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MARTINS, Jos de Souza. O tempo daUSP, S. Paulo, 8(1): 25-70, maio detempo histrico da frente de expanso Tempo Social; Rev. Sociol. fronteira. Retorno controvrsia sobre o 1996. A R T I G O e da frente pioneira. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 8(1): 25-70, maio de 1996.

O tempo da fronteiraretorno controvrsia sobre o tempo histrico da frente de expanso e da frente pioneiraJOS DE SOUZA MARTINS

RESUMO: O tema da fronteira um tema recorrente na literatura brasileira de Cincias Sociais. Apesar das tentativas de alguns antroplogos de importar as idias que F. Turner desenvolveu para explicar o deslocamento da fronteira nos Estados Unidos, e que tratam da influncia da fronteira na formao do carter nacional americano, essas idias, a rigor, no se aplicam no caso brasileiro. Gegrafos e antroplogos, entre os anos 30 e 50, realizaram pesquisas de campo que se tornaram essenciais para uma concepo sociolgica da fronteira enraizada no que h de historicamente singular e sociologicamente relevante no caso brasileiro. a partir dessas referncias que o autor formula a sua tese de que a fronteira , simultaneamente, lugar da alteridade e expresso da contemporaneidade dos tempos histricos. A unidade do diverso, pressuposto metodolgico da dialtica, encontra a o lugar mais adequado e mais rico para a investigao cientfica.

UNITERMOS: fronteira, tempo histrico, tempo de fronteira, movimentos sociais, peonagem, frente de expanso, frente pioneira.

om razo observa Alistair Hennessy que as sociedades latino-americanas ainda esto no estgio da fronteira (Hennessy, 1978, p. 3). Ainda se encontram naquele estgio de sua histria em que as relaes sociais e polticas esto, de certo modo, marcadas pelo movimento de expanso demogrfica sobre terras no ocupadas ou insuficientemente ocupadas. Na Amrica Latina, a ltima grande fronteira a Amaznia, em particular a Amaznia brasileira, como assinalou Foweraker (1982, p. 11), ou ltima fronteira terrestre que desafia a tecnologia moderna,

C

Exposio de abertura da Conferncia The Frontier in Question, promovida pelo Departamento de Histria da Universidade de Essex, Colchester, Reino Unido, 21 a 23 de abril de 1995.

Professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. Fellow de Trinity Hall e Professor Titular da Ctedra Simn Bolivar da Universidade de Cambridge no ano acadmico de 1993/94 25

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como observou Posey (1982, p. 89). Desde o incio da Conquista foi ela objeto de diferentes movimentos de penetrao: na caa e escravizao do ndio, na busca e coleta das plantas conhecidas como drogas do serto, na coleta do ltex e da castanha. A partir do golpe de Estado de 1964 e do estabelecimento da ditadura militar, a Amaznia transformou-se num imenso cenrio de ocupao territorial massiva, violenta e rpida, processo que continuou, ainda que atenuado, com a reinstaurao do regime poltico civil e democrtico em 1985. A histria do recente deslocamento da fronteira uma histria de destruio. Mas, tambm uma histria de resistncia, de revolta, de protesto, de sonho e de esperana. A nossa conscincia de homens comuns e tambm a nossa conscincia de intelectuais e especialistas se move no territrio dessa contradio. Como tantos outros pesquisadores, tambm fui e tenho sido testemunha desse movimento, que acompanhei pessoal e diretamente num ritmo imprprio para a pesquisa sociolgica moderna, o ritmo da pacincia, da observao demorada e reiterada. Meu trabalho certamente diverge dos trabalhos costumeiros sobre a fronteira, do pesquisador com prazo e pressa, que precisa concluir sua tarefa nos limites de uma cronologia apertada. E que, muitas vezes, deve limitar sua pesquisa de campo a lugares acessveis, pacficos e pouco representativos da conturbada realidade da fronteira, que j no so propriamente fronteira. Ou que, sobretudo, pode faz-la somente muito depois das ocorrncias mais caractersticas e violentas da vida social na fronteira, quando a rigor a populao local j no se encontra na situao de fronteira1. A histria contempornea da fronteira, no Brasil, a histria das lutas tnicas e sociais. Entre 1968 e 1987, diferentes tribos indgenas da Amaznia sofreram pelo menos 92 ataques organizados, principalmente, por grandes proprietrios de terra, com a participao de seus pistoleiros, usando armas de fogo. Por seu lado, diferentes tribos indgenas realizaram pelo menos 165 ataques a grandes fazendas e a alguns povoados, entre 1968 e 1990, usando muitas vezes armas primitivas como bordunas e arco-e-flecha. Houve ocasies em que diferentes tribos fizeram ataques em diferentes lugares no mesmo dia. Nestes ltimos trinta anos, diferentes faces da tribo Kayap lanaram continuados ataques s fazendas de sua regio, inicialmente para rechaar os civilizados e depois de pacificados para impedir que continuassem invadindo seu territrio. Em 1984, os Kayap-Txukahame sustentaram uma verdadeira guerra de 42 dias contra as fazendas e o governo militar, que culminou com o fechamento definitivo de extenso trecho da rodovia BR-080, maliciosamente aberta atravs de seu territrio para possibilitar futura invaso das terras por grandes fazendeiros. Nessas lutas, houve mortos de ambos os lados, verdadeiros massacres. No s os ndios da fronteira foram envolvidos na luta violenta pela terra. Tambm os camponeses da regio, moradores antigos ou recentemente migrados, foram alcanados pela violncia dos grandes proprietrios de terra, pelos assassinatos, pelas expulses, pela destruio de26

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casas e povoados. Entre 1964 e 1985, quase seiscentos camponeses foram assassinados em conflitos na regio amaznica, por ordem de proprietrios que disputavam com eles o direito terra. O que h de sociologicamente mais relevante para caracterizar e definir a fronteira no Brasil , justamente, a situao de conflito social2. E esse , certamente, o aspecto mais neglicenciado entre os pesquisadores que tm tentado conceitu-la. Na minha interpretao, nesse conflito, a fronteira essencialmente o lugar da alteridade. isso o que faz dela uma realidade singular. primeira vista o lugar do encontro dos que por diferentes razes so diferentes entre si, como os ndios de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietrios de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas, o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um s tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro3. No s o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepes de vida e vises de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira o desencontro de temporalidades histricas, pois cada um desses grupos est situado diversamente no tempo da Histria. Por isso, a fronteira tem sido cenrio de encontros extremamente similares aos de Colombo com os ndios da Amrica: as narrativas das testemunhas de hoje, cinco sculos depois, nos falam das mesmas recprocas vises e concepes do outro4. A fronteira s deixa de existir quando o conflito desaparece, quando os tempos se fundem, quando a alteridade original e mortal d lugar alteridade poltica, quando o outro se torna a parte antagnica do ns. Quando a Histria passa a ser a nossa Histria, a Histria da nossa diversidade e pluralidade, e ns j no somos ns mesmos porque somos antropofagicamente ns e o outro que devoramos e nos devorou5.Frente de expanso e frente pioneira: a diversidade histrica da fronteira

Os estudiosos do tema da fronteira no Brasil, quando examinam a literatura pertinente, deparam-se com duas concepes de referncia, atravs das quais os pesquisadores tem procurado dar um nome especfico a essa realidade singular que objeto de sua investigao. Os gegrafos, desde os anos 40, importaram a designao de zona pioneira para nome-la, outras vezes referindo-se a ela como frente pioneira6. Os antroplogos, por seu lado, sobretudo a partir dos anos cinqenta, definiram essas frentes de deslocamento da populao civilizada e das atividades econmicas de algum modo reguladas pelo mercado, como frentes de expanso. Como sugere Darcy Ribeiro, autor do mais importante estudo sobre essas frentes, elas constituem as fronteiras da civilizao. Se tomarmos como referncia a emblemtica frente de expanso da regio amaznica, temos nela um primeiro contraste com a frente pioneira dos gegrafos: Aqui a terra em si mesma no tem qualquer valor... (...) No se cogita, por isto, de assegurar a posse legal das terras... (...) E este domnio no assume, seno acidentalmente

Colono gacho da frente pioneira e sua safra de arroz no Projeto Canarana, Mato Grosso (1979). Todas as fotos so de J. S. Martins.27

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a forma de propriedade fundiria (cf. Ribeiro, 1977, p. 25). A designao de frentes de expanso, que o prprio Ribeiro havia formulado, tornou-se de uso corrente, at mesmo entre antroplogos, socilogos e historiadores que no estavam trabalhando propriamente com situaes de fronteira da civilizao. Ela expressa a concepo de ocupao do espao de quem tem como referncia as populaes indgenas, enquanto a concepo de frente pioneira no leva em conta os ndios e tem como referncia o empresrio, o fazendeiro, o comerciante e o pequeno agricultor moderno e empreendedor. Portanto, o que temos, nas duas definies, , antes de tudo, modos de ver a fronteira, diferentes entre si porque so diferentes, nos dois casos, os lugares sociais a partir dos quais a realidade observada: o do chamado pioneiro empreendedor e o do antroplogo preocupado com o impacto da expanso branca sobre as populaes indgenas7. Esse antroplogo no v a frente de expanso como sendo apenas o deslocamento de agricultores empreendedores, comerciantes, cidades, instituies polticas e jurdicas. Ele inclui nessa definio tambm as populaes pobres, rotineiras, no-indgenas ou mestias, como os garimpeiros, os vaqueiros, os seringueiros, castanheiros, pequenos agricultores que praticam uma agricultura de roa antiquada e no limite do mercado. Quando difundiram no Brasil a expresso frente pioneira, os gegrafos mal viam os ndios no cenrio construdo por seu olhar dirigido. Monbeig define os ndios alcanados (e massacrados) pela frente pioneira no oeste de So Paulo, como precursores dessa mesma frente, como se estivessem ali transitoriamente, espera da civilizao que acabaria com eles. A nfase original de suas anlises estava no reconhecimento das mudanas radicais na paisagem pela construo das ferrovias, das cidades, pela difuso da agricultura comercial em grande escala, como o caf e o algodo. No h, primeira vista, nessas concepes de frente de expanso e de frente pioneira, a inteno de supor uma realidade especfica e substantiva. Por isso mesmo, no so propriamente conceitos, mas, apenas designaes atravs das quais os pesquisadores na verdade reconhecem que esto em face dos diferentes modos como os civilizados se expandem territorialmente. Mais do que momentos e modalidades de ocupao do espao, referem-se a modos

Nascimento de cidade na frente pioneira: Canarana, Mato Grosso (1979).28

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de ser e de viver no espao novo. Entendo que essas distintas e, de certo modo, desencontradas perspectivas, levam a ver diferentes coisas porque so expresses diferentes da mesma coisa. A concepo de frente pioneira compreende implicitamente a idia de que na fronteira se cria o novo, nova sociabilidade, fundada no mercado e na contratualidade das relaes sociais. No fundo, portanto, a frente pioneira mais do que o deslocamento da populao sobre territrios novos, mais do que supunham os que empregaram essa concepo no Brasil. A frente pioneira tambm a situao espacial e social que convida ou induz modernizao, formulao de novas concepes de vida, mudana social. Ela constitui o ambiente oposto ao das regies antigas, esvaziadas de populao, rotineiras, tradicionalistas e mortas8. Entretanto, as idias subjacentes s duas concepes, de frente de expanso e de frente pioneira, sugerem que, apesar das aparncias em contrrio, elas se referem a realidades sociais substantivas, modos singulares de organizao da vida social, de definio dos valores e das orientaes sociais. Realidades substantivas que no foram definidas por aqueles que as empregaram. Os antroplogos, quando falam de frente de expanso, fazemno basicamente para poupar palavras na definio daquilo com que se defronta o ndio. No esto dizendo nada de especfico e definido. Esto dizendo que sobre os territrios tribais se move a fronteira populacional e cultural dos brancos. A noo de frente de expanso, nesse contexto, apia-se essencialmente em subentendidos. Esses subentendidos afloraram nas duas ltimas dcadas, nos trabalhos dos autores que fizeram pesquisa na regio amaznica. Para uns, a frente de expanso aparece como sendo expanso da sociedade nacional; para outros como expanso do capitalismo9 e para outros, at, como expanso do modo capitalista de produo. Originalmente, era expanso da fronteira da civilizao. Obviamente, no h qualquer relacionamento imediato entre essas diferentes definies. J a concepo de frente pioneira desaparece aos poucos, diluda na de frente de expanso, medida sobretudo que a frente de expanso passa a ser entendida, predominantemente, como uma frente econmica. A perda de substncia antropolgica da concepo de frente de expanso e sua reduo aos aspectos meramente econmicos da vida na fronteira certamente um fato a lamentar, pois empobreceu enormemente o estudo da expanso da fronteira no momento em que ele poderia ter sido antropologicamente mais rico. Antes dessa perda de substncia, Roberto Cardoso de Oliveira pusera o tema da frente de expanso em termos mais adequados, mais ricos e mais promissores do que os que prevaleceriam depois. Em seus trabalhos, a frente de expanso se define pela situao de contato, isto , pelo pressuposto metodolgico da totalidade, como prprio da tradio dialtica (cf. Oliveira, 1964, p. 15-18). A, as relaes intertnicas so relaes de frico intertnica, o equivalente lgico, mas no ontolgico, como ele esclarece, da luta de classes (cf. Oliveira, 1967, p. 44). Embora Oliveira esteja29

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se referindo s relaes entre ndios e brancos, sua interpretao j indicativa da impossibilidade de analisar a realidade dos protagonistas da fronteira de outro modo que no seja como momento de uma totalidade dialtica e, portanto, momento de contradio e lugar de conflito10. No meu modo de ver, o desencontro entre o que foi visto originalmente pelo gegrafo e o que foi visto pelo antroplogo, como disse antes, produto de observaes feitas em desiguais lugares sociais. No entanto, esses lugares sociais correspondem prpria realidade da fronteira. Eles viram a partir do vnculo que tinham com a fronteira na pesquisa cientfica. Viram, portanto, o que a fronteira lhes mostrava e o que estavam profissionalmente dispostos a ver. O desencontro de perspectivas , nesse caso, essencialmente expresso da contraditria diversidade da fronteira, mais do que produto da diversidade de pontos de vista sobre a fronteira. Diversidade que , sobretudo, diversidade de relaes sociais marcadas por tempos histricos diversos e, ao mesmo tempo, contemporneos. A diferena inicial que os dois pontos de vista sugeriam era de que quando os gegrafos falavam de frente pioneira estavam falando de uma das faces da reproduo ampliada do capital: a sua reproduo extensiva e territorial, essencialmente mediante a converso da terra em mercadoria11 e, portanto, em renda capitalizada, como indicava e indica a proliferao de companhias de terras e negcios imobilirios nas reas de fronteira em que a expanso assume essa forma. Nesse sentido, estavam falando de uma das dimenses da reproduo capitalista do capital.

Colnia do Projeto Humait, no Acre (1984).

Quando os antroplogos falavam originalmente da frente de expanso, estavam falando de uma forma de expanso do capital que no pode ser qualificada como caracteristicamente capitalista. Essa expanso essencialmente expanso de uma rede de trocas e de comrcio, de que quase sempre o dinheiro est ausente, sendo mera referncia nominal arbitrada por quem tem o poder pessoal e o controle dos recursos materiais na sua relao com os que explora, ndios ou camponeses. O mercado opera, atravs dos comerciantes dos povoados, com critrios monopolsticos, mediados quase sempre por violentas relaes de dominao pessoal, tanto na comercializao dos produtos quanto nas relaes de trabalho (sendo a caracterstica a30

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peonagem ou escravido por dvida). Portanto, muito longe do que tanto Marx quando Weber poderiam definir como capitalista. Neiva, em trabalho contemporneo dessas formulaes, assinalara que, no Brasil, era (e ) necessrio distinguir, no interior das fronteiras polticas do pas, a fronteira demogrfica e a fronteira econmica, esta nem sempre coincidindo com aquela, geralmente aqum dela12. Isto , a linha de povoamento avana antes da linha de efetiva ocupao econmica do territrio. Quando os gegrafos falam de frente pioneira, esto falando dessa fronteira econmica. Quando os antroplogos falam de frente de expanso, esto geralmente falando da fronteira demogrfica. Isso nos pe, portanto, diante de uma primeira distino essencial: entre a fronteira demogrfica e a fronteira econmica h uma zona de ocupao pelos agentes da civilizao, que no so ainda os agentes caractersticos da produo capitalista, do moderno, da inovao, do racional, do urbano, das instituies polticas e jurdicas, etc.13. possvel, assim, fazer uma primeira datao histrica: adiante da fronteira demogrfica, da fronteira da civilizao, esto as populaes indgenas, sobre cujos territrios avana a frente de expanso. Entre a fronteira demogrfica e a fronteira econmica est a frente de expanso, isto , a frente da populao no includa na fronteira econmica. Atrs da linha da fronteira econmica est a frente pioneira, dominada no s pelos agentes da civilizao, mas, nela, pelos agentes da modernizao, sobretudo econmica, agentes da economia capitalista (mais do que que simplesmente agentes da economia de mercado), da mentalidade inovadora, urbana e empreendedora. Digo que se trata de uma primeira datao histrica porque cada uma dessas faixas est ocupada por populaes que, ou esto no limite da Histria, como o caso das populaes indgenas; ou esto inseridas diversamente na Histria, como o caso dos no ndios, sejam eles camponeses, pees ou empresrios. Cada uma dessas realidades tem o seu prprio tempo histrico, se considerarmos que a referncia insero ou no na fronteira econmica indica tambm diferentes nveis de desenvolvimento econmico que, associados a nveis e modalidades de desenvolvimento do modo de vida, sugerem datas histricas distintas e desencontradas no desenvolvimento da sociedade, ainda que contemporneas. E no me refiro apenas insero em diferentes etapas coexistentes do desenvolvimento econmico. Refiro-me sobretudo s mentalidades, aos vrios arcasmos de pensamento e conduta que igualmente coexistem com o que atual14. E no estou falando de atraso social e econmico. Estou falando da contemporaneidade da diversidade. Estou falando das diferenas que definem seja a individualidade das pessoas, seja a identidade dos grupos. Essa distino no conceitual nem classificatria, ao contrrio do que entendem diferentes pesquisadores que trataram da fronteira a partir do surto expansionista de 1964. Nesse equvoco repousa a controvrsia sobre o tempo histrico da frente de expanso e o tempo histrico da frente pioneira, pois no se reconhece que o tempo histrico de um campons dedicado a uma31

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agricultura de excedentes um, enquanto o tempo histrico do pequeno agricultor prspero, cuja produo mediada pelo capital, outro. E ainda outro o tempo histrico do grande empresrio rural. Como outro o tempo histrico do ndio integrado, mas no assimilado, que vive e se concebe no limite entre o mundo do mito e o mundo da Histria. Como ainda inteiramente outro o tempo histrico do pistoleiro que mata ndios e camponeses a mandado do patro e grande proprietrio de terra: seu tempo o do poder pessoal da ordem poltica patrimonial e no o de uma sociedade moderna, igualitria e democrtica que atribui instituio neutra da justia a deciso sobre os litgios entre seus membros. A bala de seu tiro no s atravessa o espao entre ele e a vtima. Atravessa a distncia histrica entre seus mundos, que o que os separa. Esto juntos na complexidade de um tempo histrico composto pela mediao do capital, que junta sem destruir inteiramente essa diversidade de situaes. A distino entre frente pioneira e frente de expanso , na melhor das hipteses, um instrumento auxiliar na descrio e compreenso dos fatos e acontecimentos da fronteira15. um instrumento til quando as duas concepes so trabalhadas na sua unidade, quando destaca a temporalidade prpria da situao de cada grupo social da fronteira e permite estudar a sua diversidade histrica no s como diversidade estrutural de categorias sociais, mas tambm como diversidade social relativa aos diferentes modos e tempos de sua participao na Histria. No entanto, diferentes pesquisadores a interpretaram como uma tipologia da fronteira e a ela se referiram e a reduziram ao esquematismo classificatrio da controvrsia latino-americana dos anos sessenta e setenta sobre o desenvolvimento do capitalismo no campo, sobre a natureza histrica das mudanas (e das lutas sociais) que estavam ocorrendo no campo: eram transformaes no capitalismo ou era transio de prcapitalismo (e, para alguns, at feudalismo) para o capitalismo? Tal esquematismo procurou legitimidade no marxismo estruturalista de inspirao althusseriana que se difundiu na Amrica Latina nesse perodo, sobretudo atravs de manuais de vulgarizao do pensamento de Althusser. Porm, penso que o marxismo estruturalista no pode reconhecer nos processos sociais a diversidade e contemporaneidade dos tempos histricos, porque os separa em agregados referidos lgica do espao. Assim, o modo capitalista de produo, em sua perspectiva, estritamente constitudo por um jogo de categorias que, embora contraditrias, tem uma mesma e nica data, a do tempo da burguesia e do proletariado. Quase sempre essa data nica est subjacente idia do capitalismo como sistema (e como conceito) que, por isso, reduz todas as relaes, por mais diversificadas que sejam, a uma nica, definida como capitalista. O recurso ao conceito estruturalista de formao econmico-social um artifcio que procura manter uma certa idia de totalidade, porm constituda de nveis, isto , camadas de realidades desiguais, dotadas de autonomia relativa umas em relao s outras e, portanto, esvaziadas de historicidade. A partir da no se distingue entre sistema mercantil e32

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capitalismo, entre dinheiro e capital, entre propriedade privada e propriedade capitalista (isto , propriedade de meios de produo destinados explorao caractersticamente capitalista da fora de trabalho), entre modo de produo capitalista e modo de produo especificamente capitalista, entre processo de trabalho e modo capitalista de produo, etc. As relaes sociais de data diversa, isto , que encerram outra temporalidade, nessa orientao so reconhecidas unicamente na definio de um outro modo de produo (no fundo, uma espcie de tipo ideal). Ao invs da coexistncia de tempos histricos na contradio dos processos sociais, essa orientao reconhece os desencontros dos tempos histricos apenas em termos de articulao de modos de produo16 (e no de contradio contempornea no interior das prprias relaes sociais). Alm disso, a lgica espacial dessa orientao impe a distino de nveis da realidade, ainda que combinados, como se fossem instncias dotadas de autonomia, como a da economia, da poltica, da ideologia. So, na verdade, artifcios que permitem classificar a realidade ajustando-se as partes, as peas, numa arquitetura em que o pesquisador apenas intui, mas no demonstra, o lugar de cada uma. Portanto, nessa perspectiva impossvel reconhecer o desencontro dos tempos histricos contidos nas relaes sociais reais, como expresso da diversidade na unidade, prpria da sociedade capitalista e moderna. E, principalmente, torna-se impossvel reconhecer, a no ser por um artifcio mecanicista, a possibilidade de transformao do presente e nele a possibilidade da Histria, a virtualidade da Histria, a Histria no s como passado, mas como promessa contida na luta pela vida, pelas concepes da vida como vir a ser, no destino de todos. Sobretudo ela reduz as contradies (e as alternativas que anunciam) ao anncio de um nico destino histrico para todos indistintamente, todas as classes, todos os grupos, todas as histrias singulares (como a dos ndios, dos camponeses, dos operrios, dos jovens, das mulheres, etc.). No fundo, uma concepo totalitria. Reduz o destino de todos ao destino da burguesia na sua contrafao histrica: a classe mdia. E no toma como referncia, obviamente, o destino do gnero humano na sua diversidade.Os confins do humano e a fronteira da Histria

A categoria mais rica e apropriada para a reflexo sociolgica a de frente de expanso porque ela se refere a lugar e tempo de conflito e de alteridade. J em Turner (cf. 1956, p. 2), a concepo de fronteira era a do limite entre civilizao e barbrie. Em perspectiva oposta, para Ribeiro limite da civilizao. No Brasil, para os prprios membros do que se poderia chamar provisoriamente de sociedade da fronteira17, a fronteira aparece freqentemente como o limite do humano. A fronteira a fronteira da humanidade. Alm dela est o no-humano, o natural, o animal. Se entendermos que a fronteira tem dois lados e no um lado s, o suposto lado da civilizao; se entendermos que ela tem o lado de c e o lado de l, fica mais fcil e mais abrangente33

MARTINS, Jos de Souza. O tempo da fronteira. Retorno controvrsia sobre o tempo histrico da frente de expanso e da frente pioneira. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 8(1): 25-70, maio de 1996.

estudar a fronteira como concepo de fronteira do humano. Nesse sentido, diversamente do que ocorre com a frente pioneira, sua dimenso econmica secundria. O Brasil um pas particularmente apropriado para estudar a fronteira nessa perspectiva. As ltimas dcadas tem sido uma poca em que grupos humanos de diferentes tribos indgenas foram contactados pela primeira vez pelos civilizados. Ao mesmo tempo, civilizados muito diversificados entre si, com mentalidades muito desencontradas a respeito de seu lugar nesse dramtico confronto da condio humana e de concepes de humanidade: o campons, o peo, o garimpeiro, o grande fazendeiro, o empresrio, o religioso (de diferentes confisses religiosas), o funcionrio pblico, o antroplogo. O que poderia ter sido um momento fascinante de descoberta do homem, foi um momento trgico de destruio e morte. Mas, isso no tira a dimenso pica e potica dos fugidios instantes do encontro de diferentes humanidades como tem ocorrido na regio amaznica18. Para mim, o mais expressivo documento desse ato de achar o outro a fotografia de um jovem ndio da tribo Kreenakarore, o rosto pintado de urucu, espreitando, na floresta, os brancos que os procuravam e os viam pela primeira vez tambm: os olhos arregalados descobriam e deixavam descobrir uma outra humanidade19. Foi em outubro de 1972. A existncia dessa tribo havia sido descoberta no dia 6 de fevereiro por um sertanista que sobrevoava a selva, para saber se havia populaes indgenas no trajeto por onde passaria a rodovia Cuiab-Santarm, atra-las e contact-las. Nesse dia foi avistada uma de suas aldeias. No dia 14, uma expedio encontrou os primeiros vestgios de sua existncia: picadas na mata, restos de fogueiras e ossos de animais. No dia 25 de maio, s 11 h da manh, os Kreenakarore atacaram os brancos pela primeira vez e feriram um trabalhador. No dia seguinte, o comando militar encarregado da abertura da estrada suspendeu os trabalhos a apenas 20 km do acampamento da expedio. No dia 27, um helicptero retirou o trabalhador que fora flechado pelos ndios. Na noite seguinte, os sertanistas ouviram vrias vezes o pisar das folhas secas do cho de seu acampamento por visitantes que se tornavam invisveis quando o foco da lanterna era dirigido para o local de onde vinha o rudo. Isso foi interpretado como sinal de que os ndios queriam entrar em contato com os brancos. Na tarde do dia seguinte, os membros da expedio colocaram presentes no local em que o trabalhador fora flechado: faces, machados, facas, colares, peas de alumnio. Assustados pelo tiro que um trabalhador dera num macaco que estava numa copa de rvore sob a qual se encontrava um grupo de ndios, e sentindo a aproximao da expedio, os Kreenakarore queimaram sua aldeia e se refugiaram na mata. Mas, deixaram para os brancos vrios presentes: bordunas, flechas, arcos. De fato, tambm eles estavam tentando contactar os brancos. No dia 4 de outubro, os ndios recolheram os presentes deixados pelos brancos na margem do rio Peixoto de Azevedo. No dia 15 apareceu nas proximidades um grupo numeroso de ndios que falavam alto e gesticulavam muito. No dia 19, reapareceram na margem esquerda do rio,34

MARTINS, Jos de Souza. O tempo da fronteira. Retorno controvrsia sobre o tempo histrico da frente de expanso e da frente pioneira. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 8(1): 25-70, maio de 1996.

acenando para a expedio. Um dos sertanistas chegou a dez metros de distncia de um casal, que o ameaou retezando o arco e, em seguida, internando-se na mata. No dia 31 de dezembro, os ndios comearam a reconstruir a aldeia que haviam queimado. No dia 13 de fevereiro de 1973, eram finalmente atrados para viver no acampamento dos brancos e contados: eram 350 pessoas. Dois anos depois desses episdios e do contato com os brancos, em janeiro de 1975, s restavam vivos 79 deles (40 homens e 39 mulheres), todos com sinais visveis de tuberculose. Um ano depois, um sertanista denunciava que brancos podiam ter submetido os ndios a severas humilhaes, que eles no faziam mais roa e havia entre eles vrios casos de doenas venreas transmitidas pelos brancos, sem contar 35 ndios com gripe, inclusive o cacique. Os ndios estavam abandonando a aldeia e construindo suas malocas na beira da rodovia, expostos ao contato indiscriminado com os trabalhadores da estrada. Se queremos insistir no nosso conceito de civilizao e civilizado, a civilizao da frente pioneira havia triunfado sobre a barbrie da selva.

Igarap no norte do Mato Grosso (1979).

Essa no uma histria nica. Pelo menos 34 tribos indgenas foram atradas e contactadas na Amaznia, a partir de 1965, entre tribos at ento desconhecidas e faces arredias de grupos j conhecidos20. Sem contar tribos fragmentadas em grupos dispersos, em relao a cada qual o contato foi especfico. Vinte e seis delas o foram entre 1970 e 1975. Na quase totalidade desses grupos a histria do contato no varia muito em relao ao caso dos Kreenakarore. Os brancos utilizam usualmente as palavras atrao, pacificao e contato para se referir ao de neutralizao das populaes indgenas que geralmente reagem quando percebem que seus territrios esto sendo invadidos. Essas so palavras tcnicas do jargo oficial, usadas pelos funcionrios da Fundao Nacional do ndio para caracterizar seu trabalho. O homem comum, porm, sintetiza essas diferentes aes no verbo amansar os ndios. uma palavra que d bem a medida do lugar que o ndio ocupa no imaginrio do civilizado da fronteira: ele geralmente classificado como animal (Ribeiro, 1977, p. 362-363). Vrias localidades da Amaznia receberam o nome de So Flix, inclusive no perodo recente. que So Flix, na crena catlica popular, o35

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santo que protege o homem contra os animais peonhentos e os ndios. Na regio, os no-ndios, brancos ou no, chamam a si mesmos de cristos. E classificam os ndios como caboclos, isto , pagos, por oposio aos cristos21. Certa vez, em So Flix do Araguaia (no Mato Grosso), caminhando pela rua beira do rio, ouvi quando algumas crianas comearam a ofender um ndio karaj que passava. Perguntei-lhes porque faziam aquilo, pois o ndio era gente como elas e elas certamente no gostariam que algum lhes fizesse o mesmo. Um dos meninos disse-me com espanto: Ele no gente como eu. Ele caboclo e eu sou cristo! Lembro-me, ainda, do cacique xavante Aniceto, numa reunio em Goinia, opondo-se aos bispos catlicos que, por uma questo de respeito aos ndios, no se julgavam no direito de batiz-los. Para Aniceto, o batismo constitua o reconhecimento da humanidade do ndio e uma proteo em relao aos brancos que, pela falta do batismo, os consideravam animais. A distino entre cristo e caboclo , nesses casos, usada para distinguir os humanos dos bichos-do-mato22. Nesse perodo recente, no foram raros os casos de expedies de caa ao ndio organizadas pelos brancos da frente de expanso, para removlos de suas terras e prevenir ataques. Como em 1963, quando os responsveis por um seringal no Mato Grosso ordenaram a destruio e o massacre de toda uma aldeia de ndios Cinta Larga: de avio, em vos rasantes, foram jogadas dinamites sobre a aldeia, ao mesmo tempo que uma metralhadora era disparada sobre os ndios que corriam em pnico. Os atacantes voltaram por terra e metralharam outro grupo de ndios acampados beira de um rio. Ouvindo um choro abafado de criana, voltaram e encontraram, sob dois corpos crivados de bala, a me viva e uma garotinha. Enquanto violentavam a mulher, que matariam depois, com um tiro estouraram os miolos da menina que tentara socorrer a me (cf. Ribeiro, 1977, p. 189-190). Isso depois do principal responsvel pela firma ter dito diante de testemunhas: Estes parasitas destes ndios sem vergonha... J tempo de acabar com eles, de liqidar com eles... (...) Vamos liqidar com estes vagabundos. Os Kayap, no final dos anos 50, eram considerados bichos pelos seringueiros e pelos donos dos seringais e tratados com repugnncia (cf. Moreira Neto, 1959, p. 49-64)23. O que se conhece de como os prprios ndios de diferentes tribos viram e interpretaram a chegada dos brancos e a invaso de seus territrios por eles igualmente sugestivo. Quando os Suru de Rondnia se viram pela primeira vez frente a frente com um grupo de brancos, o assustado cacique a estes se dirigiu dizendo: Branco, eu te amanso24. Vrias tribos se designam a si mesmas como gente, para diferenar-se dos outros humanos. o caso dos mesmos Suru, que, em sua lngua, se chamam a si mesmos de paiter, isto a gente (ns mesmos) em detrimento de outros, que no seriam humanos (cf. Mindlin, 1985, p. 99). Nas concepes dos Bororo, do Mato Grosso, os civilizados esto na mesma categoria dos seres malficos e mortais, isto , so semelhantes, mas no idnticos, s cobras venenosas, aos inimigos e aos espritos malficos, designados por Bope (isto , coisa ruim). Em suas36

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concepes, o gado bovino reconhecido como companheiro dos civilizados porque destri plantaes e, desse modo, rouba alimento dos ndios. Alis, a vaca no possui um lugar no cosmo Bororo (cf. Viertler, 1990, p. 19-32). Juruna, um ndio Xavante, entende mesmo que, no rio das Mortes, foram os ndios que atraram e amansaram os brancos: Deu muito trabalho atrair branco. Branco sempre com medo. Foi uma luta amansar branco. Branco matou muito ndio, at Xavante poder amansar branco(cf. Martins, E., 1978, p. 208)25. Mesmo amansado, o branco permanece excludo do mundo xavante. Em seu excelente estudo sobre esses ndios, Aracy Lopes da Silva sublinha que o dualismo de seu pensamento e de sua organizao social se expressa na classificao de ns e eles. As cises internas do lugar ao surgimento de uma conscincia que se expressa na concepo de um ns sempre ampliado que, em certas circunstncias, extravasa os limites do mundo Xavante e passa a incluir os outros ndios. Trata-se de uma cultura em que h a necessidade lgica dos muitos outros com que, nas sociedades J, se constri a noo de pessoa e de identidade individual.... E conclui que falta do branco, ou melhor, falta de meios para enfrentar o branco (...) ele seja substitudo pela ona: igualmente outro, elemento da natureza, assim como o branco excludo do universo cultural xavante (cf. Silva, 1986, p. 55 e p. 257-258). Para o ndio o avano da frente de expanso no repercute apenas por coloc-lo diante de uma humanidade diferente, a dos civilizados. Repercute nos rearranjos espaciais de seus territrios e nas suas relaes com outras tribos, sobretudo as inimigas. Essas mudanas resultam em muitas perdas, no s do territrio, mas tambm de vidas e de elementos culturais. Os Asurini do Xingu no s estavam sendo acossados pelos civilizados desde o sculo passado, como tambm por tribos vizinhas e inimigas que os atacaram vrias vezes e os foraram a deslocar-se em diferentes ocasies. Foram expulsos do Ipixuna pelos Arawet, que por sua vez estavam sendo atacados pelos KayapXikrin e pelos Parakanan. No Ipixuna cultivavam 76 variedades de plantas, mas, devido retirada precipitada que efetuaram quando foram atacados pelos Arawet, s conduziram 46, e destas esto cultivando apenas 11 (cf. Arnaud, 1989, p. 353)26. Muito antes da linha fronteiria definir o limite da presena do civilizado num territrio determinado, a frente de expanso j se expande indiretamente empurrando os grupos indgenas mais prximos para territrios de seus vizinhos mais distantes. No geral, tem decorrido da guerras intertribais e at o extermnio de algumas populaes indgenas por parte de outros grupos indgenas. A escassez de estudos que combinem a etnohistria com a histria dificulta uma viso ampla desse imenso e mltiplo conflito que se d alm da fronteira, que se mostra, assim, alm do mais, fronteira da Histria, como resultado da histrica expanso da sociedade civilizada. Os preciosos estudos de Dominique Gallois sobre o povo Waipi, que vive hoje na fronteira com a Guiana francesa, so justamente indicativos37

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da importncia que tais estudos podem ter para melhor compreenso dos aspectos propriamente dramticos da expanso da fronteira. Desde o final do sculo XVII e incio do sculo XVIII, os Waipi vem migrando em direo ao norte e Guiana. Deslocaram-se fugindo, empurrados pelos brancos, desde o rio Xingu. Atravessaram o rio Amazonas e se localizaram na regio do rio Jari, avanando, depois, em direo s suas cabeceiras. Nessa lenta migrao de cerca de trezentos anos, h muitos episdios de guerra com outras tribos cujos territrios estavam invadindo. Como h episdios de cooptao pelos civilizados para que se empregassem na caa de outros ndios para reduzi-los condio de escravos. Sem contar complicados arranjos e relacionamentos entre tribos indgenas para efetivar um comrcio primitivo de ferramentas produzidas pelos civilizados (cf. Gallois, 1986 e 1993)27. Os estudos de Gallois sobre esse povo mostram uma complexa e surpreendente teia de relacionamentos entre diferentes grupos indgenas, incluindo um grupo de ex-escravos negros fugidos das fazendas da Guiana francesa e retribalizados, para fazer circular esses produtos entre eles. Um comrcio inteiramente extra-capitalista e, at se poderia dizer, extra-comercial porque inteiramente estranho aos princpios e realidades econmicos em que esses produtos foram gerados. Sobretudo porque nesse mundo indgena e tribal tais mercadorias esto separadas de seu mundo de origem por uma ntida fronteira social e cultural e por uma lgica de circulao de produtos inteiramente diversa, distante de qualquer concepo de equivalncia. Isso fica claro na destruio de bens at caros, procedentes dos civilizados, por ocasio dos rituais fnebres dos respectivos donos, em diferentes tribos28. A mercadoria apenas adicionada cultura tribal, mas no incorporada segundo sua implcita lgica mercantil e acumulacionista. Provavelmente, porque a mercadoria s pode s-lo se conservar o valor de uso, que se manifesta nas circunstncias inclusive culturais em que usada. Enquanto o branco pe a nfase de sua relao com a mercadoria no valor de troca, mesmo quando a usa (e j no tem valor de troca), o ndio pe a nfase no valor de uso e numa concepo de uso que anula o pecado original da troca. Diversas tribos indgenas contactadas no perodo recente foram surpreendidas migrando lentamente, por longas distncias, para o interior do pas em conseqncia de presses anteriores da frente de expanso, diretamente sobre elas ou sobre seus vizinhos: os Tapirap se fixaram no Mato Grosso aps um longo percurso a partir do Maranho; os Xavante esto agora encurralados no Mato Grosso, entre fazendas de gado e lavouras de camponeses pobres, mas procedem de Gois e da Bahia29. H mesmo casos de tribos originrias de um ambiente ecolgico especfico que, em conseqncia dessas migraes, deslocaramse para ambientes completamente diferentes, o que as obrigou, em alguns casos com sucesso e em outros sem sucesso, a reelaborarem sua relao com a natureza, sua cultura e suas concepes: os Iranxe, originrios da regio de mata, onde haviam elaborado sua experincia histrica de vida, foram deslocados para o cerrado, onde se adaptam mal; j os Kayap foram empurrados do cerrado para a floresta38

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Jovem ndio tapirap observa o rio no embarcadouro de sua aldeia assediada pelas fazendas de gado das grandes empresas do Sudeste (1979).

e levaram mais de cem anos para se adaptarem ao novo ambiente e produzirem conhecimentos a ele adequados (cf. Pivetta, 1993, p. 19 e p. 39-47). Em vrios casos, a chegada dos civilizados se deu praticamente no mesmo perodo de confrontos devastadores entre diferentes tribos. H pouco menos de meio sculo, um etnlogo relatava o estado de pnico que se apossara dos ndios Tapirap, do Mato Grosso, em relao aos seus mais perigosos inimigos, os Kayap. A mais intensa aproximao da frente de expanso de seu territrio coincidia com o fato de que os Kayap no somente avanam em direo ao Araguaia para acabar com os sertanejos e suas casas. Marcham para o sul atacando Tampiitaua, a aldeia tapirap (cf. Baldus, 1970, p. 49)30. O encontro, portanto, para esses grupos, se deu em momentos dramticos, acrescentando um inimigo de certo modo inesperado aos inimigos conhecidos. Compreende-se que vrias dessas tribos tenham aceito e at procurado a sujeio aos brancos. E tenham imediatamente se disposto a colaborar na atrao e contato de tribos inimigas. Freqentes vezes, no fundo, os ndios imaginaram que estavam envolvendo os civilizados em seus prprios conflitos. S recentemente diferentes grupos indgenas se deram conta do que estava de fato acontecendo e passaram a se aliar a seus antigos inimigos para enfrentar os brancos. Esse certamente um dos aspectos novos da expanso da fronteira no Brasil. E outro aspecto novo e fundamental que populaes indgenas tem pressionado os brancos, com xito, no sentido da expanso das fronteiras de seus territrios de confinamento, como tem se dado com os Kayap; ou reocupando fazendas abertas em seus antigos territrios, inclusive instalaes, como ocorre com os Xavante. Esse cenrio de conflito no se desenha necessariamente sobre o imaginrio de um territrio aberto e ilimitado. Lux Vidal, no seu minucioso estudo sobre os Kayap-Xikrin, relata que eles reconhecem dois pontos cardeais: leste e oeste. E que, em oposio ao leste, que bem definido, por ser o lugar de sua origem e de origem de seus mitos, o oeste simplesmente um ponto de referncia convencional de delimitao do espao (...), mas, no39

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definido, ningum poderia situ-lo. Segundo os ndios o fim do mundo. tambm o lugar da noite perptua (cf. Vidal, 1977, p. 18 e 21). Segundo Gallois, tambm os Waipi, no mito em que se referem ao lugar Mairi, mencionam que ali est o buraco do final da terra. Na sua reconstituio da relao entre mito e Histria, Gallois descobriu que Mairi a cidade de Almeirim, antiga localidade de referncia, embora distante, da fortaleza de Macap, construda pelos portugueses no perodo colonial. H nessa fortaleza o que parece ser um calabouo em forma de poo. Um ndio conhecedor do mito, ao visitar a fortaleza pela primeira vez, disse: Quando conheci a fortaleza, reconheci o lugar. O buraco do final da terra era o lugar onde jogavam as pessoas. De qualquer modo, ali efetivamente termina a terra, como terminava a vida; depois dali o oceano (cf. Gallois, 1993, p. 17).A disputa pela concepo de destino na situao de fronteira

Quem conhece a fronteira sabe perfeitamente que nela, de fato, essas faixas se mesclam, se interpenetram, pondo em contato conflitivo populaes cujos antagonismos incluem o desencontro dos tempos histricos em que vivem. A recente expanso da fronteira mostrou isso de maneira muito clara. Prticas de violncia nas relaes de trabalho, como a escravido por dvida, prprias da histria da frente de expanso, so adotadas sem dificuldade por modernas empresas da frente pioneira. Pobres povoados camponeses da frente de expanso, permanecem ao lado de fazendas de grandes grupos econmicos, equipadas com o que de mais moderno existe em termos de tecnologia. Missionrios catlicos e protestantes, identificados com as orientaes

Famlia de pees escravisados por dvida trabalhando na derrubada da mata, na frente pioneira de Jaru, Rondnia (1977).

teolgicas modernas da Teologia da Libertao encontram lugar em suas celebraes para as concepes religiosas tradicionalistas do catolicismo rstico, prprio da frente de expanso31. A dinmica da frente de expanso no se situa num nico mecanismo de deslocamento demogrfico. Tradicionalmente, a frente de expanso se movia e excepcionalmente ainda se move, em raros lugares, em conseqncia de caractersticas prprias da agricultura de roa. Trata-se de um deslocamento lento regulado pela prtica da combinao de perodos de cultivo e perodos40

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de pousio da terra. Depois de um nmero varivel de anos de cultivo do terreno, os agricultores se deslocam para um novo terreno. Onde essa prtica mais tpica, como o Maranho, o deslocamento se d no interior de um territrio de referncia ao redor de um centro, de um povoado. Quando a roa fica distante do centro, a tendncia a criao de um novo centro, ao redor do qual os lavradores abrem suas roas segundo critrios de precedncia e antigidade dos moradores e segundo concepes de direito muito elaboradas, isto , quem tem direito de abrir roa onde, por exemplo. Desse modo, a fronteira se expande em direo mata, incorporando-a pequena agricultura familiar. A tendncia observada at agora a da acelerao do deslocamento da frente de expanso, ou mesmo seu fechamento, em decorrncia da invaso das terras camponesas por grileiros, especuladores, grandes proprietrios e empresas32. Quando no integrados no mercado de trabalho, os camponeses eram e so expulsos de suas terras e empurrados para fora da fronteira econmica ou para dentro como assalariados sazonais. Se encontram terras livres mais adiante, continuam a tendncia migratria, mesmo que para pontos mais distantes. notvel a circulao de informaes sobre terras livres ou presumivelmente livres, entre camponeses, centenas de quilmetros adiante. A teia de relaes de parentesco e de compadrio se encarrega de difundir as informaes sobre a localizao de novas terras que ainda podem ser ocupadas. O que facilitado pelo lento deslocar de fragmentos de grupos famliares desses camponeses. Embora tendencialmente migrem em famlia e at em grupo33, h uma rede familiar mais extensa e viva que constitui a referncia nesse movimento. Em cada etapa do deslocamento, os membros da famlia, os compadres, os antigos vizinhos j chegados acolhem os que vm depois e sero acolhidos mais adiante pelos que se foram antes (cf. Keller, 1975, p. 674). A verdadeira estrutura social de referncia das populaes camponesas da fronteira no a local e visvel. Ela se espalha por um amplo territrio, num raio de centenas de quilmetros, e uma espcie de estrutura migrante, uma estrutura social intensamente mediada pela migrao e pela ocupao temporria, ainda que duradoura, de pontos do espao percorrido. Os estudos sociolgicos que tomam como referncia uma localidade especfica no apanham a realidade social mais profunda que d sentido existncia dessa espcie de sociedade transumante.

Sta. Terezinha, antigo povoado de posseiros no norte do Mato Grosso, local de conflito armado com jagunos de um banco paulista, em 1973 (1979).41

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Quando no h perspectiva de encontrar novas terras nem h perspectiva ou disposio de entrar na economia da misria no interior da fronteira econmica, geralmente comea a luta pela terra, o enfrentamento do grande proprietrio e seus jagunos. Em algumas regies tem sido possvel, nos ltimos vinte anos, observar a passagem das migraes espontneas, decorrentes da saturao da terra, para as migraes foradas pelas expulses violentas da terra. E observar, neste ltimo caso, que mesmo a os camponeses migram para no muito longe, como que circulando ao redor de um ponto ou ao longo de uma rota de referncia. Quando a presso se combina com a falta de alternativa, surge o conflito, como ocorreu em vrios pontos do sul do Par (Hbette, s/d., p. 1-3). A histria recente das lutas camponesas no Brasil tem, alis, mostrado abundantemente que mesmo quando no se configura a falta de alternativas, os camponeses ameaados optam pela luta pela terra, pelo questionamento seja dos supostos direitos dos alegados proprietrios seja da prpria legitimidade desses direitos. As diferentes modalidades de acomodao desses conflitos por parte do Estado, com as desapropriaes de terras para reforma agrria, at preventivamente nos casos de probabilidade de tenso social, mostram que os trabalhadores rurais, ainda que por via indireta, conseguiram abrir uma alternativa poderosa e em grande parte sua numa situao de aparente falta de alternativas34. So eles, por isso, agentes caractersticos da frente de expanso, embora no sejam os nicos nem necessariamente os decisivos. Por isso, violam a linha da fronteira demogrfica e avanam sobre territrios que so sempre territrios tribais, isto , territrios de algum modo includos no circuito de perambulao de algum grupo tribal. Alm das situaes de conflito com as populaes indgenas que procuram resistir a esse avano, h tambm as situaes de fuga dos mesmos indgenas, que se deslocam mais para o interior procura de novos espaos, geralmente s custas de graves conflitos entre as prprias populaes indgenas, de tribos diferentes ou at do mesmo grupo

Pedro Afonso, Gois, povoado e municpio decadente da antiga frente de expanso do Tocantins, onde os tempos se combinam: as casas de adobe e palha e as casas de alvenaria (1984).42

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indgena (como tem ocorrido entre faces da grande nao Kayap). O conjunto da informao histrica que hoje se tem sobre a frente de expanso e a frente pioneira sugere que a primeira foi a forma caracterstica de ocupao do territrio durante longo perodo. Comeou a declinar com a chamada Marcha para Oeste, em 1943, e a interveno direta do Estado para acelerar o deslocamento dos tpicos agentes da frente pioneira sobre territrios novos, em geral j ocupados por aqueles que haviam se deslocado com a frente de expanso. Tipicamente, a frente de expanso foi constituda de populaes ricas e pobres que se deslocavam em busca de terras novas para desenvolver suas atividades econmicas: fazendeiros de gado, como ocorreu na ocupao das pastagens do Maranho por criadores originrios do Piau; seringueiros e castanheiros que se deslocaram para vrios pontos da Amaznia. E mesmo agricultores. Levaram consigo seus trabalhadores, agregados sujeitos a formas de dominao pessoal e de explorao apoiadas no endividamento e na coao. Quando a economia da borracha entrou em crise e decadncia a por 1910, muitos desses empreendimentos extrativos, que eram essencialmente comerciais e no agrcolas, simplesmente encerraram suas atividades. Ficaram para trs os trabalhadores, dedicados prpria subsistncia e comercializao de excedentes em pequena escala. Essencialmente, houve um refluxo da economia, expresso diretamente no retorno a uma economia baseada na produo direta dos meios de vida por parte dos trabalhadores (cf. Ianni, 1978, esp. p. 64). Isso tinha sentido, porque os donos de seringais e castanhais eram meros posseiros ou foreiros que haviam arrendado suas terras do Estado. Portanto, a partir desse momento, a frente de expanso ficou caracterizada como uma frente demogrfica de populaes camponesas e pobres residualmente vinculadas ao mercado. Ao invs de estagnar, continuou crescendo e se expandindo pela chegada contnua de novos camponeses sem terra originrios sobretudo do nordeste, no caso da Amaznia, que foram ocupando as terras real ou supostamente livres da regio. Uma caracterstica importante da frente de expanso em todo o pas, para dat-la historicamente, que quando se deslocavam juntos ricos e pobres, deslocavam-se com base nos direitos assegurados pelo regime sesmarial. Embora o regime de sesmarias tenha cessado s vsperas da Independncia e s tenha sido substitudo por um novo regime fundirio com a Lei de Terras de 1850, ele continuou norteando as concepes de direito terra de ricos e pobres e, em muitos casos, norteia at agora. Ainda hoje, quando um posseiro da Amaznia justifica seu direito terra, ele o faz invocando o direito que teria sido gerado pelo trabalho na terra. Ao mesmo tempo, reclama e proclama que seu direito est referido aos frutos de seu trabalho, que por serem seus est no direito de ced-los ou vendlos. A concepo de que preciso ocupar a terra com trabalho (na derrubada da mata e no seu cultivo) antes de obter reconhecimento de direito, era prprio do regime sesmarial. Do mesmo modo, a concepo de que o trabalho gera direito de propriedade sobre os frutos do trabalho tambm era prpria desse43

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regime fundirio. Nele, o domnio estava separado da posse. O domnio era da Coroa. Quando, por acaso, o sesmeiro deixasse de cultivar a terra ou de obter dela frutos para pagar tributos, a terra se tornava devoluta (ou realenga, como ento se dizia, isto pertencente ao rei). Podia por isso ser novamente distribuda pelo representante da Coroa, bastando que algum a ocupasse e, depois, a requeresse, como ocorreu freqentemente. Do mesmo modo, a casa de um agregado construda em terras de sesmaria ou data de outrem, bem como suas roas e cultivos, no sendo ele escravo, lhe pertenciam legalmente, sendo a relao com o sesmeiro apenas relao de enfiteuse. Portanto, o trabalho de fato gerava direito sobre bens produzidos e sobre a terra beneficiada ou, melhor, sobre o benefcio incorporado terra, como era o caso do desmatamento. comum encontrar-se nos arquivos documentos de transferncia da propriedade de uma casa a um terceiro, construda em terras de um segundo, que apenas recebia o laudmio, um tributo quase simblico de reconhecimento do seu senhorio e no de sua propriedade (j que o proprietrio eminente era o rei). A Lei de Terras de 1850 que juntaria num nico direito, o de propriedade (mantendo, porm, separados os conceitos), a posse e o domnio. O vocabulrio e o imaginrio monrquicos, ainda to fortes nas frentes de expanso, no so devidos unicamente a arcasmos religiosos, mas tambm a uma concepo de direito muito prxima dos pobres: a dos direitos (de uso) gerados pelo trabalho em oposio aos direitos (de propriedade) gerados pelo dinheiro35. A partir de 1943, a frente pioneira que, em outras regies se movia impulsionada pelos interesses imobilirios do grande capital, das empresas ferrovirias e da grande agricultura de exportao, como o caf, no Sudeste, na Amaznia passa a depender da iniciativa do governo federal. Ela se torna a forma caracterstica de ocupao das novas terras. Os grandes episdios desse impulso foram a Expedio Roncador-Xingu e a Fundao Brasil Central, ambas oficiais, nos anos 40; a construo da rodovia Belm-Braslia, nos anos 50; e, finalmente, a poltica de incentivos fiscais da ditadura militar a partir dos anos 6036. A poltica de incentivos, ao subsidiar a formao do capital das empresas amaznicas, dando-

Rodovia Transamaznica na entrada de Altamira (Par). Ao fundo, o rio Xingu (1985).44

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lhes assim uma compensao pela imobilizao improdutiva de capital na aquisio de terras para abertura das fazendas (onde era esse o caso), promoveu a aliana entre os grandes proprietrios de terra e o grande capital. Nesse quadro, o deslocamento da frente pioneira sobre as terras j ocupadas pela frente de expanso foi acelerado37 e deu superposio dessas distintas frentes de ocupao territorial uma violenta dimenso conflitiva. Tornaram-se freqentes e numerosos os despejos violentos e dramticos de posseiros das terras que ocupavam. Com ou sem base em deciso judicial, os supostos donos, muitas vezes apoiados em documentos falsos, tm conseguido com facilidade o reconhecimento de direitos indevidos. A acelerao do avano da frente pioneira em diversas regies adiantou-se prpria frente de expanso e entrou diretamente em contato com as populaes indgenas. Se nos anos 70, no Mato Grosso, a distino entre as duas modalidades de ocupao territorial ainda podia ser facilmente feita, o mesmo no se deu nos anos 80, no Par. Aqui os ndios ainda em fase incipente de integrao na sociedade nacional combateram diretamente as grandes empresas modernas que se instalavam em sua regio com grandes fazendas, interditando-lhes o acesso s terras que pretendiam ocupar. Foi o que ocorreu especialmente com os Kayap. No Mato Grosso, os Xavante e os Bororo s reagiram contra os fazendeiros aps passar um certo tempo de sua pacificao. Especialmente os primeiros, atacando fazendas j instaladas em seus antigos territrios e retomando-as. Porm, o avano da frente pioneira sobre a frente de expanso e a conflitiva coexistncia de ambas mais do que contraposio de distintas modalidades de ocupao do territrio. Ao coexistirem ambas na situao de fronteira, do aos conflitos que ali se travam, entre grandes proprietrios de terra e camponeses e entre civilizados, sobretudo grandes proprietrios, e ndios, a dimenso de conflitos por distintas concepes de destino. E, portanto, dimenso de conflitos por distintos projetos histricos ou, ao menos, por distintas verses e possibilidades do projeto histrico que possa existir na mediao da referida situao de fronteira. Essa situao de fronteira um ponto de referncia privilegiado para a pesquisa sociolgica porque encerra maior riqueza de possibilidades histricas do que outras situaes sociais. Em grande parte porque mais do que o confronto entre grupos sociais com interesses conflitivos, agrega a esse conflito tambm o conflito entre historicidades desencontradas. No meu modo de ver, o encontro de relaes sociais, mentalidades, orientaes historicamente descompassadas, at propriamente no limite da Histria, introduz a mediao das relaes mais desenvolvidas e poderosas na definio do sentido das relaes mais atrasadas e frgeis, ou melhor, das relaes diferentes, com outras datas e outros tempos histricos. A sobreposio da frente pioneira e da frente de expanso produz uma situao de contemporaneidade dessas relaes de tempos distintos. E nela a mediao das relaes mais desenvolvidas faz com que a diferena aparea, na verdade, como atraso. As relaes mais avanadas, mais caracteristicamente45

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capitalistas, por exemplo, no corroem nem destroem necessariamente as relaes que carregam consigo a legitimidade de outras pocas. Portanto, nesses casos, a diferena no tem sentido como passado, mas como contradio e nela como um dos componentes do possvel, o possvel histrico de uma

Mandioca pubando na gua do igarap para fabricao de farinha em roa de posseiro, na frente de expanso do norte do Mato Grosso (1979).

sociedade diversificada, que ganha sua unidade na coexistncia das diferenas sociais e tnicas. Seria muito ingnuo imaginar que elas constituem uma receita de tendncias histricas. Isso no quer dizer, muito ao contrrio, que o capital no estenda sobre o territrio da frente de expanso uma rede de relaes comerciais para nelas integrar os produtos da indstria extrativa ou mesmo os produtos agrcolas, especialmente os que so tpicos da subsistncia regional, como a farinha de mandioca, o arroz, etc. Ou, at, estenda seus vnculos diretamente s populaes indgenas acuadas, como tm feito as grandes empresas na extrao de madeira e minrios nos ltimos tempos. E isso no transforma nem os camponeses nem os ndios em tpicos operrios de empresa capitalista. Isso no impede, tambm, que grandes empresas, dotadas de organizao empresarial e tcnica moderna e sofisticada, recorram peonagem, isto , a escravido por dvida, sobretudo nas atividades de derrubada da mata e de implantao de suas fazendas, o que prprio dos seringais e castanhais da frente de expanso. Como no impede, ainda, que bolses de populaes indgenas e camponesas sobrevivam no interior da frente pioneira, ou mesmo em regies de ocupao antiga, como ocorre no Nordeste e no Sul do pas, ainda que num certo sentido enclausuradas em terras de menor interesse econmico ou em territrios demarcados. E que, a partir da, se integrem marginalmente (ou no) no mercado de produtos agrcolas.Sobrevivncia e milenarismo no mundo residual da expanso capitalista

Justamente essa primeira constatao da diversidade das temporalidades histricas na fronteira sugere a possibilidade de um equvoco no uso das concepes de frente de expanso e frente pioneira como instrumentos de classificao e definio dessa realidade. Ainda que os gegrafos tenham acentuado a importncia da urbanizao, das modernas vias46

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de comunicao, dos empreendimentos econmicos modernos, da mentalidade moderna, sugeriram com razo a precedncia dos fatores econmicos no deslocamento da frente pioneira, o principal dos quais, sem dvida, a converso da terra em mercadoria. Entretanto, os que incorporaram a distino entre frente de expanso e frente pioneira, simplificadamente, como instrumentos de classificao e definio da realidade da fronteira, transferiram, inclusive os crticos, a precedncia do econmico para a anlise tambm da frente de expanso38. Com isso, o que prprio e caracterstico dessa ltima situao de fronteira se desfigura, aparecendo como etapa (e no como expresso de contradio), por exemplo, na expanso do capital na Amaznia. No meu modo de ver, as relaes sociais (e de produo) na frente de expanso so predominantemente relaes no-capitalistas de produo mediadoras da reproduo capitalista do capital. Isso no faz delas outro modo de produo. Apenas indica uma insuficiente constituio dos mecanismos de reproduo capitalista na frente de expanso. Insuficincia que decorre de situaes em que a distncia dos mercados e a precariedade das vias e meios de comunicao comprometem a taxa de lucro de eventuais empreendedores. Portanto, a tendem a se desenvolver atividades econmicas em que no assumem forma nem realidade prpria os diferentes componentes da produo propriamente capitalista, como o salrio, o capital e a renda da terra. Os meios de produo ainda no aparecem na realidade da produo como capital nem a fora de trabalho chega a se configurar na categoria salrio. Portanto, o produtor no tem como organizar sua produo de modo capitalista, segundo a racionalidade do capital. O capital s entra, s se configura, onde sua racionalidade possvel. Se a frente pioneira se define essencialmente pela presena do capital na produo, o mesmo no ocorre, portanto, na frente de expanso, que no se constitui pela precedncia do que ns definimos como econmico na

"Seu" Roxo, posseiro de economia excedente, apura o caldo de cana para fazer rapadura, seu acar caseiro, em Sta. Terezinha, Mato Grosso (1985).47

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constituio de seus modos de vida e da mentalidade de seus agentes. Embora sua dinmica resulte da ao e dos interesses do capital, combinados com as concepes prprias do campons e mesmo do ndio integrado39. A frente de expanso tornou-se, no fundo, o mundo residual da expanso capitalista, o que est alm do territrio cujas terras podem ser apropriadas lucrativamente pelo capital. Explico-me: tanto Monbeig quanto Waibel mostraram claramente que na frente pioneira o capital se torna proprietrio de terra, recria no terreno os mecanismos da sua reproduo ampliada. Expande-se sobre o territrio, de que se apossa como seu territrio. Essa expanso territorial traz para a prpria fronteira a infraestrutura da reproduo capitalista do capital: o mercado de produtos e de fora de trabalho e com ele as instituies que regulam o princpio da contratualidade das relaes sociais, que o que caracteriza a sociedade moderna. O mercado se constitui na mediao essencial que d sentido ao processo de ocupao do territrio. A frente de expanso tambm expanso de relaes mercantis. Mas, numa concepo inversa da expanso da produo propriamente capitalista. As relaes que na histria da fronteira no Brasil tem precedido o avano da frente pioneira propriamente dita no se caracterizam pela ao do empreendedor que expande a reproduo capitalista do capital no territrio novo. Antes, sua ao no sentido de estender as relaes mercantis alm dos limites do territrio propriamente incorporado na reproduo capitalista do capital. H um limite alm do qual no possvel extrair renda capitalista da terra. Provavelmente por isso, os territrios sobre os quais se move a frente de expanso so claramente marcados pela ausncia da propriedade fundiria moderna, predominando a posse efetiva ou o aforamento. A teoria da fronteira , no meu modo de ver, basicamente um desdobramento da teoria da expanso territorial do capital. Novos terrenos so ocupados de modo capitalista quando possvel extrair deles a renda capitalista da terra, ao menos a renda absoluta, isto , quando possvel embutir nos preos dos produtos nela cultivados, alm da renda territorial, a taxa mdia de lucro do capital40. Se a distncia em relao ao mercado a que o produto se destina implica em transferir ao transporte esse lucro, nenhum capitalista estar interessado em investir em atividades econmicas geograficamente localizadas alm de um certo limite41. Se o capitalista tiver que deduzir do seu lucro o preo do transporte para fazer o produto chegar ao mercado e a realizar o seu ganho, ele certamente haver de considerar a alternativa de outros investimentos para seu capital. Alm desse limite, est a frente de expanso, mas no a frente pioneira. Por isso, a frente de expanso est mais prxima da economia mercantil simples do que da economia capitalista e, ao mesmo tempo, est prxima da mera economia de subsistncia. O campons produz a seus prprios meios de vida, alm dos excedentes comercializveis. Ele no pode se inserir plenamente na diviso social do trabalho que rege o conjunto da economia. Porque se o fizer, ter que se especializar, dedicar-se de preferncia aos produtos mais rentveis naquela terra e naquele lugar. E adquirir no mercado48

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seus meios de vida. Ora, os meios de vida que circulam atravs do mercado so meios de vida cujo preo incorporou a taxa de lucro do capital que os produziu e/ou que os comercializou. Desse modo, eles impem reproduo de seus consumidores e da fora de trabalho a rentabilidade e a mediao do capital. Para que a fora de trabalho se reproduza ter que receber por seu produto o seu valor, isto , o que foi dispendido em meios de vida por quem trabalha, pois do contrrio a fora de trabalho no poder reproduzir-se. Onde a distncia do mercado no viabiliza a extrao da renda capitalista da terra, o campons ter que organizar sua economia em outras bases. Ele ter que produzir e assegurar seus prprios meios de vida. Com isso, poder vender seus produtos como excedentes e no como produtos cujo preo de venda pelo produtor esteja eventualmente baseado numa contabilidade de custos, como ocorre na atividade organizada em bases empresariais. Isso fica mais claro se considerarmos os produtos que tanto so produzidos na frente de expanso quanto na frente pioneira e nas regies antigas. No Brasil, de modo geral, um desses produtos o arroz. At a uma certa distncia do mercado consumidor, o arroz poder ser produzido de modo empresarial, como ocorre nas grandes regies arrozeiras do sul, do sudeste e do centro-oeste. A partir desse limite, isto , alm da frente pioneira, no poder ser produzido de modo empresarial. A partir da ter que ser produzido sem que o produtor possa assegurar sua sobrevivncia apenas com sua comercializao. Em conseqncia, a sobrevivncia do agricultor depender de que ele possa assegurar essa sobrevivncia por outros meios. Ele o faz organizando sua produo como uma atividade complementar da produo direta de seus meios de vida. A isso chamo de economia de excedentes para diferen-la de mera economia de subsistncia. Nela o excedente j aparece como tal na prpria produo. O essencial nessa interpretao que os meios de vida do agricultor no so imediatamente estabelecidos pela mediao do mercado. Mesmo que o campons venha a ter que comercializar tambm parte de seus meios de vida, ele sabe que est vendendo aquilo que originariamente fora destinado sua subsistncia. diferente da situao do assalariado e mesmo do pequeno agricultor capitalista que, no momento da produo, no sabe e no pode distinguir entre o que vai constituir seus meios de vida e o que vai constituir o excedente apropriado pelo capital, num caso, ou destinado sua prpria acumulao, no outro. O excedente do campons da frente de expanso um excedente concreto, produto de trabalho concreto, do mesmo modo que seus meios de vida. Os meios de vida de quem trabalha para o capital, como ocorre com o operrio ou o assalariado do campo, tem seu montante definido pela mediao do capital e materializao de trabalho abstrato e, portanto, social. No o prprio trabalhador que calcula e define quanto da produo vai se constituir em seus meios de vida. Muitas ressalvas tem sido equivocamente apresentadas a essa concepo. H, freqentemente, situaes concretas em que, embora o agricultor produza de fato seus prprios meios de vida, toda sua atividade est49

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dominada pela produo do excedente comercializvel. E mesmo que no esteja, seu estado de pobreza o leva freqentemente a reter para sua subsistncia e de sua famlia, o que sobra do que foi obrigado a vender ao comerciante e intermedirio. No raro tendo que endividar-se junto ao armazm para assegurar a sobrevivncia de sua famlia durante o ano, vendendo antecipadamente a colheita que ainda no fez, do produto que ainda no est maduro. Ao invs de

Ancoradouro no rio Xingu, em Altamira, infraestrutura viria da antiga frente de expanso revitalizada pela frente pioneira (1985).

vender a sobra previamente calculada da produo direta de seus meios de vida. Portanto, aparentemente no estaramos a em face de uma economia de excedentes, mas de uma autntica economia de mercado. As coisas, porm, no so assim. O excedente no o resto ou a 42 sobra . No se trata de que o agricultor assegure para si e sua casa a subsistncia e s depois venda o que sobrou. Trata-se de uma economia de excedentes porque o raciocnio que preside a organizao da produo, isto , o que plantar e sobretudo quanto plantar e at onde plantar est organizado a partir da idia de que do que se planta uma parte deveria destinar-se primeiramente subsistncia da famlia do produtor e um excedente deveria ser produzido para troca ou comrcio. O acrscimo no tamanho da roa em relao subsistncia depende da disponibilidade de fora de trabalho familiar ou da possibilidade de pagar a terceiros para que a faam. Essa uma das razes pelas quais a sada de casa do filho homem e adulto acarreta em geral uma reduo nas condies de vida da famlia, um certo empobrecimento43. O excedente depende de vrios fatores. De um lado, do nmero de braos na famlia. De outro lado, da fertilidade remanescente do terreno. Como em geral na frente de expanso o que se pratica agricultura de roa, h sempre necessidade de novas terras (e, portanto, de paulatino deslocamento dos agricultores em direo a terras virgens). Mas, depende, tambm, de que no ocorra uma doena na famlia, pois isso geralmente implica em despesas extraordinrias com remdios. O que muitas vezes leva a comercializar o50

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produto destinado prpria subsistncia e ao endividamento posterior para rep-lo quando se fizer necessrio. Situao que se repete quando algum desastre natural reduz a produtividade do trabalho, como chuvas excessivas ou seca. Muitas das dificuldades para compreender as peculiaridades e os efeitos dessa economia simples vm de pesquisadores que limitaram suas observaes, quando as fizeram, a regies em que a economia camponesa est em crise, sobretudo em conseqncia da sua maior dependncia do mercado devido a alteraes nas necessidades da famlia camponesa, quando a desorganizao da economia de excedentes j est adiantada. E sobretudo em regies em que as roas camponesas j esto cercadas pelas grandes fazendas de gado. Os camponeses no podem, por isso, concretizar o deslocamento cclico de suas roas para reas de mata prximas e terras virgens. O declnio da produtividade agrcola e o que , de certo modo, seu confinamento, comprometem a reproduo desse campesinato e a dinmica da frente de expanso. Mesmo que tais populaes se tornem acentuadamente dependentes do mercado e dos pequenos comerciantes de seus povoados, seu vnculo mercantil ser acessrio, limitado e marginal, no sentido de que no ele que organiza a totalidade do mundo campons. Em seu mundo, o mercado constitudo pelos precrios terminais de uma rede de aquisio de produtos agrcolas ou extrativos, adquiridos basicamente em troca de outros produtos, sobretudo industrializados, que chegam ao campons por preos vrias vezes multiplicados em relao aos grandes centros urbanos. Isso, porm, no quer dizer que, ao mesmo tempo, os comerciantes de povoado no constituam parte integrante e, mesmo, essencial desse mundo, como de fato constituem (cf. Keller, 1975, p. 681). Porm, os produtos no circulam de modo autenticamente mercantil, at por que tem a escassa presena o dinheiro, predominando as trocas44. Seus preos no refletem o mercado, mas as condies monopolistas da comercializao e, sobretudo, o poder pessoal do comerciante. No geral, a troca se d no interior de uma relao que sobretudo patriarcal relao de dominao. Estamos, portanto, em face de uma insero imperfeita do campons no mercado porque imperfeito e no-capitalista o mercado que chega at ele e que procura envolv-lo em sua teia de explorao econmica. Essa a forma da converso, pelo capital comercial e usurrio, do excedente fsico em lucro. A frente de expanso no tem sido apenas constituda pelo campesinato. Nela, h uma grande diversidade de personagens, atividades econmicas e relaes sociais especficas. H uma espcie de burguesia de fronteira que muitas vezes toma a iniciativa pela expanso desses modos marginais de produo das mercadorias. Ela responsvel pela implantao desses terminais de suco de produtos e desproporcional distribuio de mercadorias trazidas de fora. A frente de expanso est mais prxima das relaes servis de trabalho do que das relaes propriamente capitalistas de produo. Os casos51

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Violeiro que cantou a saga dos posseiros do povoado de Sta. Terezinha, norte do Mato Grosso, em conflito com a nova fazenda de um banco paulista (1979).

de peonagem ou escravido por dvida, no Brasil, ocorrem com muito mais freqncia na frente de expanso do que nas outras regies. evidente que so relaes produzidas no processo de reproduo ampliada do capital, que recorre a mecanismos de acumulao primitiva em certos momentos dessa reproduo ampliada (cf. Martins, 1995, p. 1-25), isto , recorre seja ao confisco de bens, como a terra, seja ao confisco de tempo de trabalho mediante ampliao da margem de trabalho no pago. Tem sido caracterstico da frente de expanso, no Brasil, a ausncia da propriedade formal da terra, esta ltima constituda de simultneos direitos de posse e domnio. A populao camponesa geralmente posseira ou ocupante de terra, sem ttulo de propriedade. Os patres, onde os h, foram durante longo tempo, at h poucos anos, ou meros posseiros, como os camponeses, ou arrendatrios de terras pblicas, pagando ao Estado foros quase simblicos e, sobretudo, pagando com favores polticos e eleitorais, de tipo clientelista, as concesses territoriais recebidas (cf. Emmi, 1988, p. 92-93). Essa precria relao de pobres e ricos com a posse da terra na frente de expanso no s resultado da precria institucionalizao do direito de propriedade, mas tambm resultado de que tais territrios esto fora do circuito rentvel da renda da terra ou da aplicao de capital na aquisio de terrenos. Se na frente pioneira a racionalidade econmica e a constituio formal e institucional das mediaes polticas esto visivelmente presentes em todos os lugares e momentos, j na frente de expanso notrio o predomnio dos valores sociais, das crenas, do imaginrio na formao, definio e sustentao dos vnculos sociais. A com freqncia os instrumentos da economia mercantil, especialmente o dinheiro, chegam como expresso do mal e do diablico. O que se explica porque nela o poder de corroso dos processos econmicos extremamente mediatizado, no atua diretamente e imediatamente sobre mentes e relaes sociais. No meu modo de ver, isso est relacionado com a produo direta de meios de vida e a produo complementar (mesmo que em primeiro lugar) de excedentes para escambo e comrcio. O dinheiro e a mercadoria no so direta e predominantemente responsveis pela reproduo social. E, nesse caso, quanto mais marginal e, ao mesmo tempo, corrosiva e violenta a insero no mercado, mais se acentua a fora do imaginrio no modo de vida dessas populaes e na tentativa de compreenso de seus prprios dramas e misrias. Nesse sentido, no se pode compreender a frente de expanso reduzindo-a expresso material de simples busca de terra por parte dos camponeses pobres expulsos das reas de latifndio, sobretudo no nordeste. Essa busca no raro precede o prprio ato de expulso ou, ento, quando o sucede, tem caractersticas muito diversas da de uma sbita desagregao de vizinhana. Ela tende a se definir no ambiente do ajustamento precrio a uma nova situao decorrente da expulso, a um novo relacionamento do homem com a natureza, freqentemente envolvendo perda cultural, realidades novas que impem redefinio de costumes e tradies. Sobretudo porque essas

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mudanas acarretam desagregao de grupos de constituio antiga, no mais das vezes apoiados numa estrutura de vnculos de parentesco real ou ritual. Uma certa conscincia de proximidade do fim dos tempos, decorrente de uma sensao de inexplicvel de-moralizao, privao, provao e castigo impe s vtimas da expropriao material e cultural uma certa compreenso apocalptica dos acontecimentos45. A busca tem um forte carter comunitrio, o que se v claramente nos locais de imigrao ao longo do Tocantins e do Araguaia e mesmo em Rondnia. Em parte porque esses grupos so constitudos por extensas parentelas, agregando ascendentes, descendentes e colaterais, grupos que mesmo uma dramtica adversidade econmica no destri. Um certo simplismo economicista sugere que a expropriao produz mecanicamente a individualizao e a integrao no mercado de trabalho, j no mais do grupo, mas de cada um de seus antigos membros. No entanto, as evidncias mostram que mesmo quando, aparentemente, as coisas ocorrem desse modo, com as migraes para as grandes cidades, o que temos o contrrio: migraes temporrias em grupo do lugar a migraes definitivas feitas aos poucos, geralmente comeando pelos mais jovens, depois os homens e finalmente a famlia toda. A migrao dos membros de uma famlia tende a durar muitos anos, at que todos se transportem de um lugar a outro46. Em parte, tanto num caso quanto noutro, porque esses grupos se concebem como comunidades de destino e de pertencimento. De certo modo, da mesmo maneira que para as populaes indgenas, esse pertencimento inclui os ancestrais. A insistncia com que algumas tribos tentam recuperar terras ancestrais, como o caso dos Xavante, tem a ver, em parte, com a localizao de seus cemitrios. O sentido do dilaceramento que a destruio desse mundo desperta no ntimo de muitos camponeses da frente de expanso pode ter uma intensidade dramtica de difcil identificao a partir de esquemas convencionais de participao. A histria das frentes de expanso no Brasil, neste sculo, inclusive no sul, tem sido ao mesmo tempo a histria do milenarismo campons47. Praticamente todos os movimentos milenaristas ou messinicos do perodo ocorreram nas frentes de expanso, ou em bolses de tradicionalismo em que o modo de vida idntico ao que pode ser observado naquelas, e ocorreram nos momentos em que os camponeses estavam sendo expulsos da terra ou estavam ameaados de expulso. Pude observar diretamente que as migraes espontneas do nordeste para a Amaznia, para um nmero muito grande de pessoas, esto motivadas por concepes milenaristas. Em diferentes pontos de uma extenso de cerca de oitocentos quilmetros ao longo do rio Araguaia encontrei diversos grupos de camponeses que chegaram regio inspirados pelas profecias do Padre Ccero sobre a existncia de um lugar mtico depois da travessia do grande rio. E tive notcia de um grupo desgarrado, empenhado na mesma busca, que se estabelecera beira do rio Tocantins. Esse lugar mtico reconhecido como o lugar das Bandeiras Verdes, que ningum sabe dizer exatamente o que 53

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nem onde . Mas, seria reconhecido quando fosse encontrado, por ser um lugar de refrigrio, de guas abundantes, de terras livres, em contraste com o nordeste rido e latifundista48. Trata-se, claramente, de milenarismo medieval e europeu, como prprio da maioria dos casos de milenarismo no Brasil. Os que procuram as Bandeiras Verdes andam em grupos. Geralmente so grupos de parentes e vizinhos no local de origem. Sua trajetria dos pontos de origem no nordeste aos lugares em que se estabeleceram varia de seiscentos a oitocentos quilmetros. O deslocamento lento, em vrios casos tomando dos peregrinos muitos anos, com paradas demoradas ao longo do trajeto. O fenmeno vem ocorrendo h uns quarenta anos aproximadamente e se tornou muito intenso nos anos 70. extremamente significativo que os peregrinos se desloquem na direo leste-oeste, que a mesma direo do deslocamento da fronteira e do movimento de efetiva ocupao do territrio. Geralmente seguem o sentido de orientao da Via Lctea, a que chamam de Caminho de So Tiago. Lembro aqui que So Tiago o mesmo Saint Jacques que d nome s jacqueries, s revoltas camponesas. E o Caminho de So Tiago o mesmo Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, seguido pelos peregrinos que no tempo das Cruzadas partiam para a Terra Santa, para a guerra contra os infiis e para resgatar o tmulo de Cristo. Nesse sentido, o deslocamento atual, na direo supostamente indicada pela Via Lctea, segue um rumo oposto ao do percorrido pelos cruzados na Idade Mdia europia. Lembro, tambm, que Compostela campo de estrelas, isto , a Via Lctea. Portanto, na fronteira, h um imaginrio mstico, que mescla e adapta ao sentido de movimento prprio da frente de expanso, vrios e diferentes componentes do imaginrio medieval. Pode-se dizer que adapta na medida em que a realidade que sustentava esse imaginrio, na origem, era a do movimento do oeste em direo a leste. Aqui o contrrio, como se os camponeses recorressem ao que parece ser o arqutipo do confronto com o desconhecido, com a natureza, com o outro e, sobretudo, com o prprio limite do humano. H um certo componente de guerra santa nesse universo, como ocorreu numa frente de expanso do sul do pas, de 1912 a 1916, quando houve a chamada Guerra do Contestado49. como se a humanizao do homem tivesse em qualquer circunstncia a dimenso de uma peleja mortal, no s entre Deus e o diabo, mas entre o humano e o inumano. As influncias das heresias medievais se anunciam atravs das inverses das relaes sociais: nos opostos que est o sentido do que aparentemente perdeu o sentido. No Contestado, era preciso morrer para renascer no exrcito divino de So Sebastio; os velhos deveriam se tornar jovens, a sabedoria e o poder estavam com as crianas. Alm disso, quem no se recolhesse aos redutos santos era inimigo. Alm dos seguidores da Bandeira Verde, h outros grupos de camponeses peregrinos como o de Maria da Praia, que h muitos anos se desloca de Minas Gerais, no sudeste, para o Norte. Depois de alguns anos atravessando Gois e Mato Grosso, o grupo se encontra hoje no Par50.54

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Na frente de expanso do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, em 1955, o milenarismo de um pequeno grupo de camponeses assumiu a forma de alucinao coletiva e durou uns poucos dias. A tambm a inverso se deu pela troca de nomes das pessoas, pelo recebimento de um novo nome. Ao mesmo tempo, promoveu a configurao do inimigo: os possudos pelo demnio (cf. Castaldi, 1957, p. 17-130). H muitas indicaes de joaquimismo nesses movimentos, inclusive nos recentes, na Amaznia. Isto , aparentemente h influncias das idias de Gioacchi