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 1  UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA / FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO / PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL :  UM ESBOÇO HISTÓRICO * * - do Estado Novo ao estado de exceção - M  ARIA ELAINE K OHLSDORF Brasília, dezembro de 1976 Revisado em março 2002 por N  ARA K OHLSDORF 1. O CONCEIT O DE PL ANEJAMENTO 1.1. O conceito de planejamento lato sensu Definir e conceituar 1  planejamento é uma árdua tarefa, principalmente pelo fato deste conceito se referir sempre a uma realidade específica sendo, portanto, dinâmico, histórico e processual. Aqueles que se aventuraram neste exercício apresentam similitudes que possibilitam concluir que o planejamento é um processo racional: “Planejamento é um processo de decisões, realizado de forma metódica, com a finalidade de preparar ações exteriores” (Lexikon der Planung und Organisation, Schnelle Verlag). “Planejamento significa pensamento sistemático, orientado para o futuro, na formulação de modelos de conduta, metas e padrões de ação alternativos, bem como sua escolha otimizada e a determinação de diretrizes para a realização racional da alternativa escolhida”. (Zangemeister) 1  Definir consiste em determinar a essência dos objetos (conceitos, palavras, signos), isto é, as propriedades e relações entre seus conteúdos e significados, a partir de regras processuais da lógica. Assim, a definição caracteriza-se pela igualação lógica entre conceitos. Conceituar, por sua vez, é procurar as características essenciais a uma série de objetos, propriedades e relações, visando reuni-los em uma classe ideal de pensamento, em função de objetivos particulares (Kohlsdorf, G, s/d).

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIA / FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO / PROGRAMA DE

    PS-GRADUAO

    PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: UM ESBOO HISTRICO *

    * - do Estado Novo ao estado de exceo -

    MARIA ELAINE KOHLSDORF Braslia, dezembro de 1976

    Revisado em maro 2002 por NARA KOHLSDORF

    1. O CONCEITO DE PLANEJAMENTO 1.1. O conceito de planejamento lato sensu

    Definir e conceituar1 planejamento uma rdua tarefa, principalmente pelo fato deste conceito se referir sempre a uma realidade especfica sendo, portanto, dinmico, histrico e processual. Aqueles que se aventuraram neste exerccio apresentam similitudes que possibilitam concluir que o planejamento um processo racional:

    Planejamento um processo de decises, realizado de forma metdica, com a

    finalidade de preparar aes exteriores (Lexikon der Planung und Organisation, Schnelle Verlag).

    Planejamento significa pensamento sistemtico, orientado para o futuro, na formulao de modelos de conduta, metas e padres de ao alternativos, bem como sua escolha otimizada e a determinao de diretrizes para a realizao racional da alternativa escolhida. (Zangemeister) 1 Definir consiste em determinar a essncia dos objetos (conceitos, palavras, signos), isto , as propriedades e relaes entre seus contedos e significados, a partir de regras processuais da lgica. Assim, a definio caracteriza-se pela igualao lgica entre conceitos. Conceituar, por sua vez, procurar as caractersticas essenciais a uma srie de objetos, propriedades e relaes, visando reuni-los em uma classe ideal de pensamento, em funo de objetivos particulares (Kohlsdorf, G, s/d).

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    Planejamento a aplicao de mtodos racionais na problemtica de formulao de metas sociais e seu rebatimento em programas concretos de ao. (Faludi)

    Entende-se por planejamento a atividade de criar um plano, ou seja, um sistema de aes conscientes, desejadas e orientadas para o futuro. (...)O plano para uma ao baseia-se numa tecnologia, quer dizer, em um sistema de axiomas sobre as conseqncias de determinadas aes, os quais foram apreendidos a partir de experincias no meio-ambiente, assim como apoiados sobre uma estrutura de preferncias do planejador, quer dizer, uma avaliao de situaes futuras. (H. CH. Rieger).

    Planejamento pode ser encarado como instrumento, com o fim de preparar decises. (Vente) Planejamento o projeto sistemtico de uma ordem racional sobre a base de todos os conhecimentos respectivos ou pertinentes. (Kaiser) Planejamento pode ser visto como uma cadeia de inmeros processos de busca e deciso organizados em feed-back, com a finalidade de encontrar solues para problemas. (Stober) Planejar agir sobre um objeto com o propsito de transform-lo em uma situao que mais desejvel que a atual. (Ozbekhan) Planejamento definido como um processo ou programa de aes, que tem por finalidade intervir numa situao, modificando-a, a fim de resolver um problema (entendendo-se problema como uma discrepncia entre uma situao real atual ou futura, tal como ela , e uma situao ideal presente ou futura, ou tal como ela deveria ser, ou situao aspirada). A determinao da situao aspirada implica um ato valorativo, de fixao de metas (sociais) a alcanar. Esta resoluo de problemas deveria ser alcanada racional ou metodicamente, atravs de uma cadeia de processos de busca e decises. O resultado um programa de aes, considerado por ns como soluo do problema. (G. Kohlsdorf) Percebe-se, dessa forma, que o conceito de planejamento envolve uma relao entre um sujeito (indivduo, grupos ou classe social) e um objeto qualquer. Essa relao de conhecimento para a ao e da prpria ao sobre o objeto, onde o planejamento no contm a realizao do plano, isto , a ao efetiva sobre o objeto. Por outro lado, a preparao dessa ao caracterstica fundamental da atividade de planejamento. Este, na verdade, envolve dois tipos de atividades, muito embora se comprometa com apenas um deles. O tipo de atividade participante do conceito de planejamento o que denominamos como intelectual, e caracteriza-se por ser um processo de conhecimento (do objeto e de suas caractersticas internas e externas), de avaliao (das situaes presentes e passadas e das alternativas futuras), e de criao (de solues e alternativas ao problema identificado). O outro tipo de atividade envolta no planejamento a de natureza material, caracterizada por ser uma ao preparada (planejada) e responsvel pela transformao efetiva do objeto, graas a uma srie de atividades programadas com este fim e que constituem o chamado programa de ao. O produto do processo de planejamento, portanto, formado por uma proposta (denominada plano), e por um programa de implantao desta. A implementao do planejamento a fase de transformao do objeto (ao efetiva sobre o mesmo). Entretanto, no se deve concluir precipitadamente que o planejamento espordico, necessrio apenas em determinadas circunstncias. Essa atividade constitui-se, antes, em um acompanhamento da realidade dos objetos em questo, tornando seus processos menos estocsticos e mais determinados.2 Assim, busca-se modificar, por um

    2 Sobre processos, ver Kohlsdorf, G. & Kohlsdorf, M. E.: O processo de projetao: algumas consideraes metodolgicas. Braslia, AUR, 1975. mimeo.

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    processo de racionalizao, a probabilidade dos resultados, aumentando o poder da sociedade sobre seu prprio destino 3. Evidentemente, os processos estocsticos testemunham outro tipo de transformao sobre o objeto, cuja ao caracteriza-se por no ser preparada (planejada) nem racional, mas intuitiva e espontnea. Tais aes no interessam a este trabalho, que se concentrar nas aes e atividades diretamente vinculadas ao planejamento. Surge, ento, a pergunta: por que o sujeito age de maneira racional sobre o processo de transformao dos objetos? Por que os grupos sociais tm necessidade de dirigir os processos de transformao do seu entorno, prevendo, definindo e buscando solucionar problemas?4 Apesar de serem questes relacionadas a contextos especficos, devendo ser compreendidas historicamente, h alguns aspectos gerais e universais que as perpassam. Por exemplo, inegvel que os processos de transformao do meio ambiente atingem, ainda que em graus diferentes, o sujeito (grupos sociais); por outro lado, seu entorno dinmico e vincula-se a processos de transformaes universais que vm ocorrendo de maneira cada vez mais vertiginosa, com caractersticas mesmo exponenciais5. Trata-se, portanto, de planejar as prprias relaes sociais, polticas e econmicas, contextualizadas em determinado entorno com o qual estabelecem um relacionamento biunvoco. Assim, a atividade de planejamento indissocivel de quem a exerce, posto que est comprometida com o grupo social que a formula e executa. O planejamento assume, ento, conotaes poltico-ideolgicas suficientemente ntidas para que suas metas sirvam, obviamente, para a reorganizao do sistema de poder em benefcio de uns partidos, grupos e lderes, contra outros.6 1.2. O conceito de planejamento stricto sensu

    Tem-se restringido planejamento s atividades governamentais (seja este local, regional ou nacional), considerando-o sempre vinculado a aspectos do objeto (por ex. planejamento econmico, planejamento administrativo) ou a alguma dimenso do mesmo (planejamento nacional, planejamento regional). Assim, os atores do planejamento so reduzidos a tcnicos capacitados para tal tarefa que possuem as caractersticas de racionalidade e processualidade da atividade:

    A atividade de planejamento uma interveno que, a partir de um esforo coordenado, procura criar, elevar e alterar certos padres de consumo ou produo. (Kowarick)

    Planejamento um modo racional de proceder, graas ao qual se diagnosticam as carncias, se escolhem os objetivos e se definem os meios a serem empregados, segundo regras e procedimentos aceitos como razoveis por um conjunto de tcnicos. (Cardoso, F. H.)

    Planejamento governamental uma modalidade de tomada de decises que visa modificar, por um processo de racionalizao, a probabilidade dos resultados, aumentando assim o poder da sociedade sobre seu prprio destino. (Lafer)

    O planejamento um fluxo contnuo de consideraes racionalizantes na direo do processo de tomada de decises do Governo um processo cujo outro principal elemento a poltica.(Daland)

    3 Lafer, B. M. Estado e sociedade no Brasil: problemas de planejamento. In: Revista Argumento ano1 n2. Rio De Janeiro: Paz e Terra, nov/1973. Pp35. 4 Kohlsdorf, G. & Kohlsdorf, M. E. op. cit. 5 Kohlsdorf, G. & Kohlsdorf, M. E. op. cit. 6 Cardoso, F. H. Aspectos polticos do planejamento. In: Lafeer, B. M. Planejamento no Brasil. So Paulo: Perspectiva, 1975. PP 170.

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    Enquanto alguns autores colocam planejamento e poltica como frontalmente

    antagnicos, outros os consideram complementares, argumentando que tanto planejamento quanto poltica envolvem decises. Conceituada como o estudo do poder de uma sociedade qualquer sobre seu prprio destino7, a poltica produz e aloca comandos segundo os diferentes setores do complexo social (econmico, cultural etc.), e pressupe certos processos decisrios, dos quais resulta. Isto significa que certos atores (grupos sociais dominantes), investidos de poder decisrio, definiram metas e objetivos a serem atingidos. A implementao da poltica deliberada por estes atores tem seus meios e instrumentos consubstanciados e legitimados pela administrao pblica.

    Se, por um lado, poltica e administrao envolvem processos decisrios, por outro diferem na essncia das decises: a poltica essencialmente criativa, enquanto que a administrativa depende das decises polticas anteriores. A conseqncia desta discusso foi a caracterizao do planejamento como atividade relacionada administrao, ligada ao conceito de racionalidade, e subordinada poltica, arrolada liberdade. Liberdade e racionalidade seriam, portanto, excludentes, o que caracterizaria a ao poltica no apenas como livre mas, tambm, como irracional, pois exercida por sujeitos e oposta aos limites da razo. O planejamento, como atividade racional, s estaria relacionado administrao, embora sob o controle de foras irracionais, as polticas.

    A impreciso desses antagonismos ilustrada pela histria, por meio da experincia de planejamento em pases socialistas (a extinta URSS) e capitalistas (Frana e EUA), que nega a tese de que o planejamento centralizado s vivel nas sociedades socialistas, onde a poltica teria sido substituda pela administrao em funo da inexistncia da diviso de classes sociais. Alm disso, a crtica marxista da idia de liberdade aprofundou a incongruncia da oposio entre poltica e administrao, e entre poltica e planejamento:

    O sujeito dessa liberdade no poderia ser o indivduo como um ser indeterminado e geral. (...) a impossibilidade do exerccio efetivo da liberdade depende cada vez mais da situao concreta, na qual grupos organizados tm asseguradas as informaes para a definio de seus interesses, conhecem suas necessidades e dispem dos meios de organizao para lutar por seus objetivos. (Cardoso, F. H. Op Cit. pp 163)

    Por outro lado, historicamente, as decises polticas tendem a se tornar cada vez mais racionais, devido crescente conscientizao dos indivduos e sua participao nas decises e na prpria luta pelo poder. Este movimento racionalizante deve-se, tambm, ao aumento de informaes e maior abrangncia destas pelos meios de comunicao de massa, caracterizando a sociedade da informao e o prprio modelo de participao democrtica. Esta sociedade democrtica origina a moderna burocracia, uma forma administrativa indispensvel sua manuteno e caracterizada pela expanso do quadro de funcionrios e como um instrumento necessrio para a igualdade formal exigida pela cidadania nascente, que abrange apenas uma parcela da sociedade (os proprietrios). O funcionrio burocrtico possibilita contrapor a impessoalidade formalista (Cardoso, 1975) racionalizao substantiva da poltica. A burocracia penetra, assim, na sociedade civil, burocratizando-a, incentivada pelo desenvolvimento tecnolgico e da organizao econmica moderna.8 Por outro lado, o crescimento das sociedades de massa e das economias industriais, assim como a revoluo dos meios de informao e comunicao, determinaram uma forma de deciso na empresa moderna que acentua o processo de separao entre propriedade e controle, numa tendncia administrao planejada

    7 Karl Deutsch, apud Lafer, C. op. Cit. pp 34. 8 Weber, apud Cardoso. Op. Cit.

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    (tecnoburocracia, segundo Galbraith). Esta contm em si um corretivo importante racionalidade formal, uma vez que a expanso do mundo contemporneo depende do elemento criador. Isto faz com que o planejamento, mesmo limitado esfera administrativa, contenha em si instrumentos que assegurem a liberdade e a criao. O planejamento, assim, assume sua significao terica geralmente como questo poltica, no contexto novo de sociedade que, para sobreviver e expandir-se, que de planejar9.

    Dessa forma, parece no haver limites entre planejamento e poltica mas, pelo contrrio, a prpria atividade de planejar poltica. Alm da discusso anterior, a histria do planejamento brasileiro, desenvolvida no captulo seguinte, mostra as duas atividades como processos que visam, pelo domnio crescente e aprimorado das variveis contextuais, assegurar a definio do chamado destino do sistema scio-econmico em que atuam, para determinados grupos detentores do poder.

    1.3. O planejamento do desenvolvimento

    No Brasil, o planejamento, particularizado como atividade governamental e com caractersticas institucionais, tem sido classificado como planejamento do desenvolvimento, tanto por tcnicos e polticos envolvidos com a atividade, quanto pelos estudiosos e crticos do planejamento brasileiro. Assim, atrelado questo do planejamento, vm aluses meta do desenvolvimento, muitas vezes resultando em ttulos como planejamento para o desenvolvimento.

    O conceito de desenvolvimento envolve a consecuo de qualidades superiores s contidas na situao atual do objeto, significando um processo que pode ocorrer: ou por evoluo, quando as transformaes quantitativas ocorrem dentro das mesmas qualidades bsicas do objeto; ou por revoluo, onde h transformaes qualitativas diferentes das qualidades bsicas do objeto.10 O prprio conceito de planejamento, no entanto, inclui processos de desenvolvimento, na medida em que postula transformaes de situaes problemticas para outras, aspiradas, que deveriam ter qualidades melhores que as anteriores. Ainda que a formulao de situaes desejadas esteja comprometida com o aspecto valorativo de planejadores e daqueles que esto sob a ao do objeto de planejamento, e que estes dois nem sempre coincidam, acreditamos que possvel considerar todo processo de planejamento como um processo de desenvolvimento.

    O conceito de desenvolvimento, tal como tem sido empregado no Brasil e na Amrica Latina, caracteriza-se por alguns aspectos que exigem reviso, uma vez que tm sido responsveis pela maioria dos resultados de polticas de planejamento aqui adotadas. Primeiramente, desenvolvimento tem sido colocado como quantitativo e condicionado apenas a variveis econmicas, concretizando-se como crescimento do produto nacional ou da renda per capita. Assim, estes ndices tm se tornado o ncleo da anlise das condies de desenvolvimento. Porm, quando isso explicitamente torna-se o ncleo de anlise, ento a cincia, pretenciosamente, consagra os parmetros dominantes da realidade e, em conseqncia, o subdesenvolvimento deixa de ser examinado a partir de sua caracterstica fundamental: a circunstncia de realidade scio-cultural dependente. (Parisi, 1968). Reduzir, por outro lado, o desenvolvimento global ao desenvolvimento econmico significa uma distoro considervel, na medida em que o processo de desenvolvimento um processo integrado nos diversos aspectos de uma realidade. A suposio de que o desenvolvimento social decorrncia do desenvolvimento econmico tem conduzido a resultados insatisfatrios, pois a colocao de metas somente econmicas incorre em transformaes limitadas ao plano puramente econmico, mantendo a estrutura social e, conseqentemente, a problemtica social, inalteradas. O

    9 Cardoso, F.H. Op. Cit. Pp 170. 10 Philosophisches Woerterbuch/ VEB bilbiographisches Institut Leipzig, 1969. Band 1.

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    desenvolvimento , em si mesmo, um processo social; mesmo seus aspectos puramente econmicos deixam transparecer a trama das relaes sociais subjacentes (Cardoso & Faletto, 1975).

    Em segundo lugar, o desenvolvimento brasileiro baseia-se no modelo concernente s situaes e etapas scio-econmicas dos pases da Europa Ocidental e dos EUA. Porm, tomar formas histricas de determinado procedimento para caracteriz-lo significa inverter o caminho do processo de conhecimento, alm de resumi-lo a situaes especficas, sem valor universal. De acordo com Parisi (1968), processo de desenvolvimento e circunstncia de subdesenvolvimento denotam foras dialticas do crescimento econmico e da prpria evoluo histrica do capitalismo. A explicao destes processos d-se a partir de trs categorias essenciais: a forma e o grau da diviso social do trabalho, a estrutura social, e o sistema social. Nestes termos, o desenvolvimento conceituado como o resultado da interao de grupos e classes sociais que tm um modo de relao que lhes prprio e, portanto, interesses materiais e valores distintos, cuja oposio, conciliao ou superao d vida ao sistema scio econmico (Cardoso & Faletto, op. Cit. Pp 23). O desenvolvimento, em geral, refere-se mais estrutura de um tipo de sistema econmico com predomnio do setor primrio, forte concentrao de renda, pouca diferenciao do sistema produtivo e, sobretudo, predomnio do mercado externo sobre o interno (ibidem, pp 26).

    O desenvolvimento vincula-se situao de dependncia para com as naes cntricas do capitalismo. Assim, as naes desenvolvidas no podem servir como modelo de desenvolvimento, devendo ser consideradas em suas relaes com as naes perifricas, posto que tais relaes explicam a condio de subdesenvolvimento. Desta forma, entre as economias desenvolvidas e as subdesenvolvidas, no existe uma simples diferena de etapa ou de estgio do sistema produtivo, mas tambm de funo ou posio dentro de uma mesma estrutura econmica internacional de produto e distribuio (ibidem, pp25).

    1.4. Concluses gerais

    ... so questes polticas que marcam as condies de xito e os limites do planejamento, em situaes histricas concretas. Para sua soluo os planejadores, como categoria social, pouco podem contribuir. Seu equacionamento adequado depender sempre das foras sociais subjacentes ao processo de planejamento da dinmica da poltica mais ampla que circunscreve as condies nas quais se d o planejamento brasileiro. Mas como intelectual e cidado, o planejador no pode eximir-se de coloca-las e mostrar que a falcia do tecnocratismo, quando as desqualifica por no ser questes tcnicas, no faz mais que encobrir os problemas polticos subjacentes a qualquer planejamento (Cardoso, 1975. pp184).

    2. O PLANEJAMENTO NO BRASIL 2.1. Introduo

    O planejamento brasileiro, por ser uma atividade desenvolvida por tcnicos e polticos a nvel governamental, refere-se predominantemente aos setores econmicos do sistema. Assim, o planejamento urbano com caractersticas de centralidade e integrao aos demais aspectos contextuais um fato relativamente recente. O planejamento econmico surge, no Brasil, a partir da dcada de 30, portanto, pouco depois da adoo do processo na Europa e nos EUA. Seu incio deve-se aos novos grupos que se faziam representar na poltica e que se vinculavam aos interesses industriais nascentes e tambm s novas

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    funes assumidas pelo Estado no tocante economia, caracterizadas por uma responsabilidade crescente quanto criao e distribuio das riquezas. A partir de ento, o processo econmico brasileiro passa a ser fortemente controlado por atitudes governamentais.

    Talvez sejam esses fatores os responsveis pela interpretao de desenvolvimento como processo econmico apenas, e no a partir de uma viso integrada da realidade: o planejamento brasileiro caracteriza-se pela preocupao com o desenvolvimento como soluo para o subdesenvolvimento. Este enfoque tem dirigido no apenas a histria econmica do Pas como tambm a social, atingida pelos rumos apontados pelo planejamento econmico. Por outro lado, os problemas urbanos demoraram a ser considerados como necessidades de desenvolvimento devido centralizao das atividades de planejamento. Foi apenas na dcada de 60 do sculo XX que a necessidade de se planejar os sistemas urbanos comeou a ser considerada pelo governo, em funo do aprofundamento das contradies sociais devido industrializao, urbanizao e xodo rural ocorridos na dcada anterior. Porm, o enfoque limitava-se a questes intra-urbanas, em detrimento do contexto regional onde estas se inserem e graas ao qual se explica a maioria dos problemas urbanos. Por outro lado, o urbano no considerado o centro da problemtica da ocupao do territrio, que ainda se concentra no rural. Como conseqncia, o planejamento urbano no Brasil pode ser considerado imaturo.

    Esta atividade ainda restrita a pequenos grupos de tcnicos e polticos que adaptam o know how estrangeiro a construes da realidade, tornando a apreenso do objeto real bastante discutvel. Por outro lado, no h um modelo de planejamento brasileiro, o que se agrava com o fato de que os grupos atingidos pelas conseqncias do planejamento esto, em sua maioria, alienados do processo. O planejamento brasileiro definido em funo das camadas da populao excludas do processo econmico, cuja insero fundamental para o crescimento nacional. Devido ao baixo grau de informao e participao na vida poltica dos brasileiros, este discurso desenvolvimentista provoca aceitao gereralizada do planejamento proposto no Brasil.

    Surgido dentro de um quadro de apatia da sociedade civil e, especificamente, dos polticos profissionais 11, e aprovado pelo sistema poltico tradicional, o planejamento brasileiro no tem se defrontado com maiores impedimentos sua centralizao alm daqueles comuns ao poder constitudo. O contexto scio-poltico-econmico que precedeu o incio do planejamento no Brasil demonstra os problemas de federalismo e regionalismo, centralizao e descentralizao caractersticos da histria do Brasil.

    2.2. Antecedentes histricos: sinopse das condies contextuais brasileiras, da Proclamao da Repblica ao Estado Novo

    A primeira fase da Repblica brasileira, entre sua proclamao em 1889 at a revoluo vitoriosa de 1930, conservou o poder poltico centralizado no Rio de Janeiro, nas mos da elite agrria tradicional, que dominava a costa brasileira e centralizava o poder econmico do pas, resultante da exportao de produtos agrcolas. A constituio de 1891, buscando descentralizar o poder e a administrao, incentivou as tendncias manifestas de autonomia poltica de diversas regies econmicas que, isoladas em torno de seus produtos exportveis (borracha, acar, cacau, caf), acentuaram a precariedade das comunicaes inter-regionais e acarretaram o declnio do nacionalismo e da unidade brasileira. Esses primeiros tempos da repblica mostraram desgaste da vida poltica e das finanas pblicas, resultando em distrbios ameaadores da chamada ordem constituda.

    11 Cardoso, F. H. Op. Cit. Pp 174.

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    Conseqentemente, a importncia das foras armadas na vida nacional aumentou consideravelmente.

    O incio do sculo XX aprofundou o processo de urbanizao iniciado nos anos anteriores, fato este acelerado pela Primeira Guerra Mundial: como reflexo dos problemas colocados para as importaes, surgem os primeiros esforos de industrializao brasileira, principalmente quanto produo de txteis. Conseqentemente, aumentou o xodo rural das populaes empregadas em latifndios de agricultura extensiva. Assim, com mais de um sculo de defasagem, surgem as conseqncias da Revoluo Industrial, apesar da urbanizao ter precedido a industrializao12. Forma-se, a partir de ento, uma classe mdia urbana crescente que, por apresentar-se como potencial fora poltica, rapidamente absorvida pelas Foras Armadas e pela burocracia, favorecendo o crescimento das mesmas.

    A burocracia no era orientada para um programa, existindo para absorver possveis foras polticas. Apesar disso, como aponta Daland (1967), a classe mdia cresceu mais do que a burocracia, ao mesmo tempo em que o regionalismo e as foras polticas regionais se acentuavam. A situao caracterizava-se pelo fracasso da implantao, pela Repblica, do presidencialismo e do federalismo no Brasil, pois vigorava ento o sistema representativo do Imprio, baseado em favoritismos, corrupo, demagogias e prepotncias.

    Getlio Vargas, ao assumir em 1930, rompeu a poltica do Caf com Leite, demonstrando o amadurecimento poltico dos grupos do Rio Grande do Sul. O ento presidente modificou o regime, buscando centralizar e unificar a Nao, por meio da revogao da antiga Carta Magna e sua substituio por outra que garantia a autoridade presidencial. A carreira de Getlio como chefe dotado de poderes irrestritos evoluiu at 1937, quando instituiu o Estado Novo como um sistema ditatorial de governo. A economia brasileira, at a Segunda Grande Guerra, cresceu independente de interveno estatal quanto ao desenvolvimento e proteo da indstria. A partir do Estado Novo, ela foi atingida por polticas de desenvolvimento, de cunho nacionalista.

    2.2 O marco inicial do planejamento no Brasil: esforos de planificao sob o Estado Novo O planejamento, como atividade para superar o subdesenvolvimento, iniciou-se, no Brasil, no Estado Novo, a partir de diagnsticos de carncias realizados por tcnicos. Enquanto a Guerra e o Ps-Guerra localizavam uma nova mentalidade de planejamento como a revoluo das esperanas que surgem no cenrio mundial, a sociedade brasileira passava por transformaes ocasionadas pelo aparecimento de novas classes a partir da industrializao e do novo contexto scio-econmico: devido instabilidade dos preos de exportao dos produtos agrcolas, conseqncia da Guerra, o Brasil construiu um modelo de industrializao baseado na substituio de importaes. O estmulo industrializao provocou novo xodo rural e conseqente urbanizao, formando um proletariado industrial que, aspirando s condies de desenvolvimento, procurava se fazer ouvir nas decises polticas. Entretanto, as metas de desenvolvimento eram (e ainda so) cada vez mais compartilhadas pelos novos industriais, com a classe mdia a seu servio. Trs eventos deste perodo so considerados os pontos referenciais do incio da histria do planejamento brasileiro: a criao do DASP, representando a criao institucionalizada de rgo de preparao e acompanhamento de planos; a Segunda Guerra Mundial, indutora da industrializao nacional, dando dinmica economia

    12 Daland, 1967.

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    brasileira, sob a interveno estatal, devido carncia de bens de consumo e capital atingidos pela crise internacional e devido presso dos grupos industriais emergentes; e a Misso Taub, o primeiro plano econmico de investimentos do Governo. Com a criao do Departamento Administrativo do Servio Pblico (DASP), Getlio Vargas iniciou o chamado planejamento centralizado. Criado em nome da eficcia do Governo, o DASP coroou a sucesso de reformas administrativas realizadas pelo presidente, que visavam retomar o controle sobre os instrumentos de governo dispersos pelo carter desintegrador da primeira repblica. Deveria ser um rgo eminentemente tcnico, com objetivos organizacionais, poderes oramentrios, de pessoal, de material, de planejamento e de controle, cujo corpo profissional era formado por uma nova gerao de tcnicos com formao em planejamento e administrao. Apesar destas intenes, o DASP no abstraiu das influncias polticas, absorvendo crticas dirigidas ao presidente e sua poltica centralizante e comportando-se como um superministrio de controle dos demais rgos nacionais e estaduais. O DASP elaborou, no Estado Novo, dois planos qinqenais: o Plano Qinqenal de Obras e Reaparelhamento da Defesa Nacional, em 1942, constante de uma lista de investimentos e oramentos especiais de cuja implantao pouco se sabe; e o Plano de Obras e Equipamento, em 1943, relacionando um oramento de obras pblicas quanto a investimentos e perodos. Esses planos concentraram-se em dois setores da economia considerados pontos de estrangulamento do desenvolvimento e possveis estmulos para os mesmos: infraestrutura de transportes e energia. Paralelamente formulao dos dois planos qinqenais pelo DASP, foram realizados dois planos de investimentos, por comisses mistas Brasil-Estados Unidos. A primeira j citada Misso Taub foi menos oficial que a segunda, conhecida como Misso Cooke, patrocinada pelo Centro de Estudos de Problemas Brasileiros da Fundao Getlio Vargas. Ambas, porm, representavam um teste para novos mtodos de desenvolvimento Econmico que os EUA aplicavam no Brasil. Os planos, alm de dispendiosos, devido contratao dos tcnicos e s demais despesas de realizao ficarem por conta do governo brasileiro, tiveram pouca utilidade, pois foram considerados sigilosos pelo governo americano, que s os divulgou anos depois do fim da guerra. O valor deles deve-se a serem os primeiros esforos de planejamento no Brasil, cujo resultado foi um levantamento de informaes a serem utilizadas por outros planos, como o da Aliana para o Progresso. A Misso Cooke, por exemplo, recolheu dados referentes produo, transportes, combustvel, petrleo, energias, txteis, minerais, produtos qumicos, educao e desenvolvimento do Vale do So Francisco, uma rea com grande possibilidade de desenvolvimento. 2.4. O planejamento institucional e centralizado: do Plano Salte ao Plano e Ao (PAEG) O embrio do planejamento institucionalizado, nascido sob o Estado Novo, cresceu nos 20 anos seguintes, evoluindo dos planos setoriais aos planos nacionais integrados para a economia. Intensificou-se, assim, a atividade de planejamento nas esferas governamentais brasileiras, aprimorando suas tcnicas e mtodos, devido a condies polticas e econmicas favorveis e contnua assistncia dos EUA na formao de tcnicos brasileiros. Porm, a substncia do planejamento no Brasil no chegou a se alterar significativamente, pois ainda se planeja para o desenvolvimento, resumido ao determinante econmico. O aspecto social, quando presente nos planos, tido como decorrncia do crescimento econmico. O planejamento urbano s aparece na construo de Braslia, no Governo de Juscelino Kubitschek.

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    Esta fase de formao do planejamento institucional no Brasil tem incio no governo de Dutra (1946-1950), que herdou dos anos anteriores algumas agncias regionais de planejamento e vrios relatrios e planos setoriais isolados, feitos por tcnicos do DASP. Em 1946/47 foi elaborado o plano SALTE para coordenar os planos existentes. Este tomou quatro setores responsveis pelo seu nome: sade, alimentao, transporte e energia, considerados pontos cruciais do desenvolvimento econmico. A meta era desenvolver esses campos, aumentando a renda e, portanto, o desenvolvimento social. Porm, o plano no propunha assegurar um padro de vida para os membros de todas as classes sociais, o que seria at mesmo impossvel, pois o plano comprometia-se com a imutabilidade da estrutura scio-econmica brasileira. Assim, o plano SALTE no pode ser considerado um plano social, apesar de incluir um setor social da sade pblica. A ateno s condies sanitrias brasileiras deve-se ao fato de que estas, como fator da fora de trabalho, no deveriam mais constituir-se em obstculos ao desenvolvimento. (...) o setor em questo, mesmo que metaforicamente devesse servir ao funcionamento da mquina econmica, atitude que encontra em si mesma a sua prpria finalidade, (enquadra-se) no que foi designado de estilo reflexivo de planejamento13. O plano SALTE, contudo, no abrangeu toda a atividade econmica brasileira, privada ou pblica, caracterizando-se mais como um conjunto de planos senhoriais do que como um plano compreensivo, onde os setores da economia se integram e correlacionam-se sob uma coordenao comum. , por outro lado, totalmente desvinculado dos recursos econmicos disponveis para sua implementao, tendo desenvolvido longo percurso desde sua redao, em 1946/47, at ser sancionado, em 1950. Porm, deve-se reconhecer que o plano SALTE no apenas uma anlise econmica ou a elaborao de um oramento, mas projeto e atitude orientados para a soluo de problemas especficos, podendo ser chamado de projeto primitivo de planejamento. Ao longo da histria do plano SALTE (elaborado para melhorar a imagem do DASP, desgastada pela poltica do Estado Novo), surgiram eventos capazes de dar ao planejamento centralizado uma continuidade na dcada de 40 do sculo XX: em 1948 constituiu-se a Comisso Tcnica Brasil-Estados Unidos, visando recomendar medidas econmicas ao Brasil para equilibrar seus pagamentos; em 1951-53, outra Comisso Brasil-Estados Unidos (Desenvolvimento Econmico Brasil-Estados Unidos) assessorou projetos de desenvolvimento a partir de emprstimos de rgos internacionais. Ao mesmo tempo, em 1952 criou-se o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico (BNDE), por sugesto desta ltima comisso, com a finalidade de obter fundos de fontes internacionais ou domsticas para os programas de desenvolvimento (constantes, inicialmente, do Plano SALTE). Entre 1950 e 1954, novamente sob o governo de Getlio Vargas, o plano SALTE adaptou-se aos planos elaborados pela Comisso Mista. At ento, o planejamento brasileiro limitava-se a planos para alguns setores da economia escolhidos por caractersticas estratgicas (energia e transporte) para o desenvolvimento econmico ou por estarem em situaes calamitosas. Neste sentido, o Programa de Metas do fim da dcada de 50 do sculo XX representou a primeira mudana no sentido de se formular o primeiro plano integrado brasileiro: os vrios planos setoriais so coordenados em funo do desenvolvimento econmico integral, dando continuidade aos objetivos de desenvolvimento identificados como econmicos. O Programa, com carter economicista, foi implementado no incio do governo de Juscelino Kubitschek, sob o Plano Qinqenal. Nesta ocasio, a cpula governamental, at ento parte, viu-se penetrada pela influncia de um corpo de tcnicos e intelectuais, ao mesmo tempo em que se iniciava uma nova fase na burocracia

    13 Ver artigo de Kowarick sobre as estratgias de planejamento no Brasil. So Paulo, CEBRAP.

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    nacional. O Plano inclua objetivos explcitos politicamente j no segundo governo de Getlio Vargas, baseados na necessidade de mobilizao de novas camadas da populao, mas a partir do Estado, compactuando com este, ou melhor, com a elite agrria, no sentido de no realizar reformas scio-econmicas estruturais. O plano constou de 30 metas centradas nos setores considerados estratgicos para o desenvolvimento nacional: energia, transporte, alimentos, indstrias de base, educao e a construo de Braslia. A diferena entre este e o SALTE, com relao escolha dos setores, est no enfoque mais globalizante do fenmeno econmico, na medida em que as metas vinculam-se entre si graas a uma conceituao integrada. Continuava, entretanto, como um plano econmico onde, semelhana do anterior, o social limitava-se a outro setor tradicionalmente assim considerado: a educao, objeto de ateno apenas na medida em que os recursos humanos nas reas tcnicas tm efeitos sobre o desenvolvimento econmico. Tambm em 1956 foi implementado o Conselho de Desenvolvimento como rgo condutor do planejamento, subordinando o pessoal de planejamento aos escales mais elevados da administrao encarregados das decises polticas. Este conselho era composto por todos os ministros de Estado, pelo diretor do DASP, pelos presidentes do BNDE e do Banco do Brasil e pelos chefes dos gabinetes civil e militar. A importncia do Programa de Metas na histria do Planejamento brasileiro est no fato dele representar um documento de desenvolvimento, onde os projetos especficos so diretamente vinculados s metas. O programa previa, outrossim, um constante controle, pelos instrumentos de planejamento, da sua implementao. Evidentemente, foi beneficiado por todo um contexto passado de experincias incipientes do Estado Novo, progressos das tcnicas de planificao ocorridos na dcada de 50 no mbito internacional, e recentes instituies internas (BNDE, Comisso Mista, CEPAL). Por fim, deve-se considerar a meta Braslia: a construo de uma nova capital para o Pas, ainda que um problema explicitamente urbanstico, no pode ser considerado um primeiro esforo quanto institucionalizao do planejamento urbano na administrao central. , mais, meta do planejamento econmico do que um enfoque na necessidade de planejamento urbano. Porm, pode-se dizer que a construo de Braslia despertou e incentivou o interesse em discutir e planejar o urbano, contribuindo para sua institucionalizao, que s ocorre posteriormente. No final da dcada de 50, duas experincias de planejamento regional foram acrescentadas s existentes. Elas ocorreram em So Paulo e no Nordeste, regies antagonicamente desenvolvidas. Na primeira, quando formou-se o Grupo de Planejamento do Estado de So Paulo, houve duas fases: a inicial, relativa gesto de Carvalho Pinto (1959-63), caracterizada pela simplicidade e cujo resultado foi o Plano de Ao, um oramento anual de obras e investimentos; e a posterior, onde o sistema de planejamento foi finalmente institucionalizado a partir da criao da Secretaria do Planejamento. No Nordeste, devido crise scio-econmica resultante da seca de 1958, Celso Furtado criou a SUDENE (Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste), encarregada de planejar o desenvolvimento da regio. As atividades deste rgo, partindo de uma situao de calamidade, estenderam-se formulao de diretrizes de desenvolvimento econmico para o Nordeste, a partir de diagnsticos da regio baseados em estudos aproveitados posteriormente pelos governos centrais e estaduais. Continuando as preocupaes relativas ao planejamento, Jnio Quadros criou, em 1961, a COPLAN (Comisso de Planejamento Nacional), coexistente com o Conselho recentemente criado por seu antecessor. Em 1962, o prximo presidente - Joo Goulart - criou o cargo de Ministro Extraordinrio para o planejamento, consolidando o processo de institucionalizao do planejamento centralizado no Brasil. Celso Furtado, primeiro a ocupar tal cargo, preparou

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    um plano de desenvolvimento nacional para trs anos (1963-65). O Plano Trienal, como foi chamado, apresenta um avano em relao aos anteriores, tanto na sua estrutura quanto na conceituao de desenvolvimento econmico, que no mais se restringia ao econmico mas inclua o mbito poltico-administrativo e, de certa forma, o social. O Plano, a partir de uma profunda anlise da realidade econmica brasileira, props metas para setores especficos como educao, sade, recursos naturais, transportes, comunicaes, energia eltrica, energia nuclear, petrleo, carvo, pesca, agricultura, minerao e indstria. Destes, a agricultura o que recebeu mais ateno, enquanto que a indstria foi abordada mais brevemente. Assim, apesar de o Plano Trienal no ter abarcado a problemtica do Brasil, no oferecendo soluo para a mesma, props, pela primeira vez, reformas de base (agrria, administrativa, bancria e tributria), ainda que a servio das metas de crescimento econmico da nao e, portanto, formuladas como diretivas polticas, apenas. O Plano Trienal apresenta, ainda, um movimento no sentido da centralizao das decises polticas, mesmo que o fomento do desenvolvimento no chegasse a apresentar um rompimento com o passado. Ainda que seja procurada uma forte interveno do Governo em certas reas econmicas, esta justificada em todos os casos como instrumental meta de estimular o desenvolvimento dentro das normas existentes na sociedade brasileira. Alm disso, o prprio plano est especificamente empenhado na preservao da economia baseada na livre empresa14. O Plano Trienal no foi implementado devido s reaes dos grupos dominantes, principalmente a classe empresarial, e das foras internacionais. Alm disso, apresentava objetivos contrrios aos da Aliana para o Progresso, firmados na Carta de Punta Del Este, o que foi agravado pela queda do Governo Goulart. A nova fase da Repblica foi iniciada pelo presidente Castelo Branco, que encomendou um plano ao recm nomeado ministro do Planejamento e Coordenao Geral, Roberto Campos. O Programa de Ao Estratgico do Governo (PAEG), elaborado para cobrir o perodo entre 1964 e 1967, foi um retrocesso quanto ao Plano Trienal, pois voltou a ser especificamente econmico (crescimento fixado em 7%). O PAEG mais compreensivo, entretanto, do que os anteriores, pois apresenta uma anlise mais global e integrada da economia brasileira. Ele inclui novas reas tais como bem estar social, poltica salarial, poltica tributria e habitao. Esta ltima ser aprofundada no capitulo seguinte, onde abordada dentro da questo da institucionalizao do planejamento urbano no Brasil. As formulaes deste plano, entretanto, so mais generalizantes e difusas do que os planos anteriores, no contendo nem planos especficos nem oramentos para projetos, como constava no Trienal, caracterizando-o como um plano perspectivo.

    O PAEG iniciou, entretanto, a institucionalizao do planejamento no Brasil, graas adoo do processo por um Ministrio do Planejamento e Coordenao Geral que, somado criao da CONSPLAN (Conselho Consultor de Planejamento), institucionalizou as relaes entre planejamento e sua execuo. A partir de ento, possvel se obter informaes estatsticas mais precisas e realizar planos setoriais detalhados (no estilo SALTE), integrando-os em um plano de desenvolvimento a longo prazo. No PAEG, entretanto, os setores sociais so reduzidos a meros instrumentos a servio da consecuo dos objetivos econmicos.

    2.5. Os problemas urbanos integrados ao planejamento central: o Plano Decenal

    As experincias anteriores de planejamento brasileiro, principalmente o plano Trienal, o trabalho realizado pela SUDENE e a institucionalizao do planejamento centralizado, com o PAEG, antecederam e acompanharam os trabalhos do CEPAL e do ILPES, assim

    14 Daland, R. Op. Cit. pp60.

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    como do EPEA como rgo ministerial. A conjuntura destes elementos criou linhas de racionalidade15 nos rgos de deciso econmica e de administrao, ampliando-os e aumentando o interesse pelo planejamento. Havia, portanto, condies para implantao de organismos de planejamento, embora at 1964 permanecessem as mesmas caractersticas polticas que impediam a consecuo de objetivos planejados desde o fim do Estado Novo, resumidas nos seguintes pontos:

    - Uma burocracia cujo fim era a prestao de favores, mantendo apenas formalmente um certo nvel de servios, onde o carter poltico prevalece sobre as funes administrativas16.

    - Uma estrutura de poder onde a participao aumenta consideravelmente entre 1954 e 1964, permitindo a percepo dos problemas pelos diversos grupos sociais. Esta ampliao do sistema poltico exprimiu-se pelo populismo, um sistema clientelstico tradicional que, por um lado, colocava novas necessidades polticas, econmicas e sociais mas, por outro, no propunha solues para as mesmas. Por outro lado, o populismo era um sistema de representao difusa, onde as classes no sedimentaram estruturas intermedirias de participao poltica suficientemente diferenciadas e interferentes ao nvel do Estado (Cardoso, 1975. pp174).

    Por estas razes, medidas que mudassem o panorama do planejamento brasileiro, garantindo a realizao de um sistema efetivo de planejamento, s poderiam ter sido de natureza poltica: a nova repblica, surgida em 1964, reorganizou o sistema de poder ao diminuir a participao e inserir novos atores para atuarem sozinhos no mesmo. Assim, a prpria revoluo ocorrida fora da sociedade civil, no prprio Estado trouxe consigo a necessidade de planejar, porque como corporao, as foras armadas constituam uma burocracia de base tcnica, que requer planos como condio para sua sobrevivncia (ibidem, pp 182).

    Por isso a urgncia em fazer um plano de desenvolvimento logo nos primeiros meses do novo governo. Por outro lado, no final do governo de Castelo Branco, devido necessidade de preservar o processo revolucionrio implantado, gerou-se o Plano Decenal de Desenvolvimento Econmico e Social (I PND). A partir de estudos de diagnsticos realizados desde 1966 pelo Ministrio do Planejamento sobre as reas de sade, previdncia social, saneamento e educao, estabeleceram-se medidas institucionais acerca dos objetivos prioritrios e dos recursos necessrios para desenvolvimento das reas estratgicas. Entretanto, este plano apenas esquematiza diretrizes de desenvolvimento a longo prazo (1966-1976), no apresentando programas especficos que permitissem sua implementao. Conseqentemente, outros planos contidos dentro do Plano Decenal assumiram maior importncia do que este que os continha. Um exemplo o Plano Estratgico de Desenvolvimento, elaborado para o segundo governo revolucionrio (1968/70) e cujas proposies econmicas so uma estratgia concreta de transio entre um estado de economia crtico e o crescimento.

    O PED beneficiou-se das condies favorveis ao planejamento j existentes nesta poca, avanando a experincia de planejamento brasileiro. Foi possvel, inclusive, um sistema de acompanhamento das medidas propostas, com resultados positivos na programao dos instrumentos financeiros e fiscais. Entretanto, este plano teve reflexos importantes sobre as grandes faixas populacionais, devido sua poltica salarial: semelhana de outras questes, como a poltica de empregos e a distribuio de renda, os planos tanto o PAEG quanto o PED abordam o problema salarial exclusivamente sob a tica econmica, ignorando por completo os efeitos que uma conteno do salrio

    15 Hirchman, apud Cardoso, F. H. Op Cit. Pp178. 16 Sobre a burocracia brasileira, ver o captulo 1.2 do presente trabalho.

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    mnimo ocasiona sobre o padro de vida dos estratos inferiores da populao urbana (Kowarick, op.cit. pp39).

    nesta poca que os problemas urbanos comeavam a se institucionalizar e fazer parte dos programas governamentais. O Plano Decenal props vrias medidas frente constatao do crescimento intenso e desordenado das cidades brasileiras. A preocupao com o planejamento urbano no Plano Decenal, entretanto, decorria das situaes econmicas problemticas (desequilbrios entre atividades econmicas e ocupao do solo urbano), reduzindo o planejamento urbano economia. Porm, no caso de Braslia como alvo do Programa de Metas, as medidas do Plano Decenal eram quanto aos problemas urbanos, onde prope-se:

    - Uma poltica nacional de desenvolvimento urbano formulada dentro do contexto de uma poltica nacional de desenvolvimento integrado.

    - Anlise das experincias de pases desenvolvidos buscando aspectos que sofreram maiores influncias das polticas nacionais, tais como: modificao da estrutura urbana promovendo a redistribuio da populao; alterao dos padres de urbanizao, principalmente em mudanas de densidades residenciais e dos traados urbansticos bsicos; modernizao das estruturas locais de planejamento, legislao e distribuio.

    O Plano aborda, ainda, as bases para formulao de uma poltica nacional de desenvolvimento urbano, definindo as regies-programa e os plos de desenvolvimento. Os nveis de desenvolvimento local e regional so considerados integrados e, nesse sentido, foi proposto que o Conselho de Geografia e o EPEA (Escritrio de Pesquisa Econmica Aplicada), um rgo ministerial, executassem as tarefas de diviso do territrio nacional em regies homogneas e preparassem um roteiro para a elaborao de diagnsticos preliminares da economia das micro-regies.

    indispensvel, porm, que se considerem aspectos anteriores ao Plano Decenal, que agiram como foras preparatrias da institucionalizao do planejamento urbano centralizado no Brasil. Eles podem ser considerados como os elementos mais diretos na formao de uma conscincia da problemtica urbana e da necessidade e urgncia de uma poltica nacional urbana

    Em 1963 ocorreu o SEMINRIO DE HABITAO E REFORMA URBANA, desenvolvido em duas etapas: uma em Quitandinha, no Rio de Janeiro, e outra em So Paulo. A iniciativa deste evento foi do Instituto dos Arquitetos do Brasil e do IPASE, embora tenha contado com profissionais e estudantes das mais diversas reas e regies do Pas, bem como lderes sindicais e representantes de rgos de planejamento e de empresas industriais e de economia mista. Os temas discutidos foram a situao habitacional do Pas, a habitao e o aglomerado urbano, a reforma urbana (e as medidas para o estabelecimento de uma poltica de planejamento urbano e de habitao), e a execuo dos programas de planejamento urbano e de habitao. O documento final do Seminrio levantou pontos-chave no tratamento do problema habitacional e do urbano, condicionantes das polticas oficiais, tais como:

    - (...) a soluo do problema habitacional e da reforma urbana est vinculada poltica de desenvolvimento econmico e social (inclusive a reforma agrria), atravs da qual possa ser rapidamente elevado o padro de vida do povo brasileiro;

    - (...) o problema da habitao de responsabilidade do Estado, sendo que sua interveno deve ser no sentido de equacionar o problema em sua totalidade; disciplinar as atividades no campo habitacional; (...)

    - (...) a poltica habitacional deve concretizar-se atravs de planos nacionais, territoriais e de habitao, com o objetivo de corrigir as deficincias quantitativas e qualificativas de moradias e equipamentos sociais, integrados num planejamento global, nos nveis nacional, regional, estadual e municipal;

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    - (...) todo plano habitacional deve estabelecer metas de atendimento, atravs de critrios objetivos de prioridade, e que supe a fixao de diretrizes que levem em conta: a) a capacidade de amortizao ou pagamento das diversas camadas da populao; b) o estabelecimento de tipos e dimenses de moradias adequadas realidade regional, econmica e demogrfica; c) as relaes entre moradia, trabalho e os servios e equipamentos urbanos; d) o custo dos servios e equipamentos urbanos;

    - (...) que para a efetivao da reforma urbana torna-se imprescindvel a modificao do pargrafo 16 do art. 141 da Constituio Federal, de maneira a permitir a desapropriao sem exigncias de pagamento vista, em dinheiro;

    - (...) imprescindvel a adoo de medidas que cerceiem a especulao imobiliria, sempre anti-social, disciplinando o investimento privado nesse setor;

    - (...) para a execuo da poltica habitacional, se torna necessria a criao de um rgo Central Federal, com autonomia financeira e autoridade para atingir seus objetivos.17

    Em seguida, o SHRU props, em nove itens, as medidas necessrias ao encaminhamento de solues aos problemas habitacionais e urbanos; importante notar, na terceira proposta, as bases de uma poltica habitacional e de reforma urbana, abrangendo especificaes para:

    I) rgo executor da Poltica Habitacional e Urbana II) Desapropriao para fins habitacionais e de planejamento territorial III) Prioridade de atendimento e normas de controle IV) Plano Nacional Territorial V) Plano Nacional de Habitao VI) Aquisio de imvel locado

    interessante como vrias propostas do SHRU foram retomadas j em nova e antagnica situao poltica, quando foi criado o Banco Nacional de Habitao (BNH) e o Servio Federal de Habitao e Urbanismo. Pode-se, ento, dizer que, os frutos do SHRU no foram os propostos ideologicamente pelo Seminrio, mas assumiram fora de lei com atuao efetiva no plano poltico, econmico e social at os dias de hoje.

    Em 1964 foi aprovada a lei n 4380, contendo o PLANO NACIONAL DE HABITAO, o qual apresentava objetivos de estmulo construo de habitaes de interesse social e o financiamento da aquisio da casa prpria e diretrizes explcitas, colocando no mbito dos estados e municpios a execuo dos planos diretores e projetos para soluo de seus problemas habitacionais. Cabia, entretanto, iniciativa privada tanto os projetos quanto a construo de habitaes.

    A mesma lei instituiu o Sistema Financeiro de Habitao, pertencente ao Banco Nacional de Habitao e s Sociedades de Crdito Imobilirio. Era prevista a supremacia do BNH (um banco) no trato dos problemas habitacionais, quanto s finalidades, aos poderes e aos recursos deste banco:

    As finalidades do BNH abrangeram a orientao e controle do sistema financeiro de habitao, dentro das condies gerais estabelecidas pelo Conselho Monetrio, prestao de servios de redesconto e seguro para garantia das aplicaes do sistema especializado; prestao de servios de seguro de vida temporrio para os compradores de imveis; financiamento ou refinanciamento da elaborao e execuo de projetos promovidos por entidades locais; refinanciamento das operaes das sociedades de crdito

    17 In: Revisa Arquitetura n 15. set/63, pp17-23.

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    imobilirio e financiamento ou refinanciamento de projetos relativos a indstrias de materiais de construo e de pesquisa tecnolgica (artigo 17 da Lei n 4380). O Banco no operar diretamente na compra e venda ou construo de habitaes. Sua funo ser sempre de orientar, disciplinar e assistir financeiramente as entidades do sistema.

    Os Institutos Federais de Previdncia cessaram suas atividades no setor de habitao e foram compelidos a alienar os conjuntos residenciais de sua propriedade, de acordo com normas enquadradas no Plano Habitacional.

    A Caixa Econmica Federal manter o sistema de coleta de depsitos populares com a inovao da correo monetria para os depsitos a prazo; ser reformulada a Carteira de Emprstimo para Habitao dessa entidade dentro das normas do Plano Habitacional, com a manuteno do sistema de emprstimo direto ao pblico. Alm de vincular uma parcela de suas aplicaes para habitao, a Caixa dever vincular 70% da receita lquida da operao da loteria federal para o mesmo fim.

    Os recursos colocados disposio do BNH para a realizao do Plano abrangem: a taxa de 1% sobre a folha de pagamento, que dever ser paga por todas as empresas do pas; a parcela de 20% das receitas do SESI e SESC; a parcela de 20% das aplicaes dos Institutos de aposentadoria; uma porcentagem dos depsitos da Caixa Econmica Federal a ser fixada pelo Ministrio da Fazenda; a subscrio compulsria de letras imobilirias incidentes sobre a construo de imveis residenciais de valor acima de 500 vezes o maior salrio mnimo do pas e sobre o aluguel de imveis residenciais.18

    Assim, o Plano Nacional de Habitao, por fora da lei, colocava a questo habitacional em termos eminentemente econmicos, desvinculando um enfoque amplo da realidade que o considerasse como um problema social e urbano e, portanto, requerente de solues integradas nas diversas situaes concretas e nos vrios subsistemas do sistema urbano. Por isso, o BNH conseguiu cumprir suas finalidades prescritas, medida que, como Banco, reativou a economia nacional graas ao estmulo construo civil. Porm, pela mesma razo, as solues do BNH para as populaes de baixa renda comprometeram-se prioritariamente com a desfavelizao, pela remoo e realocao dos grupos considerados sub-normais em conjuntos habitacionais construdos por programas de habitao popular, mostrando-se desastrosas.

    A mesma lei n 4380 criava o rgo tcnico do Plano Nacional de Habitao, o SERFHAU (Servio Federal de Habitao e Urbanismo), com atribuies tais como: promover pesquisas sobre todos os aspectos relacionados com habitao; promover e prestar assistncia tcnica a programas municipais e regionais de habitao e interesse social; prestar assistncia tcnica aos Estados e Prefeituras na elaborao de Planos Diretores e s entidades privadas sem fins lucrativos.

    criao deste rgo tcnico, a lei 4380 reservou apenas 03 dos 71 artigos, subordinando-o ao rgo financeiro (BNH), no art. 54, 1 e 2. Estes fatos indicavam que a histria do SERFHAU, at sua substituio em 1974 pela CNPU (Comisso Nacional de Regies Metropolitanas e Poltica Urbana), seria de um rgo esvaziado pelo BNH ou pelo Setor de Habitao do EPEA. Sua finalidade de prestar, ao rgo financeiro, a assistncia tcnica necessria para a implementao da poltica de planejamento habitacional e urbana foi desgastada pela prescrio de que as normas gerais do planejamento formuladas pelo SERFHAU deveriam ser aprovadas pelo Conselho de Administrao do BNH, conforme o decreto n 59917/66.

    18 In: Revista de Administrao Municipal n 70. maio/junho 65. pp164 e 165.

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    Tanto a poltica habitacional quanto a de planejamento fsico-territorial sucederam, ao invs de preceder, o Plano de Habitao. A poltica habitacional , na verdade, um Plano Habitacional Decenal, elaborado pelo Setor Habitacional do EPEA, em 1967, para integrar o Plano Decenal de Desenvolvimento. O equacionamento do problema habitacional colocado pelo Plano Habitacional do seguinte modo:

    ... o Planejamento Habitacional normativo no que respeita ao Setor Pblico, e apenas indicativo, no que concerne ao setor privado. (...) A interveno do Estado no Setor Habitacional se far, dentro do esprito da Lei n 4380, atravs do financiamento concedido pelo Setor Pblico. Este financiamento, alm do benefcio imediato concedido ao adquirente da casa, ter outras conseqncias, como a de estimular toda a economia, alm de gerar novos empregos.19

    Quanto ao planejamento urbano, foi institudo em 1966 (dec. N 59917/66) o Sistema Nacional de Desenvolvimento Local Integrado, que teve no SERFHAU o seu rgo coordenador, e que se definia como um sistema de planejamento que compreende, em nvel regional e municipal, os aspectos econmicos, sociais, fsicos e institucionais.

    A origem do Planejamento Local Integrado parece seguir os comprehensive plannings, que so um tipo de plano fsico que considera os aspectos econmicos e sociais para a regio, definindo as reas de localizao das diferentes funes urbanas considerando-se as implicaes sociais e econmicas das mesmas. Entretanto, como a aplicao de comprehensive plannings realidade de um pas de economia dependente enfrentaria problemas administrativos e institucionais, optou-se pela reinterpretao do conceito pelo Setor de Planejamento Regional e Municipal do Ministrio do Planejamento. O resultado foi uma modalidade de planos locais em quatro setores bsicos (econmico, social, fsico-territorial e institucional) orientadores no apenas da ao do poder pblico como dos investimentos no setor privado. Iniciou-se, ento, a elaborao de planos integrados para municpios com mais de 50.000 habitantes, desenvolvidos em duas fases: Estudo Preliminar e Plano. Em 1969, o Programa de Ao Concentrada (PAC) formulou uma estratgia, dentro dos programas nacionais de desenvolvimento, para 457 municpios, adaptando o PDLI para diversos portes de municpios.

    2.6. Concluses gerais

    Vrios pontos do Plano Decenal de Desenvolvimento so bastante discutveis no plano terico, como o modelo de plos de desenvolvimento aplicado a pases subdesenvolvidos, por exemplo. Por outro lado, o Decenal no chegou a ser implantado. Pode-se, no entanto, avaliar certos resultados concretos das diretrizes nele contidas, colocadas em termos implementveis pelo PED, no Governo Costa e Silva, pelo FIPLAN, pelo SEFHAU e pelo BNH. Percebe-se que, desde 1966, a preocupao do Governo Federal quanto formulao de uma poltica nacional urbana cresceu a ponto de, em 1974, criar a CNPU, institucionalizando a problemtica urbana a partir de si prpria.

    Se remontarmos trajetria do processo de planejamento pelo Governo Federal a nvel geral e no apenas de planejamento urbano, notaremos um movimento que se intensifica continuamente no sentido de trazer para o centro do poder as decises, contrariamente caracterstica federativa do Sistema Institucional Brasileiro. As particularidades e diferenas regionais tendem progressivamente a se tornar fatores pouco relevantes na formulao de polticas locais e municipais, cujas suas decises so cada vez mais centralizadas.

    3. O planejamento fsico-espacial no Brasil 19 In Revista Arquitetura n 59. Maio/67 pp 14-16

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    3.1. Introduo

    Os resultados da institucionalizao do planejamento urbano no Brasil so avaliveis mais facilmente em termos quantitativos do que qualitativos. A atividade de Planejamento relacionada a sistemas urbanos, principalmente a nvel local, foi incentivada entre profissionais de diversas reas (arquitetos, economistas, administradores, principalmente, mas tambm gegrafos e socilogos), constitudos em grupos privados, mas vinculados ao setor pblico quando contratados pelas prefeituras para a execuo dos planos. Isto se deve, em grande, parte ao SERFHAU, cujas propostas serviam de modelo s prefeituras, que se incumbiam da funo de promover (e no executar) a elaborao e implantao dos planos. O SEFHAU garantia ao setor privado a formulao dos planos, assegurando a demanda por meio de emprstimos colocados disposio das prefeituras dos municpios, e pela prpria poltica nacional de planejamento urbano (como o Programa de Ao Concentrada, que indicou 457 municpios para uma estratgia de planejamento). Desta forma, os resultados quantitativos da institucionalizao do planejamento urbano no Brasil apresentavam a seguinte configurao, em 1974:

    - 237 municpios participaram do Sistema Nacional de Desenvolvimento Local Integrado;

    - Destes, 61% tiveram planos realizados pelo Projeto Rondon e pelas Superintendncias Regionais de Desenvolvimento (SUDENE, SUDECO, SUCESUL etc.);

    - Dos restantes, 39% elaboraram estudos preliminares e 12% fizeram planos capazes de gerar estudos efetivos;

    - 63% so relatrios preliminares para municpios de pequeno porte; - 22% so termos de referncia para municpios de mdio e grande porte; - 8% so planos de Desenvolvimento Local Integrado para municpios de

    grande porte. - 4% so planos de Ao Imediata para municpios de mdio porte; - 3% so estudos preliminares - Dos 457 municpios constantes do PAC, 38% tiveram seus planos formulados

    e 18% tm planos em andamento; - A distribuio geogrfica dos municpios que realizaram Planos de

    Desenvolvimento Local Integrado a seguinte: 34% no Nordeste, 30% no Sudeste, 17% no Norte e Centro-Oeste e 2% no Sul;

    - Quanto populao total dos municpios que participaram do SNDLI, 68% so de pequeno porte (menos de 50.000 hab.), 28% so de mdio porte (entre 50 e 250.000 hab.) e 4% so de grande porte (mais de 250.000 hab.)

    - Quanto populao urbana dos municpios que participaram do SNDLI, 80% encontram-se em municpios de pequeno porte, 16% nos de mdio porte e 4% nos de grande porte;

    - O montante emprestado aos municpios para a formulao de PELI (Cr$ 18.619.887,00) repartiu-se da seguinte maneira: 4% para o Norte, 25% para o Nordeste, 16% para o Centro-Oeste, 53% para o sudeste e 2% para o Sul. 20

    A partir desses ndices, conclui-se que a realidade discrepante com relao aos objetivos colocados pelo SERFHAU, que no apenas formularia os planos como implementaria os mesmos. Estudos mais aprofundados apontam para o inadequado desempenho do setor federal, por sua generalizao quanto estratgia de ao, definio pouco concisa de algumas normas de atuao e fiscalizao do contedo do

    20 Fonte: Relatrios do SERFHAU

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    plano. Resumindo, falta uma diretriz geral que norteie a ao de mbito federal. Deve-se observar, paralelamente, que as atribuies que recaram sobre o SERFHAU foram bastante maiores que os recursos destinados mesma, o que, obviamente, limitou suas possibilidades de atuao21.

    Pode-se dizer que, at a criao da CNPU em 1974, o executor efetivo da Poltica Nacional de Desenvolvimento urbano era o BNH, cujos recursos provenientes do Fundo de Garantia de Tempo de Servio aplicavam-se majoritariamente aos programas setoriais, abrangendo subsistemas urbanos outros alm do habitacional, como sade pblica (saneamento), produo, comrcio, equipamentos comunitrios, em todos os estados da Federao. A aplicao desses fundos, quando em emprstimos para habitao, propunha equilibrar as diferenas regionais pelo efeito redistributivo, fixando taxas de juros menores para as regies economicamente menos desenvolvidas. Porm, o fato de no terem sido consideradas outras variveis (populao urbana e demanda de habitaes), somado caracterstica bancria de investir em reas que garantem retorno, levou a resultados distanciados das metas de interesse social.

    preciso enfatizar que essas metas de interesse social no so, no caso brasileiro e em toda a Amrica Latina, expresso de correntes de pensamento altrustas ou aspiraes ditadas pela justia social. So, efetivamente, imperativos colocados pelo prprio contexto das relaes sociais, como resultado do efeito das normas ditadas pelo processo de produo adotado. Por isso, acreditamos que se deva iniciar o equacionamento dos problemas urbanos no Brasil a partir do fenmeno de crescimento urbano do pas.

    3.2. Sinopse do processo de crescimento urbano no Brasil durante o sc. XX

    O sculo XX apresentou um papel marcante no processo de ocupao do territrio brasileiro, consolidando a configurao da rede urbana determinada nos sculos antecedentes pela adoo do modelo de desenvolvimento adotado pelo Pas. Mais de trs sculos de colonizao e apenas um de independncia, sob constantes ameaas integridade nacional, resultaram em um quadro urbano caracterizado pela substituio da condio de cidade da conquista dos aglomerados urbanos brasileiros. Como comenta Singer (1975), a capacidade aglutinadora de determinadas cidades-chave (...) ao adquirirem preeminncia comercial sobre amplas reas rurais, no puderam ou no quiseram mais ser elos de transmisso de um sistema de dominao externo, passando aparentemente a incorporar em si todas as funes de dominao, a de imediata explorao do campo e a mais elevada, de cpula de todo o sistema (pp105).

    Entretanto, em 1900 havia apenas 4 cidades com mais de 100 mil habitantes: o Rio de Janeiro (700 mil), So Paulo (240 mil), Salvador (206 mil) e Recife (113 mil), sendo que a populao urbana no ultrapassava 10% da populao total, que era de 18,2 milhes de habitantes distribudos, principalmente, ao longo da costa, onde se localizavam as cidades de grande porte. O Brasil apresentava, assim, uma ocupao irregular, densa na costa e rarefeita no interior, com diferenas regionais acentuadas no apenas quanto a caractersticas fsicas e geogrficas quanto pelo desenvolvimento desarmnico das economias. Nesta poca, portanto, a supremacia da cidade sobre o meio rural era relativa, pois o poder constitudo ainda estava nas mos da elite agrria, onde as foras produtoras de subsistncia e de excedente exportvel concentravam-se. As populaes rurais permaneciam preferencialmente em seus lugares de origem, inclusive porque o meio urbano ainda no oferecia vantagens suficientemente compensadoras e, principalmente, porque os vnculos econmicos e psico-sociais com o

    21 In: Relatrio sobre Atuao do SERFHAU.

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    campo eram garantidos pelos grupos armados que asseguraram o aos senhores o domnio da terra e da mo-de-obra. Apesar desses exrcitos do serto ameaarem o sistema federativo institudo pela repblica, as foras centralistas, de base urbana, acabaram triunfando sobre as foras autonomistas ou federalistas, de base rural, condio necessria ao estabelecimento da soberania nacional sobre vastas reas esparsamente povoadas22.

    Embora alguns elementos deste quadro no tenham se transformado completamente at hoje (como as relaes servis entre senhor de terra e campons), as dcadas seguintes, quando se define o modelo econmico com base na substituio de importaes, assistem inverso da relao de dependncia entre cidade e campo. A Primeira Guerra ocasiona a crise mundial das importaes, embrio da indstria brasileira de bens de consumo no durveis (roupas, tecidos, alimentos), produzidos por dois parques industriais relativamente grandes instalados no Rio de Janeiro e em So Paulo. Nas colnias alems e italianas, no Sul, a agricultura passa a ser comercializada, formando outros centros regionais onde se inicia o processo de urbanizao mais intenso. Contingentes populacionais rurais comeam a se deslocar para o Rio de Janeiro, So Paulo, Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte, seguindo uma orientao que significa o fortalecimento do estilo de vida urbana, determinando-se a cidade, enquanto lcus onde mais se efetiva esse modo de vida, como grupo de referncia positiva tanto para seus moradores como, principalmente, para habitantes de reas no citadinas (Pereira, 1976. pp58).

    Porm, desde 1930 o Brasil vinha passando por transformaes substantivas, tanto polticas quanto scio-econmicas, advindas da vitria centralista sobre as disputas inter-regionais: com o governo revolucionrio de Getlio Vargas iniciou-se uma poltica de industrializao claramente delineada que minimizou os poderes dos senhores de terra e criou a legislao do trabalho aplicvel a zonas urbanas. Conseqentemente, estes fatores, auxiliados pelas novas rodovias, incentivaram o xodo rural e a conseqente formao do exrcito industrial de reserva nas cidades maiores: a mobilizao deste exrcito se fez paulatinamente, entre 1930 e 1945, a partir da abolio da autonomia dos estados, que serviu tanto para unificar o mercado interno como para derrubar as oligarquias locais, cujo poder sobre a populao rural foi consideravelmente enfraquecido (Singer, 1975: 123). A partir da dcada de 30, as migraes internas foram, juntamente com os efeitos das medidas sanitrias, adotadas nas cidades, resultando no crescimento da populao urbana no Brasil que, em 1940, atingiu 31,8% da populao total e, em 1950, 36,2%.

    A segunda fase da industrializao brasileira caracteriza-se pela introduo de bens de consumo durvel (automveis e eletrodomsticos), de bens de capital (siderurgia, produtos qumicos, borracha e papel), mediante investimentos de capital e know how estrangeiros, assinalando um crescimento mais intenso das cidades grandes onde se localizavam os novos estabelecimentos industriais. A taxa de crescimento urbano, que entre 1950 e 1950 era de 3,9%, chegou a 5,4% em 1960. As cidades com mais de 10 mil habitantes, com crescimento de 4,8% na dcada anterior, cresciam 6,4% em 1960. Como conseqncia dessa concentrao econmica e populacional, observa-se tambm uma reduo no nmero de municpios com 0,05% ou mais do valor da produo nacional: vrios pequenos centros foram retirados desse conjunto, enquanto os maiores permaneceram(...). Paralelamente, elevou-se a produo dos subrbios metropolitanos caracterizados como grandes centros industriais23. Inicia-se, com esta segunda fase

    22 Singer, P. Op Cit. pp 105. 23 Geiger, P. Concentrao Urbana no Brasil: 1940-70. In: Revista Pesquisa e Planejamento Econmico n 2 vol. 2. Braslia: IPEA, dez/1972. pp419.

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    industrial, o processo de metropolizao no Brasil, cujo assentamento inicial foram as sedes dos grandes parques industriais (Rio de Janeiro e So Paulo), que j vinham apresentando certas caractersticas de reas metropolitanas. Desde 1960 este fenmeno vem se intensificando nestes dois plos, contaminando outros centros regionais que se tornaram repentinamente importantes economicamente. J nos anos 70 o Brasil contava com nove regies metropolitanas institucionalizadas como centros de domnio regional: Porto Alegre, Curitiba, So Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza e Belm.

    Comparadas com outros pases, as reas metropolitanas brasileiras apresentavam uma concentrao populacional inferior at o final da dcada de 60: enquanto Rio de Janeiro e So Paulo possuam, respectivamente, 6,1% e 5,3% da populao nacional, Buenos Aires possua 35% da populao Argentina, Londres, 17,7% da populao inglesa, e Paris, 15,8% da populao total francesa24. Comparando-se com outros pases concntricos, o processo de metropolizao no Brasil tambm difere quanto influncia da industrializao: nos pases desenvolvidos, as indstrias se multiplicam fora dos grandes centros, os quais geralmente se caracterizam pelo crescimento do setor tercirio superior. Nos pases em desenvolvimento, a expanso econmica pode-se fazer acompanhar por um processo de concentrao espacial, segundo Geiger (Op. Cit: 421). Os resultados deste processo expressam-se hoje na acentuao dos desequilbrios de distribuio populacional e econmica entre as regies, com a conseqente disparidade entre classes sociais: os principais aglomerados metropolitanos localizam-se na costa atlntica, concentrando 2/5 da populao das cidades, a maior parte das atividades industriais e a maior responsabilidade no que tange expanso da economia. (...) As trs regies metropolitanas do Nordeste (Recife, Salvador e Fortaleza) so, de outra parte, responsveis por cerca de 7% da populao urbana do pas, respondem por menos de 3% do emprego industrial, enquanto que a Grande So Paulo e a Grande Rio, com 29% da populao urbana, detm quase a metade da mo-de-obra empregada na indstria25. Internamente, as reas metropolitanas vm apresentando caractersticas problemticas, decorrentes do acrscimo populacional vertiginoso e da incapacidade das estruturas urbanas de suportarem-no.

    Se, at 1920, a situao urbana brasileira no apresentava maiores problemas, o processo de urbanizao a partir de 1930 foi acompanhado por disfunes na infraestrutura de abastecimento de gua e energia eltrica, alm do esgoto, e no sistema virio urbano. Com a acelerao das migraes na dcada de 50, foram atingidos o sistema de abastecimento e prestao de servios (principalmente o setor pblico), os transportes de massa e, principalmente, a habitao. Na dcada de 60 e 70 somaram-se as conseqncias finais da industrializao, ou seja, a poluio do meio ambiente urbano e as ameaas ao equilbrio ecolgico, resultados da poltica de laissez faire que acompanhou a implantao das indstrias. Simultaneamente, as condies dos subsistemas urbanos e da cidade tambm se agravam.

    Estes problemas, reflexos diretos da urbanizao, so provocados, indiretamente, pela poltica econmica brasileira, sempre mais preocupada com o planejamento do crescimento urbano em detrimento da qualidade de vida e do equilbrio social, ameaando o sistema scio-poltico econmico. Historicamente, os problemas habitacionais (principalmente quanto aparncia) tm sido alvo das atenes, como as sub-habitaes cabeas de porco, mocambos, barracos, malocas, favelas, invases e loteamentos perifricos. Este enfoque, entretanto incorre em solues faltas, pois no se trata apenas de um dficit habitacional, mas de um processo de crescimento urbano caracterstico dos

    24 Fonte: ONU, 1966 25 II PND-Projeto/Braslia, 1974 pp78.

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    pases dependentes do terceiro mundo frente urbanizao. As condies sub destas habitaes so comuns aos demais componentes do sistema urbano - fsico, econmico, social e politicamente considerado - onde esto imersas. As sub-habitaes vm sempre acompanhadas de um sub-abastecimento de gua e energia eltrica, de uma sub-soluo para os esgotos, de uma sub-alimentao, de sub-empregos, enfim, de uma grande sub-situao. Desenvolvem-se, assim, no nvel da aparncia, duas cidades na mesma rea jurdica: uma dotada de condies aceitveis dentro dos padres da chamada (e indefinida) qualidade de vida, com ndices de conforte s vezes iguais aos dos pases desenvolvidos, ampliada a partir da cidade j existente graas criao dos conjuntos habitacionais por empresas imobilirias e cuja existncia juridicamente reconhecida e assegurada. A outra cidade segrega as populaes cuja renda no lhes permite integrar os benefcios da cidade oficial, mesmo quando localizada dentro do tecido urbano, e as favelas, invases ou alagados so autoconstrudos, materializando-se em terrenos cuja posse contestada ou pblica, com elementos diversos mas precrios, marginalizada dos servios e investimentos realizados pelo poder pblico.

    3.3. Equacionamento das solues aos problemas urbanos: consideraes sobre

    os antecedentes do planejamento urbano no Brasil Antes da institucionalizao do Planejamento Urbano no Brasil, em 1964, ocorreram

    duas fases simultneas, desenvolvidas em lugares distintos, de elaborao de planos e projetos urbansticos. A diferena entre elas a gesto das atividades: nos planos diretores do Rio Grande do Sul a formulao de planos e projetos ocorreu dentro dos rgos pblicos, funcionando neles os prprios escritrios urbansticos, com certa continuidade e maior base para institucionalizao do processo. Nos casos da criao de novas cidades, como Braslia e Goinia, a atividade foi exercida por escritrios particulares contratados por rgos pblicos. Em ambas as fases, entretanto, a atividade no se caracteriza como planejamento, onde o processo racional e metdico e realizado por equipes multidisciplinares.

    As maiores preocupaes quanto aos problemas urbanos no Brasil iniciaram-se com um enfoque de urbanismo: o fato urbano era considerado sob aspectos quase essencialmente fsicos, por equipes de arquitetos ou engenheiros, de maneira pouco metdica. Os planos aparecem como expresso dos princpios urbansticos no final do sc. XIX, que consideram a concepo urbana apenas como macro-arquitetura. Por outro lado, a influncia do racionalismo dos anos 30 decisiva, analisando a cidade funcionalmente, conduzindo a zoneamentos estanques e hierarquizao rgida dos equipamentos urbanos. Na verdade, o funcionalismo s decresce no final da dcada de 60, quando as diversas reas de conhecimento que vinham estudando o fato urbano (economia, sociologia, antropologia, geografia e administrao) renem-se com a arquitetura e engenharia num esforo de planejamento urbano. Os resultados da implantao dos diversos planos (com exceo de Braslia) so raramente julgados, pois pouco resta do original em cidades como Belo Horizonte e Goinia. A partir destas transformaes radicais quanto ao plano original, pode-se afirmar que as cidades brasileiras planejadas acabam apresentando os mesmos problemas das cidades no-planejadas. A soluo destes tem sido a tradicional, desfigurante e quase sempre ineficaz cirurgia urbana como forma de renovao. Em alguns casos, como Goinia, foram elaborados novos planos, depois da instituio do Sistema Nacional de Planejamento Local Integrado. Seja como for, as cidades que nasceram ou cresceram por planos no tiveram seu desenvolvimento acompanhado por um processo contnuo de planejamento que adaptasse os planos ao dinamismo dos processos urbanos.

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    O plano de BELO HORIZONTE foi resultado da inteno de mudar a capital de Ouro Preto, idia iniciada com os inconfidentes, mas realizada apenas nos primeiros anos da repblica, como resultado da prpria Constituio do Estado que recomendava a mudana da capital de Minas Gerais. A escolha do local, bem como sua aceitao pelo Congresso Estadual foram objeto de desavena entre as regies geo-econmicas do estado, interessadas em superar os efeitos dos obstculos fsicos que as separavam economicamente. A deciso final de situar a capital em Belo Horizonte foi quase casual, resultante dos estudos realizados pelo engenheiro Aaro Reis, designado em seguida para chefiar a equipe de construo da mesma. Os trabalhos iniciaram-se em 1895, com a construo da ferrovia que ligaria a cidade rede da Central do Brasil. Foi inaugurada em 1897 como Cidade das Minas, tendo frente da comisso construtora o engenheiro Francisco Bicalho, e em 1901 foi nomeada como Belo Horizonte. O plano, um exemplo do urbanismo desse fim de sculo, apresenta as seguintes caractersticas: 1) traado rigoroso da trama urbana enfatizando a ordem, a harmonia e a simetria e rompendo com a invariabilidade do traado em xadrez: no plano de Belo Horizonte sobrepunham-se duas tramas ortogonais em ngulo de 45, criando ruas perpendiculares; 2) as largas avenidas transmitindo um efeito de grandes perspectivas e monumentalidade, em contraposio s antigas ruas estreitas causadoras de problemas virios ocasionados pelos novos meios de locomoo e pelo aumento populacional: em Belo Horizonte fixou-se a largura das ruas em 20m e das avenidas em 35m, o que sofreu alteraes devido aos altos custos acarretados; 3) como reao s condies urbanas conseqentes da Revoluo Industrial, o urbanismo europeu dessa poca apresentava nostalgia do campo, incorporando caractersticas rurais cidade pela implantao de parques e ajardinamento extensivo das cidades: no Plano de Belo Horizonte, eram previstos um grande parque municipal central, um jardim zoolgico e vrios jardins.

    Nesse plano, foram considerados aspectos gerais do uso do solo, dividindo-se a rea em trs setores (urbano, suburbano e rural), priorizando-se o setor urbano, tratado em termos macro-arquitetnicos (principalmente no centro administrativo, razo de ser da nova cidade, onde previu-se a localizao de diversos edifcios pblicos) e teve princpios de zoneamento estabelecidos. A parte infra-estrutural (abastecimento de gua, rede de esgoto, eletricidade e telefone) foi projetada detalhadamente para um crescimento populacional muito aqum do desenvolvido posteriormente pela cidade. A histria do plano de Belo Horizonte no se afasta do quadro tpico brasileiro, onde o comprometimento dos planos com a municipalidade no supera a descontinuidade administrativa, sofrendo vrias modificaes, cortes e supresses de ordens diversas. Por outro lado, a finalidade da mudana da capital mineira s se concretizou dcadas mais tarde: at 1930 o impacto provocado pela transferncia administrativa inexiste em relao vida econmica regional, pois as principais atividades econmicas do esto continuam subordinando-se a mercados situados alm-fronteiras e se desenvolvem nas zonas perifricas do territrio estadual (Singer, 1974: 221). Este fato se explica pela crise do caf, pela ligao ferroviria com os grandes centros econmicos do leste e pelos esforos de criao da indstria siderrgica. Alm disso, a estagnao econmica ignorava a criao de Belo Horizonte devido s ainda grandes distncias entre os centros produtores mineiros e os mercados da costa. Belo Horizonte cresceu e se tornou o centro econmico do estado no por ser sua capital poltica, mas pelo empenho, desde os anos 1940, na criao de um parque industrial Contagem significa esse esforo de instalao de indstrias na regio, comprometendo inclusive a aglomerao nascida no local: o zoneamento no foi rigorosamente obedecido devido ao receio dos responsveis de que a adoo de uma atitude rigorosa pudesse determinar a desistncia de empresas cujo estabelecimento era considerado de grande interesse para o estado (ibidem: 258). Alm

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    disso, o prprio crescimento urbano de Belo Horizonte foi comprometido, e apresenta hoje problemas semelhantes aos de qualquer rea no planejada.

    GOINIA tambm foi criada para sediar a capital administrativa do estado de Gois, e teve seu plano encomendado pelo ento interventor no Estado Pedro Ludovico Teixeira ao arquiteto-urbanista Attilio Correia Lima. Esse plano, de 1939, tambm apresenta influncias do urbanismo novecentista por apresentar preocupaes com detalhes espaciais, mas j se insere nas correntes urbansticas contemporneas sua formulao, aderindo aos novos princpios de zoneamento trazidos pelo racionalismo sem, no entanto, lev-los ao extremo. Considerando a cidade como um grande projeto arquitetnico, Attilio Correia Lima prescreve, no relatrio do plano, o centro administrativo de Goinia: A praa principal do centro administrativo, que no est sujeita a trnsito intenso, apresenta um carter monumental; os edifcios pblicos que a guarnecem formam um conjunto arquitetnico nico, ligados por um elemento comum em forma de colunata formando galeria coberta. No cruzamento dos eixos das avenidas Pedro Ludovico, Araguaia, Tocantins e ruas 10, 26, 34 e 35, dever ser erigido futuramente um monumento comemorativo das bandeiras descobertas, e riquezas do Estado, figurando como homenagem principal figura de Anhanguera26. Este relatrio, apresentado ao Interventor em 1935, divide-se em Localizao, Stio, Traado, Praas, Jardins e Esgotos, unindo as duas escolas urbansticas. Ao tpico traado subordina-se o uso do solo urbano (zoneamento) e confere-se posio determinante na concepo da nova cidade: O traado da cidade obedece de uma maneira geral configurao do terreno, necessidade de trfego e ao zoneamento. (...) Todas as ruas e avenidas procuram no contrariar a topografia, e foram feitas com a preocupao de no seguirem o maior declive, salvo nas avenidas e ruas principais. (...) Da topografia tiramos partido tambm para obter efeitos de perspectiva, com o motivo principal da cidade, que o centro administrativo. Domina este a regio e visto de todos os pontos da cidade e principalmente por quem nela chega. As trs avenidas mais importantes convergem para o centro administrativo, acentuando a importncia deste em relao cidade, que na realidade deve-lhe sua existncia27. Ainda que o modelo destas diretrizes seja o desenho de Karlsruhe, Versalhes ou Washington, no se pode deixar de mencionar a preocupao com problemas futuros: sob o tratamento essencialmente paisagstico, h previses de hierarquizao de vias e dimenses das mesmas. O plano disciplina tambm a localizao de vrios subsistemas urbanos, dividindo o habitacional em zonas residenciais urbanas e suburbanas, que devem se localizar em lugares tranqilos e separados dos centros administrativo e comercial.

    Nos itens zoneamento, praas e jardins, notam-se cuidados ecolgicos tanto pela previso de localizao industrial isoladamente (stio condicionado pela proximidade de vias de escoamento da produo) quanto pela insistncia no plantio de vegetais e tratamento das reservas que apresentavam, na poca, focos endmicos. Finalmente, os lotes residenciais so dimensionados de acordo com os ndices internacionalmente aceitos, condicionados por iluminao, insolao, boa distribuio interna e aspecto agradvel28. Ainda que o plano previsse um sistema incipiente de planejamento, com um rgo junto prefeitura que acompanhasse a implementao daquele, especificando inclusive a composio interna da diretoria e suas atribuies, a cidade apresentaria problemas idnticos s cidades sem traado, pois cresceu segundo o modelo descrito anteriormente.

    26 Plano da Cidade de Goinia. In: Revista Arquitetura n 14. Rio de Janeiro, ago/63. pp15 27 Idem. Pp 13. 28 Idem. Pp 16.

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    BRASLIA foi criada para ser um remdio eficaz para atenuar os famosos desequilbrios regionais brasileiros e, assim, os problemas de distribuio da populao (em 1960, o Norte e o Centro-Oeste, com 64% da superfcie, contavam com apenas 7% da populao) e, igualmente, uma soluo para a inflao galopante que tanto reduz o esforo nacional para vencer o subdesenvolvimento29. Apesar da mudana da capital federal do Rio de Janeiro para o interior ser uma idia antiga, primeiro justificada pela estratgia militar e, depois, por questes econmicas, a construo de Braslia era uma das metas (talvez a principal) do Programa de governo do Presidente Juscelino Kubitschek. Em 1957 instituiu-se o concurso nacional para o Plano Piloto da nova sede do Governo Federal, cuja localizao e nome retomavam a proposta de Jos Bonifcio, o patriarca da independncia, e cuja construo deveria seguir premissas que possibilitassem o desenvolvimento nacional. Como o prprio Lcio Costa afirma, a cidade no seria no caso, uma decorrncia do planejamento regional, mas a causa dele (Costa, 1974: 317). Braslia foi concebida com data de inaugurao marcada para ocorrer ainda durante o governo de JK, talvez pela j conhecida experincia quanto relao entre implementao de planos e estabilidade dos governos.

    Em face destas condies inslitas, a proposta de Lcio Costa no era exatamente um plano final, mas um primeiro estudo de certas diretrizes que deveriam ser desenvolvidas, detalhadas e s ento materializadas. Este processo, entretanto, no ocorreu, em parte devido urgncia em construir cidade, em parte devido pouca experincia de planejamento fsico que se tinha na poca, no Brasil. Isto, somado a fatores do contexto de desenvolvimento brasileiro tornaram esse documento a base, quando no a prpria lei de planejamento, sobre a qual se construiu a cidade. Essas ressalvas so necessrias quando se constata a presena, em Braslia, de problemas semelhantes aos das cidades no-planejadas. O Plano de Lcio Costa tambm pertence categoria dos urbansticos, ou seja, produto do trabalho e pesquisa do urbanista, uma espcie de sintetizador e manipulador de todas as ordens de variveis (econmicas, sociolgicas, legislativas, estticas, funcionais, psicolgicas, administrativas, polticas etc.) configuradoras do urbano, em um plano de desenho fsico-espacial. O resultado demonstra um domnio maior das tcnicas de desenho urbano, com nfase nos aspectos visuais e simblicos, apre