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A HERMENUTICA COMO DISCIPLINAJoo Bosco da Encarnao

CONCEITO Porque uma "esttica" do direito? Poderamos partir da clssica discusso sobre se o Direito cincia ou arte1. Conclumos, no entanto, que o Direito cincia na sua essncia, no seu contedo que busca a forma prtica de verdade. A identificao do Direito com a filosofia dos tempos clssicos, como j afirmamos, como se encontra, por exemplo, em Santo Anselmo, para o qual verdade e justia se definem reciprocamente2. Por outro lado, Dilthey quem alerta para o fato de que, na classificao aristotlica, Direito e Filosofia so sinnimos, assim como a Arte, apenas se distinguindo pela finalidade. Com efeito, Aristteles "divide a filosofia na cincia teortica, potica e prtica. teortica quando o seu princpio e o seu fim o conhecimento; potica quando o seu princpio reside na faculdade artstica, e o seu fim numa obra criada; prtica, quando o seu princpio a vontade e o seu fim a ao."3. Isso tem muito a ver com o que Gadamer chama de "A significao exemplar da hermenutica jurdica", para a explicao do "problema hermenutico da aplicao", que conjuga com "a atualidade hermenutica de Aristteles". Mas o prprio Dilthey quem avisa tambm que, aps tomar a cincia uma direo unitria, a qual chegou ao mximo desenvolvimento com Aristteles, acabou se desintegrando com o imprio de Alexandre, fundando-se as cincias particulares, at que a prpria cincia geral do Direito, na modernidade, tornou-se independente desde os tempos de Hugo Grcio4. Portanto, essencialmente, a questo da verdade, que uma questo de cincia no sentido lato, filosfico, e no no sentido meramente positivista de cincia, como j dissemos antes, tambm uma questo de retido: agir justamente agir conforme a verdade e no admira que o mtodo procedimental do processo judicial seja uma rplica da busca filosfica da verdade, aplicando-se a velha dialtica grega do silogismo (tese-anttese-concluso, ou: autor-ru-juiz) e que fundamente o "direito de defesa", ou seja, de contradizer. Portanto, o Direito cincia e arte. cincia enquanto partilha com a filosofia a busca teortica da verdade, que causa de harmonia, e arte na sua formosura, na medida em que a verdade, por isso mesmo, bela.1

Sobre isso, Jos Eduardo Faria, Direito e justia, a funo social do judicirio, So Paulo, tica, p. 98 (cf. nota Cf. "Os pensadores", So Paulo, Nova Cultural, 1988, volume dedicado a S. Anselmo e a Abelardo, p. 161. W. Dilthey, in Essncia da filosofia, Lisboa, Presena, 1984, p. 28. Dilthey. ob. cit., p. 31-32.

4) e p. 109.2 3 4

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Cabe-nos, portanto, aps defini-lo filosoficamente, estudar o Direito sob o prisma da prtica, ou seja, como se d a aplicao do princpio de justia diante da questo poltica da legalidade. o que se chama de hermenutica.5.

5

Cf. Verdade e mtodo, na ed. francesa Vrit et mthode, ditions du Seuil, Paris, com reviso de Paul Ricouer,

p. 148 e s. e que estudaremos adiante.

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A HISTRIA DA HERMENUTICA No nos interessa fazer uma digresso histrica sobre a hermenutica, que seria objeto de um estudo especializado, mas apontar rapidamente as suas bases histricas, a fim de se poder compreender o seu estgio atual. Dilthey se preocupou pioneiramente com a sua questo histrica6. Para ele, a arte de interpretar nasceu na Grcia, fruto da necessidade de ensinar, face as controvrsias de entendimento dos textos clssico como os de Homero. Adquiriu base mais segura com a retrica e com os sofistas, chegando a Aristteles, que lhe deu consistncia cientfica. Um novo passo foi dado com a filologia alexandrina, como arte de recensear textos, criticando, interpretando e avaliando-os, a fim de afastar falsidades. So nomes dessa poca, citados por Dilthey, Aristarco e Hiparco, a qual assiste uma melhora da conscincia metdica devido ao antagonismo com a filologia de Prgamo, na qual Crates de Mallos introduziu o princpio estico da interpretao alegrica, que acabou com a contradio entre os documentos religiosos antigos e uma filosofia avanada. Surge uma nova fase, segundo Dilthey, quando a hermenutica passa a ser usada metodicamente para a exegese de textos sagrados. H uma disputa na interpretao de textos bblicos, a fim de dar fundamento f, entre a Igreja Crist e os Judeus. Situamo-nos no perodo da Patrstica, ou dos Primeiros Padres. So deste tempo nomes como Filon, Justino e Irineu. Na luta contra os judeus e os gnsticos, Tertuliano desenvolve regras fecundas para uma melhor exegese, ainda que, na Igreja grega, ocorra antagonismo que se exprime na oposio de princpios, sendo que a escola de Antioquia explicava seus textos conforme princpios gramtico-histricos. A disputa teolgica fez surgir uma hermenutica de carter cientfico, sendo que as primeiras teorias hermenuticas de que se tem conhecimento nasceram deste conflito. Filon, Orgenes e Santo Agostinho fundaram uma teoria hermenutica coerente qual depressa se opuseram duas obras hermenuticas da escola de Antioquia, assevera Dilthey, infelizmente perdidas, uma de Diodoro e outra de Teodoro. A partir do renascimento, aparece uma nova etapa. Com a separao com a antigidade clssica e latina, trabalhava-se largamente com simples relaes e fragmentos, de modo que a filologia, a hermenutica e a crtica, por deverem ser mais construtivas e criativas, acabaram atingindo um estado mais avanado. Duas grandes foras dominam os quatro sculos seguintes, de uma literatura hermenutica abundante: uma tentava assimilar as obras clssicas e a outra trabalhava com os escritos bblicos. O conjunto de regras da filologia clssica chamava-se ento ars critica e era composto pelas obras de Scioppius, Clericus e a obra inacabada de Valerius. A constituio definitiva da hermenutica se deve,6

O texto Origens da hermenutica, traduo de Alberto Reis, Rs-Editora, Porto, no vol. Textos de

hermenutica, p. 149-203.

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contudo, interpretao bblica, como aponta Dilthey, sendo que a obra mais importante e talvez a mais profunda foi a "Clavis" de Flacius, de 1567. Flacius tinha de combater em duas frentes, assinala Dilthey: tanto os anabatistas como a Contra-reforma catlica afirmavam a obscuridade das Sagradas Escrituras, ao que ele se ope. Lutava-se, da parte dos luteranos, contra a doutrina catlica da tradio, que tinha acabado de ser reformulada. Belarmino, o representante do catolicismo de Trento, uns anos depois da obra de Flacius, combateu agudamente, num panfleto de 1581, a inteligibilidade da Bblia, tentando provar, assim, a necessidade da tradio para a completar. Flacius teve de demonstrar a possibilidade de uma interpretao com valor universal, o que o fez trilhar um caminho de meios e regras que a hermenutica jamais havia trilhado. As insuficincias formais da obra de Flacius foram superadas, conforme noticia Dilthey, pela hermenutica de Baumgarten, atravs de cuja obra, "Nachrichten von einer Hallischen Bibliothek", que os alemes comearam a ter conhecimento a respeito dos livres pensadores ingleses, que interpretavam Antigo Testamento com base na etnologia (Por exemplo, Semler e Michaelis). Semler, precursor de Cristian Baur, prega a interpretao apoiada no uso lingstico e em circunstncias histricas, emancipando-se a tradio do dogma, fundando-se a escola gramtico -histrica. Depois disso, o esprito sutil e prudente de Ernesti criou no seu "Interpres" a obra clssica desta nova hermenutica, com cuja leitura Schleiermacher pode desenvolver a sua prpria hermenutica. Obviamente, parte-se de uma concepo filosfica da natureza humana, que seria limitada pelas circunstncias locais e momentneas: a natureza humana a histrica. A hermenutica clssica e a hermenutica bblica, que at ento seguiam caminhos distintos, comeam a ser consideradas aplicaes de uma hermenutica geral quando o wolfiano Meier escreveu a sua obra em 1757, denominada "Versuch einer algemeinen Auslegungskunst" (Tentativa de uma interpretao artstica universal). Porm, sua teoria ainda apresentava influncia da simetria anterior. Para uma hermenutica fecunda, unindo a virtuosidade da interpretao filolgica e uma verdadeira faculdade filosfica, aparece Schleiermacher. Schleiermacher se situa dentro da filosofia transcendental alem, cujo mtodo consistia em recuar, para alm dos dados da conscincia at uma faculdade criadora, homognea e inconsciente, que produz em ns toda a forma de mundo. Da surge a sua arte peculiar de interpretao e a constituio definitiva de uma hermenutica cientfica. At ento, a hermenutica no passava de um conjunto de regras com vistas a uma interpretao com finalidade universal. Para almm dessas regras, Schleiermacher recuou at anlise da compreenso, entendendo-a como um "reproduzir", um "reconstruir", apoiando-se na sua relao viva com o prprio processo de produo literria: busca a inteno e a mentalidade do autor. Certo que essa conquista, a constituio de uma hermenutica geral, teve por aliada, segundo Dilthey, uma circunstncia favorvel: o fato das novas

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intuies psicolgico-histricas terem sido transformadas pelos contemporneos de Schleiermacher e por ele prprio numa arte filolgica de interpretao. Foi Friedrich Schlegel quem o introduziu na arte filolgica, nutrindo-se o plano de uma cincia da critica, uma "ars critica" que se assentava numa teoria da criao literria. De Schlegel tambm partiu a idia de uma traduo de Plato, que deveria ser compreendido como artista-filsofo, ou seja, estabelecendo-se a unidade entre o carter da sua meditao filosfica com a forma artstica de suas obras, descobrindo-se Plato, como disse Bockh, para a cincia filolgica. Surgiu assim, em Schleiermacher, uma teoria geral da cincia e da arte da interpretao, cujo primeiro esboo foi feito no outono de 1804, lendo o "Interpres" de Ernesti, e que seu aluno Bockh tornou influente atravs das pginas que lhe consagrou nas "conferncias sobre a enciclopdia filosfica". Reconhece-se, portanto, a partir de Dilthey, e com Richard Palmer, que Schleiermacher o pai da moderna hermenutica enquanto disciplina geral7. Segundo Dilthey, ao estudar Schleiermacher, descobrimos que a finalidade ltima da hermenutica compreender o autor melhor do que ele prprio se compreendeu, proposio que a conseqncia necessria ria da teoria da criao inconsciente. importante frisar, com Ricouer, que Schleiermacher era romntico e crtico, ao mesmo tempo: romntico, por seu apelo a uma relao viva com o processo de criao e crtico, por seu desejo de elaborar regras universalmente vlidas da compreenso. Romntico por querer "compreender um autor to bem, e mesmo melhor do que ele mesmo se compreendeu" e crtico, por seu propsito de lutar contra a no-compreenso em nome do famoso adgio: "h hermenutica, onde houver no-compreenso."8. Na hermenutica jurdica, o conhecido ditado "in claris cessat interpretatio". Depois de Schleiermacher, o prprio Dilthey quem, descrevendo a histria da Hermenutica, tambm faz a sua histria. Segundo Richard Palmer9, Dilthey quer a hermenutica como fundamento das "Geisteswissenschaften", isto , as cincias do esprito, ou, como diramos hoje, as cincias humanas. O prprio Dilthey j havia dito, alis, que o papel essencial da hermenutica o de "estabelecer, teoricamente, contra a irrupo constante da arbitrariedade romntica e do subjetivismo ctico no domnio da histria, a validade universal da interpretao, base de toda a certeza histrica. Integrada no conjunto que a gnoseologia, a lgica e a metodologia das cincias morais constituem, a hermenutica um intermedirio importante entre a filosofia e as cincias histricas e uma base essencial das cincias do esprito"10.7

R. Palmer, Hermenutica, trad. Maria Lusa Ribeiro Ferreira, Lisboa, Edies 70, 1986, p. 103; encontra-se

tambm uma perspectiva sobre Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer, em Paul Ricouer, Interpretao e ideologias, trad. Hilton Japiassu, Rio, Francisco Alves, 1988, 3. ed., p. 20-42, especialmente.8 9

Ricouer, ob. cit., p. 21. Palmer, ob. cit., p. 105 e s. Ob. cit., p. 164-165.

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De acordo com Palmer, o projeto de uma hermenutica geral acaba esmorecendo com a morte de Schleiermacher, em 1834, cambiando-se a preocupao hermenutica para os limites das disciplinas particulares11. Dilthey quis estabelecer a Hermenutica como fundamento para todas as cincias humanas e sociais, ou seja, todas as disciplinas que interpretam as expresses da vida interior do homem, tais como gestos, atos histricos, leis codificadas, obras de arte ou literatura. Seu objetivo era a interpretao objetivamente vlida dessas "expresses da vida interior", contra a tendncia de os estudos humansticos se influenciarem pelas cincias naturais, como era a influncia de Comte, que pregava a primazia da experincia concreta contra a especulao. Isso no significava que Dilthey comungasse do ideal da escola histrica alem, que para ele se caracterizava pela inconsistncia epistemolgica da pretenso objetividade, misturando acriticamente as perspectivas idealista e realista. Ao contrrio, a experincia concreta, histrica e viva, eram o ponto de partida e de chegada das cincias do esprito, pois no se devia tentar ir alm da prpria vida. Quer convergir dois pontos de vista conflituosos: o realismo emprico e o positivismo anglo-franceses com a filosofia da vida e o idealismo alemes, negando, porm, qualquer base metafsica, preferindo as bases "epistemolgicas". Dilthey procura continuar o idealismo crtico de Kant, embora no sendo um kantiano, alegando que "chegamos ao conhecimento de ns prprios no atravs da introspeco mas sim atravs da histria"12, que significa uma recuperao da conscincia da "historicidade" de nossa prpria existncia que se perdeu nas categorias estticas da cincia. A "filosofia da vida" procura regressar plenitude da experincia vivida contra as tendncias formais, mecnicas e abstratas, criticando Dilthey as formas de pensamento naturalsticas. A "Critica da Razo Pura" (Kant), por exemplo, por invocar categorias abstratas exteriores vida, so o oposto da prpria vida. Para Dilthey, Locke, Hume e Kant so pensadores que separam o "saber" do sentido e da vontade e para os quais, nas veias do sujeito no corre sangue! Concorda com Hegel, porm, na inteno de compreender a vida a partir da vida (realidade histrica), embora entenda que a histria no seja meta absoluta e nem manifestao do esprito absoluto como Hegel queria, e sim expresso da vida, ou seja, histria, para Dilthey, fruto e no determinao da vida. A ausncia de referncia experincia humana caracterstica das cincias naturais, ao passo que as cincias humanas tratam de um mundo externo em relao com o sentimento e com a vontade humana: os fatos so significativos apenas na medida em que afetam o comportamento e ajudam (ou impedem) fins humanos.

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Palmer, ob. cit., p. 105. Cf. Palmer, ob. cit., p. 107.

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S entramos nesse mundo interno humano no por meio da introspeco, mas da interpretao, ou seja, da compreenso das expresses de vida, que se constitui na decifrao das marcas que o homem imprime aos fenmenos. Dilthey estabelece, dessa maneira, a diferena entre "compreenso" (cincias humanas) e "explicao" (cincias naturais), numa critica importante ao cientismo, que fez depois Heidegger recuar at ele, a fim de ultrapassar as tendncias cientificistas de E. Husserl. Estabelece, assim, a frmula "experincia, expresso e compreenso". "Experincia", em alemo "erlebnis", "erleben", significa "er + leben", ou seja, viver, experincia como "vivncia", no havendo diferena entre conscincia da experincia e sua constituio, ou seja, no havendo diferena entre sujeito e objeto, pois refletir sobre a experincia tambm uma experincia. Ou, poderamos acrescentar, o sujeito objeto de si mesmo! Por sua vez, "expresso" significa no o smbolo (que supe sujeito e objeto), mas "objetificao", sendo que a compreenso tem o seu verdadeiro objeto na objetificao da prpria vida. Objetificao to lato quanto a prpria compreenso. A obra de arte, assim, exprime a prpria experincia, sendo verdade em si mesma. A expresso, outrossim, no a expresso de uma realidade individual, seno a percepo pelo outro seria impossvel, mas a compreenso que ocorre por causa de experincia anlise. Essas estruturas gerais geram o conhecimento objetivo. Trata-se, portanto, da expresso de uma realidade social e histrica revelada na experincia ou a realidade social e histrica da prpria experincia. Isso significa que, ao se traduzir o termo alemo "ausdruck", melhor seria usar a palavra "objetificao" e no "expresso", admite Palmer13. Por sua vez, por "compreenso" no se entende uma operao cognitiva, mas a captao da mente pela mente: a vida compreende a vida. Se "explicamos a natureza, h que se compreender o homem"14. Tal como a experincia vivida, trata-se de redescobrir-se no outro. Por isso, "historicidade" no significa concentrao no passado, mas a afirmao da temporalidade da experincia humana tal como a descrevemos e parte de dois princpios: 1) o homem compreende-se a si mesmo no pela introspeco, mas por meio de objetivaes da vida; 2) a natureza humana no uma essncia fixa: criativamente histrica, tem o poder verdadeiro e radical de criao - o que na histria e dela no foge. A "historicidade" diferencia Dilthey dos demais filsofos da vida, anota Palmer, sendo que tambm Heidegger e Gadamer se fundam nesse conceito, tratando o homem como "animal hermenutico".

13 14

Ob. cit., p. p. 118. Ob. cit., p. 120-121.

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Percebe-se, portanto, que a "historicidade", a partir de Dilthey, a fundamentao terica da moderna hermenutica, estabelecendo-se como "crculo hermenutico". No "crculo hermenutico", o todo recebe a sua definio das partes e, reciprocamente, as partes s podem ser compreendidas na sua referncia ao todo. Isto significa, pois, que estamos sempre num contexto historicamente definido, no sendo a vida algo "metafsico", mas "experincia vivida". Assim sendo, podemos dizer que "compreender" no algo dogmatizvel, pois questo de interao da pessoa individual e do "Geist" (esprito) objetivo, num crculo hermenutico. Significado o nome dado s diferentes espcies de relaes desta interao15. Dessa maneira, em se dando a compreenso em crculo, no h ponto de partida: sempre se parte de "pressupostos"16. A circularidade significa, assim, que compreendemos por uma constante referncia nossa experincia e a tarefa do intrprete encontrar modos de uma interao vivel entre o nosso horizonte e o horizonte do texto, o que Gadamer, como recorda Palmer, ir aprofundar para evitar a imposio ao texto, de nossas prprias categorias17. Por tudo isso, conclui criticamente Palmer, que embora Dilthey no tenha se libertado totalmente do cientismo que quis combater - Ricouer o considera ainda dentro do neokantismo18-, certo que acabou sendo considerado o pai da "problemtica hermenutica contempornea", colocando os fundamentos do pensamento de Heidegger19. Para Paul Ricouer, Dilthey percebeu perfeitamente o mago do problema: a vida s apreende a vida pela mediao das unidades de sentido que se elevam acima do fluxo histrico20. Contudo, afirma Ricouer, "para levar adiante essa descoberta, ser preciso que se renuncie a vincular o destino da hermenutica noo puramente psicolgica de transferncia numa vida psquica estranha, e que se desvende o texto, no mais em direo a seu autor, mas em direo ao seu sentido imanente e a este tipo de mundo que ele abre e descobre.", devendo-se passar da "epistemologia" para a "ontologia"21.

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Ainda aqui se volta questo da "proporo" em Aristteles: verdadeira a relao e no o seu contedo, que Os pre-conceitos de que fala Gadamer, como se ver adiante. Ob. cit., p. 126. Ob. cit., p. 25. Ob. cit., p. 127-128. Ob. cit., p. 29. Idem.

varivel; cf. acima, a definio de "verdade ontolgica", quando discutimos o que filosofia.16 17 18 19 20 21

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Aqui entra Heidegger22. A partir de Heidegger, incluindo Gadamer, a pressuposio de uma Hermenutica compreendida como epistemologia posta em causa de forma essencial, assevera Ricouer23. Como aponta Ricouer, "se pudemos situar o primeiro trajeto, das hermenuticas regionais hermenutica geral, sob o signo da revoluo coprnica, deveremos situar o segundo, que empreendemos agora, sob o signo de uma segunda revoluo coprnica que recolocaria as questes de mtodo sob o controle de uma ontologia prvia24. Por isso, no se deve esperar de Heidegger ou de Gadamer um mero prolongamento da questo diltheyana, pois surge uma nova questo: ao invs de nos perguntarmos como sabemos, perguntaremos qual o modo de ser desse ser que s existe compreendendo25. A questo epistemolgica, isto , de apenas fundamentar um mtodo para as cincias, cede lugar, em Heidegger, para a questo fundamental do ser: compreender compreender o ser e, a partir da, se pode fundamentar inclusive posturas epistemolgicas. Embora Heidegger tenha tido um instrumento que Dilthey e mesmo Nietzsche no tiveram, que a fenomenologia de E. Husserl, tal ponto de partida foi superado em direo hermenutica, caracterizando-se o seu pensamento como anti-cientificista. Para ele, a Ontologia deve ser a fenomenologia do ser, ou melhor, "hermenutica da existncia", como aponta Palmer, que, ao contrrio de Dilthey, se caracteriza no pela metodologia geral das cincias humanas, mas por um "ato primrio de interpretao" que faz com que a coisa em si se revele. O "ser" das coisas, porm, se revela atravs do "mundo", que a totalidade em que o ser humano est mergulhado: s o homem tem mundo e as coisas esto no mundo do homem. Mundo e compreenso so partes inseparveis da constituio ontolgica da existncia do "Dasein" (o ser-a). O "Dasein" o homem, o nico ser que ser enquanto se relaciona, enquanto est "diante de", sempre "mitsein", "ser-com". O termo "existir", nesse sentido, reservado ao homem, pois nem Deus est "diante de", nem as coisas esto conscientes do mundo. Ou seja, o absoluto no convive no sentido em que o homem, relativo, ou seja, que se relaciona e tem referncias, o faz. Nesse sentido, podemos acrescentar que para que Deus se fizesse entender pelo homem, o absoluto fosse cabvel na vivncia humana, teve ele mesmo que se transformar num finito e relativo, a fim de se comunicar: Cristo o "verbo" de Deus, aquele que pode agir, falar, significar, pois o absoluto, por ser absoluto, no tem movimento.22

Sobre Heidegger a bibliografia imensa. Para um enfoque hermenutico, porm, alm dos textos j citados de

R. Palmer e P. Ricouer, pode-se somar, a ttulo de bibliografia bsica, por exemplo, Gianni Vattimo, Introduo a Heidegger, trad. Joo Gama, Lisboa, Edies 70, 1989, e Ernildo Stein, Seis estudos sobre 'Ser e tempo' (Martin Heidegger), Petrpolis, Vozes, 1988.23 24 25

Ob. cit., p. 30. Idem. Idem.

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A compreenso se d atravs do mundo, sendo uma e outro partes inseparveis, para Heidegger, da constituio ontolgica da existncia do "Dasein". A linguagem, portanto, "a casa do ser", pois as palavras, no sendo apenas "invlucros", revelam o prprio ser. O verdadeiro fundamento da linguagem o fenmeno da fala, onde algo se revela. esta a funo hermenutica da linguagem, que trata no de um revelar da interioridade, mas um partilhar do mundo: no nem subjetivo e nem objetivo, mas ambos, pois o mundo anterior a ambos e a ambos engloba. Trata-se de uma vivncia segundo a verdade do ser: Palmer revela que numa obra no publicada26, Augustinus und der Neuplatonismus, Heidegger v um cristianismo fundado na experincia vivida (no tanto conhecer a Deus, mas viver em Deus)27, o que j no se encontra no neoplatonismo, que apresenta um cristianismo mais esttico, cujo Deus um Ser eterno, fora e acima do tempo, do lugar, da histria, e disponvel apenas para ser contemplado. Segundo Heidegger, a partir de Descartes, sobretudo, colocando-se o homem como centro, o mundo dessacralizado e a relao com Deus mera experincia particular, projeo do prprio homem, o que faz perder a pretenso grega de verdade como desocultao (do Ser). A vontade faz do mundo um brinquedo nas mos do homem e ele passa a influir, ao invs de apenas postar-se de maneira a que o ser escondido se revele. Mas o homem a ponte entre o ser que se esconde e o que se revela. A partir do "no-ser" como pano de fundo, interpreta o "texto" e, ao falar, interpreta o Ser. A essncia da "mundanidade" do homem, isto , estar inserido num "mundo" a interrogao. O homem pensa e fala: pergunta "que isto?" e por isso, podemos completar, para Heidegger, "filosofia , ou deveria ser, hermenutica", pois no h essa revelao sem linguagem, a marca essencial do homem. E se a linguagem , em si mesma, hermenutica, , em mais alto grau, na poesia. Por isso, ao superar a dicotomia histrico-cientfica contemplada por Dilthey, dando um sentido mais profundo Hermenutica, Heidegger mudou todo o seu contexto, fazendo com que o ato de interpretao se coloque numa perspectiva ontolgica: o homem o "pastor" do Ser, isto , no homem que se revela o Ser, atravs da linguagem. Obviamente, acrescentamos, atravs da linguagem que o homem realiza a sua essncia, o seu "ser" como existente, como "ser-diante-de". A constituio do "ser-a" como "presena"28, significa que o homem s se realiza, s se torna aquilo que deve ser, na convivncia. Por isso, sempre26 27

Ob. cit., p. 148. O que coerente com o que encontramos em Acerca da doutrina crist, de S. Agostinho, captulo XXXIX: "O

homem que funda a sua vida na f, na esperana e na caridade, no necessita da Sagrada Escritura para a sua instruo" (cf. Textos de hermenutica, cit., p. 49).28

Segundo traduo de Mrcia de S Cavalcante, em Ser e tempo, Petrpolis, Vozes, 1989.

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relacionado, sempre relativo (o que no significa que a verdade relativa) e no absoluto. Sendo um "ser-para-a-morte", apenas na morte que ter sido, pois enquanto no chega a esse ponto de finalizao da existncia, mantm-se todas as possibilidades. Portanto, qualquer dogmatizao, como tentativa de estagnar a existncia, morte, no vida. Ao definirmos o Direito como "regras de convivncia (harmonia)" para ou atravs da manuteno da igualdade, desembocamos sem defesa diante dessa filosofia. Em termos de "breve introduo histrica Hermenutica", o quanto basta, por ora, desse vastssimo pensamento. O pensamento de Heidegger aproveita a todos os pontos de vista que estudam o homem: a psicologia, a sociologia, a poltica, o direito, a antropologia, a religio e a arte. J o aproveitamos para a definio de verdade e de direito, ou seja, de justia e tambm j pudemos record-lo diante da questo hermenutica especfica. Vale completar esse quadro com o autor da grande obra hermenutica que, de certa forma ao menos, se coloca ainda na tradio heideggeriana: Gadamer. A comear pelo ttulo de sua grande obra, "Verdade e mtodo"29, podemos perceber que Hans Georg Gadamer quer colocar em questo a disputa acerca da hermenutica como ontologia e da hermenutica como mtodo simplesmente. Na realidade, a questo envolvendo "verdade" e "mtodo" explica uma discusso filosfica histrica que vem sendo travada entre a ontologia e o idealismo ctico. Se, de um lado, a ontologia privilegia o acesso ao "Ser", verdade, o ceticismo relativista que adquiriu monta na Modernidade apela para a questo do mtodo, pois, uma vez descrente da "ocorrncia" da Verdade, do Ser, e, portanto, do justo, para evitar o caos, prega a necessidade de uma "tica de princpios", ou seja, emprega filosofia e, assim, prpria hermenutica, um parmetro procedimental segundo o qual preciso seguir regras fundamentais que estabelecem princpios. O dogmatismo conseqncia natural, como o demonstra a leitura de Habermas, por exemplo30. Para Gadamer, porm, o mtodo no caminho para a verdade, mas, ao contrrio, a verdade zomba do homem metdico, assim como todo mtodo, isto , todo plano falvel, no confiando nos planos o homem experiente, que , pela falibilidade dos planos, um homem decepcionado. O mximo que um mtodo poderia fazer seria revelar "uma verdade" j nele contida, pois o tema orienta, controla e manipula, de modo que no se pode confiar. Obviamente, o mtodo, como se disse acima, serve como "substitutivo" da29 30

Wahreit und methode, 1. ed. de 1960; utilizamos a ed. francesa, j citada. De toda a obra de Habermas, destacamos Faktizitt und Geltung: Beitrage zur Diskurstheorie des Rechts und

des demokratischen Rechtsstaates, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1992, Zwaite Auflage, como demonstrativo inequvoco disso.

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verdade ontolgica, diante de uma situao agnstica: o dogma posto onde se julga que no h demonstrao a fazer. Assentando-se em Heidegger, ainda, Gadamer transforma a sua teoria da compreenso numa crtica formal da esttica moderna e das concepes histricas da interpretao, com nfase especulativa e dialtica em direo a Hegel. Ou seja, sentimo-nos em casa diante de uma obra de arte porque reconhecemos a verdade (o artista disse aquilo que ). A legitimao da arte no est no fato de produzir um prazer esttico, mas sim no fato de revelar o ser. A obra de arte transforma aquele que a experimenta, entregando-se a ela, como um jogador respeita as regras do jogo como sagradas e as transforma num ritual31. A tradio, por sua vez, algo em que nos situamos e pela qual existimos, sendo semelhante ao conceito de "mundo" em Heidegger. Pela linguagem que a tradio se comunica, de modo a se "transmitir" de gerao para gerao. O homem, finito e histrico (relativo em oposio a absoluto), compreende o seu ponto de vista, localizado no tempo e no espao, sendo que dessa "historicidade da compreenso" derivam algumas conseqncias: 1) O problema do juzo prvio (o "pre-conceito"): - mais que juzos prvios, so a realidade histrica do ser - os pressupostos vm da tradio em que nos inserimos - se a obra traz uma verdade, esta original, pois a verdade uma s. 2) O conceito de distncia temporal: - o tempo tem a funo de eliminar o que no essencial, desocultando o verdadeiro significado. 3) Compreender o autor de um texto ou o texto: - importa compreender o texto, sua significao histrica, e no o autor. 4) Reconstruo do passado: - a verdadeira tarefa da hermenutica a integrao e no a reconstituio. 5) O significado da aplicao: - compreender implica numa aplicao (hermenutica jurdica serve de exemplo) - "presentificao" do texto significa que "compreender um texto sempre j aplic-lo". - tambm na hermenutica jurdica ou na teolgica se ajusta o pensamento ao pensamento do texto: interpretar a "vontade da lei" ou a "vontade de31

Em termos de regras, alis, podemos completar dizendo que o Direito a se insere.

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Deus" no so formas de dominar o assunto, mas de o servir - no se d ao passado as aparncias de presente, mas traz-se do passado o essencial para o presente; compreender compreender o presente. - conhecer no s um fluxo de percepes, mas um acontecimento histrico, um evento, um encontro. - parte da avaliao hegeliana de experincia: inverso ou reestruturao da conscincia (experincia antes negativa), o que significa que uma coisa no como a tnhamos pensado (desiluso da experincia) - a experincia contraria, experincia de finitude. - o homem experiente conhece os limites de toda antecipao, a insegurana dos planos e isto o abre a novas experincias. - esta a estrutura da historicidade: a experincia do passado previne as do futuro. - querer interrogar, querer saber, pois saber significa que no sabe (docta ignorantia socrtica). - mas uma pergunta tem sempre uma orientao (resposta implcita, ou melhor, as fronteiras desta resposta-limite). - da saber perguntar corretamente (penetrando no tema). - tarefa da hermenutica: tirar o texto da alienao em que se encontra (enquanto forma rgida, escrita), recolocando-o no presente vivo do dilogo, cuja primeira realizao a pergunta e a resposta - o texto pergunta e uma resposta (dialtica, pois cada resposta gera nova pergunta). - a revelao ontolgica (algo no como pensvamos) se d pela linguagem (carter no instrumental da linguagem rejeita a teoria do signo). - a palavra , por si, j significativa, no sendo fruto da reflexo, mas da experincia: Verbo Divino. Como salienta, por fim, R. Palmer, Gadamer no quer compreender corretamente, como Betti e Hirsch, mas sim compreender profunda e verdadeiramente. uma aproximao de Hegel, salienta Palmer, que talvez seja um melhoramento da concepo de Heidegger32. Para Richard Palmer, se a hermenutica de Heidegger j concebe ontologicamente o evento da compreenso, Gadamer desenvolve a ontologia da compreenso numa hermenutica dialtica que pe em causa os axiomas fundamentais da esttica moderna e da interpretao histrica33. Como salienta Paul Ricouer, o que faz comunicar a distncia, o que faz a mediao, segundo Gadamer, a "coisa do texto", que no pertence mais nem ao seu autor e nem ao seu leitor34. De nossa parte, juntamo-nos a Ricouer quando pergunta: se a "coisa do texto" no pertence nem ao seu autor e nem ao seu leitor, do que se trata?32 33 34

Ob. cit., p. 217. Ob. cit., p. 219. P. Ricouer, ob. cit., p. 42.

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Resta a entrega de si, pelo leitor, "coisa do texto", ou, como chama Ricouer, ao "mundo da obra". Perdendo-se que o leitor se encontra no mundo do texto: a que ele se compreende quando responde pergunta do texto. O distanciamento condio sine qua non da compreenso35. Distanciamento aqui pode ter um sentido de imparcialidade, mas tem sobretudo o sentido de ser "outro" diante daquilo que se vai interpretar: , ao mesmo tempo, exigncia e necessidade. S se interpreta aquilo que "outro", mas s se interpreta aquilo que se expressa; significa que nem Deus, nem as coisas, que no se "expressam", tambm no so interpretveis. Se as coisas no tm voz, a "voz" de Deus inefvel. O Absoluto no cabe na mente humana, como no cabe o mar num buraquinho na areia da praia, para se utilizar de uma anedota a respeito de um santo filsofo. A sua palavra, escrita sob as condies humanas, ou o "Verbo", que Deus na forma humana, so ainda "expresses" humanas, no sentido gramatical estrito. Portanto, se Deus a tudo "conhece" na sua essncia, e por isso no precisa interpretar, o homem s chega essncia, a duras penas, verdade, atravs da palavra. A palavra a "casa do ser", em termos heideggerianos. Essa dimenso do outro sugere a essencial distncia, um obstculo mesmo, que torna necessria a interpretao. E a interpretao, por sua vez, e por isso mesmo, exige um distanciamento a fim de preservar uma "tranqilidade" e evitar uma intromisso. Essa "imparcialidade", porm, esbarra na questo do pre-conceito, da pre-compreenso, que nos faz interpretar sempre de acordo com a experincia anterior. Somos algum inseridos num determinado contexto histrico de tempo e lugar. A interpretao deve satisfazer essa condio de "aqui e agora" em que nos situamos. No uma "explicao" terica, mas uma converso de princpios em atitudes de vida: vida interpretando a vida; vida alimentando-se de vida. Na verdade, como assevera Ricouer, compreender o texto compreender, antes de mais nada, a si mesmo no texto36. perder-se diante da indagao do texto, ou seja, o texto que nos indaga. Poderamos dizer, formar ou reconhecer um contexto, o contexto no qual estamos inseridos!

35 36

Ob. cit., p. 58-59. Ob. cit., p. 57-59.

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OITAVO TEMA

INCONTESTAVELMENTE A LGICA INABALVEL, MAS NO PODE OPOR-SE A UM HOMEM QUE DESEJA CONTINUAR VIVENDO. (FRANZ KAFKA, O PROCESSO)

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A HERMENUTICA JURDICA Realmente, como observou Miguel Reale, a histria da Filosofia do Direito um entrecruzar de teorias que pregam ou a primazia do fato, ou a primazia do valor, ou a primazia da norma37. Essas teorias a respeito da essncia do Direito, evidentemente, determinam a respectiva hermenutica jurdica, pois como observou o referido mestre, ao dizer o que o Direito, j estamos adiantando como vamos encarar a hermenutica jurdica, ou seja, como pretendemos interpretar38. O estudo da histria da hermenutica jurdica39, assim, revela basicamente trs temas, que so apropriados por diversas escolas, com denominaes diferentes conforme o pas de origem: as escolas sociolgicas, as filosficas e as normativistas40. O tema da "hermenutica jurdica", porm, como disciplina autnoma, aparece na Europa sobretudo no sculo dezenove, ao lado da fundao da hermenutica de modo geral como preocupao disciplinar particularizada41. a sistematizao da questo do "interpretar" com bases mais cientficas, por assim dizer, que levar tambm no campo do direito a uma sistematizao do carter da aplicao do direito, ou, em termos prticos, de como decidir. Miguel Reale salienta que essas trs grandes concepes do Direito se resumem no seguinte: "a) - o "normativismo jurdico abstrato", ou teoria do Direito como simples sistema de comandos ou de regras; b) - o "eticismo jurdico" que, vendo o Direito como sistema de regras, o subordina rigorosamente a valores morais; c) - o "empirismo jurdico" que, ao se contrapor ao normativismo puro, pe em realce a dimenso "ftica" do Direito, renovando com rigor cientfico certas teses j debatidas pelo "historicismo" na primeira metade do sculo passado"42. Entretanto, como j havamos dito na crtica Teoria Tridimensional 43 do Direito , a questo no pode se resumir ao elenco de trs grandes correntes, pois37 38 39

Conferir o estudo sobre a Teoria Tridimensional do Direito, acima. O direito como experincia, So Paulo, Saraiva, 1968, p. 231. Para tal estudo podem ser utilizados, dentre outras, as obras seguintes: Introduo histrica ao direito, John

Gilissen, trad. A. M. Hespanha e L. M. Macasta Malheiros, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, especialmente p. 513 e s. (ed. 1988); Histria do direito privado moderno, Franz Wieacker, trad. A.M. Botelho Hespanha, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, especialmente p. 397 e s., sobre a Escola Histrica, p. 491 e s. sobre a pandectstica e p. 524 e s. sobre a virada do positivismo cientfico para o legalista, e Filosofia do direito, Miguel Reale, So Paulo, Saraiva, especialmente p. 409 e s. (da 12. ed., 1987).40 41

Filosofia do direito, cit., p. 409. Sobre a influncia de Schleiermacher no seu tempo, contemporneo Escola Histrica, cf. F. Wieacker, ob. Ob. cit., p. 409-410. Cf. acima.

cit., p. 419.42 43

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a viso aristotlica do Direito Natural, ainda que se possa pretender que desemboque numa "tica", nada tem a ver com o "moralismo" desse "eticismo", como foi classificado. Temos, portanto, um "normativismo" que entende que o Direito se resume a leis, ainda que acredite num "direito natural", mas que no tem significado se no for objeto de uma "objetivao" legal. Evidentemente, a interpretao, para esta escola, como a da Exegese na Frana, ou Pandectista na Alemanha, ou a "Analytical School" na Inglaterra, que entende que a lei a nica fonte de direito, a interpretao ser sempre restrita a explicitar a norma, ou seja, a ordem do legislador estatal, incluindo-se a as decises superiores, no caso ingls, que vinculam como lei os juizes inferiores. S h interpretao, portanto, quando a norma for obscura e, pois, in claris cessat interpretatio. Outrossim, parte esse "positivismo idealista" do normativismo, aparece o movimento historicista, segundo o qual o direito est no "esprito do povo", ou na expresso alem consagrada por Savigny, "Volksgeist", quando o Direito se assemelha linguagem, igualmente surgindo de maneira annima, pelo costume vivo da coletividade. Como sabido, no entanto, houve a necessidade de se "esclarecer" qual era esse "esprito" e a Escola Histrica acabou admitindo que "os costumes devem exprimir-se em leis, porque somente so leis verdadeiras as que traduzem as aspiraes autnticas do povo", como observa Miguel Reale44. Por isso mesmo, a despeito de uma corrente sociolgica que pregava o "direito livre" (das leis), como o caso de H. Kantorowicz, para o qual, na sua "Der Kampf um die Rechtswissenschaft", que publicou em 1906, sob o pseudnimo de Gnaeus Flavius45, o sociologismo histrico acabou dando prioridade aos textos legais, acontecendo como observou Miguel Reale, a transformao de um "historicismo de contedo social, para um historicismo meramente lgicodogmtico"46. Portanto, como conclui Reale, tanto os empiristas, que vem na norma o "resultado" de condies impostas pelas circunstncias do viver social, como os aprioristas, para os quais a norma "condio" lgica de condutas possveis, acabam descambando para o mais exacerbado "normativismo"47. No campo do positivismo emprico, de orientao sociolgica, a lei no pode ser interpretada, porque se trata de uma interpretao j da realidade social ou do "esprito geral"; diante do positivismo idealista, por outro lado, a interpretao embaraada porque a lei uma ordem que condiciona a realidade social, de modo a no poder ser "alterada" a ideologia que a indicou. De um lado, a primazia da eficcia, de outro a primazia da vigncia. Entretanto, como a concluso de Habermas, que nesse sentido procedente,44 45 46 47

M. Reale, ob. cit., p. 438. M. Reale, ob. cit., p. 425. M. Reale, ob. cit., p. 437. Idem.

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idealmente, eficcia e vigncia se confundem48. Resta saber se realmente isso acontece. Da mesma forma que as teorias sociolgicas tambm incluem exacerbaes do tipo "direito livre", onde lei alguma vivel, as concepes legalistas tambm tm uma tendncia "purista", como o caso de Hans Kelsen. Para Kelsen, o autor da "Teoria pura do direito"49, a norma jurdica no tem contedo relativamente a uma ideologia prvia. Pouco importa se uma conduta boa ou no, para ser contemplada na norma. Trata-se simplesmente de uma convenincia do legislador estatal que, depois de erigida condio de lei, observados os procedimentos regulares, constitucionais, deve ser observada. Aqui, portanto, no importa a "eficcia", mas apenas a "vigncia", pois "eficcia" ou faticidade conceito metajurdico e o que o Direito deve contemplar a validade tcnico-formal da lei50. Aps comparar o "sociologismo" ao "normativismo", Reale, compara o "normativista" ao "eticista", alegando que a nica distino entre ambos que o normativista no v na norma uma funo ou contedo moral, valendo esta em virtude de seu "enlace lgico na totalidade do sistema", ao contrrio do "eticista", que entende que a norma vale pelo contedo da sua prescrio51. A diferena entre os "moralistas" e os "empiristas", por sua vez, aponta o mestre, que embora ambos exijam uma conexo de fundo entre a norma e a realidade social, os "moralistas" no querem, como os empiristas, a reduo do "normativo" ao que verificado pela freqncia52. Apontam para um "dever-ser", portanto, porm com contedo moral, e que pode ou no estar relacionado com o conceito de "Direito Natural". Aqui tambm, uma vez caracterizada a norma como comando de ordem moral, ou seja, segundo a viso kantiana, passando-se um imperativo categrico para imperativo hipottico, torna-se dificultada a interpretao, pois h uma ideologia implcita na origem da norma que no admite ser trada. Apenas que, enquanto imperativo moral (categrico), no h sano para a sua inobservncia, o que j ocorre com a elevao do imperativo a norma jurdica e, pois, acompanhada de obrigatoriedade pela sano53.

48 49 50 51 52 53

J. Habermas, Faktizitt und Geltung..., cit. Trad. Joo Baptista Machado, So Paulo, Martins Fontes, 2.ed., 1987, j citada. Cf. H. Kelsen, ob. cit. e o comentrio de Reale, ob. cit., p. 463. Ob. cit., p. 475 e 481. Ob. cit., p. 482. Sobre a relao direito e moral, interessante lembrar o livro O conceito de direito, de Herbert L. A. Hart, trad.

A. Ribeiro Mendes, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, ed. de 1986.

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Citao especial: O DIREITO A ARTE DO BOM E DO JUSTO (Celso) STIMO TEMA

MAS O QUE QUER DIZER ESTE POEMA? PERGUNTOU-ME ALARMADA A BOA SENHORA. - E O QUE QUER DIZER UMA NUVEM? - RESPONDI TRIUNFANTE. - UMA NUVEM - DISSE ELA - UMAS VEZES QUER DIZER CHUVA, OUTRAS BOM TEMPO... (MRIO QUINTANA, POESIAS)

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9. Hermenutica histria Na medida em que o Direito dinmico e realiza-se como tal na deciso do juiz, a histria da hermenutica jurdica a prpria histria do direito. H que se salientar, contudo, que, quanto interpretao em si, surgiu uma cincia hermenutica geral, vlida para todas as cincias humanas, que, ao mesmo tempo, influenciou e foi influenciada pela particular funo de interpretar as normas. Assim, interpreta-se qualquer texto (e texto qualquer manifestao que requer interpretao) e, na hermenutica jurdica, interpreta-se o texto normativo. O que esse texto normativo que deve ser discutido. as escolas na hermenutica jurdica Tradicionalmente, o texto normativo ora foi entendido de maneira abrangente, ora restrita. Tivemos, entretanto, com preocupao a respeito da interpretao legal, as escolas exegtica, pandectista e analtica, todas de cunho legalista. Parte-se ora do princpio de que o texto sagrado, devendo ser respeitado como tal, ora do princpio de que a autonomia democrtica estampou no texto sua vontade e que, portanto, no pode ser objeto de interferncia. Mas, ambos, no final, do guarida tese da obedincia cega a uma ordem de poder. a escola da exegese A Escola da Exegese no admitia a interpretao do texto em sentido amplo, mas, apenas, o seu entendimento gramatical e textual, a fim de espancar as lacunas e divergncias que existem no ordenamento jurdico apenas de forma aparente. a escola pandectista A Escola Pandectista, por sua vez, de origem germnica, tambm entende que o texto legal preponderante, porm, pela razo de que a lei a manifestao histrica da cultura do povo e, por isso mesmo, no pode ser objeto seno de esclarecimentos objetivos. A influncia do Historicismo faz-se sentir no sentido de que a tradio romano-germnica deve ser preservada, atravs da observao estrita da lei, na qual se manifesta. Na verdade, a Escola Histria, a partir de Savigny, na Alemanha, acaba por dogmatizar o passado histrico como fonte de direito, no entendendo que a tradio , na verdade, a atualizao dos valores culturais. a escola analtica (analytical school)

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A Escola Analtica, surgida na Inglaterra, no entende a preponderncia do texto legal em si, j que a tradio anglo-saxnica desconhecia atividade legislativa ampla, mas, entendia que a cultura e o costume do povo s podiam ser fonte de direito na medida em que fossem reconhecidos pelo rgo estatal judicante. Da a importncia das decises judiciais como precedente, as quais deveriam, ento, nortear a aplicao do direito. a Hermenutica Filosfica antecedentes histricos Como foi dito anteriormente, a Hermenutica Filosfica busca seus antecedentes no Direito Natural aristotlico, que serve de exemplo para a prpria filosofia em geral, na medida em que a interpretao, no Direito, uma interpretao para a aplicao. este o carter prtico do Direito, que ensina aos filsofos que a compreenso do mundo deve ter uma dimenso pragmtica. Contudo, no sculo 19 que a hermenutica comeou a ser tratada como disciplina interpretativa, buscando o carter subjetivo das cincias humanas, entre elas o Direito. Direito como composio de textos A partir da hermenutica filosfica, podemos entender o carter interpretativo do direito como uma cincia hermenutica que se faz a cada instante, em cada circunstncia. O carter pragmtico do direito demonstra-se no momento quem que h uma interpretao aplicativa, ou seja, o momento culminante do direito o momento em que um juiz faz uma aplicao, ou seja, quando diz o direito. Isso significa que todas as normas so apenas projetos e que, quando chamadas realizao, que tornam-se eficazes, caso realmente possam cumprir a sua finalidade. Por isso mesmo vlido dizer que estudar o Direito estudar hermenutica, pois, na verdade, o direito como tal s existe mesmo no momento da aplicao. E a aplicao no passa de uma composio de dois textos, quais sejam, o da norma e o ftico, composo essa que nada mais do que a valorao de ambos os textos, relacionando-os. direito e linguagem (semitica e comando jurdico) Tendo em vista que o Direito , essencialmente, linguagem, temos que distinguir dois aspectos: o smbolo ou significante, e o contedo, ou significado.

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Smbolo ou significante a externao de um contedo ou significado. possvel dizer que o contedo, como vontade, antecede o smbolo, uma vez que este surge exatamente da necessidade de explicitao daquele. Os valores embutidos na norma, por exemplo, so contedo ou significado, ao passo que os elementos lingsticos que os sacramentam so smbolos ou questo de forma. O comando jurdico materializado, portanto, por smbolos lingsticos, que devem ser bem interpretados no momento de se observar tais comandos. Entender o smbolo em si uma questo explicativa ou exegtica, mas, uma vez entendido o smbolo, preciso que aquela mensagem, como finalidade, seja entendida diante de uma circunstncia ftica real, pois que o seu contedo, o seu significado, a sua razo de ser. tcnica processual como mtodo para dizer o Direito O Direito, do ponto de vista hermenutico, est inserido numa problemtica maior, que a da prpria existncia como manifestao de uma essncia transindividual e, portanto, metafsica, na medida em que, comum a todos, no pertence a ningum em particular. Esse absoluto que transmuda-se em cada um, em cada situao particular, o prprio ser, o qual, do ponto de vista jurdico, a base do Justo. O Justo , portanto, natural, pois que independe da vontade, estampada na lei. Mas, a lei, metodologicamente necessria, tambm metodologicamente falha e, por isso, indispensvel, deve ser completada sempre pela interpretao como preocupao de realizao das finalidades. Em outras palavras, a eqidade como demonstrao de que o direito natural do ponto de vista aristotlico, nada mais do que um mtodo hermenutico. Um mtodo para dizer o direito. hermenutica e justia Se colocarmos a questo sobre se o Direito deve visar a lei ou a justia, podemos obter respostas de um ou de outro lado, como j foi visto. Mas, se observarmos a realidade em si, veremos que o Direito um instrumento de realizao do Homem, ou seja, atravs do Direito que o Homem busca resolver os conflitos que o afastam de por em prtica todas as suas potencialidades. E, do ponto de vista orgnico, s o equilbrio pode trazer soluo aos conflitos e permitir a paz. Cabe-nos, assim, apenas uma resposta: o Direito visa a Justia. E Justia, como equilbrio ou eqidade, , exatamente, guardar as devidas propores. Diante do texto frio e esttico, genrico e lacnico, da lei, opera o juiz como animador desse texto sem vida, completando a generalidade esttica da norma, de modo a resolver conflitos e restabelecer a igualdade.

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O Direito, portanto, no s a Norma, seja escrita ou costumeira, e nem s o fato objetivo em si, mas, a valorao de ambos, num contnuo esforo interpretativo ou hermenutico que se chama dizer o Direito.

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NONO TEMA

PORTANTO, A F ASSIM: SE NO VIER ACOMPANHADA DE AO, POR SI MESMA COISA MORTA. (TIAGO, 2, 17)

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HERMENUTICA E DIREITO NATURAL GADAMER: HERMENUTICA COMO APLICAO Como se depreende da obra de Gadamer, na esteira do pensamento de Heidegger, a hermenutica no mera atividade terica, mas busca algo essencialmente "prtico", que vem de encontro com a vida, o que ele chama de "presentificao" do texto, que significa que "compreender um texto sempre aplic-lo". Por isso, os exemplos da hermenutica jurdica e da hermenutica teolgica so esclarecedores54, pois interpretar a "vontade da lei" ou a "vontade de Deus" no so meras formas de se dominar o assunto, mas de o servir. Compreender, portanto, compreender para o presente, porque no se compreende o passado contemplativamente, porm, se traz do passado o essencial para o presente. Aqui, portanto, h um papel de traduo pela hermenutica, cuja "atualizao" de gerao para gerao se d pela tradio. Conhecer, assim, no um fluxo de percepes, mas um acontecimento histrico, um evento, um encontro. Ou, como Heidegger respondeu a Marx, "interpretar j no modificar"? Gadamer parte da avaliao hegeliana de experincia, para uma "inverso ou restruturao" da conscincia, pois a experincia antes negativa: uma coisa no como a tnhamos pensado! Da o sentido de "desiluso" como experincia: para Gadamer, o homem experiente um homem decepcionado, uma vez que a experincia contraria, experincia de finitude. Isso, exatamente, vai contra o idealismo, que acredita influir com a vontade subjetiva na confeco do mundo. O homem experiente conhece os limites de toda antecipao, vale dizer, sabe da experincia de todos os planos, e isto o abre a novas experincias. Ou seja, criativo, no acreditando num "mtodo", que sempre prtico -estabelecido e castrador da criatividade, dogma. A experincia do passado previne o futuro e, assim, constitui-se a experincia a estrutura da interrogao. Querer interrogar querer saber, saber o que no se sabe (docta ignorantia socrtica). certo, contudo, que uma pergunta tem sempre uma orientao prtica na qual est implcita a resposta, ou melhor, as fronteiras dessa resposta-limite, como a chama, e, portanto, preciso saber perguntar! Perguntar corretamente penetrar no tema. A tarefa da Hermenutica tirar o texto da alienao em que se encontra, enquanto forma rgida, escrita, recolocando-o no presente vivo do dilogo, cuja primeira realizao a pergunta e a resposta. O prprio texto pergunta e uma resposta, no sentido dialtico de que cada pergunta gera uma resposta, que gera uma pergunta e assim por diante. A revelao ontolgica que diz que "algo no como pensvamos", se d pela linguagem, a qual, rejeitando-se a "teoria do signo", no tem carter instrumental. Ou seja, a palavra , por si mesma, j significativa, pois no fruto da reflexo, mas da experincia. a figura do "Verbo Divino".54

Cf. Verdade e mtodo, ob. cit., p. 166 e s.

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Podemos salientar que o termo "verbo" significa ao. Deus, no seu absoluto, no age, pois no tem "temporalidade" (passado, presente, perspectiva de futuro), e assim tambm no se caracteriza pelo "distanciamento" que exige uma expresso e uma interpretao. No mundo dos homens e, por isso, para "falar" com eles, insere-se, na pessoa de Jesus Cristo, um homem e Deus, no relativo humano, podendo, ento, "falar" com eles: falar, o "verbo", agir por excelncia, pois fazer o fazer: caracterstica de "comando" da palavra. Por isso, "ter um mundo", como diz Gadamer, ter uma linguagem, de modo que os animais no tm "linguagem", mas meros signos de entendimento. As palavras, porm, so especulativas e toda interpretao especulativa, pois no se pode crer num significado infinito. Isso, alis, caracterizaria o dogma. A hermenutica, assim, universal, pertence ao ser da filosofia, pois "a concepo especulativa do ser que est na base da hermenutica to englobante como a razo e a linguagem.", como salienta R. Palmer55 ao estudar Gadamer. A hermenutica de Gadamer , assim, mais especulativa que dialtica, no querendo ele "entender corretamente", mas profunda e verdadeiramente. Opta pela "verdade" em detrimento do mtodo. importante para Gadamer, nesse contexto, o exemplo da hermenutica jurdica como "aplicao", assim como a presena de Aristteles, o pai do direito natural clssico. Gadamer estuda especialmente Aristteles em relao hermenutica56, comeando por apontar que a "tica" aristotlica "aprender para agir". Aplicar, nada mais do que aplicar uma coisa geral (princpio) a uma situao particular (concreta). Aristteles, segundo Gadamer, ignora a "legalidade" da natureza, reconhecendo sim a mobilidade do comportamento humano. Por isso, faz uma diferena entre "phronesis" (saber moral) e "epistme" (saber tcnico). O saber moral um saber sobre si ("Sich-wissen") e um saber para si ("fr-sich-wissen"), enquanto que o saber tcnico, a "techn", saber algo sobre algo: tcnica do arteso, , diramos, "tecnologia". Enquanto a "techn" pode ser aprendida e desaprendida, (pois "mtodo" conveniente por circunstncias), a "phronesis" no se aprende e nem se desaprende (pois "natural"). Para aplicar o Direito, Aristteles prev a "epieikeia", ou seja, a "eqidade", que o aperfeioamento, a correo, a atualizao da norma, ao passo que no caso do projeto do arteso no se pode fugir do plano sob pena de se renunci-lo. O Direito, para Aristteles, significa leis sempre deficientes em face da complexidade da realidade humana, sendo que o direito natural inaltervel para os deuses, mas varivel para os homens. Como j se disse antes, a verdade absoluta como verdade, mas proporcional como desdobramento na realidade humana57.55 56 57

R. Palmer, ob. cit., p. 215; cf. Verdade e mtodo, cit., p. 332. Verdade e mtodo, cit., p. 153 e s. Cf. acima, o estudo sobre Ontologia.

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Aristteles se posiciona assim contra o convencionalismo extremo, que redunda num positivismo legal, o que, alis, para Maximiliano, fruto do individualismo, e, portanto, do relativismo58. Ao contrrio, portanto, do saber tcnico, que tem um fim terico de projeto ou como diz Habermas, um "agir comunicativo" -, o saber moral, para Aristteles, tem um fim prtico, um agir moral. Por isso, para Aristteles, o chamado "direito natural" no mais que uma crtica, indispensvel em razo da ineficincia do direito positivo. Bem se v, por isso, que no se trata de um direito "revelado" e carente de dogmatizao, seja da natureza estudada pelas cincias naturais, seja de uma orientao confessional, embora com isso tudo, como verdade, se harmonize. por isso que Vandyck Nbrega de Arajo59, ao estudar o direito natural, critica com veemncia a restrio do termo ao significado de "princpios gerais do direito", citando Louis Delbei, para o qual "restringir o direito ao estudo das fontes formais do direito positivo, lei, regra, costume, jurisprudncia, interditando todo julgamento de valor ou toda considerao de finalidade, seria reduzi-lo a uma tcnica"60. Para Aristteles, recorda Vandick, extramos o princpio do justo, da observao da natureza, embora no se trate aqui da "natureza humana" rompida com a verdadeira essncia do "phisikon dikaion", como depois de H. Grotius61. Aristteles prefere a experincia, alis, como assegurou Gadamer, reflexo lgico-matemtica preferida pelos modernos62, pois o Bem (Agathom) inerente (essncia, ousia) s coisas, como ponderou depois S. Toms: "Bodum est in re"63. Anota o autor que M. Villey, in "Philosofie du droit", p. 125, assevera que Heidegger descobriu a chave do conceito clssico do direito natural 64, o que, portanto, nos atualiza com a sua tradio. Podemos concluir, dessa forma, que para Aristteles, o mal, "kakia", fruto da no observao da virtude ("aret") da prudncia, porque o que conforme a natureza, h de ser obedecido, enquanto que a necessidade de coao, violncia, para a realizao de uma deciso ou ordem, significa que no de acordo com a natureza65.

58 59

Cf. C. Maximiliano, ob. cit., p. 18. Vandyck Nbrega de Arajo, Fundamentos aristotlicos do direito natural, Porto Alegre, Srgio Antonio

Fabris, 1988. O autor informa, na p. 13, que segundo Michel Villey, h 255 combinaes de 17 significados da palavra natureza com 25 correntes existentes sobre o direito natural.60 61 62 63 64 65

Ob. cit., p. 12. Ob. cit., p. 13-14. Ob. cit., p. 14. Ob. cit., p. 22. Ob. cit., p. 47, nota 16. Cf. Fsica, de Aristteles.

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Vandick recorda que "natureza", para o Estagirita, o impulso inato para o crescimento obedecendo a um propsito, numa harmonia dos meios com os fins 66, enquanto que "Metafsica" no o estudo do que est "atrs" da fsica (natureza), mas o estudo da realidade como um todo, ou seja, uma ontologia, cincia do ser. , assim, uma dialtica, na medida em que tudo est em movimento (devir para atualizao de sua potncia), j que s o "Motor imvel" ato puro67. Heidegger aponta, nesse sentido, para uma "superao" ou cumprimento da metafsica e no sua destruio. J para Kant, a metafsica equivalia a um ceticismo quanto coisa em si, acabando por dizer que o "ser em si" incognoscvel, redundando num relativismo sofista. E isso gera um dogmatismo, pois, no chegando verdade, inventa-se uma, para satisfao da necessidade de segurana. O dever-ser, porm, fruto da vontade, no se originando necessariamente da natureza, e, por isso, para ser obedecido, precisa ser coercvel, ou seja, acompanhado da ameaa de um mal para quem no obedece. Aristteles diferenciava, do mesmo modo que a "tcnica" da "tica", um direito por convenincia do direito natural, como j se viu. O direito natural vlido em todo lugar e ocasio, pois o fogo queima na Prsia como na Grcia, mas o direito positivo vlido somente em determinado estado, uma vez que depende da convenincia. Mas o importante que para o filsofo, no h anttese entre um e outro, sendo que o direito natural, perfeito porque da natureza, deve suprir as falhas do outro, fruto da vontade do homem e sujeito s vicissitudes das falhas humanas. Por isso, entende Vandick, que os dois alicerces do Direito Natural aristotlica so o significado de "physis e a sua tica68. Se a particularizao do direito como cincia autnoma, comea com Grotius69, completa-se depois com Thomasius, que estabeleceu definitivamente, sugere Kant, a dicotomia entre direito e moral70. Para Aristteles, porm, "Ethos" e "Physicon Dikaion" so inseparveis, ao passo que para os romanos, o direito era realidade ontolgica, regente da ontologia social do homem cujo objetivo a realizao da justia71. Podemos dizer, assim, que o direito romano a prtica da filosofia grega72, ou, como o prprio Vandick assevera, o direito romano o exemplo vivo da aplicao do "T Dikaion" de Aristteles73, pois havia concludo que s o direito natural cientfico, uma vez que66 67 68 69 70 71 72 73

Ob. cit., p. 28. Ob. cit., p. 33. Ob. cit., p. 39. Cf. Dilthey, Essncia da filosofia, cit., p. 32. Vandick, ob. cit., p. 78, nota 16. Ob. cit., p. 65. Cf. Aloysio Ferraz Pereira, Histria da filosofia do direito, So Paulo, RT, 1980. Ob. cit., p. 91.

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o direito positivo fruto das convenes74. Como se d, portando, a prtica hermenutica aristotlica da qual Gadamer se socorre? Gadamer procura em Aristteles, a fundamentao de uma hermenutica como verdade, que interprete a vida e nela se insira. Por isso, recorda o exemplo da aplicao do direito. Segundo Aloysio Ferraz Pereira75, Aristteles diferencia direito e moral diferente de Plato -, colocando a moral na classificao da virtude total, ou seja, "justia universal", e o direito como virtude parcial ou justia particular. Como justia particular, divide-se em distributiva (que usa a proporo geomtrica) e corretiva ( que usa a proporo aritmtica). Por isso, trata-se o direito natural de um direito vivo, e no natureza morta da era cartesiana, no sendo um produto, mas resulta de um esforo de descoberta76, sendo importante, por isso, a retrica dialtica dos sofistas como mtodo de pesquisa77. Ser justo, nesse sentido, concorrer para a realizao do ser, conforme a sua causa final78, embora a imperfeio do conhecimento do direito natural torne necessrio o direito positivo e a dialtica e pesquisa experimental79. Alis, assegura Aloysio, a necessidade da lei positiva se deve tambm porque, como Aristteles percebeu, mais fcil encontrar legisladores prudentes (no momento da elaborao da lei) do que juizes dotados das qualidades indispensvel distribuio da justia80. Isso eqivale ao ditado segundo o qual, pela inverso da aplicao, prefervel ms leis e bons juizes, do que boas leis e maus juizes, pois o juiz bom melhora a lei ruim e o juiz ruim piora a lei boa. Dessa maneira, a natureza a fonte e limite de poder, pois a "eqidade" devida necessidade de corrigir a rigidez e os desvios das leis positivas, de modo que d ao juiz a autoridade para interpretar a lei segundo o princpio natural, e isso Hermenutica81. Mas, se a lei positiva no exprime o justo natural, j no visa o bem comum e a promoo da virtude no mais lei, acentua Aloysio, j que, segundo Aristteles, "j no realiza a funo prpria da lei" (Retrica, I, 15, 7), perdendo a sua validade e podendo ser infringida82. O direito natural no obedincia passiva lei, mas permite a pesquisa a fim de determinar o direito na observao e estudo da natureza, finaliza o autor83, que74 75 76 77 78 79 80 81 82 83

Ob. cit., p. 89. Histria da filosofia do direito, cit., p. 63 e s. Ob. cit., p. 81. Ob. cit., p. 78. Ob. cit., p. 82. Ob. cit., p. 83. Ob. cit., p. 84. Ob. cit., p. 96. Ob. cit., p. 87. Ob. cit., p. 88.

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resume assim a teoria clssica do direito natural: - no formal e nem vazio (opese noo subjetiva do direito natural estico e ao formalismo racional do kantismo) - no rgido, mas mtodo experimental - no gratifica os cidados com um ilusrio sentimento de segurana como prprio das ideologias - no deriva do Estado (no voluntarismo e nem positivismo jurdico) - no dualismo de regras (com pretenso de situar-se acima do direito positivo) - no fonte nica, complementando-se com o direito positivo - no se confunde com a moral - no vago e impreciso (possibilita decises prticas) - no ideal e utpico (Plato), mas realista - no relativismo, porm mais um "relacionismo"84. Para um direito natural, a aplicao hermenutica e no exegtica. Ou seja, "s a hermenutica", conclui Aloysio, "no sentido dilatado que lhe damos, pode completar a experincia e a viso dos fenmenos jurdicos em sua totalidade e na inteireza de seu sentido. Ela se funda, ou melhor, se aprofunda na existncia (Heidegger e seus epgonos) e na praxis (Marx e seus discpulos no-dogmticos)"85. Pois, com efeito, "a hermenutica subversiva ou, se se preferir, devolutiva: faz 'voltar de baixo para cima' a estrutura originria do ser humano", a "sua precria plenitude86. Como entendeu bem Gadamer, a tarefa de interpretar a lei a tarefa de concretiz-la diante do caso particular87, pois compreender um trabalho de concretizao88 e o que autoriza o jurista, na funo de juiz, diante de um texto legal, a completar o direito. isto que lhe d eficcia89. O testemunho da lei brasileira em favor da eqidade interessante. O art. 126 do Cdigo de Processo Civil ora em vigor, diz que "o juiz no se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe- aplicar as normas legais; no as havendo, recorrer analogia, aos costumes e aos princpios gerais de direito." Percebe-se, de sua redao, que a lacuna ou obscuridade so vistas como exceo90, ou seja, que faz perdurar ainda o desgastado princpio in claris cessat interpretatio, da escola exegtica. Por isso que s a deciso "praeter legem" (na

84 85 86 87 88 89 90

Ob. cit., p. 88-89. O direito como cincia, So Paulo, RT, 1980, p. 106-107. Ob. cit., p. 107. Verdade e mtodo, cit., p. 172. Ob. cit., p. 178. Ob. cit., p. 184. Sobre a interpretao desse art., cf., por exemplo, Celso Agrcola Barbi, Comentrios ao Cdigo de Processo

Civil, Rio, Forense, 1983, vol. I, p. 517 e s.

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falta de norma legal) aceita pelos juristas de modo geral, mas no a deciso "contra legem", ou seja, contra lei91. Coerente com isso o art. 127, do CPC, que diz: "O juiz s decidir por eqidade nos casos previstos em lei." Segundo Celso Agrcola Barbi, h uma tendncia a se normatizar a eqidade, embora no se exclua a eqidade fora dos casos autorizados por lei, porque o direito continua sendo ars boni et aequi: ao aplicar a lei no caso concreto, deve-se atenuar o rigor excessivo que trouxer conseqncias indesejveis: a eqidade como meio de interpretao para uma justa aplicao ao caso concreto no depende de autorizao expressa do legislador, a qual s necessria em casos em que o juiz deva aplicar diretamente a eqidade em lugar da lei92. A lei de Introduo ao Cdigo Civil, que a que rege os princpios gerais de direito, nos arts. 4o. e 5o., manda que o juiz no deixe de julgar em hiptese alguma e que atenda sempre aos fins sociais a que a lei se dirige, assim como s exigncias do bem comum. J o art. 5o. da lei n. 7.244/84, que introduziu os chamados "Juizados especiais de pequenas causas", diz que nas causas cuja competncia for de tais juizados, s se decidir por eqidade! Outrossim, mais recentemente, a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispe sobre juizados especiais cveis e criminais, consagra o princpio da informalidade dos procedimentos referentes s causas de competncia desses juizados.

91 92

Cf. Barbi, ob. cit., p. 519. Ob. cit., p. 521.

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TEORIA DO JUSTO PROPORCIONAL Recordando a figura do ano que se senta nos ombros do gigante, podemos dizer que a filosofia constante questionamento a partir de respostas que se tornam novas perguntas. Por isso que a sua caracterstica no a posse de "uma verdade" ou conhecimento, mas a busca da verdade, que se fenomenaliza nas condies humanas. Aristteles, na "tica a Nicmaco", L. V, 3, exps a respeito da "justia" como uma proporo, de modo que, restabelecendo a harmonia, traz a unio dos homens93 enquanto que Heidegger, na sua "Introduo metafsica", procurou esclarecer a noo de "dike" como aquilo que ajunta atravs do logos, o nomos inteligente, e possibilita a realizao do ser do homem que a convivncia94. Preambularmente, vamos questo da filosofia e da verdade. Heidegger procurou responder a questo fundamental, acerca do que a filosofia. A pergunta "que isto - a filosofia?" a pergunta fundamental, pois ao tentarmos respond-la, j estamos fazendo filosofia95. Concordamos, ento, que filosofia , antes de tudo, a busca incessante da verdade e nos remetemos ao ser. A pergunta sobre o ser comea, porm, com a pergunta sobre o no-ser, o "nada". Na sua "Introduo metafsica96, Heidegger comea perguntando "porque h simplesmente o ente e no antes o Nada?" A discusso metafsica se d em volta da idia de "nada", que para Parmnides um absurdo. Realmente, esse nada que provoca o espanto que torna possvel a filosofia: pergunta-se "porque no de outro jeito?" Ora, quando dizemos sobre o nada, estamos afirmando um ser, o "nada". Se o "nada" , evidentemente alguma coisa, o ser, e no pode "no-ser". Se o nada , no "nada". ser. Numa proposio matemtica, sendo que sinais iguais resultam sempre positivos, assinalando o "nada" com sinal negativo (-) e o ser com sinal positivo (+), temos que: +/+ = + -/- = + o que significa que, se substituirmos: ser/ser = ser (uma proposio positiva acerca do ser ser) no-ser/no-ser = ser (uma proposio negativa acerca do no-ser ser).93 94 95

tica a Nicmaco, L. V, 5. Introduo metafsica, trad. Emanuel Carneiro Leo, Rio, Tempo Brasileiro, 1987. Qu'est-ce que la philosophie?, a questo; cf. coleo "Os pensadores", trad. Ernildo Stein, Nova Cultural, Introduo..., p. 33.

So Paulo, 1989, vol. Heidegger, p. 13 e s.96

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Ou seja, com Herclito, podemos repetir: "Nada , tudo est por se fazer". Falar "nada ", significa, numa redundncia, "nada no ". A "unidade dos opostos" permite a figura do fogo eternamente vivo de que fala Herclito e que considera o "nada" como uma possibilidade do ser. O "no-ser", portanto, nada mais do que a possibilidade do ser do homem vir-a-ser. A se funda a temporalidade, pois o homem no um ser absoluto, mas se equilibra na linha tnue do momento, se atualiza, presentifica-se, entre o que chamamos passado e o que chamamos futuro. O passado o "no-ser" que j foi e o futuro o "no-ser" que ainda ser. Uma folha em branco um "nada" sem significado. A partir de um trao e de outro comea a surgir, por contraste, uma figura, uma imagem. O branco da folha o no-ser do trao e o trao o no-ser da folha em branco. a delimitao, a individualizao, a particularizao dentro do "tudo", do absoluto, que possibilita a fenomenalizao do ser, ainda que este seja em si o tudo. H portanto, uma proporo entre o "tudo" e o "nada", entre o "ser" e o "noser". Resta da que a verdade relativa? Concordamos que a filosofia a busca da verdade, mas se a verdade relativa, que filosofia possvel, sendo uma poro de palpites pessoais? A individualidade do homem leva a um conceito de verdade como relativa, como se cada um tivesse a sua prpria verdade, o que leva ao desnimo de filosofar. O ser absoluto, porm, se demonstra em cada momento na realidade que se dinamiza um constante devir. Por isso, a filosofia tambm a constante busca da verdade, pois esta, como "desvelamento" do ser, se caracteriza em cada caso particular. Partindo do princpio da identidade utilizado por Heidegger97, podemos afirmar que A = A. verdadeira a proposio que diz conforme a realidade. verdadeira a proposio que afirma uma identidade como esta, A = A. Se numa situao ideal (T), A = A, temos: T:A=A (T significa A igual a A) Logo, numa situao nova, que denominamos T1, para mantermos a igualdade e, pois, a identidade, temos: T1 : A1 = A1 e assim por diante. Se em T, A = A, impossvel que em T1, A = A, ou A1 = A, mas guardada a proporo, a fim de no se alterar a perfeio da proposio, os componentes se ajustam. Utilizando a razo matemtica, podemos apontar: 1/2 = 2/4 = 4/8 etc.97

Identidade e diferena, col. Os pensadores, vol. cit., p. 139 e s.

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Trata-se sempre da mesma proporo (no exemplo, de metade), inobstante se alterem os fatores, pois se alteram sempre proporcionalmente. No se trata de uma matematizao do pensamento, mas da prpria razo que sempre lgica. "Logos" a realizao do ser, no entendimento de Herclito. Se muda o aspecto da realidade, para que uma proposio se mantenha verdadeira, deve mudar seus fatores na mesma proporo da mudana do aspecto da realidade. Conclumos, portanto, que a VERDADE A PROPORO, ou seja, a verdade proporcional. Bem, o que isso tem a ver com o direito? O conceito de direito sempre se resvalou no conceito metafsico de verdade, pois a partir da desconfiana na verdade que se partiu, ceticamente, para frmulas que proporcionassem uma segurana artificial. Essa viso ctica, relativista, da verdade, no aceitando a verdade absoluta, como "desvelamento" do ser, ou seja, como ontologia, teve que construir instrumentos de garantia de uma "certa verdade", atravs da dogmatizao de determinados valores, excluindo quaisquer elementos metafsicos98. Na realidade do direito, temos a concorrncia de trs fatores, segundo a sintetizao de Miguel Reale na Teoria tridimensional do direito"99. Segundo essa teoria, da tenso entre fato e valor que resulta a norma100. Quer dizer que o fato social, a realidade, suscita uma interpretao segundo valores, que se consubstancia na norma legal. Fora a crtica sobre a generalizao da essencialidade da norma, podemos concordar que normalmente esto presentes os trs requisitos, pois mesmo quando no h norma escrita, a interpretao na aplicao do direito pode se equiparar a uma norma, como ocorre no direito anglo-americano. Dessa maneira, estabelece-se uma proporo que pode ser escrita de trs formas, de acordo com o que se quer especificar: F:V=N ou V:F=N ou N:F=V onde: F = fato, V = valor e N = norma. Isso significa que a relao mantm um princpio de equilbrio ou de proporcionalidade que, para ser mantido, deve fazer mudar todos os seus elementos assim que um deles mudar, e na mesma proporo da mudana deste. Teramos, ento:98

O criticismo de Kant, por exemplo, ao concluir pela impossibilidade de se conhecer a verdade, sups a Cf. Teoria tridimensional do direito, de Miguel Reale, Saraiva, So Paulo, 1968. Ob. cit., p. 74.

separao do direito da moral, a fim de que se garantisse, pela norma posta, uma conduta conveniente.99 100

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F1 : V1 = N1 V1 : F1 = N1 N1 : F1 = V1 e assim por diante. O fato social, produzido pelo homem, dinmico como o ser do homem na histria e a sua interpretao se d valorativamente, eticamente, na mesma proporo de sua dinamizao. A norma, contudo, mesmo aps espelhar um determinado valor tico, mantm-se, por sua prpria natureza dogmtica, inflexvel. Portanto, para a manuteno da proporcionalidade entre fato, valor e norma, preciso que se observe o fato, que tem primazia como realidade, funcionando o valor como princpio inteligente na relao, de modo a interpretar a norma ou o que a valha (argumentos doutrinrios jurisprudenciais, p. ex.) que sempre regra geral imutvel (anterior), estabelecendo-se a devida proporo na sua aplicao ao caso concreto. S assim a verdade da proporo inicial ser mantida. Se uma norma N1, num primeiro momento em que fato F1, o sentido axiolgico da aplicao daquela em relao a este dever ser V1. Numa segunda circunstncia, em que fato diverso, ou seja, F2, a valorao dever ser outra, V2, aplicando-se a norma com essa nova valorao, ou seja, N2. Isso "atualizar", presentificar ou tornar oportuno. Portanto, justa no a norma, assim como justo no o fato. A valorao, que o ponto inteligente de ligao dos dois fatores que torna justa a relao de ambos, ou seja, JUSTA A PROPORO101. Disse que o ano sobe nos ombros do gigante e assim pode enxergar mais longe. Mas no fazemos mais que explicitar nossos antepassados, os quais, na filosofia, se realmente buscaram a verdade, so sempre nossos contemporneos. A proporcionalidade, em termos de filosofia, parece atender ao princpio da verdade que Heidegger exps, e, em termos de direito, parece estar de acordo com o que Aristteles chamou de justo proporcional102. A essncia (ser) do homem um "sendo" na temporalidade. Como Heidegger chama de "ente"103. O corpo um objeto que delimita, traz a idia de finito (que supe um noser si mesmo) que leva a individualidade e egosmo. A isso corresponde uma diversidade. So objetos uns dos outros na coexistncia. A existncia um traado no papel em branco.101

Cf. adiante a respeito da definio heideggeriana de "xinon", conforme Introduo metafsica, p. 156; cf.

ainda a respeito do Fragmento 114, de Herclito, na col. Os pensadores, vol. Pr-socrticos I, p. 62, inclusive a nota 21, sobre "xyn ni" que significa "com inteligncia" e se aproxima foneticamente do adjetivo "xyni" que se traduz por "o que--com, comum".102 103

tica a Nicmaco, Livro V, 3. Cf. a respeito da traduo para o portugus do termo alemo "seindes" a nota n. 1 de Emanuel Carneiro Leo,

o tradutor de Introduo metafsica, vol. cit., p. 77.

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Por outro lado, a essncia (ser) em si atemporalidade, inteligncia que se anima e, idntica a si mesma, idntica universalidade. comunho ou identidade, pois idntica ao tudo. A "idia" de alma corresponde a expanso e infinito. Como que se conjugam dialeticamente esses contrrios? Ser indivduo significa renunciar ao que mais no se , ao "no-ser". "Nada" a possibilidade de ser o que ainda no se (potencialidade), pois o homem est sendo num determinado tempo e lugar, o que supe a renncia de todos os outros tempos e lugares: presentifica-se entre um no-ser do passado e um noser do futuro. Um constante devir. Poderamos esclarecer isso pela seguinte frmula: ser do homem = como o homem onde: ser do homem = sendo e como = ser. Substituindo, temos o seguinte: sendo = o que vale dizer: sendo o que se , ou autenticidade. No h, portanto, uma dicotomia corpo-alma, mas a harmonia (justo) entre ser e no-ser, "aquilo que se torna", a "tempestade calma" da dialtica indivduo/universo, finito/infinito, ego/comunho, que a filosofia explica, mas s a arte realiza. Para Hlderlin, o "uno que em si mesmo se diferencia", de Herclito, " a essncia da beleza e antes de ter sido encontrada no havia filosofia."104. Por sua vez, "logos" a reunio constante, a unidade de reunio, consistente em si mesma, do ente105. Para Heidegger, o termo grego "dike", mais do que "justia no sentido jurdico", se traduz por "juntura"106 e por isso o "eon", o ente , em sua essencializao, "xynon", presena reunida107. Um tal "xynon", que o que rene tudo em si e o mantm junto, ", segundo o Fragmento 114, o "nomos" para a "polis", a legislao (legislar entendido aqui como reunir), a estrutura interior da "polis", no um universal, no algo, que flutua sobre tudo e ningum apreende, mas a unidade originariamente unificante do que tende a separar-se"108. Finalmente, o "nomos" no "lei" no sentido jurdico, assim como "dike" no justia nesse sentido109. O "logos" essa liga que ajunta o que tende a se104

Para o poeta Hlderlin, beleza significa ser. Cf. Ernildo Stein, no vol. Heidegger, da col. Os pensadores, p. Introduo..., p. 182. ntroduo..., p. 155. Idem. ntroduo..., p. 156; cf. o Fragmento 114 de Herclito em "Os pensadores", vol. Pr-socrticos I, p. 62 e ntroduo.., p. 182.

11.105 106 107 108

nota 9, acima.109

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desprender. harmonia, disciplina e beleza, cosmo, identidade, do que tende a se diferenciar em caos. Os modernos no entenderam isso. Quiseram manter-se na individualidade para preservar a identidade e tiveram que se socorrer do artifcio da coero. O que, por natureza e verdade, comunho e realizao do ser do justo, ficou, na cegueira do Iluminismo, no campo ainda do individual. Para essa circunscrio pobre do egosmo, a lei ser quando muito, "ao comunicativa" (Habermas). Mas duvidoso que ainda isso se recupere, pois "o dizer e ouvir s so justos, quando se orientam, previamente, e em si mesmos, pelo Ser, o Logos"110.

110

ntroduo..., p. 157.

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HISTRIA DA HERMENUTICA JURDICA NO BRASIL No Brasil111, de modo bastante sintico, so mencionados como normativistas Augusto Teixeira de Freitas, Francisco de Paula Batista, Pimenta Bueno e Lafayette Rodrigues Pereira112, assim como na linha do sociologismo jurdico figuras como Tobias Barreto, Silvio Romero, Pedro Lessa, Joo Arruda e Pontes de Miranda113 e tambm Clvis Bevilqua, enquanto que os "eticistas" so representados pela corrente tomista, desde Jos Soriano de Souza at Alceu de Amoroso Lima, passando por Joo Mendes Junior, Vicente Ro, Alexandre Correia, Armando Cmara, Leonardo Van Acker, Rui Cyrne de Lima, Jnatas Serrano, Alves da Silva e Jos Pedro Galvo de Souza114. Evidentemente, so estes nomes dentre outros, pois falta uma classificao mais bem sucedida e atualizada acerca de nomes importantes e recentes do pensamento nacional, especialmente do pensamento jurdico115. A influncia do pensamento normativista, por vezes, maior no incio da fase dos estudos jurdicos no Brasil, inobstante a presso do sociologismo da escola do Recife, por exemplo, se faa presente, e se sinta, de um modo geral, a presena do pensamento tomista na filosofia brasileira. Nesse clima, a hermenutica jurdica no Brasil tem espao pequeno como matria de obra literria. A histria de obras dedicadas a esse assunto comea pela obra do tempo imperial de Francisco de Paula Baptista, denominada "Compndio de hermenutica jurdica", publicada no Recife em 1860, e que se tornou o compndio oficial da faculdade de direito. Essa obra, apesar da no especializao do autor, junto com a denominada "Cinco lies de hermenutica jurdica", de Joaquim Igncio de Ramalho, o Baro de Ramalho, que , na verdade, um comentrio daquela, para aplicao na faculdade de direito de So Paulo,111

No o caso de se desenvolver aqui uma "histria do pensamento no Brasil, nem mesmo do pensamento

jurdico ou jusfilosfico. A respeito da Histria do pensamento no Brasil, clssica a obra do padre Leonel Franca, S.J., Noes de histria da filosofia, Rio, Agir, 1990, 24. ed., p. 263-326, sendo que no volume indicado conta-se com notas e um suplemento do padre Henrique Vaz, S.J.; sobre o assunto, pode-se encontrar tambm a obra As idias filosficas no Brasil, por Adolpho Crippa e outros, So Paulo, Convvio, 1978, alm da coleo Histria do pensamento, Nova Cultural, So Paulo, 4o. vol., p. 713-723, e, especificamente, a obra de Miguel Reale, Filosofia em So Paulo, editado pelo Conselho Estadual de Cultura e Comisso de Literatura de So Paulo, 1959, dentre outras; sobre a histria do pensamento jurdico, da filosofia do direito e do direito de modo geral, encontram-se, entre outras, a Histria do direito nacional, de Martins Junior, da Cooperativa Editora e de Cultura Intelectual, Pernambuco, 2. ed., 1941, alm das obras citadas de A. L. Machado Neto, de Miguel Reale, inclusive a Filosofia do direito e de Aloysio Ferraz Pereira.112 113 114 115

M. Reale, Filosofia do direito, cit., p.410. Idem, p. 436. Idem, p. 483. Um dos maiores nomes do pensamento brasileiro, sem dvida Miguel Reale, mas a definio de suas

caractersticas, devido ao "ecletismo" que o caracteriza torna-se difcil, havendo quem o denomine um "culturalista". Por falta de uma obra enciclopdica, porm, muitos outros nomes importantes no so citados, mas, por si mesmo fazem histria.

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perduraram como nicas at o surgimento, em 1923, do livro de Carlos Maximiliano116. Interessante analisar as duas obras em conjunto. O professor Paula Baptista se prope, no prlogo, a "tirar a hermenutica jurdica da confuso, em que tem estado com o falso ttulo de sistema", dividindo a sua obra em duas partes, a geral e a especial. Na primeira, d as noes a respeito de hermenutica, que entende ser o sistema de regras para a interpretao das leis 117, e na segunda parte, discorre a respeito da interpretao, que para ele a aplicao dessas regras, a fim de se expor o verdadeiro sentido de uma lei obscura118. V-se da, que partidrio da mxima in claris cessat interpretatio, o que merece uma observao crtica do seu comentarista. O Baro de Ramalho entende que toda lei precisa ser interpretada e, citando Savigny, diz que interpretar reconstruir o pensamento do legislador, o que impede que restrinja a interpretao como sendo apenas nos casos de lei obscura 119. Concordam ambos, por outro lado, que a interpretao exegtica, pois o que se busca a vontade do legislador, como Paula Baptista explicita no pargrafo segundo da obra120 e Ramalho o confirma dizendo que o estudo da hermenutica jurdica se justifica para se saber, quando transformada em lei, a vontade do legislador121. Por isso mesmo, avisa aos seus alunos: "No deve, pois, o intrprete interpretar as palavras da lei conforme o sentido que elas tm na poca da interpretao, mas sim de conformidade com a significao que elas tinham na poca em que escreveu o legislador, porquanto s nesse sentido poder ele ter empregado as palavras"122. Importante notar que, pelas suas palavras, est demonstrado que ele estudou o mtodo histrico-evolutivo, assim como, ao citar Savigny, citando-o como um dos que negam o direito natural, demonstra que discute sua obra e, assim, o historicismo123. interessante notar que, nesse alborecer da histria jurdica brasileira, os nossos juristas ainda se sentem tributrios dos portugueses, dos quais "temos recebido quase todos os defeitos de sua jurisprudncia", segundo Ramalho124, ao passo que Baptista ainda fundava os princpios de sua hermenutica na Lei da Boa Razo, de 1769, que era a melhor seno a nica, a respeito de interpretao e que fala em direito natural. Essa "boa razo", segundo ele, a razo dos esticos, que116

Sobre essas duas primeiras obras, interessante consultar, alm dos prprios textos, a apresentao das Cinco

lies feita por Moacir Lobo da Costa, no vol. editado pela Saraiva, So Paulo, 1984, p. 85. O vol. contm ainda o Compndio.117 118 119 120 121 122 123 124

Compndio..., p. 3. Idem, p. 4. Cinco lies..., p. 97. A numerao do volume citado. Compndio, p. 4. Cinco lies, p. 91. Idem, p. 114 (pargrafo XXIII). Compndio, p. 15. Cinco lies, p. 95.

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inspirou os romanos e os cristos125 e a que deve nortear a interpretao jurdica no seu tempo. Ao citar as fontes subsidirias do direito, Paula Baptista ainda est no tempo das antigas Ordenaes do Reino, vigorando as Ordenaes Filipinas no Brasil, razo pela qual ainda se refere, alm dos usos e costumes, ao direito romano, ao direito cannico, ao direito romano-cannico, e s obras dos doutores (os antigos glosadores), num verdadeiro pandectismo brasileiro, embora mais flexvel do que o europeu, admitindo, alm do direito natural, tambm a eqidade, como sugere Ramalho no comentrio ao pargrafo XXV do Compndio, a respeito de textos contraditrios126. Nessa poca, contudo, Tobias Barreto e Silvio Romero j surgiam com a chamada Escola do Recife, negando a tradio lusitana e querendo fundar um pensamento nacional prprio dessa histria que se iniciava e onde as antigidades das ordenaes portuguesas, por elas mesmas, j no tinham fora suficiente para sobreviver. Por outro lado, se Lafayette Rodrigues Pereira, outro clebre jurista do Imprio, contemporneo dos citados hermeneutas (1834-1917), prximo da evoluo do direito burgus, identificava-se com a escola da Exegese e com o racionalismo kantiano, como observa o professor Miguel Reale em "A filosofia de Kant no Brasil", Antonio Joaquim Ribas (1819-1890), professor em So Paulo, romanista e discpulo do alemo Jlio Frank, foi contemporneo e crtico, sobretudo de Paula Baptista127. Ainda nessa poca, para mostrar o seu potencial, Augusto Teixeira de Freitas (1816-1883), tambm estudioso do direito romano, onde busca as "vigas mestras", como reala o professor Aloysio Ferraz Pereira em "Augusto Teixeira de Freitas e il diritto latinoamericano"128, para a observao da realidade social e histrica, sob a influncia de Savigny, recorrendo sempre natureza das coisas, insurgindo-se contra o racionalismo e o empirismo radical. So dois pensadores, a bem se ver, que no se do bem com a mera exegese, contrariamente aos inauguradores da teoria hermenutica no Brasil. Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, por sua vez, com o ttulo "Hermenutica e aplicao do direito"129, d o prximo passo na histria da hermenutica brasileira, cuja anlise breve faz no prefcio primeira edio, datada de 1924. Depois de Paula Baptista, diz ele, "surgiu, prevaleceu e entrou em declnio, pelo menos parcial, a Escola Histrica", transformando-se no "sistema HistricoEvolutivo ou s Evolutivo afinal (Jhering)", at o aparecimento da "corrente da livre indagao (proeter e contra legem), "talvez o evangelho do futuro", e, enfim, a125 126 127

Compndio, p. 12. Cinco lies, p. 118; cf. Christiano Jos de Andrade, A hermenutica jurdica no Brasil, So Paulo, RT, s/d. Como o relata Carlos Maximiliano na pgina 35 do seu Hermenutica e aplicao do direito" que adiante Extrato referente ao congresso na Universidade de Roma, publicao Cedam-Padova. Carlos Maximiliano, Hermenutica e aplicao do direito", Rio, Forense, 10. ed., 1988.

referiremos.128 129

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escola alem do Direito Livre130. Elege, porm, a corrente do "Evolucionismo teleolgico", "aceita pela maioria dos juristas contemporneos", como ao final rela