expressão, é possível considerar a hipótese de que o Jogo de Areia é um instrumento que possibilita a manifestação livre tanto de aspectos intrapsíquicos como daqueles referentes a relação interpessoal da dinâmica familiar. Enquanto que o Scenotest, devido às restrições mencionadas, teria por foco apenas o aspecto interpessoal. Com o intuito de verificar a possibilidade do uso do Jogo de Areia em terapia conjugal como um instrumento projetivo que viabilize uma interação não-verbal entre o casal e promova a conscientização de aspectos desconhecidos da relação, realizou-se uma sessão experimental de Jogo de Areia. Elegeu-se um casal a partir de um perfil previamente

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delimitado: período de união entre um e sete anos, ausência de filhos, classe sócio-econômica média e escolaridade mínima de ensino fundamental. Optou-se por um casal sem filhos a fim de evitar que a problemática pertinente a estes se sobrepusesse a do casal e também evitar a mistura do papel conjugal e parental. O período de união foi delimitado a partir de estudos sobre o ciclo de vida do casal com o objetivo de evitar os períodos de crise conjugal. Segundo Miermont (1994), o primeiro ano do casamento é considerado como uma fase de adaptação e após o sétimo ano inicia-se uma revisão interna do sentido do casal permanecer unido, podendo ser este um elemento gerador de crises. Desconsiderou-se a legitimação da união devido as mudanças nos costumes da sociedade brasileira. Segundo Petrucelli (1994), observa-se uma tendência progressiva de aumento da união consensual, que prescinde de uma cerimônia de casamento ou de sua formalização jurídica. Os sujeitos deste trabalho são um casal heterossexual, sem filhos e vivendo há um ano e três meses em união do tipo consensual. O componente do sexo feminino, E. N. S., apresenta as seguintes características: 23 anos, operadora de xerox, escolaridade nível médio completo, religião católica. Por sua vez, o componente do sexo masculino, A. T. O., 31 anos, motorista de ônibus, escolaridade nível médio incompleto, religião católica. Para facilitar a identificação referir-se-á o componente feminino como F (feminino) e o componente masculino como M (masculino). Foi realizada uma sessão experimental com duração de 90 minutos na qual solicitou-se aos colaboradores que construíssem juntos um cenário na caixa de areia, representando o seu casamento. Depois foi pedido ao casal que contasse uma história sobre a cena construída e escolhesse um título para a mesma. Observou-se que durante a montagem da cena, os colaboradores não se falaram e nem trocaram olhares, cada um permaneceu concentrado na sua atividade, individualmente, como se o outro não estivesse presente. Também não se detiveram sobre o que o outro construía, agindo de forma independente e isolada. Apesar de não ter ocorrido interação consciente entre o casal durante o processo, ambos versaram sobre o mesmo tema, “a casa”, embora sob ângulos opostos. Enquanto M construiu um cenário que representa uma casa e as suas dependências externas, F representou uma cena interna de uma residência. Assim, é possível considerar como tema em comum a casa. Este tema manifestou-se espontaneamente, o que pode evidenciar alguma comunicação inconsciente entre o casal, bem como este tratar-se de um símbolo representante da aliança conjugal. De qualquer modo, a escolha do tema comum parece revelar que o casal valoriza a moradia compartilhada como representante da união conjugal. De acordo com a teoria junguiana dos tipos psicológicos, essa escolha poderia indicar de traços de introversão ou extroversão. Assim, pode-se supor que M valorize o meio externo, social, enquanto que F o mundo interno, a intimidade. Nesse caso, M corresponderia ao tipo extrovertido e F ao introvertido. Por outro lado, o mundo externo e interno também podem representar os papéis sociais convencionais do masculino e do feminino no casamento, cujo estereótipo corresponde a mulher incumbida em cuidar da casa e do lar, enquanto o homem exerce atividades fora deste. A casa representada por F é composta por objetos inanimados e plantas, porém estas foram colocadas por último e parecem ter uma função secundária. O predomínio de elementos

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inanimados somado à ausência de figuras humanas sugere a ausência de expressão afetiva. Deste modo pode-se supor que F procura se afastar e não estabelecer contato com as emoções suscitadas na relação entre o casal. Além disso, a predominância da cor rosa no cenário, pode ser um indicativo da projeção de aspectos idealizados sobre a relação. A primeira miniatura escolhida por F para compor a cena foi um vaso sanitário. Esta também foi a única peça que foi remanejada de posição. Inicialmente, a peça foi colocada no lado da caixa oposto ao que F se encontrava e depois em uma posição próxima. Essa mudança pode sugerir alguma dificuldade inicial com a representação escolhida, pois esta teve de ocupar primeiro um lugar distante para depois poder aproximar-se. O vaso sanitário é um objeto destinado ao depósito dos excrementos. De modo geral, representa uma evolução da civilização em termos de higiene pessoal. A privada provê um destino adequado aos dejetos, portanto pode ser considerada como um elemento purificador e promotor de limpeza. Segundo Chevalier e Gheerbrant (1991) os excrementos, que aparentemente podem ser considerados como elementos desvalorizados, são um receptáculo de força e uma potência biológica regeneradora, a ponto de alguns radioestesistas afirmarem que a vibração dos dejetos é equivalente à do ouro. Ao mesmo tempo que os dejetos são portadores de um caráter negativo da manifestação da sombra, significando imundície, conteúdos reprimidos e pecado, assumem também um aspecto regenerador de poder e vitalidade. A atitude que F projeta na cena ao mudar o vaso sanitário de lugar e ao relatar a necessidade de manter a limpeza, pode indicar um certo grau de ansiedade e necessidade de controle sobre os aspectos sombrios da relação. Na cena construída por M existem figuras humanas, plantas, fogo, alimento, veículo de transporte e animal. Ao descrever a cena M diz que é um churrasco com os amigos, sugerindo dinamismo e afetividade. A presença do cachorro foi enfatizada por M, “não poderia faltar” [sic]. Na cultura ocidental esse animal está associado a imagem de fidelidade e companheirismo e conforme o dito popular: “o cão é o melhor amigo do homem”. O cachorro é o animal doméstico por excelência e também cumpre a função de guardião vigilante do lar, o que pode ser uma representação da função tradicional masculina de proteger e prover a família. É interessante observar que a cena de M traz aspectos que não foram representados por F entre eles, relacionamento, interação, afetividade, fidelidade, etc e que geralmente estão mais associados ao feminino. Após a realização das cenas fez-se uma entrevista breve e aplicou-se o genograma, tendo este último a finalidade de obter dados acerca das famílias de origem. O genograma é um recurso muito utilizado por terapeutas familiares em processos de avaliação e psicodiagnóstico. Segundo Miermont, “é um mapa que oferece uma imagem gráfica da estrutura familiar ao longo de várias gerações, esquematiza as grandes etapas do ciclo de vida familiar, além dos movimentos emocionais a ele associados.” (1994, p. 291). A técnica é similar a construção de uma árvore genealógica, especificando-se diversas informações referentes aos membros de até três gerações da família no máximo. O genograma revelou que ambos tiveram experiências de desestruturação familiar. F é a primogênita de quatro filhos. Seus pais se divorciaram quando ela tinha 10 anos. Seu pai abandonou a esposa e filhos na Bahia e mudou-se para São Paulo, casando-se pela segunda vez. Ao completar 18 anos, F optou em morar com o pai. Relata ter enfrentado dificuldades no relacionamento com a madrasta e também com os enteados do pai. Pouco tempo depois, seu pai faleceu e F passou a morar de favor na casa de uma amiga.

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M é o segundo filho e tem dois irmãos. Casou-se pela primeira vez aos 18 anos e sua esposa tinha 17 na época. Tiveram dois filhos do sexo masculino, atualmente com 9 e 7 anos de idade. O casal divorciou-se há 3 anos devido aos constantes desentendimentos. Contudo, M ressalta que esforçou-se muito para evitar a separação, mas convenceu-se de que a ex-mulher “não era a pessoa certa para mim” [sic]. Após o fim do casamento voltou a morar com os pais, pois temia morar sozinho. Os dados obtidos na entrevista demonstram um intenso desejo do casal em possuir uma casa própria quando se conheceram. F morava com uma colega em uma situação de subserviência e M morava com os pais após a sua separação, pois não desejava morar só. A união representava para ambos uma forma de realizar esse desejo. Para F seria a oportunidade de ser a dona da casa e para M, a disponibilidade de uma pessoa “certa” [sic] lhe fazer companhia. Talvez essa seja uma das razões do casal ter optado pela moradia em comum após 4 meses de namoro. F viveu como hóspede por um longo período de sua vida. O casamento lhe proporcionou um lar, um espaço no qual ela exerce o comando e é a “dona da casa”, possibilitando assim, o viver de experiências caracterizadas pelo exercício do poder e da criatividade. Na entrevista, M comentou que retornou para a casa paterna depois de separar-se do primeiro casamento porque não queria morar só. Isso pode sugerir que M valoriza o companheirismo como fator preponderante no casamento, tal aspecto também é preponderante no cenário construído, onde o cão aparece com destaque e sugere a expectativa de fidelidade e companheirismo em relação ao casamento. Outro ponto a ser destacado é que o casal referiu o desejo de ter um filho durante a entrevista. Após a montagem da cena F. comentou que pensou em colocar um berço, mas não o fez porque ainda não tem um bebê. A evocação da imagem de um bebê pode sugerir a antecipação de acontecimentos futuros que implicam em desenvolvimento criativo para o casamento. Segundo Jung (1993), a criança é futuro em potencial e simboliza as mudanças da personalidade. É também um símbolo mediador e portador de cura, ou seja, possibilita restaurar a integridade da psique. No processo de individuação, é um símbolo que antecipa a figura de Self, decorrente da síntese entre consciente e inconsciente. Desse modo é possível supor que o casamento represente, através da imagem da criança, o desenvolvimento criativo para ambos os cônjuges. A partir dos dados obtidos observou-se que o revelar simultâneo de certas imagens internas, um meio de comunicação não-verbal, possibilitou ao casal uma percepção nova e diferente sobre o relacionamento. Elementos significativos para o casal foram simbolizados no cenário, sendo estes depois averiguados. O tema desenvolvido no cenário foi “a casa”, sugerindo a ocorrência da simbolização de uma necessidade do casal em possuir um lar, posteriormente confirmada na entrevista e no genograma. Também foi possível avaliar a frágil comunicação existente entre o casal durante a montagem da cena, construída separadamente e sem a interação de elementos. O Jogo de Areia demonstrou-se um recurso importante para ser utilizado em avaliação da dinâmica conjugal, pois revela os padrões de interação do casal . O processo de construção do cenário permite que através dos materiais simbólicos, se faça uma investigação profunda averiguando, por exemplo, símbolos da aliança conjugal e as motivações inconscientes para escolha do cônjuge. Apesar de breve e limitado, este estudo de caso revela que o Jogo de Areia pode contribuir para a terapia conjugal ao promover novas percepções sobre a dinâmica do casal. Os dados levantados não são conclusivos, mas sugerem que este pode ser um instrumento valioso

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para avaliação conjugal e também como um recurso terapêutico. Além das similaridades com o Scenotest, pode ser empregado com algumas vantagens, tais como: a possibilidade de representar tanto os aspectos cotidianos como os fantásticos e o fator terapêutico proporcionado pelo contato com a areia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CAREY, L. J. Sandplay therapy with children and family. Northvale, Jason

Aronson,1999. CERVENY, C. M. O. O Scenotest como instrumento de investigação das relações

familiares, no processo do diagnóstico psicológico com crianças e adolescentes. Dissertação de mestrado, PUC, São Paulo, 1982.

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