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163 5 TRANSFORMANDO O TÉDIO EM MELODIA ... - A afetividade na práxis pedagógica - “ E ser artista no nosso convívio Pelo inferno e céu de todo dia Pra poesia que a gente não vive Transformar o tédio em melodia” (Frejat/Cazuza) Fig. 4- Grupo Coração de Professor: “A dor e e a delícia de ser professor”. 2004 Nos capítulos anteriores, analisamos o contexto histórico do desenvolvimento do trabalho docente e as atuais políticas de formação de professores que permeiam sua prática, tendo como condutores os afetos que emergem desta realidade e os entraves que provocam mal-estar. Percebemos que na história da educação a pessoa do professor foi ignorada pelas políticas públicas ao negar a sua subjetividade e sua consciência crítica, abafando sua vez e voz nas propostas e mudanças voltadas para a formação e desenvolvimento profissional. Vimos que, apesar das divergências teóricas, os estudos sobre formação docente sustentam que o professor é a figura principal para qualquer transformação que ocorra no processo educacional. Observamos também que, para ser compreendido, o professor deve ser olhado na sua complexidade sócio-histórica, o que implica vê-lo em sua totalidade pessoal e profissional (biológica, psicossocial e histórica). Lembramos que o sujeito é a síntese de sua história, as mudanças ocorridas nela transformam a consciência e, conseqüentemente, o comportamento (MARX, 1987; VYGOTSKY,1984 ; WALLON, 1968). Na visão sócio-histórica, a pessoa é multideterminada pelos componentes orgânico, afetivo e cognitivo, e tais componentes são interdependentes e integrantes na sua constituição e assim na formação da sua consciência.

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5 TRANSFORMANDO O TÉDIO EM MELODIA ...

- A afetividade na práxis pedagógica - “ E ser artista no nosso convívio Pelo inferno e céu de todo dia Pra poesia que a gente não vive Transformar o tédio em melodia”

(Frejat/Cazuza)

Fig. 4- Grupo Coração de Professor: “A dor e e a delícia de ser professor”. 2004

Nos capítulos anteriores, analisamos o contexto histórico do desenvolvimento do trabalho

docente e as atuais políticas de formação de professores que permeiam sua prática, tendo como

condutores os afetos que emergem desta realidade e os entraves que provocam mal-estar.

Percebemos que na história da educação a pessoa do professor foi ignorada pelas políticas

públicas ao negar a sua subjetividade e sua consciência crítica, abafando sua vez e voz nas

propostas e mudanças voltadas para a formação e desenvolvimento profissional.

Vimos que, apesar das divergências teóricas, os estudos sobre formação docente

sustentam que o professor é a figura principal para qualquer transformação que ocorra no

processo educacional. Observamos também que, para ser compreendido, o professor deve ser

olhado na sua complexidade sócio-histórica, o que implica vê-lo em sua totalidade pessoal e

profissional (biológica, psicossocial e histórica).

Lembramos que o sujeito é a síntese de sua história, as mudanças ocorridas nela

transformam a consciência e, conseqüentemente, o comportamento (MARX, 1987;

VYGOTSKY,1984 ; WALLON, 1968). Na visão sócio-histórica, a pessoa é multideterminada

pelos componentes orgânico, afetivo e cognitivo, e tais componentes são interdependentes e

integrantes na sua constituição e assim na formação da sua consciência.

Page 2: 5 TRANSFORMANDO O TÉDIO EM MELODIA - A afetividade na … · 2018. 5. 8. · 164 Desse modo, percebemos o professor como sujeito do seu trabalho, reconhecendo que seu processo identitário,

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Desse modo, percebemos o professor como sujeito do seu trabalho, reconhecendo que seu

processo identitário, a formação de sua consciência, e de sua afetividade fazem parte dos seus

saberes e técnicas, não sendo nenhum destes componentes mais ou menos importantes, mas

alternantes e integrados. Isto implica considerar a dimensão subjetiva do trabalho docente como

indispensável nos programas de formação e profissionalização.

Neste capítulo, trazemos para o foco de análise esta dimensão. Apresentamos os afetos

que emergem das interações no seu processo de tornar-se professor e seus reflexos na identidade

e na formação profissional. Ao mesmo tempo, buscamos relacionar as características desta

relação com os aspectos concernentes à ludicidade, apresentados no segundo capítulo desta

dissertação.

Para tanto, retomamos as categorias fundamentais para entendimento desta discussão: a

afetividade e a ludicidade, discutidas no segundo capítulo, e assim, relacioná-las com a

identidade profissional e a formação do docente.

Já expressamos que a afetividade é a energia que mobiliza o sujeito para o mundo, sendo

um dos campos funcionais da formação humana, abrangendo as emoções e os sentimentos. Dessa

forma, o desenvolvimento profissional do professor depende da sua capacidade de “afetar” o

outro com suas atitudes, sua ação, seu conhecimento. A emoção, como base da consciência

social, desempenha papel na sua ação inter e intrapessoal, campos onde se elabora o

conhecimento.

Para Wallon (1968), no desenvolvimento, os aspectos motor, afetivo e cognitivo, são

partes de um todo, são complementares e inter-relacionados. Assim, podemos inferir que o

processo identitário do professor é composto destes aspectos que se alternam e se integram

dinamicamente.

Congruente com este pensamento, Vigotski (2001) lembra que toda emoção é um

chamamento à ação ou renúncia 89a ela, pois ela regula as reações do organismo: retesando,

excitando, estimulando ou inibindo as ações. Entendemos que, sendo um organizador interno das

reações, a emoção ocupa lugar imprescindível para análise do trabalho docente e por isso

qualquer política de formação de professores deve levar em conta o aspecto afetivo na

89 Vigotski (2001) explica que tendemos a continuar fazendo algo que nos traz alegria e tendemos a renunciar as ocupações que nos trazem repulsa.

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aprendizagem e na atuação profissional. Assim teremos maior clareza dos motivos que fazem os

professores desistirem ou renunciarem e aqueles que os levam a persistirem no seu papel.

A esse respeito, Soratto e Olivier-Hecler (1999), no seu estudo sobre o mal-estar docente,

assinalam que a vida cotidiana no professor é enriquecida por uma demanda afetiva, exigindo sua

presença de corpo e alma. Tais autoras perguntam: “E por que o trabalhador vai querer um

trabalho tão exigente e tão mal remunerado como esse?” (ibid p. 121).

Elas respondem que o trabalho docente possui características desejáveis e desejadas que

desafiam ao trabalhador e estimulam seu desenvolvimento, explorando suas potencialidades e

levando-o a descobrir coisas. As autoras listam algumas dessas características, tais como:

flexibilidade, possibilidade de controle sobre o processo, demanda de expressão afetiva,

necessidade de criatividade e inovação. E acrescentam:

Num trabalho assim, um trabalhador consegue ter prazer naquilo que realiza, não só porque ver claramente o benefício que está fazendo para o outro, o que é extremamente gratificante, mas principalmente porque consegue ver os benefícios que o trabalho faz para si mesmo.Consegue ver mudanças na sua pessoa. Após anos de trabalho percebe que mudou, que ficou mais experiente, que as dificuldades de um tempo atrás, as quais pareciam intransponíveis, puderam ser superadas, passa a ver outras coisas que não via antes e que tornam agora desafiadoras. Tudo faz com que as pessoas se sintam ativas, vivas, participantes efetivas do mundo em que vivem. (ibid, p. 121)

Inferimos que é neste lugar de vivacidade, criatividade e prazer onde se insere o aspecto

lúdico no trabalho docente. Já expressamos no segundo capítulo que a ludicidade, como uma das

dimensões constituintes do ser humano, está presente em qualquer idade, sexo ou classe social. A

ludicidade é relativa àquele que joga e brinca e envolve afetos como alegria, tensão e prazer,

ações que tendem a ser repetidas segundo o regulador orgânico: a emoção90.

Tais ações são realizadas num processo de interação social: “ Jogo é uma atividade em

que se reconstroem sem fins utilitários diretos, as relações sociais” (ELKONIN,1998). E por isso

envolvem vínculos e estão internamente implicadas de afetividade.

Assim, concordamos com Porto e Cruz (2002), quando garantem que na formação

docente “a capacidade lúdica do professor é um processo que precisa ser pacientemente

trabalhado pois não é imediatamente alcançada”. É preciso que o professor compreenda a

importância psicológica e sociocultural da ludicidade, não só teoricamente, mas vivenciando

90 “Se fazemos alguma coisa com alegria as reações emocionais de alegria significam nada senão que vamos continuar tentando fazer a mesma coisa” (Vigotski, 2001, p. 139).

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situações lúdicas que lhe proporcionem regular suas próprias reações ao ter espaço para

expressão dos sentimentos e desenvolvimento de sua criatividade.

Para ilustrar, apresentamos a seguir uma carta da professora Vânia escrita para si mesma,

no curso de extensão, em um dos encontros do grupo focal, após uma vivência lúdico-corporal

denominada: ‘O lugar do corpo do professor na Educação’91: “Salvador, 10 de setembro de 2004 Querida professora Vânia,92

Hoje foi um dia muito especial para mim pois através de uma vivência, feita no curso Coração de Professor, pude conviver e externar um pouco, sentimentos que há muito tempo guardados.

Senti e percebi o quanto é conflitante e antagônico o meu desejar, no mesmo momento em que anseio por mudanças, gostaria de me acomodar, com se a transformação sugerisse algo de temeroso.

Nesta vivência, teve momentos que eu tinha que dizer que queria mudar e em outros, que eu não queria mudança. Confesso que me senti bem melhor desempenhando o papel daquele que não queria mudança. Em momentos que eu tinha que dizer “Eu não sei nada’, foi mais fácil para mim, do que nos momentos que eu tinha que dizer “Eu sei tudo”.

Não foi agradável para mim, fazer o papel daquele que tem brilho e sim daquele que se escondia dizendo “eu sou um fracasso”.

Engraçado é que eu sentia uma vontade enorme de falar, portanto, ficar calada me deu um grande trabalho, tive que ter uma grande disciplina.

Foi muito boa esta experiência, pois, acima de tudo, mesmo tendo uma colega como parceira, representando um papel contrário ao meu, eu senti como se ela fosse um espelho e é assim que eu me vejo o tempo inteiro em conflito com eu mesma.

Sabe Vânia, isso foi muito bom, foi muito bom, pois agora vou conviver melhor comigo mesma, compreendendo e re-significando a minha vida tanto pessoal, quanto profissional. Mudanças são boas e necessárias, não podemos e nem devemos fugir delas. Conflitos internos existem para nos alertar do quanto fomos antagônicos no modo de pensar e agir, se somos assim conosco mesmo, imagine na nossa relação com o outro?

Portanto, antes de tentarmos conhecer o outro, precisamos primeiro conhecer a nós mesmos profundamente e retirar de lá do fundo sentimentos que insistimos em esconder.

Um beijo de sua maior fã, Vânia”

Diante do exposto, podemos inferir que a afetividade e a ludicidade, como dimensões

essenciais do desenvolvimento humano, podem ser também a base de qualquer projeto educativo,

seja formal ou informal. Neste sentido, não podemos compreender o trabalho do educador sem

considerarmos os sentimentos envolvidos no seu processo de escolha, aprendizagem e atuação

neste ofício.

91 Ver APÊNDICE L. 92 Carta da professora Vânia feita para ela própria após uma vivência no sexto encontro do grupo pesquisado.

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Desta forma, podemos indagar quais são os sentimentos envolvidos na escolha

profissional? Quais são os afetos que estão presentes na identificação com o trabalho

educacional? Quais as emoções presentes nas relações interpessoais desenvolvidas no cotidiano

da práxis pedagógica? Onde está presente o aspecto lúdico, que traz plenitude, prazer e

vivacidade, na experiência pedagógica?

Para debatermos estas questões, dividimos este capítulo em quatro partes

interdependentes e inter-relacionadas pelas categorias retrocitadas. A primeira parte trata da

escolha e da identificação com a profissão. A segunda discute os dados do nível de satisfação

profissional e os motivos que contribuem para que o professor persista no seu papel. A terceira

parte é mais especifica e focada nos aspectos subjetivos que envolvem o professor e sua práxis .

E a quarta e última, as relações interpessoais ou vínculos estabelecidos no ambiente escolar.

5.1 “ESTAVA ESCRITO NAS ESTRELAS” : escolha e processo de identificação profissional

Fig. 5 – Grupo Coração de Professor: “Escolha profissional”..2004

O tema da escolha e o processo de identificação na profissão só foram possíveis de

trabalhar com o grupo no décimo primeiro encontro 93, momento em que os professores estavam

mais integrados, menos defensivos e com um nível de confiança maior nos seus colegas. Sobre

este encontro, destacamos alguns trechos da nota de campo: Neste encontro fiquei um pouco apreensiva, pois o grupo demorou para chegar. Havia planejado um

trabalho de centramento nos chackras,, como ritual de entrada, mas tive que retirar por causa do tempo. Com a ajuda de uma observadora participante, iniciamos o encontro com a dança circular ELM, para sensibilizar o

93 Vede APÊNDICE M.

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grupo acerca do tema “escolha vocacional”, a dança trabalha com os três tempos da vida: passado, presente e futuro.[...]. Após alguns informes e a partilha do encontro passado, pedi que cada um procurasse um lugar na sala e se acomodasse nele da melhor maneira possível simbolizando seu lugar na terra, comecei então adaptando a vivência “Acordar os sentidos” e a técnica do” Círculo da vida”94visando sensibilizar o grupo para história de suas aprendizagens e as origens e sua escolha vocacional.[...]. Após o centramento os professores foram convidados a realizarem uma colagem sobre o tema, através das seguintes questões: • O que me levou a escolher esta profissão? • Onde, como e quando ocorreu esta aprendizagem? • Por que me identifico com esta área?

Os professores, por meio de seus cartazes, mostraram satisfação na sua escolha e forte

identificação com a profissão, apesar de apresentarem motivos diferentes para esta opção. As

gravuras mostravam palavras e imagens de mudança, coragem, paixão, alegria, gente, vida, um

copo de onde saem várias idéias (produção dos conhecimentos) e outras. A seguir, descreveremos

os dados coletados no referido encontro, com a força dos significados que carregam,

consolidados em dois blocos de análise: sentimentos que emergiram da escolha e seus motivos e

o compromisso surgido no processo de identificação profissional.

5.1 “Eu estou muito feliz por ser professora”: afinidade com a área.

Através da apresentação dos cartazes, notamos que o processo de “escolha” não ocorre

subitamente; por trás dele há uma edificação de desejos, renúncias, frustrações, relações

afetivas que contribuem para aproximação dos professores com a área de educação. Percebemos

aí a relevância do estudo deste processo para maior clareza da relação entre afetividade e

trabalho. Os depoimentos a seguir chamam atenção pela felicidade revelada pelos professores

por terem optado pela profissão.

Prof.ª Solange: Na realidade, eu não pensei em ser professora, não tinha pensado em ser professora. No início, quando eu comecei a estudar, a fazer vestibular, eu queria fazer medicina. Mas meu pai sempre me chamou de professora. Se ele chegasse, por exemplo, aqui agora ele ia dizer: ô professora, está aqui fazendo o quê? E comecei a tomar curso de inglês e vi que eu tinha afinidade para o aprendizado. Aí que eu vi, que eu fui prestar vestibular para letras. Eu já estava casada, já tinha meus dois filhos, quando eu fui realmente fazer o vestibular. Porque eu tinha perdido as outras vezes para fazer medicina que era o que eu queria desde o início. E aí, eu mergulhei de cabeça, porque tudo que eu faço eu me comprometo, eu tenho uma responsabilidade muito grande, isso faz parte da minha vida prática mesmo. [...]

94 Vede descrição APÊNDICE P.

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A professora Solange declara que não escolheu inicialmente a sua profissão. Sua identificação

com ela foi criada após as perdas no vestibular para Medicina, que a conduziram às novas buscas.

Nas aulas de Inglês, descobriu que tinha afinidade, sem esquecer que seu pai esteve presente na

sua história lhe sugerindo, direta ou indiretamente, o ofício.

Por isso, tais fatores serviram como referencias para sua opção. Dessa forma, percebe que

foi se tornando professora, e, no seu processo de aprendizagem da profissão, foi criando vínculos

e superando frustrações, como observamos na complementação do seu discurso a seguir:

[...] E aí eu digo assim, eu fui me tornando professora e ainda estou me tornando professora. Porque a cada dia, eu aprendo uma coisa diferente e vejo que esse aprendizado é inesgotável. Eu me tornei na realidade professora, de uma forma, graças a Deus, eu posso dizer assim, amorosa, boa, de bem. Não foi uma briga que eu fui obrigada assim, você não tem outra opção, você está desiludida. Eu aceitei e hoje eu não tenho trauma de não ter sido, não ter continuado a tentar vestibular para medicina... Eu já internalizei de uma forma muito bacana a questão de ser professora. De aceitar de bem mesmo. Eu me tornei, estou me tornando, né?

Precisamos exprimir a idéia de que a escolha profissional, nem sempre começa como

opção propriamente, vai sendo incorporada à identidade dos professores por meio deste processo

gradativo de internalização e amadurecimento de sua afetividade. Tal processo envolve a história

pessoal do professor que se desenvolve a partir de sua sociabilidade, de sua herança cultural e

social. Podemos esclarecer esta afirmação mediante os dos princípios teóricos dos estudos de

Wallon (1968) e Vygotsky (1996) sobre a sociabilidade e a historicidade do ser humano e a

Miguel Arroyo (2000), quando explica a identificação profissional.

Para Wallon, a sociabilidade do sujeito é uma necessidade básica da condição humana;

para ser é preciso conviver, pois é o outro que dá referência a nossa existência, concreta e

simbólica. Na formação da identidade, os sentimentos vão evoluindo a partir das respostas

sociais oferecidas aos apelos ou necessidades da pessoa, ou seja, mediante a apreensão de

valores, instrumentos, crenças, técnicas, idéias e afetos predominantes do meio cultural

(MAHONEY e ALMEIDA, 2000. p. 28). Podemos ilustrar esta premissa com o depoimento da

professora Juliana: A minha mãe era professora, era diretora de uma escola... Eu estava na faculdade, fazendo psicologia, escolhi que queria trabalhar com gente. Estes dois últimos anos escolhi ser professora...estes dois últimos meses...eu descobri como é gostoso ser psicóloga também. Descobri que minha profissão está interligada ao ‘ser professor’. No cartaz eu me coloquei entre as outras pessoas. E hoje sendo professora ou aprendendo a ser professora, acho que ainda estou na fase de aprender ainda. Acho que estou feliz demais no mundo... vivendo a natureza, repensando meus valores morais dentro esta história d ser professor. Então para mim está sendo muito mais que descobrir uma profissão, mas descobrir o que é ser Juliana.

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Sobre este processo de identificação, Vygotsky (1996 ) explica a sociabilidade por

intermédio da internalização, momento em que a pessoa cria representações do real, ou seja,

interpreta a realidade, criando símbolos e incorporando-a à sua própria estrutura. O mundo

cultural apresenta-se como o “outro”, como referência externa, o qual, ao ser internalizado,

apresenta ao sujeito limites e possibilidades de formação pessoal. Portanto, o desenvolvimento

completo do indivíduo dá-se a partir do contato com o meio sociocultural, a exemplo da

professora Juliana, que ao ampliar seus referenciais (família, faculdade, experiência profissional),

descobre outros valores e possibilidades de atuação.

Convergindo com esta linha de análise, Arroyo (2000) garante que o aprendizado do

ofício acontece por imitação e contágio; a identidade pessoal e profissional se constrói na

convivência com o outro: observando e significando a postura, o comportamento os valores do

outro. As experiências familiares e escolares narradas pelos professores pesquisados mostram

como acontecem esta imitação e este contágio, por exemplo, quando a professora Vânia nos

conta sua história:

Bom professora! Eu acho que já nasci professora estava escrito nas estrelas. As minhas brincadeiras só era de professora . Eu botava os bonecos para meus alunos , meus primos. Eu enchia o saco de todo mundo querendo ensinar. [...] Então, estava escrito nas estrelas.

Fig.6. Cartaz da prof.ª Vânia. 2004

Notamos também, nestes depoimentos, que as brincadeiras infantis se inseriram na

história das aprendizagens de cada um para o ofício. Por meio da brincadeira de professor/

professora, os símbolos foram internalizados e reelaborados, constituindo um conjunto de

significações, ou seja, uma cultura específica na história pessoal. É que notamos na interpretação

a seguir:

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Prof.ª Isabel: Eu sempre gostei de brincar de professora com minhas coleguinhas [...]. Ao fazer o magistério eu realmente me apaixonei! Fui uma excelente estagiária, frase de um cartão bonito da minha professora regente. No cartaz meus aluninhos e as questões de educação: amar, doar, viver, ser, fazer, refazer, reviver, re-ser , re-amar, re-aprender, re-conquistar, re-avaliar, acontecer. E este acontecer está aqui nas estrelas que vão brilhar... e que este Brasil precisa tanto. Então quando botei esta casinha aqui é a minha pobreza, mas graças a Deus, com muita felicidade a alegria na Escola.[...} Eu estou muito feliz por ser professora!

Fig. 7. cartaz da prof. Isabel..2004

Este depoimento nos faz reconhecer mais uma vez o aspecto cultural da ludicidade,

destacado por Wallon (1968), Vigotsky (1988), Brougérè (1998) e Elkonin (1998). Tais autores

sustentam que o lúdico permite à pessoa estabelecer uma relação aberta e positiva com a cultura.

Sobre este assunto, Brougérè (1998) nos alerta para noção de que, embora o jogo não seja o único

processo de socialização da criança, ele se apresenta como fato social que produz uma cultura

específica e, ao mesmo tempo, é produzido por ela, ou seja, pelas interações sociais e simbólicas

nela existentes.

Por outro lado, Luckesi (2002, p.38), ao fazer uma leitura psicanalítica das atividades

lúdicas, acentua que estas são instrumentos de criação da identidade pessoal. Nesta leitura, o

autor explica que, por meio da brincadeira e do jogo, as crianças fazem o trânsito do mundo

subjetivo simbólico com a mãe, para o mundo objetivo da lei do pai, criando seu próprio modo

de ser e de estar no mundo. O autor conclui que esta função das atividades lúdicas constitui um

caminho para o inconsciente do adulto e para organização de sua identidade e individualidade

saudáveis.

Nos depoimentos aqui presentes, notamos a identificação profissional traz para os

professores um estado de felicidade e autoconhecimento. A felicidade é um estado que traz

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consigo sensações e sentimentos, dentre eles o prazer e o envolvimento da pessoa com a

atividade, características similares àquelas apresentadas no conceito de ludicidade, e que traz

consigo o principal regulador interno de nossas ações: o afeto.

Discutiremos a seguir os motivos e compromisso estabelecidos no caminho da escolha

profissional.

5.1.2 “ Meu trabalho é pura emoção” : missão especial para ajudar as pessoas

Dando continuidade à apresentação dos cartazes elaborados pelos professores sobre a sua

escolha profissional, percebemos em algumas falas que o profissional se sente movido por uma

missão especial para ajudar as pessoas, trazendo consigo uma grande carga de afeto. Como

podemos observar na fala a seguir:

Prof.ª Francisca Eu não tive ninguém para me dizer que eu tinha que ser professora, eu era determinada desde pequena. E eu vi que seria uma missão especial, que eu tinha esta missão especial para lidar com gente. E a minha clientela é a escola pública. Eu já trabalhei em escola particular, mas não era bem a minha praia... Eu dizia assim: eu quero ser professora de menino que eu veja que posso ajudar [...] Este depoimento parece a princípio uma contradição aos depoimentos anteriores que

afirmam ser a identidade profissional uma construção social e não algo pré-estabelecido. A idéia

de missão nos remete à concepção idealista e religiosa do conceito de vocação, como nos explica

Villa (1998, p.147): “No passado, a opção por uma ocupação era cercada de algo assim como

uma espécie de inspiração ou chamado que uma pessoa podia ter, e que indicava o tipo de coisa

que melhor poderia realizar e na qual melhor poderia realizar.”

Este conceito de vocação sugere um certo dom inato e que apenas algumas pessoas teriam

a sorte de receber certa graça. Tal idéia, porém, foi enfraquecida na história, pela perda do

monopólio do conhecimento pela Igreja e pela refutação das teorias sociológicas, segundo

esclarece o autor em foco.

Aludimos ao fato de que os professores ainda mantêm no seu imaginário coletivo a visão

de que ser professor é ser aquele que tem uma missão especial para transformar o mundo,

ajudando as pessoas, tendo implicações políticas e pedagógicas, como o exemplo da professora

Francisca: “A minha clientela é escola pública [...]eu quero ser professora de menino que eu

veja que posso ajudar.”

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Na perspectiva sócio-histórica, a missão de ajudar as pessoas pode ser uma projeção do

sujeito da sua função social, no mundo, tendo como âncora os seus referenciais afetivos e

culturais. Transcrevemos a fala da professora Iolanda sobre seu cartaz, pois consideramos

representativa deste ponto: Esta aqui sou eu pequenininha...minha história foi muito voltada para necessidade de estar ajudando as pessoas. Eu lembro que eu pequenininha sair da minha família...fui filha adotiva e quando voltava para casa eu queria ensinar para meus irmãos tudo o que tinha aprendido lá. Eu decorava história de disco vinil, história de tudo [...] Eu acho que foi muito isso, foi acontecendo pela própria postura que fui na vida e pela paixão das coisas que aprendi na vida. Por isso coloquei aqui a paixão, a questão da independência, a questão do prazer, equilíbrio, confiança e emoção. Meu trabalho é pura emoção, o tempo inteiro!

A esse respeito, Vygotsky (1996 ) e Arroyo (2000) convergem para o pensamento de que

a identificação profissional está relacionada com as condições culturais e materiais que

envolveram a pessoa na sua formação, que trazem possibilidades e limites às escolhas. Assim:

Ser professora, professor, projeta uma determinada função social, e, mais do que isso, projeta ou concretiza uma determinada cosmovisão que está incorporada a este ofício. A condição de vida está presente em nossas escolhas ou condiciona nossas escolhas. Não escolhemos a profissão que queremos, mas a possível. Essa condição está presente na socialização e toda nossa vida, sobretudo de nossa infância e juventude, na socialização das imagens profissionais e das posições que projetamos como possíveis. (ARROYO, 2000, p.126)

Esses autores, nos ajudam a compreender os professores na particularidade das questões

destacadas nos depoimentos dos nossos sujeitos, cuja condição socioeconômica se projeta nas

escolhas da vida, desde as brincadeiras infantis, os ambientes freqüentados, as leituras realizadas

até o “estilo” de ser professor e o significado do ofício.

Por outro lado, essas possibilidades e limites culturais não são linearmente determinantes

no processo de identificação profissional pois, nas palavras de Arroyo (2000, p. 127), ninguém

faz opção por um determinado trabalho apenas por ser possível para sua condição social; a opção

acontece por uma tentativa de identificação desde cedo que passará a ter um peso leve ou pesado,

ou até uma realização profissional. É o que podemos notar no depoimento do professor Luiz, ao

apresentar o seu cartaz: Desde o curso médio, eu estudava no Viana, eu tinha monitoria na área de matemática, física e química. Eu tinha um professor de química que ele era muito perverso e um de matemática que não ensinava nada. Então eu ficava revoltado com esta situação e cabia a mim (ele como monitor) ajudar ...Então, eu já sabia das dificuldades, que era uma batalha a ser enfrentada...mas a galera também já sabia que eu havia de ser professor no futuro[...]

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Destacando as unidades significativas básicas para compreendermos os aspectos afetivos

presentes na escolha profissional, passaremos a seguir para a discussão sobre os afetos que

trazem satisfação e identificação do professor no exercício de sua profissão.

5.2 A DOR E A DELÍCIA DE SER PROFESSOR

Soratto e Olivier-Hecher (1999, p.121), ao estudarem a síndrome de Burnout em

professores, observaram que: se o professor tem condições organizacionais ruins de trabalho e

ainda se mostra muito bem, então é o próprio trabalho (o valor de uso) e não o valor e troca que

o move. Portanto, para essas autoras, não são as condições nas quais se realiza, mas o próprio

trabalho que é o mais importante preditor dos altos níveis de satisfação, comprometimento e boa

relação com o produto.

Qual então o prazer encontrado no trabalho docente que mantém o profissional

encantado? Buscaremos a seguir algumas respostas, nas transcrições das entrevistas realizadas

com os professores do grupo pesquisado.

5.2.1 Satisfação profissional.

Quando são indagados na entrevista “Você está satisfeito com sua profissão?”, os

professores respondem com ambigüidade no seu discurso: encanto e felicidade, mas também

muito cansaço e frustrações. Vejamos suas respostas.

De um lado, enfocam que existe ressonância, retorno da aprendizagem dos alunos, e o

prazer de se sentir importante na vida eles, como observamos neste discurso:

Prof.ª Rosa Olhe eu acho que a minha escolha era esta mesmo, eu queria isto mesmo, eu quero isto, eu gosto disso entendeu? Apesar desse entrave, eu creio que em todo lugar, tem dificuldades, [...] Eu fico feliz, quando um aluno às vezes diz “Pró,minha vida mudou pró. Eu estava fazendo a prova (de vestibular) quando eu ví, meu Deus do céu, aquelas questões toda pró, eu lembrei da senhora. Eu disse não deixa eu respirar, deixa eu respirar,depois que eu respira melhor, ai eu vou poder fixar melhor’[ ...]

A professora Flor declara que apesar da sobrecarga de trabalho e da diversidade presente

nos estudantes, sente-se motivada com as atitudes deles: Estou satisfeita mas não em ter que trabalhar tanto assim, queria ter manhãs livres para poder fazer

um curso mais tranqüilo, sem esse corre, corre. Poder trabalhar só 40 horas, puder estudar mais, puder me planejar mais, puder descansar mais, poder usufruir da minha família.

Quando chego na sala se aula eu já encontro os alunos, eles botam você para frente, perguntam, participam. Isso eu acho durante o dia, mas quando eu chego de noite chego cansada mas já tenho idéia do que

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vou enfrentar à noite. Então tenho que está espiritualmente preparada para poder trabalhar com esta diversidade.

A este respeito, cabe destacar a observação de Soratto e Oliver-Hecker (1999):

Enquanto muito trabalhadores suportam o trabalho e através do salário buscam satisfazer seus desejos, o professor, ao contrário, suporta o salário par continuar tendo o privilégio de satisfazer o desejo que é de todos nós, mudar o mundo através de sua ação, transformar com seu trabalho a si mesmo e ao outro, inventar um futuro a partir do seu próprio gesto. (ibid p. 121).

Os autores acrescentam que mesmo com salários baixos, os professores não perdem a

dimensão da responsabilidade que possuem e o desejo de transformar o mundo por intermédio da

sua ação, razões para o seu bem-estar como veremos a seguir, a partir da fala da professora

Solange: Apesar dos pesares, não me pergunte como... Não, eu acho assim, eu me arrisco a dizer que é esse estágio de felicidade de bem estar com a vida. Que me deixa estar satisfeita. De eu me contentar com o pouco, no sentido de que a gente não precisa de tantas coisas para viver. Sabe? Então, por isso que às vezes eu não ambicione grandes salários, mas um salário respeitável para o que eu faço e que eu não recebo. Isso eu continuo lutando, e faço questão de lutar. Uma coisa que me deixa assim, profundamente chateada, é quando eu olho o meu contra-cheque e vejo que eu tenho um salário base, e vejo que tem uma série de gratificações que a gente recebe, gratificação que é auxílio transporte, auxílio alimentação, auxilio não sei quê... Quer dizer, isso já é uma forma de botar a gente para baixo. Eu não preciso de auxílio, eu não preciso de gratificação, eu preciso é de um salário digno. Esqueçam essas gratificações.

Mais uma vez, observamos no discurso dos professores o quanto as precárias condições

de trabalho interferem na sua auto-estima. Por outro lado, percebemos uma resistência a esses

entraves, como estratégias de defesa, criando formas de luta e obtendo deste trabalho o maior

prazer que ele pode dar, dentre outros o aprendizado.

Sempre movidos por ambigüidade no discurso, os professores apontam os entraves e

frustrações, ao mesmo tempo em que reconhecem o seu desenvolvimento cognitivo que ocorre

na realização de sua atividade, como nos mostra o relato a seguir:

Prof.ª Mary: É o aprendizado continuo, porque eu como professora eu na verdade eu sou um aprendiz, um aprendiz da vida do dia a dia porque eu como professora de língua estrangeira tenho que conhecer de tudo um pouco isso me leva a abranger o meu mundo não é? Em todos os sentidos.

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5.2.2 Trabalho e projeto de vida

Quando são indagados sobre a relação do trabalho com seus projetos de vida, respondem:

qualidade de vida, competência profissional e busca de responsabilidade pela formação das

pessoas.

Assim, ter qualidade de vida para os professores entrevistados é ter a possibilidade de ser

bom profissional, poder colocar em prática as suas crenças e assumir outros papéis sociais com

maior tranqüilidade, como disse a professora Rosa; mas é também morar num bairro urbano da

cidade, ter casa própria e poder viajar, como revela o professor Milton. A professora Flor

também revela seu anseio por ter melhor qualidade de vida como projeto, permanecendo como

docente: Meu projeto de vida trabalhar menos (redução de carga horária), pagar meu apartamento, uma forma de reduzir o trabalho. Puder também estudar fazer o mestrado, me esforçar mais, ler também porque, às vezes, a gente é tão envolvida em corrigir e estudar aquele conteúdo, que a gente fica de fora do que está acontecendo e do que está sendo modificado. É um desejo de ficar mais em casa, de não ter tanto trabalho, que um dia ganhe melhor, para não ter uma vida tão agitada e equilíbrio também.

Observamos que, pela própria profissão os docentes buscam uma forma de ascender

profissionalmente, como acrescenta o professor Milton: Meu projeto de vida hoje, o que hoje quero almejar, eu sou uma pessoa que não páro de estudar, gosto de

estudar, gosto de está no meio social. Meu projeto de vida hoje é está no Mestrado, meu objetivo é o Mestrado.. [...]

Hoje eu sou professor do ensino médio, mas quero ser professor do ensino superior, é o que quero alcançar. Porque eu vejo com uma questão natural, acho que o indivíduo está buscando sempre uma condição melhor, não vou ficar no ensino fundamental e médio por uma questão de caridade, não. É um é processo natural, o indivíduo tem essa necessidade de conhecimento. [...]

Outra relação estabelecida entre o trabalho e o projeto de vida é responsabilidade que

tem o docente na formação do ser humano. Desse modo, para alguns professores, sua profissão

está inteiramente implicada nos seus valores e ideais de vida, sentindo-se inteiramente envolvidos

com ela. O discurso da professora Solange, a seguir, ilustra esta afirmação: [...] Eu acho assim, que a gente tem um débito muito grande com a Escola Pública. E eu me sinto assim responsável pra contribuir e melhorar de alguma forma isso. É como um projeto de vida mesmo, um compromisso com o outro. E eu falo que a escola pública é um projeto de vida, meu. Eu fiz essa opção. E rejeito as outras propostas. Consigo viver do meu salário. Agora, acontece uma coisa fantástica, que como é que consegue dar. Difícil, porque eu também tenho a renda do meu marido, mas eu consigo sobreviver num sufoco que está terrível, mas eu digo assim, não é o fim do mundo. Eu preciso lutar, e a gente está lutando, mas, para ter um salário digno. Que não é digno, o salário que o profissional de educação tem. Não é respeitoso com ele, mas é assim, é como se fosse um projeto de vida, mesmo.

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5.2.3 Mudança de profissão

Quando desafiados sobre a possibilidade de mudança de profissão, reagem rapidamente

negando a pergunta. Apenas uma professora respondeu positivamente, alegando o cansaço

trazido pelo trabalho, mas com uma ressalva de continuar ensinando porque dá prazer, como

podemos observar na sequência:

Prof.ª Luzia

Se eu pudesse mudar de profissão e deixar de ser professora eu faria uma outra coisa e continuaria ensinando. Eu não deixaria de ensinar por tudo isso que já falei e porque me satisfaz. Eu goste de ensinar, eu gosto de dar aula [... ] . Não, porque ensinar cansa, mas dá prazer.[...] Eu faria uma outra profissão não para deixar de ser professora mas porque também ser professor é muito cansativo, eu fico muito cansada. Por exemplo quando eu vou para o Juizado, eu tenho água mineral, eu tenho ar condicionado, as vezes eu tenho lanchinho, na escola eu não tenho isso, você vê que diferença, né? Isso ainda porque não sou funcionária da justiça, mas tenho uma sala para atender, entro em contato com o juiz... Então é um trabalho que exige de mim um compromisso, uma postura ética, uma sensibilidade, um conhecimento para saber lhe dar com aquilo mas que não me cansa tanto. Me dar prazer e não me cansa tanto, o outro me dar prazer e me cansa. Porque dá prazer, cansa mas dar prazer o que eu posso fazer, né?

Retomemos a observação de Soratto e Olivier-Heckler (1999), quando dizem que não são

as condições nas quais realizam o trabalho que fazem os professores permanecerem, mas a

relação de prazer que eles estabelecem com o produto do trabalho. A professora Luzia sente

cansaço e falta de acolhimento no seu ambiente de trabalho e, mesmo encontrando em outra área

de atuação um melhor conforto e acolhimento, permanece na docência, pois também extrai

prazer na realização do trabalho: “Eu gosto de ensinar, eu gosto de dar aula”.

Os outros professores declaram abertamente este prazer ou o seu nível de satisfação,

negando imediatamente a possibilidade de mudança de profissão, revelando forte identificação

com ela, ao ponto de não conseguir se ver exercendo outro papel. A fala da professora Mary é

muito representativa desta afirmação:

Ave Maria que coisa difícil.! Não era pra você me perguntar isso. Eu mim pergunto isso todo o dia, será que eu ainda faria Direito? Ah não porque eu vou brigar muito, porque eu sou muito brigona. Eu não me vejo sem está na educação, eu não sei sair disso, eu poderia, eu tenho vontade de trabalhar assim com criatividade, fazendo propaganda engraçado não é? Mas talvez uma coisa voltada sempre pra educação, que eu tenha a capacidade de criar,mas uma coisa que tivesse criatividade mas o que assim eu não sei, não me vejo fora de educação me vejo sempre criando em cima da educação, não é?

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As nossas observações sobre este assunto levaram-nos a compreender que os professores

estabelecem vínculo de identificação com a profissão, de forma que não conseguem se ver sem

ela. Assim, percebem a importância do seu papel para o desenvolvimento humano e se sentem

comprometidos com isso. Inferimos a idéia de que a identidade docente, apesar de toda crise que

permeou e permeia a sua estrutura, ainda se mantém resistente aos entraves que se apresentam em

seu caminho. Por tal razão, concordamos com Codo (1999, p. 351): “A nossa identidade é um

lugar quente, aconchegante, generoso onde podemos nos proteger quando o mundo em volta

parece ruim”.

Inferimos daí a noção de que o prazer e a identificação do professor com a profissão, à

medida em que vai convivendo com ela, trazem à tona o aspecto lúdico do trabalho, pois revelam

a presença plena, a absorção na atividade, ainda que esta lhes traga muitas tensões. No próximo

item exploraremos mais os aspectos lúdicos que emergem da relação deste profissional no seu

trabalho.

5.3 “GENTE É OUTRA ALEGRIA, DIFERENTE DAS ESTRELAS “: a subjetividade no

processo ensino aprendizagem.

Fig. 8 -Grupo Coração de Professor: “ Acordar o coração”. 2004.

Neste item, discutiremos os aspectos subjetivos do professor, presentes na sua atividade

pedagógica considerados como fundamentais para um trabalho de qualidade e uma disposição

maior para sua realização e encanto com ele. Citaremos dados não só das entrevistas como

também das cartas e discussões extraídas das reuniões do grupo focal.

Vimos falando, nos itens anteriores, que a identidade do professor é algo formado com a

convivência sócio-histórica e o referencial cultural no qual se insere e internaliza no decorrer do

seu desenvolvimento, construindo aspectos subjetivos como; crenças, valores, aspirações e outros

fatores dominantes no seu meio cultural. Neste sentido, as preferências e afinidades dos

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professores também envolvem estes aspectos que se relacionam com sua identidade profissional.

Sobre a subjetividade docente, Tardif (2002) apresenta um conceito embasado no sócio-

interacionismo e na etnometodologia, que converge com a abordagem sócio-histórica adotada

neste nosso estudo. O autor expressa:

[...] a subjetividade dos professores não se reduz à cognição ou à vivência pessoal, mas remete às categorias, regras e linguagens sociais que estruturam a experiência dos atores nos processos de comunicação e de interação cotidiana. O pensamento, as competências e os saberes dos professores não são vistos como realidades estritamente subjetivas, pois são socialmente construídos e partilhados. (ibid, p. 233)

Nas entrevistas, perguntamos, aos professores pesquisados, do que mais gostam e do que

menos gostam na realização do seu trabalho. Disseram que gostam mais de dar aulas. Há nesta

atividade grande sensação de prazer e engajamento. Já do que menos gostam é da burocracia,

preenchimentos de cadernetas e avaliações, principalmente quando têm de dar notas.

Na mesma entrevista, pedimos a cada um que elegesse as três coisas mais importantes

para seu trabalho e, em síntese, eles responderam: os alunos, formação profissional, a

paciência, a dedicação, o retorno dado pelos alunos, a disciplina, o prazer, a interação, o

aprendizado contínuo, a paciência, a responsabilidade, a flexibilidade, a criatividade, o amor pelo

que faz, o compromisso com a verdade, o bem-estar na relação com gente, o papel social de seu

trabalho. Dentre os depoimentos, alguns aspectos foram considerados relevantes e foram

agrupados em dois grandes pontos: o bem-estar na interação com as pessoas e o papel social e

afetivo do professor na vida dos educandos, que serão discutidos a seguir.

Os autores apresentados neste estudo convergem com a afirmação de que o grande fator

de relevância do trabalho docente é o aspecto interativo. A interação, face a face, de

indivíduos particulares, desempenha um papel fundamental na constituição do ser humano: é por

meio da relação interpessoal concreta com outros homens que o indivíduo vai chegar a

interiorizar formas culturalmente estabelecidas de funcionamento psicológico.

Por esta razão, este ponto foi destacado no discurso dos professores. Por exemplo, a

professora Luzia, ao ser indagada sobre as três coisas mais importantes no seu trabalho,

respondeu: interação, paciência e aprendizado. Sobre a interação ela nos disse o seguinte: [...] interação para mim é uma palavra muito importante, você interagir com o outro, com os alunos com os colegas com os funcionários. Eu sou entrona, eu tenho até facilidade de conseguir as coisas que eu falo com todo mundo, do funcionário, mas coisa até...até com todo mundo, até com os alunos que eu não conheço e os alunos me param pra corrigir coisas justamente por isso. Interação para mim é uma palavra básica.[...]

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Como vemos, ela destaca o aspecto interativo do trabalho docente e revela ter habilidades

de comunicação e participação no ambiente escolar. Sobre o assunto, também concordamos com

Tardif (2002, p. 141), quando ensina que “o trabalho docente, no dia a dia, é fundamentalmente

um conjunto de interações personalizadas com os alunos para obter a participação deles em seu

processo de formação e atender suas diferentes necessidades”. Por isso é um trabalho que exige

investimento profundo, tanto do ponto de vista afetivo quanto do cognitivo. É com este

entendimento que esse autor propõe que a subjetividade do professor deve ser o centro das

pesquisas e da formação docente, já que o trabalho deste profissional é, em sua essência,

interativo. Lembra que esta perspectiva foi negligenciada por muito tempo nas ciências da

educação e pelos técnicos e pesquisadoras da área de ciências humanas. Outra proposição

raramente discutida na formação dos professores e defendida pelo autor é que o objeto do

trabalho docente são seres humanos e, conseqüentemente, os saberes dos professores trazem

consigo as marcas do seu objeto de trabalho.

Na entrevista, perguntamos aos professores o que é trabalhar com gente e eles

responderam que é desafiante, é um processo de descoberta e aprendizagem contínua; consideram

um laboratório de aprendizagem de vida. Percebem na relação a aprendizagem dos afetos,

exercício da paciência e da tolerância. É também uma oportunidade de ajudar o outro a aprender

e perceber o quanto é importante e vice-versa.

O professor Milton fala sobre os ganhos que obtém na relação com gente: Trabalhar com gente é trocar, é um verdadeiro ato de ofertório, eu acho que seja isso. Daí você tem a troca, é a partilha de informações, é o conviver com o coletivo, é o partilhar mesmo.

Ele nos traz o cerne da interação com gente: a troca. Esta, não só de conhecimentos mas

de afetos, valores, crenças, hábitos, como completa a professora Solange a seguir: Eu acho assim, que é o bem estar que eu sinto nessa relação, de gente. Acho que eu não estaria bem em alguma atividade que não lidasse com gente. E não só pelo fato de ensinar, mas pelo fato de aprender. Como é interessante, como a gente aprende a cada dia, com todo esse processo. Aprende com os estudantes, aprende com o Sistema. Essa relação de aprendizado, de lidar com gente. Acho que eu não dou para trabalhar num escritório com papel. Ou seja, uma produtora de...É gratificante, é muito bom. Eu me sinto muito bem com isso. [...]

A esse respeito, Arroyo (2000, p. 127) explica que a profissão docente é uma das mais

envolventes, justamente pelo fato de “ser uma permanente relação com gente e não com coisas,

apesar de ter um baixo status social e péssima remuneração”.

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De forma complementar, Freire (2001) alerta aos educadores para não terem medo de

expressar afetividade, justamente porque lidam com gente e não com coisas. Este é outro saber

necessário à prática docente: saber lidar com gente e querer bem aos educandos. Isto não

significa que o professor deva passar do extremo da severidade para ser “adocicado”, esta

benquerança supõe uma disponibilidade à alegria de viver. O “querer-bem”, para o autor,

significa o compromisso com o educando e saber que seu trabalho é realizado com gente em

permanente processo de busca.

Podemos observar nos discursos dos nossos professores-sujeitos que o bem-estar e a

busca presente na consciência da responsabilidade social do seu trabalho no desenvolvimento de

pessoas, e, nas palavras de Freire (ibid, p.161), “a alegria necessária ao que-fazer docente”.

Entendemos este quefazer como lúdico, porque feito com alegria e vontade de viver, pois

“ensinar exige alegria e esperança” (idem).

Alegria porque, no processo educativo, os pares se envolvem afetivamente: é preciso o

desejo de ensinar e a vontade de aprender. Luckesi (1990, p.117)) chama de “arte de ensinar”:

“um desejo permanente de trabalhar das mais variadas e adequadas formas, para elevação cultural

dos educandos”. Tal desejo relaciona-se aos motivos que mobilizam a ação de aprender, que

colabora para a absorção e plenitude do sujeito em tal experiência. Características que

convergem com as apresentadas para ludicidade no capítulo anterior: o feitiço que envolve o

jogador na atividade até a sua finalização e a entrega que o absorve e o deixa pleno (corpo, afeto

e cognição) frente aos desafios enfrentados.

De outro lado, ensinar também exige esperança, pois esta faz parte da natureza humana.

Como ser consciente do seu inacabamento, o homem participa de um movimento constante de

busca: “a desesperança é a negação e a distorção da esperança, não se busca sem esperança”.

(FREIRE,2001, p. 80-81). A busca torna-se, com efeito, a principal motivadora na interação

educador-educando; é ela que aproxima as pessoas, pois carrega a necessidade, o desejo e a

intencionalidade humanas.

Os professores também enfatizam o fato de que trabalhar com gente implica acolher a

pessoa: escutando e sendo empática com ela, como observamos a seguir:

Profª Flor Trabalhar com gente é saber ouvir principalmente mais do que falar. Dar atenção ao outro e ser feliz com a felicidade do outro. Ser mais humano e o mais simples possível. O que tiver de falar fala logo e aí pronto, morre ali. Sempre chego e falo diretamente para pessoa o que tem que resolver.

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Esta fala nos remete novamente a Freire (2001, p.127), quando diz: “Somente quem

escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que em certas condições, precise

falar a ele. O educador que escuta transforma seu discurso em uma fala com ele”. O autor ensina

que é escutando que o professor aprende a se comunicar com os estudantes. Para isso, é preciso

estar aberto à fala , ao gesto e às diferenças do outro.

Esta escuta do educador, porém, não é como objeto, mas como sujeito que escuta as

indagações, as contradições, os receios, as criações do outro, mas que também pode se opor, se

posicionar. “Ser o mais humano e o mais simples possível”, como nos diz a professora Flor, ou

seja, respeitar a leitura de mundo e a historicidade do saber do educando.

Percebemos, neste posicionamento do autor, a importância na formação continuada de

professores, do desvelamento de sua leitura de mundo, trabalhando criticamente a sua

inteligibilidade das coisas e dos fatos. E, ainda, de serem escutados em seus anseios, dúvidas e

contradições. Ao mesmo tempo em que aprendem a escutar seus educandos e desenvolver a

humildade crítica que, segundo, Freire (2001, p. 139), “ No fundo, o educador que respeita a

leitura do mundo do educando, reconhece a historicidade do saber, o caráter histórico da

curiosidade, desta forma, recusando a arrogância cientificista, assume a humildade crítica, própria

da posição verdadeiramente científica.”

A visão de mundo do professor, seus referenciais e a consciência da historicidade do saber

e do seu papel social são fundamentais para dimensão social e emocional que assume o seu

trabalho na vida dos educandos e os conflitos que desta emanam, no processo de interação, como

diz a professora Luzia: “[...] E, diria assim é um caldeirão fervilhando e que eu gosto, eu gosto

dessa coisa assim fervilhando, eu gosto de trabalhar com gente.”. E são estas as dimensões que

foram apontadas pelos professores como importantes para sua atuação e que serão discutidas a

seguir.

Entendemos que o professor pode influenciar a vida das pessoas no contexto escolar.

Segundo o que nos declararam os sujeitos deste estudo, ele é um referencial, é um modelo, exerce

uma postura de vida que pode influenciar ideológica e politicamente os valores e a leitura de

mundo dos seus educandos. Esta influência poderá assumir características tanto positivas como

negativas, seja o professor comprometido ou não com o processo educacional. Mas, que

referencial , porém, o professor de escola pública tem sido para seus estudantes?

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A seguir transcreveremos a fala da professora Flor, que se reporta à imagem social do

professor como referencial para os estudantes, após ter sido indagada na entrevista sobre a

questão: “ Na sua opinião de que forma o professor pode influenciar a vida das pessoas no

contexto escolar? Como isso acontece com você?”. Ah muito! (risos). No que ele faz, no que fala, no que veste. Eles observam tudo! [...]. Eu acho que a gente é o modelo para eles e tentam absorver um pouquinho daquela pessoa que está ali tentando ajudá-lo. Então a gente tem que ter muito cuidado no que diz, no que fala, no que faz. Pois a gente está o tempo todo sendo observada e analisada por eles.[...]. No seu discurso, a professora ressalta ser o professor o modelo de postura e

comportamento para os estudantes e por isso é constantemente observado. A teoria walloniana

contribui para a compreensão do lugar do professor na vida dos educandos. Na fase projetiva da

criança, momento em que desenvolve a função simbólica, ela reproduz, pela imitação, aquilo que

está ao seu redor, dando um sentido próprio à sua percepção, e, no simulacro, ela é capaz de

tornar presente o objeto sem substitui-lo, representando-o simbolicamente. Ambos os

movimentos envolvem a elaboração de significados do mundo, que só é possível com a

identificação com o outro.

Assim, no desenvolvimento da personalidade, o professor é imitado e negado ao mesmo

tempo, é referenciado pelo jovem, tornando-se mais um elo entre ele e o mundo exterior ,

passando a fazer parte de sua vida como um duplo Eu, ou “ socius “ (WALLON,1976). O

professor Milton também nos remete a esta idéia do professor como socius, constituinte da

personalidade do estudante, quando expressa:” Eu acho que a gente dar uma luz, é você ser

uma luz para eles. Eu vejo o professor com uma função social muito grande, e não um

sacerdócio que eu detesto isso, porque nós somos profissionais de Educação [...]”.

Esse discurso é representativo das respostas do grupo sobre a influência social do

professor na vida dos jovens. De acordo com a teoria de Vygotsky (1994), a relação

professor/aluno é envolvida por uma rede de significados onde são projetados sonhos, imagens,

idéias, crenças, desejos, valores, conceitos e sentimentos. Esta rede contribui para organização da

consciência, produto da relação dialética entre o inter e o intrasubjetivo. Ao fazer parte do

processo de socialização dos educandos, o professor é um mediador destes significados, fornece

andaimes para o aluno ter acesso à cultura, estabelece uma mediação semiótica, ou seja, trabalha

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com a “produção de sentidos”. Tal sentido é construído num contexto histórico e coletivo,

evocando signos. 95

Podemos exemplificar esta mediação cultural ou semiótica96 por meio de um trecho de

uma entrevista com o professor Milton, na qual responde à questão da influência do professor na

vida dos educandos: [...] Por exemplo, discutindo os problemas da cidade, um trabalho muito contextualizado com a realidade, eu ouço o que eles querem dizer, eu falo para eles ... é uma ajuda sim, é uma âncora. Eu levo jornal para ler na sala para eles, eles nunca leram jornal... Levo o computador, hoje tem alunos que navegam na Internet. Eu acho lindo isso... ficam todos no computador, sentados olhando, discutindo. Semana passada mesmo, eu na greve, eu joguei alguns temas na lista geral da discussão, foi muito bom, eles discutiram.[...]

O professor é, assim, co-participante da organização do pensamento do educando, ou seja,

dos seus esquemas mentais. Os conhecimentos e conceitos negociados com os alunos são

recheados de ideologia, da visão de mundo, da identidade projetada por este professor. É como

explica Bourdieu (1987, p.182): “Cada agente, ainda que não saiba ou não queira, é produtor e

reprodutor do sentido objetivo, porque suas ações são o produto de um modo de agir do qual ele

não é o produtor imediato, nem tem o domínio completo”.

Nesta trilha, o professor pode exercer a aprendizagem da convivência e aceitação da

diversidade, compartilhando com a linguagem dos educandos, com a sua cultura, encarando-a

não como uma ameaça ou como inferior à hegemônica, mas como parte essencial da formação da

identidade dos jovens com os quais trabalha. Foi o que observamos no depoimento acima do

professor Milton que, ao ouvir o que seus alunos têm a dizer sobre a cidade, contextualiza o

conteúdo proposto, confrontando esta realidade com a trazida com os instrumentos de informação

que tem acesso: jornais, Internet etc.

Por isso que esta posição converge com a Psicologia sócio-histórica de Vygotsky (1994) ,

na orientação de que, na relação dialética entre conhecimentos espontâneos97, trazidos pelo

educando do seu contexto cultural, e os conhecimentos científicos, trazidos pelo professor,

ocorra uma “negociação de significados”. Desta forma, o professor tem um papel co-participativo

no desenvolvimento do nível potencial do educando, ajudando-o a construir e reconstruir

significados. Para Oliveira (1997), 95 Como visto no segundo capítulo, o signo é um fenômeno exterior ao sujeito na interação social para representar ou ficar no lugar de algo - lembranças, memórias, valores, palavras, desenhos e outros que atuam internamente no sujeito e guiam seu comportamento. (BAKHTIN, 1995) 96 Referente aos signos culturais. 97 Discutiremos os conhecimentos espontâneos e científicos na teoria desse autor no próximo capítulo.

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A cultura não é pensada por Vygotsky como algo pronto, um sistema estático ao qual o indivíduo se submete, mas como uma espécie de “palco de negociações”, em que seus membros estão em constante movimento de recriação e reinterpretações de informações, conceitos e significados. (ibid, p..38).

Para efetivar esta mediação, porém, acreditamos que o professor precisa superar o

etnocentrismo, entendendo e estudando diferentes culturas. Carece de abandonar e ser crítico em

relação às teorias de “privação lingüística” que desqualificam a expressão e os conteúdos

espontâneos trazidos pelos educandos. Precisará, ainda, suspender seus preconceitos e, portanto

,mexer com suas crenças e concepções acerca das religiões, das raças, das etnias, da orientação

sexual e outros, a fim de ser capaz de trabalhar com diferentes condutas humanas e o respeito ao

outro.

Salientamos, ainda, que, na sua formação e atuação profissional, o professor precisa

avaliar constantemente sua visão de mundo, o seu próprio socius, companheiro perpétuo que

carrega consigo crenças, tradições, valores, hábitos cristalizados historica e inconscientemente. É

como nos diz a professora Mary: Ai que coisa difícil, não é? Você influenciar as pessoas e quando você se sente influenciadas por elas não é? Influenciar, isso exige a postura da pessoa perante a vida, já começa no primeiro dia de aula quando você chega o aluno percebe a sua postura de vida, então eu acho isso muito importante, passar para o aluno não só as coisas positivas suas e as coisas negativas, mostrando para ele o caminho pra melhorar aquelas coisas.[...] Então, ele sabe, a postura física reflete todo, você passa tudo, então você tem que rever isso constantemente sabe? Você tem que esta se auto observando, se auto estudando, se auto avaliando, isso é importantíssimo sabe?

Estes aspectos até aqui discutidos nos levam a refletir sobre a realidade do professor de

ensino médio nas escolas públicas. Seus alunos são adolescentes e jovens que se preparam para o

mercado de trabalho. A maioria já inserida no mercado informal, e, ao mesmo tempo, passa um

processo de reestruturação de sua identidade por assumir novos papéis e por ser cobrada,

socialmente, para uma maior responsabilidade e postura diante da vida e, ao mesmo tempo, são

excluída dos direitos concernentes ao cidadão. É um grupo que se caracteriza por uma clientela

em crise de identidade, além de todas as carências materiais e afetivas que apresentam em função

da sua condição socioeconômica. O professor lida o tempo todo com “essa gente”; os conflitos

são assim constantes de ambos os lados: o cansaço físico, a competição, as cobranças, a busca de

afirmação da autonomia, as oposições, o confronto.

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A este respeito, verificamos o que diz a professora Solange sobre estes alunos: Eu vejo assim, esses alunos são pessoas profundamente injustiçadas. Injustiçadas pela sociedade, por todo esse processo. São pessoas assim, muitas vezes amarguradas. Numa palavra que você não quis dizer aquilo, ele já interpreta outra, ele já vem com tudo em cima de você. E você precisa ter um auto-equilíbrio para rebater da mesma forma. Que nem sempre você está assim. Então eles trazem problemas mesmo. Primeiro que regulam a noite estudando depois de um dia de trabalho, sem estrutura. Eu estou falando assim, de ter biblioteca, de ter livro, de poder comprar livro. De poder ter acesso à Internet. Então, eles são assim, eles chegam angustiados com as coisas que a gente pode dar de novidade, mas que eles não podem ter acesso. É uma relação que dá uma angústia na gente.

Um trecho de uma carta escrita pela professora de Artes, Monalisa, para seus alunos no

grupo após uma vivência, também descreve esta angústia frente à realidade dos estudantes: “Caro aluno,

[...]Conseguir chegar a este estágio que vejo claramente nas minhas experiências, uma forma incrível de amadurecer, quero passar isso para meus alunos, encontrar na arte uma forma viva de amadurecer, de conhecer coisas que a sociedade, o sistema impede de conhecer. Esta privação cultural é muito perigosa, pois as pessoas, os jovens não têm nada como referencial, não têm nada para relacionar: o que é belo, o que é cultura, o que é arte.

O conteúdo deste mundo, a miséria, a pobreza, a crise social é tema desta arte, é tema deste mundo que a gente vive em sala de aula com nossos alunos. O sonho de crescer é maior ainda e espero que para todos.”

Profª Monalisa”

As professoras Solange e Monalisa, nos levam a refletir sobre a crise de civilização neste

milênio, quando os educandos estão inseridos num modelo segregacionista e homogeneizante de

sociedade; sociedade esta que se revela num quadro de barbárie e desigualdades sociais, cada vez

mais impregnada pela pobreza, fome, extermínio, analfabetismo, jovens em situação de risco e

outras mais violentas formas de descumprimento dos direitos humanos.

Este cenário, segundo analisa Roumanel (2003), é sustentado por forças fundamentalistas

econômicas neoliberais que coordenam o modelo sócio-político contemporâneo, o qual se apóia

na demanda do mercado, que serve como mediadora das relações humanas, ditando quem deve

ser incluído ou excluído do tecido social. O fundamentalismo exerce, deste modo, uma atitude de

intolerância 98com aqueles que se apresentam como problema para a eficácia econômica,

manifestando hostilidade contra grupos políticos, étnicos, religiosos, raciais e outros, originando

impasses e conflitos, ameaçando a paz mundial.

Como formas de conter esta barbaria, emergem do seio da sociedade mundial movimentos

sociais e propostas de órgãos internacionais em busca de uma nova forma de responsabilidade e

pensamento ético humano, denominada “cultura da diversidade”. Neste cerne, a escola, como 98 Intolerância consiste numa “atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, o seu estilo de vida , suas crenças e convicções.” (ROUAMEL, 2003).

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uma das agências fundamentais para a formação do sujeito, enfrenta grandes desafios frente a

esta cultura, ou seja, diante do compromisso de recusar uma educação excludente e exercer uma

política de formação de cidadania e convivência democrática. Melero (2001) adverte para o fato

de que as políticas educativas sobre a cultura da diversidade não devem consistir em uma

integração de grupos marginalizados às condições impostas pela cultura hegemônica. A cultura

da diversidade deve ter um compromisso ético e transformar os pensamentos e atitudes em

relação a estes grupos, para que não sejam submetidos à tirania e à normatização.

Este papel, hoje designado à escola, sugere uma série de mudanças e quebra de

paradigmas na sua organização. De acordo com Imbernon (2000), as formas tradicionais

enraizadas da escola, de marginalização e exclusão, dificultam o tratamento com o tema, pois

assumir a diversidade supõe reconhecer a diferença e o respeito às identidades.

Segundo o autor, uma das primeiras rupturas está em considerar a diversidade não como

técnica pedagógica, mas como opção política, cultural, ética e social, buscando escolhas que não

causem segregação e elevem a auto-estima dos alunos. Outra ruptura, a mais central nesta

reflexão, é a reformulação do papel do professor, que implica mudar principalmente aquele que é

co-participante da formação do sujeito na escola, ou seja, da formação da consciência, da

identidade e dos laços sociais dos educandos.

A partir desta premissa e da relevância contemporânea do tema cultura da diversidade

para a formação docente, qual a participação do professor do Ensino Médio frente à realidade de

exclusão dos alunos de escola pública? O professor contemporâneo mostra-se preparado para

respeitar a diversidade e mediar a aprendizagem do ser e do conviver?

Uma das opções encontradas pelos professores pesquisados para lidar com a

aprendizagem da convivência e para contribuir com a superação da marginalização dos

estudantes é trabalhar a autonomia do pensamento, enfatizando a importância da reflexão crítica

da realidade, levando os estudantes a pensar sobre si mesmos. A professora Luiza mostra como

busca concretizar esta proposta: [...] No primeiro dia de aula, quando eu faço uma dinâmica de apresentação, de brincadeiras, eu sempre converso para eles a importância do estudo na vida das pessoas e sempre digo o seguinte:’ Ninguém vai ficar rico por esta estudando, ficar rico é conseqüência e ficar pobre na miséria também é conseqüência. Mas estudar gente, não dá riqueza, ninguém fica rico porque estudou. Agora o estudo ele dá uma coisa que é fantástica, que ninguém tira, ele dá a você uma dimensão das coisas, entendeu? Que lhe leva a ser dono do seu discurso, você é dono de seu discurso, você não faz o discurso do outro, você aprende com o discurso do outro, aprende. Agora você não é dono do discurso do outro, você é dono do seu discurso. E o que lhe leva a ser dono do discurso é o estudo,

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porque se você não estuda , você vai está repetindo o que o outro diz e nem sempre o que o outro diz é o que é melhor para você não é? [...]

Esta docente nos traz dados significativos para o nosso estudo e para o item em

foco - a influência socioafetiva do professor. Em primeiro lugar, podemos dizer que seu

discurso aproxima-se da proposta crítica e libertadora de Freire ( 2001), na qual se argumenta

que a educação deve-se fundamentar na ética, no respeito à dignidade e à própria autonomia do

ser dos educandos. Para o autor, a ética é inevitável à convivência humana e sua transgressão é

um desvalor, é constituída na relação entre os homens e dela se impõem todos os outros valores

como responsabilidade, respeito, solidariedade e outros. Acrescenta que a consciência do mundo

é a consciência do ser como ser inacabado de busca: “estar no mundo significa estar com o

mundo e com os outros.” ( ibid, p. 64).

Por outro lado, a fala da professora nos remete ao lado humano da educação: o de

reconhecer o outro como sujeito de potencialidades e de transformações e levá-lo a ter

consciência disso. Outrossim, este reconhecimento, entre ambos, depende do vínculo e da

coerência do professor frente aos seus educandos. Observamos o que nos disse a professora

Solange sobre a influência do professor na vida dos seus alunos: Eu acho assim ele pode influenciar na postura nossa. Na coerência entre o que eu falo e o que eu faço. Na questão do exemplo. O exemplo coerente. Quer dizer, o que eu faço tem coerência com o que eu digo.[...]. É abertura mesmo, de certa forma os adolescentes não costumam se abrir muito na sala para as coisas da vida dele. [...]. Como é importante eu falar das dificuldades que eu tive e que eu continuo tendo para estudar, para família, para trabalhar. E que nós estamos também no mesmo barco. Fazemos parte do mesmo Sistema.[...]Eles se sentem mais seguros, eles reconhecem a autoridade, e reconhecem também que eu sou igual a eles. Eu choro, eu tenho problemas, tem dia que eu chego chateada, tem dias que eu não estou a fim de dar aula, mas tenho que ir. Sabe? E eu falo assim: ‘Eu sou igual a vocês’. E que nós temos altos e baixos, mas que o compromisso e a consciência me chamam para o equilíbrio sempre das relações.

De acordo com a professora, o professor influencia os educandos com a postura de vida,

por isso deve buscar coerência, que não só depende do seu compromisso político e de sua

consciência crítica sobre o trabalho, mas também do seu equilíbrio emocional. Na identificação

que mantém com os alunos, tenta mostrar-lhes que também é humana, sujeita a erros, mudanças

de humor, oposições. Observamos a importância da compreensão da subjetividade presente nos

pares educativos para o equilíbrio das relações, que só pode ser atingido no enfrentamento dos

conflitos e na expressão das contradições entre ambos.

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A respeito da subjetividade do professor, Galvão (1999) ao discutir a importância da

teoria walloniana para a prática pedagógica, assinala que o estudo das emoções ajuda a

compreender melhor as dinâmicas conflituais ocorridas em sala de aula, tais como: agitação

motora, turbulências, crises emocionais e outras. A autora assinala que, quanto maior a clareza

que o professor tem sobre estas dinâmicas, maior a capacidade de reflexão e avaliação dele sobre

sua prática. Podemos exemplificar esta afirmação, com a fala da professora Luzia quando opina

sobre o trabalho com gente: [...] E assim, diria assim é um caldeirão fervilhando e que eu gosto, eu gosto dessa coisa assim fervilhando, eu gosto de trabalhar com gente. Tanto que quando eu chego os alunos estão naquela agonia e ai eu fica parada assim , ai eles naquela agonia, naquela agonia ai eu fico parada observando, assim que eu gosto muito de observar........ ‘Ah! Luzia já chegou?’ Não sei o quê aquela agonia, e começam a sentar... Eu digo: ‘Nada gente, eu só estava observando vocês, só isso!’, só observando ai os meninos ‘Olhe Luzia! Quando minha mãe chegar aqui não vai dizer nada não viu’. É aquela coisa, um na janela, outros não sei o quê,o outro, né? Mas eu gosto disso.

Ela dá um tempo na sala para observar as agitações motoras dos seus educandos,

procurando compreender o que eles tentam comunicar, buscando aproximar-se deles para lidar

melhor com estes comportamentos.

Na mesma direção da teoria walloniana, Almeida (1999), na sua pesquisa sobre a emoção

na sala de aula, observou que os professores demonstraram ter dificuldades em lidar com as

situações emotivas, ficando mais suscetíveis ao contágio 99das emoções, passando a fazer parte

do circuito perverso. Segundo a autora, no circuito perverso, a percepção do professor fica

obnubilada, ou seja, diminuída na sua capacidade cognitiva para interpretar as emoções expressas

pela classe e, assim, tem dificuldades de tomar uma atitude racional diante delas.

Em geral, os aspectos motor e emocional na sala de aula são dissociados do processo de

aprendizagem, não sendo reconhecida a reciprocidade entre motricidade, afeto e cognição. A

falta de clareza das interações dos movimentos corporais, emoção e cognição, pode interferir na

relação professor aluno e no ambiente escolar. Para Wallon (1968), na elaboração da identidade

dos sujeitos, as crises e os conflitos nas relações interpessoais devem ser encaradas como

dinamogênicas, ou seja, como impulsionadoras do desenvolvimento e por isso não devem ser

negados ou reprimidos.

99 Na teoria de Wallon (1968), o meio social é o cenário para emoções, ela depende de expectadores para sobreviver podendo ser contagiosa ao envolver os outros nas suas manifestações. Por outro lado, esta característica integra o indivíduo ao grupo, despertando espírito de cooperação e solidariedade.

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Galvão (1999, p.103) cita dois tipos de interação conflitual segundo a abordagem

walloniana que são considerados dinamogênicos. O primeiro, considerado entrópico, é

caracterizado por dispersão, agitação e impulsividade motora na classe, e consome grande

energia do professor para controlá-lo. A autora adverte que a dificuldade do professor em lidar

com este conflito provém de “uma ditadura postural” imposta historicamente pelas escolas:

Ainda hoje a escola se depara com as marcas de seu passado acadêmico e da tradição intelectualista; mesmo convencida da necessidade da prática pedagógica, costuma cuidar pouco das questões ligadas ao corpo e ao movimento. Ignorando as múltiplas dimensões do ato motor no desenvolvimento infantil é comum a escola simplesmente esquecer das necessidades psicomotoras da criança e propor atividades em que a contenção do movimento é uma experiência constante.(Ibidem, p.108-109)

Os cursos de formação docente, em sua maioria, parecem não discutir sobre o movimento

tônico-postural como um instrumento de expressão emocional e intelectual tanto na criança,

quanto no adulto. A reflexão sobre esse ponto pode ser excelente oportunidade de

aperfeiçoamento pedagógico do professor, para que ele possa distinguir os conflitos que possuem

um significado positivo para aprendizagem, daqueles a esta inadequados.

O outro tipo de conflito, que pode se tornar “dinamogênico”, são as atitudes de oposição

sistemática ao professor que podem ser desenvolvidas pelos estudantes. A autora explica que se

o professor estiver ciente do conflito eu-outro no desenvolvimento da personalidade, poderá

perceber com maior distanciamento as oposições, sem encará-las como algo pessoal.

Segundo a teoria do desenvolvimento da personalidade de Wallon (ibid DANTAS, 1990),

a criança e o adolescente, na necessidade de se afirmarem como seres autônomos, passam por

conflitos com o adulto: ao mesmo tempo em que se opõem na tentativa de se diferenciar dele,

buscam também a identificação com ele, admirando suas qualidades. Estes conflitos se tornam

mais emergentes principalmente no estádio do personalismo100, no qual o jogo simbólico nutre a

criança para diferenciação do seu psiquismo, e na fase da adolescência, quando o jovem é

permeado de ambivalências de sentimentos, oposições, rebeldia e instabilidade no

100 No estádio do personalismo, a criança volta-se para pessoas; a afetividade volta a ser guia para formação da

personalidade. Com gestos mais precisos e organizados, em razão da maior maturação psicomotora e melhor estruturação do esquema corporal, a criança mostra necessidade de se afirmar como ser autônomo e de explorar-se como ser diferente do outro.

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comportamento. Para Wallon (1968), estas crises são impulsionadoras de novas etapas do

desenvolvimento.

E o professor de ensino médio, estará ele consciente destas crises? Da crise dos educandos

(adolescente e adultos) e da sua própria? Como lidar com as oposições e reivindicações destes

jovens?

Marchand (1985), na sua pesquisa sobre a afetividade no educador, faz uma análise entre

o sentimento de superioridade do professor, que tende a aumentar com a da idade, e a oposição

dos alunos adolescentes. Explica que, na relação adulto/adolescente, quanto mais o primeiro

despreza o segundo, mas este desenvolve uma atitude de negação frente a ele : “diz ‘não’ para

sua moral, ‘não’ para sua experiência”. Este conflito pode produzir uma relação de hostilidade

entre ambos.

A autora ressalta, no enatano, que se o professor, em vez de confrontá-los com

superioridade, e abrir-se mais para eles, aproximando-se de sua vida cotidiana, por meio de

acampamentos, debates, jogos e outras atividades, terá a possibilidade de compreendê-los melhor.

Acredita ser com uma atitude intermediária entre a afeição e severidade é que o educador pode

chegar a harmonia no seu envolvimento afetivo com os jovens:

“Na busca de expressão de amor feita de equilíbrio e compreensão, a meio caminho entre a severidade e a indulgência, o educador deve cuidar para que seu comportamento responda as seguintes condições: deve dar provas de senso de humor, deve manifestar um amor ao mesmo tempo pessoal e impessoal, deve ser a própria imagem de renúncia e deve adaptar-se á idade, à psicologia e à evolução de cada aluno.” (ibid., p.103-104).

Ao propor esta aproximação do professor com os estudantes, a autora traz a dimensão

lúdica nesta relação. Na perspectiva da psicologia sócio-histórica de Wallon (1968) e de

Vygotsky (2001) esta dimensão pode estar presente na escola mediante atividades artísticas e

jogos. Por meio de atividades de “expressão do eu”, o jovem exterioriza seus conflitos, abre-se

para o diálogo, coloca-se em confronto com o outro e organiza seu comportamento (GALVÃO,

1999).

Para Vigotski (2001, p. 147), a brincadeira é a melhor forma de educação do

comportamento emocional, pois, ao mesmo tempo em que desperta sentimentos fortes e nítidos,

ensina a organizar as emoções por intermédio das regras do jogo.

Desse modo, entendemos que a ludicidade se torna uma forma eficaz na interação

educador/educando como mediadora dos sentidos e significados dos sentimentos, valores e

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atitudes que conduzem às relações de aproximação e distanciamento entre os sujeitos. Nesta

direção, as atividades lúdicas pode ser um meio para facilitar a expressão de sentimentos e idéias,

fortalecendo os vínculos.

Vigotski (2001) assinala que sempre que o educador quer comunicar alguma coisa ao seu

educando, deve procurar atingir o seu sentimento, para atingir os objetivos pedagógicos. Isto

porque o autor reconhece que a emoção está presente em todos os momentos do processo

educativo:

A emoção não é um agente menor do que o pensamento. O trabalho do pedagogo deve consistir não só em fazer com que os alunos pensem e assimilem geografia, mas também a sintam. Por algum motivo essa idéia não consegue vir à cabeça, e o ensino de colorido emocional é entre nós um hóspede raro101, o mais das vezes relacionado a um amor impotente do próprio professor por seu objeto, professor esse que desconhece os meios de comunicar essa matéria aos alunos e por isso costuma passar por esquisitão. (ibid, p. 143-144)

O autor sustenta a idéia de que a repressão dos sentimentos na educação contribui para

insensibilização frente à realidade e a desvitalização dos conteúdos escolares, ou seja, a separação

do conhecimento da própria vida, resultando num terrível “secamento no coração102”:

Por outro lado, são precisamente as reações emocionais que devem constituir a base do processo educativo. Antes de comunicar esse ou aquele sentido, o mestre deve suscitar a respectiva emoção do aluno e preocupar-se com que essa emoção esteja ligada a um novo conhecimento.Todo resto é saber morto, que extermina qualquer relação viva com o mundo.” (id. Ibid., p.144).

Entendemos que, para atuar desta forma, o professor precisa ter uma formação

profissional que leve em conta sua afetividade e seu processo de identificação. Acreditamos que

as políticas de formação e profissionalização do professor devem ficar atentas, nos seus

programas e na sua operacionalização, aos aspectos subjetivos implicados na experiência

pedagógica pois estes é que alimentam as relações interpessoais, a comunicação e a própria

aprendizagem. Dentre estes aspectos, a afetividade docente se revela como fundamental para a

organização do trabalho pedagógico, como nos adverte o professor Milton: “Nós temos que

entrar no emocional pois trabalhamos com vidas”. Para dar continuidade a este pensamento,

discutiremos a seguir como os professores percebem os vínculos afetivos que desenvolvem no

ambiente escolar. 101 O grifo é nosso. 102 O coração é considerado pelo autor, como visto no segundo capítulo deste estudo, como o órgão do sentimento: “As reações emocionais são, antes de tudo, reações do coração e da circulação sanguínea.”(VIGOTSKI, 2001, P. 139)

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5.4 “QUANDO A GENTE GOSTA É CLARO QUE A GENTE CUIDA”: as emoções nas

relações interpessoais do docente.

Fig. 9 - Grupo Coração de Professor: “O mototista e o carro”.2004.

Este item tem como objetivo discutir as relações interpessoais desenvolvidas pelos

professores no cotidiano de seu trabalho e as emoções daí emersas. Inicialmente discutimos as

relações dos professores entre si, em seguida, redirecionaremos a análise dos aspectos afetivos na

relação professor e aluno e na aprendizagem.

5.4.1. “Laços e nós entre os professores” : a relação com os colegas

Nos últimos encontros, levamos o grupo a refletir sobre os fatores e situações que

aproximam e afastam os professores entre si. No décimo quarto encontro, realizamos a oficina

“Os laços e os nós entre os professores”103, adaptada para despertar a sensibilidade de cada um

sobre o tema, falando e escutando “pelo coração”, levando-os a tomarem consciência dos laços e

nós nos relacionamentos. O foco foi dado no chakra cardíaco, pois está vinculado à experiência

de afeto e de amor, bem como às ações expressivas ocasionadas por tais sentimentos.

A vivência foi iniciada com uma ciranda para integrar e animar o grupo. Depois, após

explicar os objetivos daquele encontro, fornecemos ao grupo algumas informações sobre campo

energético e acerca do chakra cardíaco ou do coração104 e anunciamos que tal tema nos ajudaria

na vivência para entendermos a nossa relação com as pessoas, ouvindo e falando com e pelo

coração.

103 Vede descrição APÊNDICE J. 104 Ambos baseados na leitura reichiana que veremos no último capítulo.

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Sucintamente, a vivência consistiu em vários exercícios de Bioenergética105 feitos em

pares, dentre os quais um dos componentes da dupla (A) assumia o papel de representar uma

pessoa com quem tem um nó (bloqueio, conflito, dor) escolhida por seu par (B). Após a escolha,

B (o espelho) de frente para A (sua personagem escolhida) fazia movimentos de contrações,

segundo o ritmo da música, enquanto A imitava ou completava tais movimentos. Aos poucos, os

movimentos iam perdendo a forma até parar, respirar, centrar, até cessar a música. Com outra

música, B fazia movimentos suaves e descontraídos e A o acompanhava. Após esta interação, as

duplas se abraçaram e voltaram a caminhar pela sala até trocarem de papéis.

Na partilha, o grupo fez pouca associação com o tema, quase não foi falado na relação

entre os colegas, mas se estenderam falando das relações humanas de modo geral e a relação com

os estudantes. Foi possível destacar algumas idéias como: dificuldades de assumir papéis

antagônicos e de se relacionar com o diferente. Foi expresso pelos professores que os “nós”, nos

relacionamentos, podem ser desatados a qualquer tempo e isto traz um certo conforto. Cremos

que esta constatação do grupo foi muito importante para o relacionamento dos seus membros,

pois perceberam que muitos bloqueios e conflitos106 poderiam ser superados entre eles. Notamos

também a importância da vivência deste tema na formação do professor para refletir sobre a

dialética das emoções: prazer e dor, raiva e medo, amor e ódio como afetos básicos do organismo

vivo ( VIGOTSKI, 2001 e REICH, 1961).

Os professores acrescentaram que as atividades lúdico-corporais que tiveram como

desafio levar o “olho no olho”, trouxeram ansiedade durante o confronto, mas também

aprendizagem: tolerância e acolhimento do outro .

Dentre os depoimentos da partilha, destacamos como representativo do grupo o tema a

competição como um dos principais “nós” existentes na relação entre os docentes. Na falas do

grupo, notamos que a competição é pela expressão do saber, pela competência cognitiva,

enquanto a expressão emocional é considerada um sinal de insegurança, de incompetência. É

como podemos observar no discurso que segue:

Prof.ª Luzia: [...] Então, quando eu uso a razão, eu confesso que uso mais com os colegas. Porque uso mais com os colegas? Porque as pessoas são competitivas, elas querem dizer para você que elas sabem, tem conhecimento. Então você não pode vacilar. Se você mostrar que é muito emotivo , ai já acham que você não sabe nada, que você não ensina, que você não ‘o quê’ . De repente, você tem que estar no grupo, até deixando um pouco sua emoção de 105 Citados na introdução deste trabalho e aprofundado no último capítulo. 106 Tensões.

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lado e mostrando que você também sabe, que você está acompanhando o processo. É uma competiçãozinha meio medíocre, meio babaca que eu gostaria que não fosse assim. [...].

Observamos como a expressão emocional é reprimida nas relações entre os professores.

Parece haver uma tradição internalizada de que são profissionais “racionais” e devem se deter

ao saber científico, negando a sua totalidade como ser humano: os seus afetos e a sua

corporeidade. A professora Isabel concorda com a colega, dizendo: [...] Quando a colega estava falando em relação aos colegas, que se a gente amolecer muito, mostrar muito esta coisa da parte do sentimento, fica piegas a vista dos colegas. Porque o que se discute, o que se debate é sempre a questão do saber, o cognitivo, quem sabe mais, quem passou e quem não passou. [...]

Podemos afirmar que o império da racionalidade técnica presente na escola contribuiu

para o pensamento de que a afetividade esta dissociada da racionalidade, de que a esfera afetiva

não pertence à competência profissional e ao objetivismo científico. Este é o resultado da visão

dissociada do ser humano e da negação dos vínculos afetivos como organizadores do espaço

sócio-político na escola (GIROUX, 1997 e VIGOTSKI, 2001).

Por outro lado, ficamos a questionar: por que uma classe que sofre de tanto desprestígio

social, que não tem grandes concorrências no mercado de trabalho, desenvolve tanta competição

e inveja entre seus componentes? Em que os professores se ancoram para cultivar tanta rivalidade

pelo colega? Julgamos que este tema deve ser um objeto de pesquisa importante para contribuir

para o desenvolvimento do profissionalismo docente.

Em contrapartida, percebemos que há maior necessidade de interação dos professores,

mas, em geral, relataram que na escola ocorre entre os colegas uma relação cordial, sem maiores

intimidades, sem muita aproximação, como explica a professora Rosa: Com meus colegas também eu tenho uma boa relação e dentro dessa escola a uma boa relação com todos, é uma relação bem cordial. Mas aproximação mesmo não, é pouca a vivência, por conta dos horários da disciplinar rotatividade da escola. Mas aqueles que a gente se bate sistematicamente nestes horários eu me dou muito bem [...]. Enquanto esta professora argumenta que a falta de aproximação entre os colegas decorre

da rotatividade dos horários de cada um na escola, o professor Milton busca se aproximar

fornecendo informações e incentivando a qualificação profissional: [...] Eu consigo ter a atenção dos meus colegas, de dar informes... eu sou uma pessoa que conheço a legislação do Estado, eu gosto de saber qual é o documento que tem que dar entrada nisso, naquilo, naquilo... E o povo me pergunta: ‘Milton o que eu faço?’. Sou uma pessoa em que os colegas sentem sempre firmeza. Não faça isso, faça aquilo, dê entrada em documento para isso, para aquilo, eu sempre estou sinalizando... Cursos, simpósios,

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seminários, curso de extensão, de pós-graduação, eu sempre estou convocando, sabe? Sempre dou uma injeção: ‘Vamos gente fazer, é importante’. [...]Eu dou aquela animação sabe?.

Já no discurso da professora Solange, notamos uma confusão, ao se expressar. Ao

mesmo tempo em que diz manter boa relação e boas intenções, afirma ter tido muitas decepções

na relação com os colegas: Eu tenho uma boa relação com meus colegas, graças a Deus! Eu tenho tido muitas decepções. A questão das relações humanas são decepcionantes, mas no geral, é muito boa. Eu consigo superar, é tipo assim, naturalmente as coisas se arrumam. É quando a gente tem sempre boa intenção, e a gente tem consciência daquilo que está fazendo. [...]. Então às vezes a gente pode ter boa intenção e não está fazendo uma coisa boa. Mas quando a gente tem a consciência, digamos assim, a harmonia se estabelece. O que o outro pensava de você ela já muda quando vê o seu dia a dia, entendeu? Vê que não era aquilo que ele pensava. Eu consegui conviver bem. Graças a Deus tenho uma boa relação.

Estas declarações nos remetem ao problema do isolamento apontado como um dos

entraves enfrentados na realização do trabalho docente pelos professores pesquisados e por

Esteve (1999). Como discutimos no capítulo anterior, a falta de tempo para trocar idéias entre os

colegas e as formalidades da relação contribuem para o sentimento de solidão do professor em

sua atividade. Entendemos que a comunicação e o vinculo afetivo entre os pares são

fundamentais para o desenvolvimento da atividade de trabalho, como vimos no segundo capítulo

deste estudo. Se, na abordagem sócio-histórica aqui discutida, a linguagem é a principal

mediadora para a aproximação entre as pessoas, sendo assim, inferimos que a ludicidade, usada

como linguagem, pode ser um excelente instrumento para tornar as relações entre professores

mais harmônicas.

Nesta perspectiva, consideramos que o desenvolvimento de atitudes lúdicas nos cursos de

formação docente contribuiu para tornar os encontros entre eles um momento de alegria,

ressignificação de seus saberes, reconstrução de regras do processo de ensino

aprendizagem, troca de afetos e realização de atividades de relaxamento e partilha.

Acreditamos que, desta forma, pode contribuir para ampliar a consciência deles de que são seres

integrais e inacabados, não agem separados do seu todo corporal- afetivo-cognitivo nem

possuem saberes prontos e absolutos. Deste modo, é a alternativa para flexibilizar o cotidiano

formal, sisudo e competidor, conforme revelação dos professores pesquisados.

Tal alternativa contribuiria também para refletir sobre a relação entre eles e seus

educandos, tema de debate a seguir.

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Como os nossos professores se formam na interação com seus educandos? Quais as

emoções e sentimentos estão mais presentes e como lida com eles? Onde está o limite de amar e

odiar na relação professor /aluno?

Perguntamos ao grupo como era a sua relação com seus alunos nas entrevistas e nos

encontros, com o objetivo de refletir sobre as principais emoções (medo, raiva, alegria) e

sentimentos (amor/ódio) que envolvem a relação educador/educando e seus reflexos na práxis

pedagógica. Norteados nas questões ora apontadas, organizamos, no décimo terceiro encontro

do grupo, uma vivência voltada para este tema. Trabalhamos com danças circulares, cirandas e

uma brincadeira chamada “Motorista e o carro”. A brincadeira consistia na simulação de um

carro e um motorista; no par, um era motorista e o outro era o carro. O motorista tentava guiar o

carro num tráfego bem movimentado, seguindo as regras do trânsito. A brincadeira teve como

finalidade sensibilizar o grupo para refletir acerca da mediação do professor sobre o estudante.

Com base nestes instrumentos de coleta de dados, selecionamos alguns discursos

representando os aspectos afetivos mais relevantes na interação dos professores e os estudantes.

Antes de discutirmos os pontos destacados, achamos necessário apresentar o que a professora

Mary nos responde, revelando que uma das coisas mais importantes no trabalho era a relação

com os alunos: [...] Deixe eu ver, são tantas coisas, uma coisa importante: os alunos meus amores, para mim são importantíssimos sabe? O que eu aprendo com esses meninos é aprendizagem contínua, certo? E enriquecedora. Tem outras coisas não é? Deixe eu ver, são três coisas não é? Deixe eu ver... a terceira na minha profissão não é isso? Não sei se esta muito ligada a esse segundo essa coisa assim... não sei se vou saber explicar, eu vou falar e você vai tentar resumir, no dia a dia sabe eu venho feliz para escola, eu vou feliz para o trabalho sabendo que eu vou dar aquela aula que eu preparei e naquela expectativa de levar uma mudança, levar coisas deferentes. Isso! No dia a dia é estar feliz com o que eu faço, com o que eu vou fazer com o que eu vou receber de volta deles. (risos) A professora ressalta a importância do compromisso e do afeto do professor com seu

educando: o principal “objeto” do seu trabalho; objeto que é também sujeito do processo de

ensino-aprendizagem, um ser concreto, sócio-histórico e em constante transformação. Entende-se

que o educando é um ser humano em constante formação e, no plano da relação

educativa/pedagógica, é o “sujeito que busca adquirir novo patamar de conhecimentos,

habilidades e modos de agir” (LUCKESI, 1990, p. 118); ou seja: “ O educando é um sujeito que

necessita da mediação do educador para reformular a sua cultura, para tomar em suas próprias

mãos a cultura espontânea que possui, para reorganiza-la com a apropriação da cultura

elaborada”.

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Nesta perspectiva, vejamos agora o que os professores nos dizem sobre os aspectos

afetivos de sua interação com os estudantes. Na pesquisa, reconhecemos que os professores não

encontram, nem na sua formação inicial nem na sua formação em serviço, oportunidade de

debater seus vínculos com os estudantes. Esta relação é vista nos cursos como racional e técnica,

na qual o professor deve aplicar “metodologias” que favoreçam a aprendizagem. Dificilmente se

discute que a relação afetiva é também um fator fundamental para esta aprendizagem e os

aspectos emocionais são geralmente abordados em termos de “indisciplina da classe” ou “falta de

domínio”, sobre a turma, pelo professor. Conseqüentemente, os professores apresentam receio de

lidar com suas emoções e com os afetos projetados pelos seus alunos, dificultando maior

aproximação e tolerância entre ambos.

Destacamos a fala da professora Carla para iniciar esta discussão: No inicio da minha carreira, digamos assim, era muito complicada esta relação, porque, eu não sabia como me posicionar ainda. É... eu tinha como noção para mim lá, meus pais não são muito assim de fazer carinho, de dar beijo, de dar abraço, então, eu sempre tive essa resistência né? Em relação a isso entendeu? E eu sempre penso sobre isso porque eles podem, geralmente, querer me abraçar, e eu sempre me esquivava, achava estranho, querer me abraçar, e me beijar, sabe? Minha relação era bastante fria com eles, era chegar na sala, e dar aula. Com o passar do tempo, eu também me tornei mãe, eu comecei a pensar sobre isso, e ai, mudei minha reação, vou acabando esse medo de me aproximar deles. A professora nos relata uma dificuldade pessoal de lidar com afetos, originada de sua

história familiar. Esta dificuldade bloqueava a sua interação com os seus alunos, desenvolvendo

uma atitude de frieza emocional. Dificuldade como essa poderia ser trabalhada nos professores na

sua formação inicial, já que a característica principal de seu trabalho é a interação.

Por outro lado, é preciso que o professor entenda que, na fase da adolescência, de acordo

com Wallon (1968), as expressões afetivas dos jovens se deslocam da necessidade de contato

físico com os adultos, para as necessidades de respeito, justiça, compreensão e inclusão e apoio

às dificuldades de operacionalização de algumas atividades. A professora Margarete nos conta,

na entrevista, como procura se aproximar dos seus alunos: [...] Tinha um aluno que só sentava na frente e começou a faltar muito e eu sentir falta , e sem nenhuma intenção metodológica eu perguntei a ele porque tinha faltado e a partir deste dia ele não faltou mais e ficou muito tenso. Teve outro aluno que sentei com ele, dei uma atividade para turma e direcionei a atividade para ele comecei ler com ele e sentir que ele mudou de qualidade, de atenção. O fato de eu me preocupar mais ..., não sei se é a metodologia correta, mas naquele momento eu era o que eu tinha e sentir que teve uma resposta. Acho que foi mais do que fazer uma atividade e pôde me aproximar um pouco e ver e discutir, vamos tentar por aqui, vamos tentar por aqui, por ali. Foi uma experiência muito significativa, muito significativa mesmo.

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A professora trabalhou nos seus alunos a inclusão; respeitou os seus limites e os apoiou

nas dificuldades. Cabe aqui relembrar, neste momento, o conceito de cuidar desenvolvido por

Carvalho (1999, p. 51), que engloba “empatia, atenção, proteção, compaixão e compromisso com

a comunidade.” Observamos que esta atividade, própria da profissão docente, requer uma

habilidade de convivência, de tolerância, respeito, lealdade e acolhimento do outro, mas nem

sempre discutida nos cursos de formação de professores. A este respeito, Sacristan (2002)

assinala que tolerar o outro é poder resistir a sua presença como diferente, não o sentindo como

uma ameaça e não lhe causando danos só porque sua integridade é diversa dos modelos

internalizados ou hegemônicos. O autor, porém, refere que a tolerância tem um limite, não deve

ferir a autonomia de quem tolera.

Ainda sobre o limite da tolerância nesta relação, podemos observar, na forma como a

professora Solange cuida dos seus educandos, uma relação democrática para construção do

conhecimento e nas regras e limites necessários na relação, buscando parceria: No geral a relação é boa. Com as dificuldades de alguns grupos, que as vezes né? E isso me deixa

angustiada, que eu não consigo resolver. Mas é boa sim porque eu consigo me relacionar com eles com parceria. Coisa que eu não fazia há uns dez anos atrás. Eu não fazia isso. Por isso eu me sentia um peixe fora d’água. Meu Deus será que a minha vai ser ensinar mesmo? Na realidade foi pra mim um teste depois que eu terminei a graduação.[...]

É de discutir as coisas com eles, é de combinar com eles as coisas. Entendeu? É tipo assim... Por exemplo. Todo inicio de ano, eu faço questão que eles anotem determinados combinados. Precisa fechar determinadas coisas, para que não se tenha dúvida nem da minha postura nem quanto a deles. Mas são coisas que eu discuto com eles. Por exemplo, o trabalho, a data deve ser respeitada para a entrega do trabalho. Trabalho entregue posterior a data, vai ter nota reduzida. Eu jogo para eles. O que vocês acham? É justo ou não é? Por exemplo, um me entrega na data X, que eu marquei; aí, o outro vem me entregar depois. Merece também a mesma nota daquele que se esforçou. A não ser que tenha uma justificativa plausível. Uma doença... É justo eu estar prorrogando, prorrogando e dar mesma nota. Se a turma achar não pode ser, então eu anoto, aquela turma tal... Ocorre aquela “ética universal’. Ela se arruma automaticamente: ‘ Você não pode’,’ Você não entregou na mesma data’.’ Você vai ter o mesmo direito de ter nota?’. É tudo na base da negociação. De negociar com eles, abrir o jogo. É muito jogo aberto.

A professora reconhece que os estudantes precisam de um referencial, de uma

discriminação mais clara dos limites de sua autonomia e de sua dependência, condição básica

para sua diferenciação com o outro. Para isso, ela estabelece uma relação de parceria com eles e

uma ética que denomina de “universal”. Cabe aqui fazermos referência a Freire (2001, p. 18), no

que tange à “ética universal”. Para o autor, esta ética deve ser o princípio norteador de todo curso

de formação científica docente, e a melhor maneira de lutar por ela é na própria convivência com

os educandos: na forma como os professores lidam com os conteúdos, com suas elaborações

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críticas, com os sentimentos e valores. Nela, devem ser rejeitados o “moralismo hipócrita”, o

cinismo, a calúnia e o “falar mal”. O “sujeito ético” condena as discriminações de raça, gênero,

classe e a exploração da força de trabalho.

Este tema é importante para o professor, no que se refere à concepção negativa de

tolerância que pode adotar. Esta concepção negativa anuncia o sentido de suportar, que significa

padecer com paciência as aversões do outro, como sabemos, e no sentido de permitir, coexistir ao

lado do outro e consentindo o que faz ou pensa. Nesta perspectiva, podemos inferir que o

docente seguidor de uma dessas atitudes estará sendo passivo sob o outro, mas não mostrando

interesse pela sua diversidade e mantendo um pacto: “eu sou tolerante com o outro porque eu

devo ser tolerado” (SACRISTAN, 2002, p.123). Esse autor, entende que as manifestações

positivas de tolerância consistem em compreender o que é “diferente de nós”, aproximando-se da

intenção de conhecer e aprender com o outro.

O professor, neste sentido, aproxima-se da cultura dos seus alunos, impregna-se dela,

compreende seu ritmo e seu modo de aprender. Isto remete ao seu papel de mediador cultural que

consiste em acolher os conhecimentos espontâneos (do cotidiano) trazidos do contexto cultural

do educando e articulá-los com os saberes científicos. Assim ele auxilia o caminho das

generalizações e significados realizados pelos alunos e impulsionando as mais variadas formas de

compreensão da realidade.

Além disso, a tolerância positiva do professor consiste em um reconhecimento do outro

como pessoa única, singular e diferente, reconhecendo a diversidade como um valor e não como

um déficit. Assim, o educador rompe com a classificação, a normalização e com a tendência

homogeneizante e segregadora da Escola, nas palavras de Melero (2002, p.50).

Esta relação de tolerância com os educandos, no entanto, precisa de limites claros, como

destaca a professora Margarete, para não ofuscar o compromisso e o papel profissional

desempenhado pelo docente. Luckesi (2000, p.38) assinala “ [...] o educador é aquele que acolhe,

nutre, sustenta e confronta, amorosamente, o educando, para que ele possa formar-se na

interação com o outro, que lhe subsidia condições de desenvolvimento.” O educador acolhe e

nutre,, aceitando e fazendo “continência”, permitindo e dando limites, dialogando e encontrando

soluções coletivas e comuns na atividade educativa. Ele também sustenta e confronta, ocupando

o lugar de adulto na relação pedagógica, sustentando a experiência de aprendizagem e

percebendo todos os atos como oportunidade educativa.

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Um exemplo concreto sobre a continência, o limite e o diálogo na relação com os

educandos, foi por nós observado na declaração da professora de Educação Física e de

Musicoterapia, sobre o trabalho que realiza na sua escola, em um debate no grupo pesquisado

pertinente à afetividade na práxis pedagógica após a vivência do “ O motorista e o carro”:107.

Então, vejamos o que diz a professora:

Prof.ª Anita: O adolescente ele precisa deste limite para construir a própria identidade. É [...]esta coisa que Milton falou da brincadeira, eu brinco com eles por demais, mas na hora de dizer não , não... Uma outra coordenadora deste centro lá na Escola, ela é uma pessoa extremamente rígida, então ela chegou para os meninos, que entre uma oficina e outra ficaram comendo e brincando, e disse: ‘ Não quero isso aqui, parecendo um local que tem mendigo não quero ver ninguém comendo aqui’. Eles levantaram e ficaram em pé ela a disse:’ Vocês não vão sair daqui não?!’. Eles pegaram e me ligaram pra saber qual a atitude: ‘Se eles xingavam ela ou diziam coisas’. Eu disse:’ Vocês não vão xingar, não vão dizer nada. Vocês tem o direito de vocês que é o de circulação, desçam agora falem com a direção e digam que vocês falaram comigo e não respondam’. Eles desceram e o diretor tomou uma atitude com ela. Uma coisa que trabalho muito com eles é que eles utilizem o poder de argumentação e traga também para o espírito. A gente trabalha na musicoterapia com isso, você pode dizer que é uma pessoa é chata, que a pessoa é pentelho, tudo de uma maneira agradável sem precisar agredir, certo? Moderando o corpo... o referencial é importantíssimo sempre.

Percebemos, nessa professora, um conhecimento sobre o desenvolvimento psíquico do

adolescente e uma habilidade lúdica para lidar com o comportamento dos jovens. Já vimos na

abordagem walloniana que a necessidade afetiva dos jovens está em desenvolver

comportamentos de responsabilidade, cooperação e solidariedade, mas, para isso, ele precisa dos

limites e referenciais. E, por isso, o professor necessita ocupar o lugar de adulto nesta relação,

como complementa o professor Milton, que participou do mesmo debate com a professora

Margarete: Eu falo porque assim, na sala de aula mesmo com meus alunos, os meninos são de uma turma de adultos. Interessante é o respeito deles comigo, eu sou uma pessoa extremamente brincalhona com eles, sabe? Eu brinco, dou risada , eu conto caso, eu puxo o orelha:’Que diacho é isso?’, ‘Que zuada’, ‘Que cabelo desgraçado foi que você botou menino!’, eles se acabam de rir. Mas assim existe o respeito, né? [...]Outra coisa que eu acho que é muito importante, eu acho que é uma coisa fundamental, é nós temos o nosso controle de classe, deliberando as funções e limites. Porque assim a gente vai conseguindo conduzir, porque o próprio aluno separa o grão do trigo, ele sabe o professor que ele pode fazer o que quer e a gente não pode deixar que ele faça isso com a gente.

[...] A gente tem quer dizer não, e é um não necessário... eu passo uma atividade e tal dia ele tem que trazer senão eu não posso aceitar , porque tem que ter este limite.

107 Dinâmica descrita no início deste item.

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O professor acolhe e dá continência aos seus alunos, sem precisar de arrogância e de

moralismo, aproximando-se do seu cotidiano e mantendo bom-humor, e assim assume o

“controle de classe” : sustentando-os e confrontando-os com a realidade.

Em relação à amorosidade presente na relação educador-educando, referida por Luckesi

(2000), converge com a proposta de Freire (2001), na sua Pedagogia da Autonomia, como um

dos saberes necessários à prática docente. Este saber exige a compreensão de que ensinar é querer

bem aos educandos e por ser uma especificidade humana, por lidar com gente e não com coisas,

esta afetividade não deve ser reprimida em sua expressão nem excluída da cognoscibilidade.

É importante dizer que, nos debates realizados sobre afetividade na práxis pedagógica, os

professores assinalaram o “colorido emocional no ensino”, dito anteriormente por Vigotski

(2001)108 . A educação do homem integral (corpo, emoção e cognição) exige reconhecer o brilho

ou energia inerente ao ser humano: os seus afetos (com o outro, com o conhecimento, com outros

objetos). Por isso, “não adianta trabalhar sem o afetivo”, pois sem ele pouco se consegue do

ponto de vista pessoal e cognitivo, como nos diz a professora Luzia: [...] Então quando há uma identificação do aluno com o professor, esta identificação é primeiramente do ponto de vista afetivo, ela não é do cognitivo. Ela não é porque você ensina mais, tem um nível de compreensão maior para aquela pessoa que está ali. Aí fica mais fácil ensinar, fica mais fácil você aconselhar, fica mais fácil você chamar atenção quando é preciso. Na minha concepção a relação facilita muito e os alunos tem no professor alguém que eles podem confiar e podem estar perguntando e dizendo de seus sentimentos e até de outras coisas. Então eu tenho muito esta preocupação. [...]

A professora nos confirma o que Wallon (1964) e Vigotski (2001) trazem sobre o papel

da afetividade na constituição do sujeito, na formação dos grupos sociais e no desenvolvimento

cognitivo. O educador precisa ser uma referência para seus educandos, que transmite afetos

básicos para o seu desenvolvimento integral e para ser possível concretizar o processo de ensino e

aprendizagem. Cabe lembrar neste contexto o que nos diz Leontiev sobre o assunto na palavra de

Assmann (1998): Não cabe dúvida de que o cérebro necessita do abraço para seu desenvolvimento, e as mais importantes estruturas cognitivas dependem deste alimento afetivo para alcançar um nível adequado de competência. Não devemos esquecer, como Leontiev destacou há bastantes anos, que o cérebro é um autêntico órgão social, necessitando de estímulos ambientais para seu desenvolvimento. Sem aconchego afetivo o cérebro não pode alcançar seus ápices mais elevados na aventurado conhecimento (...)” (ibid, p. 31)

108 Vede citação neste capítulo, no item anterior.

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Este aconchego afetivo precisa existir na relação educador e educando e se expressa pelo

diálogo (FREIRE, 1983) e pela amorosidade (LUCKESI, 2000) e pressupõem uma abertura para

acolher e querer bem aos educandos, discutindo diretamente com eles a realidade que os cerca.

Esta abertura, segundo esses autores, significa selar um compromisso com a formação do

educando como sujeito sócio-histórico e cultural, conhecendo os seus contornos geográficos,

políticos e econômicos para exercer a mediação cultural e afetiva. Entendemos esta mediação

afetiva como o próprio ato amoroso no processo educacional: a formação da consciência crítica e

a expressão de sentimentos, numa “prática específica de ser humano nas palavras” de Freire (

2001, p. 159). A professora Isabel declara como busca esta mediação: [...]Particularmente aos nossos alunos, em fase de transição, a gente tem que dá limite naturalmente, mas tem que dá limite conscientemente e com o amor que eles merecem. Eles carecem desse amor, eles carecem desta conversa, porque não tem esta liberdade com os pais, então nos buscam. Então é preciso que a gente veja isso. Veja com mais freqüência até porque este momento é de muita dificuldade, de todo jeito, de todos os seguimentos, dificuldades de moradia, enfim tudo. Particularmente escola pública que a gente lida mais no dia a dia.[...] Ela procura ser afetiva, sem perder a seriedade docente necessária para seu trabalho e para

o reconhecimento do seu papel social e ético-político. Freire (2001) não separa estes dois papéis:

Na verdade, preciso descartar como falsa a separação radical entre seriedade docente e afetividade. Não é certo, sobretudo do ponto de vista democrático, que serei melhor professor quanto mais severo, mais frio, mais distante e cinzento me ponha nas minhas relações com meus alunos, no trato dos objetos cognoscíveis que devo ensinar.(ibid, p. 160).

Assumindo esta posição, o autor deixa claro que, sendo amoroso, o educador não se deve

esquecer da competência técnica, necessária para efetiva mediação de conhecimentos cotidianos

e científicos, e do ato político, implícito na sua atividade, necessário para emancipação e inclusão

dos jovens com os quais se relaciona e para luta em favor de melhores condições de trabalho. É

como leciona: “É preciso, por outro lado, reinsistir em que não se pense na prática educativa

vivida com afetividade e alegria, prescinda da formação científica séria e da clareza política dos

educadores e educadoras.” (id.ibid. p. 161)

Dessa forma, entendemos que a atividade educativa, como forma de trabalho humano,

carece de ser alimentada pela vida e, como tal, pela energia que a move: afetividade. Da mesma

forma como se busca quebrar a polarização entre a “competência técnica e o “compromisso

político” (SAVIANI, 2003), urge cindir a polarização entre o afetivo e o cognitivo nesta

atividade.

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Assim, concordamos com a professora Isabel quando comenta: Então é necessário que a gente veja o lado cognitivo, mas principalmente e o lado afetivo , porque a gente está formando o homem integral. A gente não está robotizando, a gente não está querendo apenas graduar , não é ? Porque graduação até o auto-ditata pode conseguir. Depois ele vai se submete a prova mas...A gente está formando e formar é uma coisa que caminha pari-passo: educação e sentimento, educação e amor. Educar é amar. [...]

Seu discurso também nos remete à célebre frase de Charles Chaplin: “Não sois máquinas,

homens é que sois!”. Deste modo, entende-se que o diálogo e a amorosidade entre os sujeitos

são a base para a educação: “educar é amar” como afirma a professora Isabel; ou seja, no

encontro de amor entre os homens é que se processa o educar: “ Não há diálogo porém se não

existir um profundo amor ao mundo e aos homens. Sendo fundamento do diálogo, o amor

também é diálogo, é um compromisso entre os homens.” (FREIRE, 1983, p. 96).

Compreendemos, assim, por que a dialogicidade é essencial numa pedagogia crítica e

libertadora, pois não se reduz a uma simples troca de idéias ou reprodução do conhecimento, mas

a um diálogo de esperança, humildade e criticidade. Assim, deste diálogo, emergem a alegria e a

atitude lúdica, dimensão organizadora da afetividade e da criatividade humana. A dialogicidade

será detalhada no próximo capítulo, como princípio pedagógico norteador na formação lúdica do

docente, pois entendemos que esta formação contempla o “colorido emocional” necessário ao

processo de ensinar e aprender.

Por enquanto, para finalizar este capítulo, devemos admitir que o encontro

educador-educando numa educação lúdica carece ainda de muitos diálogos. E, nesta

oportunidade, cabe destacar o comentário da professora Bernadete Porto109 , ao evidenciar que a

arte de ensinar é transformar o momento da aula num encontro inédito. Desse modo, cada aula é

sempre um encontro diferente e o conhecimento nasce deste encontro, e não exclusivamente da

voz do professor. A elaboração deste conhecimento envolve vínculo, continuidade e ruptura,

resultando também em autoconhecimento...

109 Aula ministrada em 14.06.04, na disciplina Ludopedagogia III, no curso de pós-graduação da FACED/UFBA.

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6 “O MELHOR LUGAR DO MUNDO É AQUI E AGORA”110-

- O trabalho e a formação lúdica do professor -

“O grande momento da unidade entre o intelectual e o afetivo seria um amor que não

temesse submeter-se ao trabalho da reflexão e ao qual o amante somente deixaria o campo livre após a experiência do pensamento.”

(SNYDERS, 1995, p. 92)

Fig.10- .Grupo Coração de Professor: “ Acordar o Coração”. 2004. Nos capítulos anteriores, observamos que a afetividade permeia e acompanha o trabalho

docente, atuando como energia que mobiliza a reflexão e ação pedagógicas. Dessa forma,

compreendemos que o conhecimento é constituído na unidade entre o intelectual e o afetivo.

Percebemos, de acordo com as análises até aqui realizadas nesta pesquisa, que o ensino-

aprendizagem apresenta-se como multidimensional: afetivo, técnico, político e social.

Entendemos que estas dimensões se articulam dialeticamente numa relação de interdependência,

tornando- se essencial para uma adequada compreensão e mobilização da dinâmica deste

processo, e, como tal, para formação docente, como demarca Candau (2004).

Assim, uma vez inserido na escola, o ensino-aprendizagem é uma expressão das relações

humanas em determinado momento histórico, mostrando-se variável em diferentes contextos.

Para Gasparin (2003), a escola deve ser constantemente questionada, criticada e modificada para

enfrentar as mudanças sociais e assumir novas posturas na atividade pedagógica, trabalhando

conteúdos de forma contextualizada em todas as áreas do conhecimento. 110 Trecho da composição “Aqui e agora” , de Gilberto Gil.

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O autor tem como suporte epistemológico a Teoria Dialética do Conhecimento, defendida

pela Pedagogia Histórica Crítica, de Dermeval Saviani, e a Psicologia Sócio- Histórica, de Lev

Vigotski. Partindo desta base teórica, traduz, para o processo educativo, as três fases do método

dialético de construção do conhecimento: prática-teoria-prática. Nesta proposta, o ponto de

partida não é a escola nem a sala de aula, mas a realidade social mais ampla, cuja leitura crítica

torna possível um novo pensamento e prática pedagógicos.

Tal posição teórica converge com a proposta da Pedagogia crítica ou progressista, de

Freire (1983; 2001), que tem a dialogicidade como base para os princípios pedagógicos, pois

“ela é a essência da educação como prática e liberdade” (ibid 1983, p. 89). E, analogamente a

Gasparin (2003), ancora-se nas três dimensões do movimento dialético: ação-reflexão-ação. De

acordo com Freire (1983), se no processo educativo só a ação for enfatizada, a palavra do

educador se converte em ativismo, minimizando a reflexão e impossibilitando o diálogo. E se,

por outro lado, apenas a reflexão imperar, sem a transformação concreta da realidade, o discurso

docente se converte em verbalismo, alienado e alienante. Neste sentido, a dialogicidade consiste

na prática problematizadora onde o diálogo não se esgota na relação eu-tu, mas é um “caminho

pelo qual os homens encontram significação enquanto homens” (ibid, p. 93). Matui (1995)

esclarece esta perspectiva de Paulo Freire, expressando que, na situação de dialogicidade, ocorre

em três condições; a primeira é o diálogo com o sujeito, a segunda a situação de mediação social

e simbólica na qual os indivíduos se entrelaçam no “aqui e agora” e a terceira é o clima de

liberdade e cooperação onde acontece o diálogo.

Nesta perspectiva, torna-se importante entender a formação docente voltada para uma

práxis transformadora na qual o diálogo se faz cada vez mais essencial para o desenvolvimento

do ensino, cuja aprendizagem não se reduz à repetição, mas à ressignificação dos conhecimentos.

Estes devem confrontar constantemente o passado com o presente, os sentimentos com a

realidade. É como diz Santos (2000):

Educar não se limita a repassar informações ou mostrar apenas um caminho, aquele caminho que o professor considera o mais correto, mas é ajudar a pessoa a tomar consciência de si mesma, dos outros e da sociedade. É aceitar-se como pessoa e saber aceitar os outros. É oferecer várias ferramentas para que a pessoa possa escolher entre muitos caminhos, aquele que for compatível com seus valores, sua visão de mundo e com as circunstâncias adversas que cada um irá encontrar. Educar é preparar para a vida. (ibid, p.13)

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Entendemos que uma dessas ferramentas que podem ser oferecidas é o jogo111,

apresentado pela autora, como uma ação lúdica eficaz para construção do conhecimento, mas

ressalta que o lúdico é uma ciência nova que precisa ser estudada e vivenciada para ser um fator

de transformação na práxis pedagógica e não apenas mais um modismo na história da educação.

Em outra obra, Santos (2001, p. 15), ao se referir à formação lúdica, acentua: “A educação pela

via da ludicidade propõe-se a uma nova postura existencial, cujo paradigma é um novo sistema

de aprender brincando numa concepção de educação para além da instrução.”

Diante dessas premissas, qual o papel da ludicidade no trabalho docente que se sustenta

numa concepção dialética do conhecimento? Como fazer do trabalho docente uma experiência

lúdica? Qual a importância de uma pedagogia de caráter lúdico na formação de professores e no

investimento afetivo da profissão?

Este capítulo evidenciará a questão norteadora desta pesquisa: a contribuição da

ludicidade para o trabalho e para formação pessoal e profissional docente. Para atingir este

objetivo, situa brevemente a prática lúdica na história da educação e esclarece seu significado no

trabalho pedagógico. Nos itens posteriores, discute a ação lúdica no trabalho docente,

aproximando os princípios da Pedagogia Histórica e Crítica, fundamentada no método dialético

do conhecimento, com os princípios da ludicidade, confrontando-os com as concepções e

opiniões dos professores, do grupo pesquisado, sobre o tema. Conclui sugerindo a vertente

pessoal na formação docente como alternativa para desenvolver uma postura lúdica nestes

profissionais.

6.1 “ SER MESTRE É ENSINAR A FELICIDADE “112 : o lúdico no trabalho pedagógico.

Fig. 11: Grupo Coração de Professor: “Casa, morador , terremoto”. 2004.

111 Jogar e brincar serão tratados neste trabalho como sinônimos, significando “a atividade plena de sentido, não restringindo o uso do jogo às situações em que, explicitamente, há o predomínio de regras e um objetivo a ser alcançado. [...]” (PORTO E CRUZ, 2002, p. 141). 112 Rubem Alves (2000, p. 12)

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A ludicidade, conforme está sendo abordada nesta pesquisa, é uma das dimensões do ser

humano, experiência de plenitude que fornece à pessoa alegria e vontade de viver, presente em

qualquer idade, sexo e classe social, fundamental no nosso processo de socialização e no

desenvolvimento cultural. A sua expressão é mediada por uma atividade que resulta numa

experiência de entrega do ser humano em sua totalidade - motora, afetiva e intelectual. Neste

sentido, as atividades lúdicas servem como recursos para o autoconhecimento, como instrumento

de expressão espontânea, fornecendo pistas eficazes para o processo de aprendizagem na medida

em que envolve vínculos e medeia a interação sujeito /mundo.

De acordo com Porto e Cruz (2002), a presença da prática lúdica na educação assumiu

três posicionamentos. A primeira está ligada à pedagogia tradicional 113que não admitia a

presença de jogos e brincadeiras em sala de aula. A segunda posição, de acordo com as autoras,

se ancorou nas correntes pedagógicas escolanovista 114e construtivista, e admite a importância do

jogo como recurso ou fins para aprendizagem de conteúdos:

Fica claro que, neste caso, o jogo só atinge seu status de importante na escola se estiver associado a essa função de facilitar ou exercitar conhecimentos. A proposição é feita pelo professor. Com essa prática, os professores acabam reduzindo a possibilidade de brincar a momentos muitas vezes sem significado para as crianças, pois descarta uma das principais características do jogo, que é ser fruto de ação livre e voluntária.(ibid, p. 154).

A terceira posição se recusa à visão da ludicidade como adorno ao processo ensino

aprendizagem, e defende, além do jogo dirigido, a brincadeira livre na educação das crianças,

tendo como objetivo o desenvolvimento humano em sua integralidade afetiva, motora e

cognitiva.

Na pesquisa realizada com os professores, observamos que uma boa parte deles utiliza os

jogos como facilitadores da aprendizagem ou para amenizar a condição socioeconômica dos

estudantes, como podemos notar no discurso da professora Flor:

113 Pedagogia que vê o homem dotado de um essência imutável e pratica um ensino autoritário e rígido, no qual o professor é um ser completo , sabe mais e tem maior autoridade, e o aluno é um ser incompleto, devendo ter respeito e obediência ao mestre. (MATUI, p. 1995). 114 “ Na escola nova, o adulto não é mais modelo para a educação das crianças, porque ele também é um ser incompleto, em acabamento. Ninguém é dono da verdade; não existe mais a autoridade do magister dixit.”(MATUI, 1995, p. 7).

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A gente divide a turma em grupos e eles gostam muito de competir. Se eu for trabalhar, por exemplo, poluição da água, eu coloco dentro das questões o grupo que responder um número de questões dentro do assunto. Fica uma certa rivalidade entre os grupos e eles ficam felizes quando conseguem acertar um determinado número de questões. [...] Porque às vezes a maioria não consegue atingir a média. É muito complicado, tem turma mesmo que não gosta de nada que exija assim, a população lá é muito carente, é tudo muito difícil, estou falando do pessoal do fundamental, durante o dia , vai sem lápis sem caderno. Então, dentro destas coisas, destas atividades, eles conseguem se sair bem em alguma coisa. Para complementar: ‘ O grupo que ganhou a brincadeira vai ganhar meio ponto na média’, isso motiva. E eu também me sinto melhor.

A professora, embora tenha utilizado o jogo como mediador para a aprendizagem,

trabalha com dois aspectos que compõem a pedagogia tradicional; a competitividade e a prática

de recompensar os estudantes por meio de pontos na nota. No primeiro aspecto, ela criou um

“clima de rivalidade”, separando e dividindo a turma em torno do jogo proposto. No segundo

aspecto, ela reforça a avaliação classificatória e rotulante que sustenta a prática tradicional na

pedagogia. Segundo Matui (1995), a educação tradicional apóia-se no maniqueísmo, atitude de

separar e dividir os seres , entre bons e ruins, e na educação este pensamento é responsável

pela separação entre prática e teoria, dissociando o pensamento e a prática.

Já o terceiro posicionamento mencionado ancora-se na construção dialética do

conhecimento e parte do princípio da aprendizagem significativa, ou seja, aquela que toma como

contexto a vida e incentiva atos criativos nos educandos, tendo como síntese a transformação da

realidade, bases da Pedagogia Histórica Crítica, citada anteriormente.

Deste modo, configura-se uma educação centrada na visão do ser humano integral e

inacabado e, na elaboração dialética do conhecimento, supõe uma relação criativa e harmônica

sujeito/ mundo. Neste sentido, as atividades lúdicas podem servir como mediação na formação e

no trabalho do educador, para ampliar seu vínculo com os educandos, para estabelecer maior

contato com os afetos ligados a sua práxis pedagógica, além do desenvolvimento do seu nível de

potencial cognitivo115.

Partindo deste ponto de vista, a prática pedagógica lúdica deve ser entendida não como

aquela realizada com a mera aplicação de técnicas de dinâmicas de grupo para ensinar, mas

aquela que transcende o conteúdo e a técnica e atinge o âmago da interação educador-educando,

onde estão ancoradas a necessidade, desejo, espontaneidade, liberdade, intencionalidade,

disciplina, flexibilidade e dialogicidade no processo pedagógico, como descreve Fortuna (

2001) :

115 Nível de Desenvolvimento Potencial ( VYGOTSKY, 1988)

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Uma aula ludicamente inspirada não é, necessariamente, aquela que ensina conteúdos com jogos, mas aquela em que as características do brincar estão presentes, influindo no modo de ensinar do professor, na seleção de conteúdos, no papel do aluno...a aula lúdica é aquela que desafia o aluno e o professor e situa-os como sujeitos do processo pedagógico. A tensão do desejo de saber, a vontade de participar e a alegria da conquista impregnarão todos os momentos desta aula.116 ( ibid, p. 116-117).

Por isso, o caráter lúdico do trabalho pedagógico não se reduz a um conjunto de técnicas

ludopedagógicas e papéis legalmente definidos e registrados em receituários, pois estas

atividades, quando mecanicamente realizadas, podem não ser lúdicas. O jogo, neste contexto, é

usado com uma visão mais abrangente, representando uma ação lúdica, entendida como aquela

que traz espontaneidade, expressividade, alegria e flexibilidade.

Desta forma, podemos tecer alguns comentários que auxiliam na caracterização da ação

lúdica. No ensino-aprendizagem, nem sempre os jogos e brincadeiras são lúdicos. Enquanto

utilizados meramente como fim de divertimento ou restritos a transmissão de conhecimento,

podem se tornar tão mecânicos e desprazerosos quanto algumas aulas expositivas taxadas de

monótonas e “bancárias” (FREIRE, 1983). Os jogos não se reduzem ao entretenimento, pois,

quando usados com ludicidade, tornam-se dispositivos fundamentais para estabelecer vínculos no

momento em que se realizam, à medida em que trazem bem-estar e estimulam a criatividade,

facilitam a aprendizagem e a expressão. E, por último, não somente os jogos e brincadeiras

podem ser utilizados como recursos lúdicos no processo de ensino, mas qualquer outra

experiência vivida nesta prática que proporciona entrega, envolvimento, expressividade e

ampliação da consciência.

Porto (2004) esclarece que o lúdico numa atividade não é necessariamente um

entretenimento, mas pode ser uma leitura ou escrita criativa, o silêncio, o choro, configurando-se

como ação integradora. E é por isso que não é o que fazemos com a atividade e sim o para que

fazemos que torna uma atividade lúdica e integrativa.

Daí a necessidade de distinguir a “atividade produtiva lúdica” da “atividade recreativa ou

de entretenimento” 117 a fim de que nem a ludicidade seja reduzida à recreação nem os jogos e

brincadeiras se limitem aos recursos didáticos. A “atividade produtiva lúdica” diz respeito a uma

atividade efetiva, onde o sujeito se entrega a ela com múltiplas possibilidades de interação

consigo mesmo e com os outros e que abre caminhos para construção mais prazerosa e autônoma 116 O grifo é nosso. 117 Cipriano C. Luckesi,(2004), aula ministrada na disciplina Ludopedagogia III.

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do conhecimento, partindo de uma motivação interna. Portanto, pode ser realizada de variadas

formas, desde uma brincadeira espontânea até uma leitura de um texto. As atividades recreativas,

por sua vez, são tão necessárias quanto a primeira para o desenvolvimento do ser humano, pois

configuram o momento em que ele possa brincar livre e espontaneamente e onde também ocorre

ludicidade, porém não produzem conhecimento da mesma forma que a primeira.

Nesta perspectiva, perguntamos como as atividades lúdicas podem ser trabalhadas na

concepção multidimensional do processo ensino-aprendizagem, onde a afetividade e a

expressividade são dimensões essenciais no ato de educar ao lado dos fatores sócio-políticos?

Entendemos que o lúdico, no trabalho docente, ocorre quando há sintonia entre os

princípios pedagógicos e os princípios da ludicidade, propiciando maior abertura de cada um para

vida e resultando numa experiência que vai da tensão ao prazer, do autoconhecimento ao

heteroconhecimento, da espontaneidade à intencionalidade, da comunicação à expressão, dos

limites à autonomia, da emoção à razão. É sobre esta sintonia que almejamos prosseguir nesta

seção, destacando os fundamentos essenciais da educação lúdica no trabalho docente.

Para esta discussão, precisamos, em primeiro lugar, esclarecer em que consiste o método

dialético da construção do conhecimento e, ao apresentá-lo, situar os princípios pedagógicos que

o norteiam e as características que convergem com a ludicidade.

Sob o ponto de vista sócio-histórico, fundamentado no materialismo dialético, todo

conhecimento é fato histórico e social, resulta do trabalho humano e das demais políticas

socioculturais refletidas e refratadas na consciência coletiva. Desta forma, supõe sempre

“continuidades, rupturas, reelaborações, reincorporações, permanências e avanços.”

(GASPARIN,2003, p.4-5).

Como mecanismos, o método dialético do conhecimento consiste em três movimentos

que se desmembram em princípios pedagógicos para o processo ensino-aprendizagem: prática ou

ação (síncrese), teoria ou reflexão (análise) e prática ou ação transformada (síntese). Tais

momentos ocorrem de forma circular, crescente e inacabada, sugerindo uma constante de busca,

convergindo num princípio que os incorpora: a dialogicidade.

A seguir, vamos apresentar cada um desses elementos que serão nomeados de acordo com

as características lúdicas predominantes, pois percebemos que tais características podem estar

presentes, em seu conjunto, em todos os momentos desta construção.

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6.2 “O LÚDICO ABRE A PESSOA PARA VIDA” : a síncrese ludopedagógica

Fig 12: Coração de Professor: “Acordar o coração”. 2004.

A síncrese ludopedagógica é o foco deste item e abrangerá a discussão de suas

características predominantes: conscientização, espontaneidade, acolhimento, envolvimento,

comunicação e expressão. Para ilustrar, iniciaremos com o depoimento da professora

Margarete, ao responder à pergunta: “Para você qual a importância da ludicidade no seu trabalho

e na sua formação?” Eu acho que o processo de aprendizagem não é fácil, eu acho que o lúdico pode deixar mais leve este processo que é tão... que incomoda tanto, ele pode deixar o processo mais suave. Agora eu vejo o lúdico no sentido de que os recursos usados possam ter a possibilidade de mobilizar, de sensibilizar o aluno para o conteúdo.[...]

Até aqui persistimos na afirmação de que o produto do trabalho docente é a “consciência

transformada” dos seus educandos. Vimos em Leontiev (1974) e em Bakhtin (1999) que a

consciência 118emerge das condições socioculturais de vida. E, como tal, a consciência reflete

(expressa tais condições) e refrata (atribui significados) a realidade. Por isso, além de transformar

a realidade, o sujeito também se transforma.

O primeiro momento da construção do conhecimento é denominado síncrese. É a ocasião

em que o educando tem uma visão caótica do conteúdo, o que Freire (2001) chama de

“incompetência temporária”. O princípio pedagógico proposto neste momento é a

conscientização da realidade.

Dessa maneira, o educando chega à educação formal com conhecimentos espontâneos que

compõem o seu Nível de Desenvolvimento Real (VYGOTSKY, 1988), os saberes que já possui, 118 “ Consciência não é abstração, algo intocável, mas sim aquilo que somos na totalidade do nosso ser, o que inclui, simultaneamente, as dimensões do corpo, da personalidade (emoção) e da espiritualidade. (LUCKESI, 2002, p. 88).

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ou seja, nas palavras de Freire (1985) “ a leitura do mundo” trazida pelo estudante que reflete a

realidade social mais ampla. Tendo conhecimento deste nível de consciência do educando, o

professor busca criar um clima de predisposição para a aprendizagem do conteúdo proposto, para

que seja relacionado com a vida. É como assinala a professora Margarete: “deve usar recursos

para mobilizar e sensibilizar o estudante para o conteúdo”.

Gasparin (2003) sugere que este clima deve ser o cuidado preliminar do professor : saber

das pré-ocupações, dos sentimentos e dos pensamentos dos educandos para que os conteúdos

trazidos ganhem sentido para vida deles:

Isso possibilita evidenciar aos alunos que os conteúdos são sempre uma produção histórica de como os homens conduzem sua vida nas relações sociais de trabalho em cada modo de produção. Conseqüentemente os conteúdos reúnem dimensões conceituais, científicas, históricas, econômicas, ideológicas, políticas, culturais, educacionais que devem ser explicitadas e aprendidas no processo ensino-aprendizagem. (ibid p.2).

Vejamos o que nos diz a professora Mary sobre o assunto, após a vivência do “Motorista

e o carro”: Uma das coisas mais difíceis para mim foi aprender a dirigir. O professor dizia assim ‘Não pense que você sabe tudo, mas você está no carro’. Você tem que saber escutá-lo também, porque ele vai pedir que você corra a marcha, que você corra o corpo. Então é isso que eu propus fazer em relação aos meus alunos eu associei a isso, né? Aquela coisa que não é só você ditar mas parar para escutar os desejos, os anseios dos alunos. Então para mim foi ótimo tanto dirigir quanto ser dirigida, porque nos dois eu sentir assim que tem que haver sintonia.

Portanto, no princípio pedagógico da conscientização, primeiro momento do diálogo, o

professor deve antes “escutar” os anseios e sentimentos dos educandos, acolher a sua expressão,

antes de confrontá-los na aprendizagem do conteúdo. Este clima, apontado por Gasparin (2003),

e esta escuta dita pela professora Mary, são o acolhimento necessário para uma afetividade

positiva entre educador e o educando. Já vimos anteriormente que a relação entre os pares

educativos precisa ser permeada pela escuta do educador em relação aos educandos. Vejamos o

que Freire (2001) diz:

Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele. O educador que escuta transforma seu discurso em uma fala com ele. Mesmo contra as posições ou concepções do outro, a fala não deve ser impositiva, mas como sujeito da escuta de sua fala crítica. (ibid, p.127).

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Ao escutar o estudante, o educador aprende a falar com ele e, quando não ocorre esta

escuta, a sua capacidade de falar ou dizer se esgota no vazio, no “silêncio dos silenciados”,

parafraseando o autor (2001, p. 128), pela falta de relação entre o conteúdo e a realidade.

Podemos inferir a idéia de que neste “jogo” de escutar, o educador precisa ter uma

postura lúdica, ou seja, se “envolver” ou estar plenamente presente com o educando para

“transformar seu discurso em uma fala com ele”, a fim de mobilizá-lo para os conteúdos,

contextualizando-os com a sua vida concreta e atual. Esta característica é também análoga à da

“absorção” na atividade lúdica, discutida por Washinton Oliveira, e confirma a função cultural e

transcendente do jogo que supera as diferenças de classe e papéis sociais:

Ao optar por uma atividade lúdica, todos os envolvidos (mesmo que seja um único indivíduo) são absorvidos com tal intensidade que a historicidade e as diferenças culturais de cada um são ressignificadas e todos são valorizados como integrantes daquele mundo/momento específico – mesmo quando há papéis diversificados, competições ou vigorosas disputas, o valor essencial é a participação na atividade, naquele momento. (OLIVEIRA, 2002, p.66)

Percebemos este momento como o “colorido emocional” do conhecimento dito por

Vygotsky (2001), onde deve haver um clima que predisponha à espontaneidade e à

expressividade no educando, princípios presentes na ludicidade, que proporcionem a emergência

de sentimentos e idéias. A professora Rosa explica como cria este momento de descontração e

espontaneidade na sala de aula: [...] Então, a questão de você mediar as aulas e você permitir que o aluno fale. E às vezes até os alunos que não tem grandes compromissos ele traz alguma coisa que não tem muito a ver com o conteúdo, que está sendo trabalhado e ai de uma maneira muito simples também sem querer dar lição de moral, mas querendo mostrar a ele o papel e a importância dele entrar naquele ritmo... tudo de uma maneira descontraída [...]. Por exemplo, ‘O que é desenvolvimento motor?’ – “É o bebê saber pegar os objetos’ e eu digo: “Mas olha que bebezinho precoce!” (risos). Então a gente trabalha, você não diz que está errado, não desvalorizou o que ele trouxe. [...].

Ela demonstra como inicia o diálogo gerador de conhecimentos. Primeiro, deixa que o

educando traga o “seu mundo”: sua linguagem, sua leitura da realidade. E, a partir daí, ela

começa a inserir os mediadores: “sem querer dar lição de moral, mas querendo mostrar a ele o

papel e a importância dele entrar naquele ritmo...”. Não faz de maneira autoritária e sisuda, mas

descontraída e com bom humor. Do mesmo modo, a professora Luzia narra como inicia de

maneira lúdica o ensino da crônica, centrando-se nas experiências de vida de seus alunos:

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[...]Passado esse trabalho, nós fizemos outro trabalho, que nós escolhemos com uma modalidade textual a crônica. Estudar crônica. Aí, fomos pesquisando tudo quanto é crônica. E fomos pegando algumas crônicas antigas de autores como Sabino, Drummond. Pegamos crônicas jornalísticas, para eles perceberem que a crônica do jornal não tem a mesma função de uma crônica do Sabino. Aí, depois disso, eles se reuniram em grupo. Eu acho um máximo a produção deles. Eles se reuniram em grupo para cada um contar um fato que eles tinham presenciado e que tenham participado desse fato. Porque o que fica claro é que a crônica a partir de algo, não é uma invenção da cabeça, não se inventa. Para eles foi uma festa, porque saíram coisas interessantes, interessantíssimas mesmo. [...]

Observamos que a professora apresentou o conteúdo proposto, mobilizando inicialmente

seus alunos para a sua realidade social, os materiais concretos disponíveis e as experiências e

conhecimento de cada um, dando-lhes oportunidade para expressão ao narrar fatos de sua vida

cotidiana e a manipular materiais (jornais, livros...) disponíveis e poder compará-los. Desse

modo, a professora ajuda seus estudantes a tomar consciência do próprio conteúdo em sua vida,

ampliando assim a sua visão de mundo.

Sobre o assunto, Luckesi (2004) explica que a atividade, quando lúdica, desenvolve uma

dialética entre a consciência focada (exatidão) e a consciência ampliada (clareza), provocando

assim alterações no estado da consciência. Segundo o autor, a exatidão traz limites definidos do

que seja certo ou errado e, na busca de precisão, exclui fatores que não correspondem ao seu

círculo de identidade. Já a clareza, ou consciência ampliada, não fica centrada no “certo ou no

errado, mas sim nas possibilidades, que são muitas para além dessas duas.”. Desse modo ela é

inclusiva ao olhar a realidade a partir de suas múltiplas dimensões. O autor evidencia que a vida

humana necessita dos dois estados de consciência no cotidiano, pois:

Enquanto nós olhamos o mundo exclusivamente a partir do estado da consciência focado, tudo o que está dentro de nós e a nossa volta é julgado pela ótica do certo ou errado, do exato ou do inexato; porém, se olharmos o mundo exclusivamente a partir de um estado ampliado de consciência, nossas ações não terão conseqüências práticas. Por isso, faz-se necessária a dialética entre os estados ampliado e focado da consciência. O primeiro possibilita a escolha mais adequada e o segundo permite a eficiência no agir.(ibid , p. 12).

Entendemos que este primeiro momento da construção dialética do conhecimento ancora-

se na totalidade da prática dos educandos, na sua consciência focada, e realiza um movimento de

sua ampliação, disponibilizando-lhes experiência criativa, na qual possa olhar as múltiplas

dimensões presentes no todo. Permite, desse modo, a reflexão sobre a realidade cotidiana, a partir

de um tempo e um espaço real e presente.

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Neste sentido, podemos dizer também que o lúdico, no processo de ensino, exerce um

papel de “desfocar” esta consciência, atendo-se ao presente, ao prazer do conhecimento aqui e

agora : “agir ludicamente implica em operar com a dialética dos estados ampliado e focalizado da

consciência.” (LUCKESI,2004, p. 12). Como Pereira (2004, p. 83), apontamos este fato,

afirmando que a “ludicidade nos permite flexibilizar o comando do racional e , ao mesmo tempo,

expandir nossa consciência para uma dimensão, que, usualmente no cotidiano não usamos”.

Dessa forma, as atividades lúdicas proporcionam à pessoa maior abertura e sensibilidade

para lidar com o conhecimento, e, ao se expressar, ocorre oportunidade de também se conhecer

em virtude da confluência entre sua subjetividade e a objetividade dos conteúdos a serem

aprendidos. Luckesi (2004) 119 esclarece que numa educação lúdica é preciso diferenciar

comunicação de expressão. Segundo ele, a comunicação diz respeito à informação dos

conhecimentos e a expressividade é algo que vem de dentro, como elaboração interna dos

conhecimentos pelo sujeito.

Podemos observar esta idéia no depoimento da professora Mary sobre os efeitos de tais

atividades em seus alunos: Ai eu tenho que repensar muita coisa, tem que repensar o ser humano por todos os seus problemas, como eu posso ajudá-los não a solucionar, mas resolver pelo menos naqueles momentos que está em sala de aula. Não só em sala de aula, fora de sala quando eu paro pra conversar com eles, aquela aula fez ele refletir sobre alguma coisa, apesar dele brincar .Ele chega para pra mim e diz assim: ‘Ah! Você me fez relembrar um momento da minha vida, foi crucial, que eu já brinquei, mas teve um lado negativo que eu vive isso e você conseguiu me lembrar’. Eu páro e converso com eles sobre isso, ‘- O quê que você acha?’ ‘ - Eu acho que isso ainda me traz e ta, ta , ta.... ai na sala eu esteja meio assim, ou depois da sua aula eu passei a ser mas aberto com as pessoas, até com você mesmo ou senão a achava até muito metidinha...’ [...] Mudou todo referencial sabe? Eu acho que não sei não é concreto, o lúdico abre a pessoa para a vida, para se conhecer melhor, para se voltar para si mesmo porque através do lúdico eu me conheço.

Compreendemos, assim, que, no processo de ensino, o professor transmite muita

informação para o estudante mas estas nem sempre são transformadas em conhecimento. É por

intermédio do clima de espontaneidade e liberdade de expressão que os conteúdos comunicados

poderão ser significados pelos educandos. Por isso, na síncrese, a ação lúdica, ao desempenhar o

papel de abertura e ao atuar na plenitude do sujeito, possibilita a verdadeira expressão dos

sentimentos e pensamentos. Tal ação neste momento consiste na dialética entre comunicação e

expressividade do educando e a postura diretiva e não diretiva do educador.

119 Aula ministrada na disciplina Ludopedagogia III, no curso de pós-graduação da FACED/UFBA, no 1º semestre de 2004.

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Seria fundamental se, na formação inicial e continuada do professor, fosse disponibilizada

a oportunidade deste momento de síncrese, no qual predomina, na linguagem de Snyders (1995),

a continuidade, ou seja, o esforço para vincular o conhecimento à experiência do aprendente e,

assim, valorizar sua cultura, seu cotidiano, sua vida.

Esta oportunidade, concedida ao professor na sua formação, contribuia para a “tomada de

consciência” 120 do seu senso comum, do seu cotidiano, de sua própria prática pedagógica,

possibilitando maior abertura para mudanças, ampliando a sua consciência. Percebemos aí a

contribuição das teorias voltadas para formação do professor reflexivo, discutidas no terceiro

capítulo, que valorizam os conhecimentos tácitos dos professores na sua formação. Além disso,

como acentua Negrine (1998), esta “tomada de consciência” torna o profissional mais tolerante

com o outro e o prepara para uma atitude de escuta.

Neste sentido, Nóvoa (1992) propõe, para o docente, uma formação profissional que

busque avaliar o seu papel ativo no processo de trabalho pedagógico, valorizando seu

pensamento e seu saber como sujeito que possui uma história e um universo de afetividade e

significações projetadas na sua prática.

Congruente com esta posição, Scoz (2000, p. 19), na sua experiência de coordenação na

formação de professores e psicopedagogos, assinala:

Os professores também são agentes subjetivantes que precisam de um espaço para trabalhar e ressignificar suas próprias aprendizagens; um espaço onde possam conectar-se com seus próprios sintomas e inibições quando aprendem, posicionando-se melhor frente ao seu fazer profissional. Só podemos trabalhar com o outro e conseguir que nossa tarefa seja eficaz, se pudermos simbolizar nossas próprias dificuldades.

Nesta pesquisa, podemos observar o quanto é importante este espaço para expressividade

na formação docente. Nos depoimentos dos professores sobre o curso de extensão realizado na

pesquisa, tanto nas entrevistas quanto nas avaliações que o grupo realizou sobre os encontros,

percebemos a sua necessidade de compartilhar o cotidiano de sua prática pedagógica. A partilha

se faz necessária não somente em relação aos conhecimentos como também às emoções que dela

procedem. Destacamos na seqüência trecho da entrevista com a professora Rosa, que ilustra tal

afirmação:

120 “ O fato de tomar consciência de alguma operação significa transferi-la do plano da ação para o plano da linguagem, isto é recriá-la na imaginação para que possa exprimi-la em palavras.” (VIGOTSKI, 2001, p.275).

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Em relação ao curso eu estou me sentindo muito bem. Eu encontrei aqui nesse espaço essa possibilidade de abrir o coração, de falar mesmo das emoções do cotidiano do bem estar e do mal estar, não é? Dos dois lados, assim não tem só um, então eu me sinto muito bem mesmo.[...]

Na ficha de inscrição usada quando da seleção para o referido curso, perguntamos aos

professores o motivo da escolha de um curso teórico-vivencial com o tema proposto. Em síntese

os professores responderam:

- Aprimorar e atualizar os conhecimentos para práxis pedagógica e assim compreendê-la melhor;

- Busca de crescimento pessoal e profissional.

- Necessidade de maior atualização e maior segurança no desenvolvimento de jogos e dinâmicas

de grupo, buscando “ despertar motivação intrínseca e extrínseca” nos educandos.

- Compreender melhor os aspectos afetivos que envolvem a práxis pedagógica.

Notamos que os professores não só se interessam pelos aspectos teóricos e técnicos da sua

formação, como também mostram necessidade de crescimento pessoal e maior compreensão dos

elementos subjetivos que envolvem o processo de ensino. Com amparo nestes dados,

convergimos com Scoz (ibid, 2000 ), ao inferir noção de que o professor estará mais preparado

para lidar com a dialética comunicação/expressividade, com a tarefa de escutar e dar

continuidade, se ele também for escutado e valorizado na sua expressão.

Destacamos a seguir o trecho de uma carta simulada feita pelas professoras para seus

alunos sobre a percepção que tiveram das vivências realizadas no curso de extensão:

Prof. Jorge [...} Esses momentos têm enriquecido nossa visão de homem e de mundo, ao se permitir dizer o que

sentimos e o que também não somos acostumados a dizer. Isso mexe com a gente, nossas angústias, medos e desafios são externalizados. Percebemos em alguns momentos a nossa força, o nosso potencial com as atividades corporais.

O significado dessas atividades toca o nosso íntimo e provoca em nós como profissionais, o aumento de nossa auto-estima, a nossa aceitação, a nossa valorização, apesar das mudança impostas pela sociedade.

Como vemos, o professor destaca que o curso possibilitou um espaço onde pôde

comunicar o que pensa, sente e o que não é acostumado a dizer. Desse modo, sentiu-se

mobilizado para expressar emoções e desenvolver seus potenciais. Esta dialética entre

comunicação e expressão foi possível porque encontrou um espaço onde foi ouvido e acolhido.

A professora Luzia destaca que é a ação coletiva, a partir da expressão das

individualidades, que torna possível a ressignificação da práxis:

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Pude experimentar um fazer coletivo a partir das individualidades (anseios, experiências, encontros e desencontros) e entender que o fazer pedagógico é um fazer continuado e , se compartilhado, muita coisa que nos parece sem nexo, sem jeito, fora de contexto, acaba tendo um sentido real e vital pra a vida de cada um de nós.

Percebemos que este primeiro momento da dialogicidade, a síncrese, mostra-se

fundamental na formação docente, pois o professor é reconhecido como sujeito que precisa ser

escutado no seu diálogo com o mundo e, assim, com seus saberes. No próximo item discutiremos

o segundo momento do diálogo: a mediação dos conhecimentos espontâneos e os conhecimentos

científicos realizada pelos co-autores do processo de ensino aprendizagem.

6.3 “A LUDICIDADE DÁ SENTIDO AO MEU FAZER PEDAGÓGICO”: a análise

ludopedagógica

Fig. 13- Grupo Coração de Professor: “Laços e nós entre os professores”. 2004

O segundo momento do processo dialético de construção do conhecimento, segundo

Gasparin (2003), é a análise das partes, tendo como elemento de transição entre o todo (prática) e

as partes (teoria), configurando o princípio pedagógico da problematização. Deste princípio,

destacamos outros elementos que se vinculam a ele, caracterizando a análise ludopedagógica:

instrumentalização, desafio (tensão e prazer), nutrição e confronto, intencionalidade, ruptura e

vínculo (interação e socialização) .

A problematização foi originalmente conceituada por Freire (1985), como “um constante

ato de desvelamento da realidade”, que busca a “inserção crítica” da consciência na compreensão

do mundo. É um diálogo entre sujeitos cognoscentes, no qual educador e educando refazem

constantemente suas convicções. Este jogo dialógico revela um estado de tensão e prazer entre os

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jogadores (educador e educando), constituindo um desafio, pois confronta a realidade com os

conteúdos mediante a reflexão e situações-problemas, atuando nas potencialidades do educando.

Percebemos que o ensino-aprendizagem pressupõe uma tensão do desejo de aprender e

um prazer na sua realização que emergem do desafio da atividade pedagógica proposta. Este

desafio sugere uma postura lúdica, ou seja, uma integração do tempo e da vida vinculada à

experiência de prazer pelo confronto. Luckesi121 evidencia que, na educação lúdica, o educador,

além de acolher, deve confrontar com o educando. Ao contrário, não ocorre aprendizagem. No

seu papel de adulto, o educador deve estar na mesma espiral do educando, mas com uma volta

por cima dele para ser possível realizar o confronto.

É também um momento de ruptura, pois o educando nega a continuidade (o conhecimento

cotidiano) para incorporar o conhecimento sistematizado: “a ruptura é a confiança na obra prima

e no papel da escola de modo que o aluno não fique alheio a ela.” ( SNYDERS, 1995, p. 161).

Percebemos aqui a importância do professor como mediador deste processo de confronto e

ruptura. Predispondo um clima aberto para comunicação e expressão dos sentimentos e idéias, o

professor, por meio da problematização, encaminha discussão para identificar problemas sociais

nas contradições entre a prática e os conteúdos propostos, deixando clara para os educandos a

importância deste conhecimento para atender às necessidades humanas. Desta forma, explica

Gasparin (2003, p.3), “ a responsabilidade do professor aumentou, assim como a do aluno.

Ambos são co-autores do processo ensino-aprendizagem. Juntos devem descobrir a que servem

os conteúdos científicos culturais propostos pela escola.”

Assumindo este papel, o professor é um negociador de significados, pois a reflexão que se

propõe a fazer é sobre o homem em relação com outros homens. A humildade crítica (FREIRE,

2001) é então necessária, neste momento, para o reconhecimento da historicidade do educando,

não implicando concordar com a leitura por ele apresentada, mas tentar com ele e não sobre ele

superá-la, pois, como já discutimos, não escutando seus educandos, o educador “deposita” sobre

eles seus conteúdos, sem possibilidades de ressignificá-los.

A ressignificação do conhecimento, ou seja, a negociação dos significados neste diálogo,

sugere a atitude mediadora a fim de criar condições para análise do objeto em estudo e o contato

com a realidade científica. Para Gasparin (2003), a mediação consiste em resumir, valorizar,

121 Aula ministrada em 18.10.04, na disciplina Ludopedagogia III, do curso de pós-graduação da FACED/UFBA, 1º sem/2004.

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interpretar, por intermédio das dinâmicas e ações previstas, o conteúdo a transmitir, atuando na

zona de amadurecimento cognitivo de seus educandos, nos seus “brotos”, como nos ensina

Vygotsky (1998):

O desenvolvimento dos conceitos científicos inicia-se na esfera do caráter consciente e da voluntariedade e continua mais longe, brotando para baixo na esfera da experiência pessoal e do concreto. O desenvolvimento dos conceitos espontâneos começa na esfera do concreto e do empírico e se move na direção das propriedades superiores dos conceitos: o caráter consciente e a voluntariedade. A relação entre o desenvolvimento destas duas linhas opostas descobre sem dúvida sua verdadeira natureza: a conexão entre a Zona de Desenvolvimento Próximo e o Nível Atual de Desenvolvimento.” (ibid, p. 97).

Portanto, ao mesmo tempo que realizam direções diferentes, os conhecimentos

espontâneos e científicos mantêm uma relação dialética que se manifesta num movimento de

continuidade e ruptura. Porto (2004) explica este movimento por meio da lei dialética da

“Negação da Negação”, entendendo o Nível de Desenvolvimento Real (NDR), os conceitos

espontâneos, como a tese (afirmação), a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) como

antítese (negação) e o Nível de Desenvolvimento Potencial (NDP) como síntese, ou seja, o

desenvolvimento real no momento futuro.

Nesta óptica, a problematização atua na ZDP, por meio da dialética da continuidade e da

ruptura, ou seja, da valorização dos conhecimentos espontâneos (do cotidiano), do caráter

consciente e voluntário dos conhecimentos científicos. A atitude mediadora do professor consiste

em atuar no momento presente, dando sentido ao conteúdo estudado, fazendo-os perceber

criticamente como estão sendo no mundo e com o mundo, desvelando a relação entre os

conhecimentos científicos e cotidianos. Gasparin (2003) adverte para a noção de que esta

mediação só é possível quando os professores conhecem tanto os saberes científicos como os

conhecimentos cotidianos dos estudantes

Neste contexto, insere-se o comprometimento e a competência política do educador, que

passa pela leitura crítica do mundo. Na visão de Freire (2001), o educador não pode ser um

sujeito de omissões, mas de percepções reveladoras da sua capacidade de analisar, comparar,

avaliar, decidir, optar e romper com os aspectos da realidade de que trata. Por isso, a mediação

pedagógica, além da competência política, abrange também a competência teórica e técnica que

exigem buscar e renovar saberes específicos a partir da curiosidade epistemológica do educando,

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ou seja, de suas inquietações. Para o autor, a competência profissional é uma das qualidades

essenciais para a autoridade docente democrática.

Por meio destas competências, é possível para o educador assumir sua opção política

frente ao educando, e ao mesmo tempo respeitá-lo no que queira mudar ou no que se recuse a

mudar. Pode ainda, assumir suas convicções e limitações, acompanhadas sempre de esforço para

superá-las em nome do respeito aos educandos.

Compreendemos que, para concretizar esta mediação no “aqui e agora”, carece de um

conjunto de ações didático-pedagógicas nomeadas por Gasparin (2003, p.53) de

instrumentalização, que pode ser definida como “ o caminho através do qual o conteúdo

sistematizado é posto à disposição dos alunos para que assimilem e o recriem e, ao incorporá-lo,

transformem-no em instrumento de construção pessoal e profissional.”

Tais ações mediadoras são permeadas de signos e das ferramentas (VIGOTSKI, 1998). Os

signos, presentes na linguagem do professor com seus estudantes, influem psicologicamente no

pensamento e na conduta de ambos. Através deles o educando cria uma representação mental do

objeto em estudo.

Como podemos perceber no depoimento seguinte, o lúdico é visto pela professora

Margarete como diversas formas de expressão, dentre elas, a música e o desenho, usados como

linguagem para mediar os conhecimentos espontâneos com os conceitos científicos: [...]. Tive uma experiência muito legal a semana passada, eu levei uma música, a Arca de Noé, porque o livro traz o poema e trabalha o tempo do calendário e do relógio e eu achei que era melhor colocar a música e pedir que eles desenhassem a partir do que eles estavam estudando, deixar o livro de lado. Eles relacionaram a música, com o poema e me coloquei bem atrás, bem de fora para ver de que forma ia ficar e ficou muito lindo mesmo o trabalho. E me questionei a atividade:’ Será que vou conseguir fazer com tranqüilidade, sem estresse, será que a música vai sensibilizar ou vai dispersar?’ Eu consegui, eu gostei...

A ludicidade está presente na ação da professora Margarete no prazer que sentiu ao levar

a música e o envolvimento dos estudantes nessa atividade. Como vimos no início deste capítulo,

a ação ou atividade lúdica não se constitui apenas de jogos ou técnicas dinamizadoras, pois

também está presente na dança, na música, no desenho, na pintura e em outras formas de

expressão artística, ou seja, em outros signos. Huizinga (2004), ao pesquisar o aspecto cultural do

lúdico, assinala que não é por acaso que encontramos na história da humanidade diversas

expressões para designar a atividade lúdica. Quanto à música, esclarece que nas épocas arcaicas o

homem tinha plena consciência de que “a música era uma força sagrada capaz de despertar

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emoções e, além disso, era um jogo. Só muito mais tarde ela passou a ser apreciada como uma

contribuição importante para vida e para expressão da vida, em resumo, como uma arte no

sentido atual da palavra.” (ibid, p.209).

Fátima Vasconcelos, pesquisando sobre o jogo infantil na escola, tomando por base a

concepção bakhtiana de linguagem, observou que o jogo, na sua dimensão simbólica, é uma

forma de discurso que representa as interações e, para compor o sentido lúdico, ele utiliza-se de

gestos, objetos, entonações, mudanças de cenário e linguagem verbal. Neste sentido, o jogo é

polifônico, nele estão imbutidos muitas falas, decorrentes da apropriação cultural da pessoa que

joga: “O lugar imaginário do jogo é refratado e não refletido, na brincadeira ele cria um vínculo

de representação”. (VASCONCELOS, 2003, p. 5).

Parafraseando Bakhtin (1995, p.35), a consciência adquire forma e existência nos signos

criados por grupos organizados no curso das relações sociais. Nesta óptica, a ludicidade, como

forma de linguagem, pode servir como ação mediadora da elaboração de sentidos na relação

pedagógica, atuando como forma de instrumentalização no movimento dialético de continuidade

e ruptura do conhecimento. A professora Solange esclarece esta afirmação no seu depoimento:

Quando eu busco uma atividade, eu gosto de dar uma atividade que envolva música [...] Pois já sei que vai desencadear uma coisa diferente em cada um. Que posso estar atenta àquela diferença que vai ser desencadeada. Que cada um vai poder se expressar, é aquela liberdade que vai ser dada.

A partir dos autores e dos dados referidos nesta seção, podemos acentuar que a

ludicidade, como dimensão do processo de formação do homem, pode estar presente como signo

e ferramenta na atividade mediadora do professor no processo de problematização, ao passo que

nutre as ações expressivas emocionais e cognitivas. A ação lúdica instrumentaliza o professor

para mediar o educando a elaborar sua representação mental do conhecimento. As atividades

lúdicas, como ferramentas, proporcionam contato com instrumentos físicos ou simbólicos que

dinamizam a apreensão do conhecimento. Sobre este ponto, ilustramos um trecho da carta da

professora Sandra, onde demonstra a presença da ludicidade e da afetividade no cotidiano e na

expressão do seu saber: O curso foi muito bom, pois confirmei coisas que já sabia, todavia tinha receio , dúvidas de colocá-las em prática. Agora, mais do que nunca, sei que o jogo, o lazer, a criatividade, o brincar não estão fora da realidade, assim como os sentimentos e valores também são conteúdos importantes e urgentes, e fazem o trabalho docente também produtivo,leve, divertido e emocionante.

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Assim, tais ferramentas lúdicas podem estar presentes nas atividades pedagógicas como

procedimento dinâmico e intencional que atua na Zona de Desenvolvimento Próximal (ZDP) do

educando, realizando o movimento dialético continuidade e ruptura, exatidão e clareza. Dessa

forma, o educador nutre seus educandos, oferecendo-lhes recursos mediadores entre a realidade

interna e a realidade externa.

Observamos este papel da ludicidade em alguns depoimentos dos professores no debate

no grupo após a vivência do “Motorista e o carro”, descrita no capítulo anterior:

Prof. Jorge Eu achei interessante que tem que haver com o dia a dia na sala de aula. Pensando na sala de aula, podemos perceber a questão da mediação: o professor está mediando o aluno e ele vai conduzir o processo e ele não é o autor do processo em si, mas ele pode orientar e fazer com que o aluno perceba a sua potencialidade e possa desenvolver. O que se fala muito hoje no processo colaborativo: o aluno é o autor, é o sujeito, e o professor é o mediador, é aquele pode estabelecer uma relação de aprendizagem de forma mais participativa e envolver o aluno de tal forma para que ele possa progredir e dar uma resposta positiva, melhor ao seu aprendizado.

Prof.ª Anita É... eu achei legal porque é o lúdico e o lúdico está presente no dia a dia da gente e quando eu estava conduzindo para mim eu tirei ali um sarro, brincando e levando para a parte lúdica, lógico que a gente tem que se preocupar com a pessoa, mas no momento da brincadeira eu ri bastante, minha barriga ficou doendo de tanto rir. No momento que fui conduzida também me entreguei, porque sou uma pessoa que dou confiança as pessoas. Eu me jogo, se a pessoa me trair, é porque não merece a minha confiança. Mas eu acho que a gente tem que dar uma credibilidade e é assim que eu faço com meus alunos.

Na fala de ambos, observamos que o lúdico está presente no cotidiano das pessoas. Uma

atividade, quando é lúdica, traz à tona as experiências vividas no dia-a-dia. Na fala do professor

Jorge, notamos a sua preocupação com a mediação do professor no processo de condução da

aprendizagem. Além disso, chama a atenção para uma metodologia participativa na qual o

professor busca envolver o aluno atuando nas suas potencialidades e, desta forma, tem a

possibilidade de conhecer mais o seu Nível de Desenvolvimento Potencial. Desse modo,

entendemos que o “ensino se fundamenta não nas conquistas já efetuadas, mas naquelas que

estão em processo de amadurecimento” como leciona Vygotsky (1998). Na fala da professora

Anita, notamos o papel da ludicidade no tempo e espaço, no “aqui e agora” da interação,

proporcionando uma entrega à atividade proposta.

As técnicas pedagógicas, todavia, não são, somente elas, elementos da mediação, como

nos adverte Gasparin (2003), pois as atividades lúdicas tornam-se puros instrumentos tecnicistas

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se não forem inter-relacionadas com a atitude pessoal e profissional do docente, a forma de tratar

os conteúdos e as interações estabelecidas entre os pares educativos.

O momento de construção do conhecimento carece de vínculo, da interação dos sujeitos

cognoscentes, por isso entendemos por que a professora Isabel 122 diz que a educação e o

sentimento caminham pari-passu: “A gente está formando e formar é uma coisa que caminha

pari-passo: educação e sentimento, educação e amor. Educar é amar. [...]”. Assim, em termos

pedagógicos, a mediação só é possível com a presença de agentes sociais e da qualidade da

relação, pois a decodificação dos signos, pelo sujeito, ocorre mediante internalização,123 a qual

somente ocorre na presença do outro, pelo todo social, sob condicionamentos subjetivos,

culturais, políticos e econômicos.

Como se trata de um processo psicológico, a afetividade conduz esta internalização, sendo

a ação lúdica um caminho, um instrumento promotor para seu desenvolvimento, tanto na abertura

para expressão emocional e cognitiva quanto no fortalecimento do vínculo entre educador e

educando, como podemos observar no depoimento da professora Mariana: “[...] Eu sempre mexo com arte. Eu monto o grupo dos meninos que tocam, eu canto com eles. Mas eu sempre gostei de cantar, eu sempre fui de música, eu canto com eles e não precisa de muita coisa não. ‘Vamos fazer?’- ‘Vamos’ –‘ Que horas vai ser o ensaio?’ [...] Inclusive alguns alunos meus passaram a gostar de matemática pela forma como eu trabalho. Eu tive alunos que ficaram comigo quatro anos e este ano eles pediram para ficar comigo de novo porque iam trocar de professor , fizeram um movimento lá em cima e me botaram no 3º ano.

De maneira similar à colega, a professora Solange revela a sua percepção sobre a

importância da ludicidade como possibilidade de vínculo com seus educandos, com a consciência

mais crítica acerca da ação lúdica nos relacionamentos: Eu [...] hoje já tenho esta outra compreensão que a gente discute no GEPEL, mas a idéia que eu sempre tive e que eu sempre fazia também, era utilizar outras atividades, que não fossem as tradicionais como jogos. Mas hoje, hoje eu compreendo que a ludicidade envolve mais do que isso. Envolve a minha relação com o outro, o meu bem estar. Ou eu poder assim, ouvir expor, defender. E compreender que esse é um processo natural da vida. Então, eu penso assim, a importância da minha relação na sala de aula, de... assim... não é do mesmo nível, mas me colocando junto deles. Como isso possibilita de que eles vivam mais felizes, que a gente viva uma relação boa.

Cabe, neste momento, retomar outros aspectos do caráter lúdico na práxis pedagógica,

presentes na fase de problematização: o interjogo brincar/aprender não retira a seriedade, a

responsabilidade e a disciplina no trabalho do educador. Como visto em Huizinga (2004, p. 14),

“ o jogo lança sobre o sujeito um feitiço que fascina, cativa , encanta, de forma a absorver o

122 Vede ultimo depoimento no capítulo anterior. 123 Processo de transformação de signos externos em signos internos (VYGOTSKY,1989).

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jogador de maneira intensa e total”. Ao reforçar a liberdade como elemento lúdico básico, revela

que não há contraste nítido entre jogo e seriedade e que, mesmo no jogo protagonizado, a

seriedade é tão fundamental quanto o próprio jogo.

O modo como se brinca, aprende e ensina, o estado de espírito do sujeito envolvido, é em

si uma atividade séria de onde surgem as regras e a intencionalidade. A partir destas emergem

um desejo e uma tensão que levam o jogador/educando a permanecer envolvido até o desenlace

dos desafios: “ o feitiço acaba quando acaba o jogo” (HUIZINGA, 2004, p.16). E para Snyders

(1995), o feitiço é o trabalho de reflexão, em que “o amante” só se retira após a ruptura, ou seja,

a “experiência de pensamento”, e, nas palavras de Luckesi (2004), após a ampliação da

consciência.

Na presente pesquisa, observamos que os professores realizadores de uma ação lúdica na

sala de aula, se apresentam mais engajados no seu trabalho e, portanto, mais encantados com a

sua práxis e seriamente comprometidos com ela. O grupo, nas entrevistas e partilha das vivências,

revelou que a ludicidade aumenta o contato com o material da aprendizagem (conteúdos) , traz

alegrias nos relacionamentos, contribui para formação pessoal e profissional. É também uma

estratégia e possibilidade de vínculo, trazendo a experiência de prazer e desprazer na vivência,

levando à reflexão, facilitando a análise dos conteúdos.

Neste sentido, o caráter lúdico no trabalho docente fortalece o vínculo afetivo harmônico

entre educador/educando, contribui para o desenvolvimento das relações socioculturais, amplia a

consciência e a atividade, oferece flexibilidade e aberturas nas experiências de aprendizagem e

nos relacionamentos, dando sentido ao fazer pedagógico. É como podemos perceber no trecho

da entrevista abaixo:

Prof.ª Solange A importância da ludicidade na minha formação?É uma coisa de peso enorme. Ela dá sentido para eu estar na sala de aula. Entendeu? Dá sentido ao meu fazer pedagógico. Hoje, eu tenho essa plena consciência. Que tem sentido, porque que eu não estou desencantada. Aí eu vejo assim, por que você não está desencantada na sala de aula? Por que eu vou vendo essas outras coisas que a ludicidade me proporciona a descobrir. A ludicidade no sentido de dizer, de pensar que se alguém está chorando, se alguém está quieto no canto dele, respeitar. De eu procurar dar uma ajuda, ajudar no que for possível dentro das limitações. Com uma atividade, respeitar o tempo de cada um. A ludicidade tem me proporcionado todo esse movimento de compreensão. E é um movimento interno, mesmo. Porque eu me compreendo, se eu entendo que, eu tenho dias que eu choro, tem dias que eu... Eu sou capaz de compreender que o outro também é assim.

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A declaração da professora Solange é de suma importância para discussão do lúdico na

formação docente, pois ela vê este tema de uma forma mais ampla do que costuma ser utilizado

na escola ao meio de instrumentalização do trabalho pedagógico.

Neste mesmo sentido, na avaliação de Santos (2001), nestes últimos anos, o lúdico, ao

deixar de ser uma especificidade da infância, transformou-se numa ferramenta de trabalho para

muitas áreas. No caso da educação, o tema passou a ser discutido a partir da década de 90, após a

lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996).

A autora declara que os educadores são unâmines em considerar a ludicidade como

estratégia que se adapta às novas exigências educacionais. Assinala, porém, que isto não garante

“uma postura lúdico-pedagógica” na sua atuação. Observa que os professores, durante a

formação acadêmica, aprendem muito pouco sobre ludicidade, faltando-lhes, portanto,

embasamento para reconhecerem seu real significado. No seu ponto de vista, o educador lúdico é

aquele que realiza uma ação lúdica, inter-relacionando teoria e prática. Para o jogo desempenhar

uma função educativa, é necessário que este seja pensado e planejado dentro de uma proposta

pedagógica e não aplicado de forma dissociada do processo de ensino, apenas como recreação,

como hoje predomina nas escolas. Para que isto ocorra, é preciso que o professor estude e

vivencie a ludicidade.

Podemos perceber como a vivência lúdica na formação docente é de fato importante para

a afetividade do professor e para representação mental desta no seu trabalho, ampliando a visão

do seu papel na práxis pedagógica, como podemos perceber nos trechos das cartas que as

professoras escreveram para seus alunos falando sobre o curso de extensão:

Prof.ª Vânia “Este curso me deu maior segurança com as questões ligadas a afetividade. Melhor percepção da importância de se trabalhar a afetividade e a ludicidade em sala de aula: “Saio deste curso muito mais humana, tolerante e acima de tudo, muito mais ávida em buscar melhor solução no que diz respeito ao relacionamento professorX aluno.” A professora sinaliza que a vivência lúdica propicia maior disponibilidade e segurança

para conviver com o outro. As duas dimensões, ludicidade e afetividade, uma vez elucidadas no

curso, fez a professora perceber-se “mais humana e tolerante”. Lembremos Vygotsky (1988),

quando afirma que a atividade lúdica cria a Zona de Desenvolvimento Potencial e, no caso da

professora em foco, esta zona pode estar relacionada a um potencial para aprender e ser e a

conviver melhor com os educandos.

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Sobre o aprender a ser ou autoconhecimento a sua colega declara: Prof.ª Juliana: Neste curso eu tenho encontrado com perguntas que não dava conta e principalmente encontrado com meu lado lúdico e completo.Percebo que só posso ser inteira quando reconheço a minha história, o meu corpo, os meus sonhos. Percebo e me certifico que com afeto eu posso me aproximar dos outros e principalmente de vocês124, sem me perder. Sinto que necessitei me fragmentar para que hoje eu pudesse me sentir no caminho do meu coração, das minhas escolhas e não das escolhas da vida.

A partir dos argumentos de Santos (2001), há pouco mencionados, e dos dados

observados, foi possível compreendermos que a formação docente integra a tensão entre

objetividade (entorno técnico e político) e subjetividade que inclui o desenvolvimento de relações

interpessoais dos atores envolvidos, onde se podem tornar explícitos a esfera do desejo (encanto)

e o universo de significações e ressignificações projetadas no trabalho.

Esta visão converge com a Psicogenética, de Wallon (1968), quando explica que a

formação do indivíduo sucede dialeticamente na relação simultânea e alternada entre razão e

afeto, tendo como suporte a atividade motora (cerne biológico). Nesta relação, ora o indivíduo

mobiliza a energia para fora (cognição, conhecimento do objeto), ora para si mesmo (afeto,

conhecimento de si). Este movimento circular e dialético constitui e reconstitui a pessoa inteira,

ou “completa” como disse Juliana, e se constitui como um processo auto-regulador na dinâmica

corpo-afeto-cognição.

Portanto, a ludicidade contribui para mobilização equilibrada da energia entre razão e

afeto, atuando dialeticamente entre as esferas da objetividade e da subjetividade. Assim, pode

ampliar a percepção integral do sujeito sobre si mesmo: “Percebo que só posso ser inteira

quando reconheço a minha história, o meu corpo, os meus sonhos.”, disse Juliana.

Como a ludicidade, porém, pode contribuir para maior autoconsciência? Tentaremos

responder à pergunta na próxima discussão, quando será apresentado o terceiro momento do

diálogo.

124 Refere-se aos seus alunos.

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6.4 “A LUDICIDADE É UMA CIÊNCIA QUE DÁ CONTA DO SER”: a síntese ludopedagógica

Fig 12 -Grupo Coração de Professor: “Acordar o Coração”. 2004.

O terceiro momento da construção dialética do conhecimento descrito por Gasparim

(2003) é a síntese, ponto culminante do processo educativo no qual o educando elabora para si

uma nova visão de realidade, ao sintetizar e sistematizar os conhecimentos cotidianos e os

científicos. Como princípio pedagógico, existe a catarse que, segundo o autor, significa a

expressão elaborada da nova forma de entender a prática social. Dela discorrem a consciência

ampliada, sustentação, criatividade, conhecimento e autoconhecimento.

Desta forma, podemos dizer que o conteúdo, ao adquirir nova significação, ou seja,

compreensão, torna-se um novo instrumento de trabalho para o educador/educando, que se

posicionam de forma diferente frente à realidade, tendo sobre ela outra visão, ou seja, : “professor

e alunos modificam-se intelectual e qualitativamente em relação a suas concepções sobre o

conteúdo que reconstruíram, passando de um estágio de menor compreensão científica a uma fase

de maior clareza e compreensão dessa mesma concepção dentro da totalidade” (GASPARIN,

2003, p.144).

Neste sentido, a ação lúdica proporciona uma dança nesta nova forma de olhar,

possibilitando ao indivíduo mediar a sua realidade com a realidade do mundo: sorrindo,

inventando regras, imitando e criando formas de encontro com o conhecimento. O seu ritmo é o

fluxo entre a exatidão e a clareza, entre o que permite fazer as coisas práticas e o que leva a uma

reflexão ampliada sobre estas.

Parafraseando Luckesi, o educador, numa ação ludopedagógica, “ dança com o educando

a dança energética da vida” , na qual o educando representa o princípio formativo, campo em

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processo de maturação que precisa ser potencializado em condições apropriadas, e o educador

representa o princípio organizativo, aquele que ajuda a integrar “os níveis mais altos de

organização a partir dos níveis mais baixos de desenvolvimento” (BOADELA, 1992, p.10-11).

Este processo é análogo à mediação proposta por Vigotski (2001), na qual o professor atua nos

“brotos” do educando, ZDP, fazendo relação entre os conhecimentos espontâneos e científicos.

Para que esta atividade se concretize, porém, “é importante a receptividade viva de outro ser

humano”, como nos diz Boadela (ibid p. 11) e que a “... indignação e outros sentimentos não

passem a margem da vida” como anota Vigotski (2001, p.145).

Luckesi (2004) explica que o educador sustenta continuamente esta dança, ou seja, a

própria aprendizagem em movimento, que ocorre em tempo e espaço diferente em cada pessoa.

Dessa forma, podemos entender por que o educador precisa ser o “adulto desta relação”

acolhendo, confrontando, nutrindo e sustentando seus educandos em todo o processo de

organização do conhecimento para possibilitar a catarse. Este estilo de relação é dialógico, pois

permite trocas, cognitivas e afetivas, profundas, sem invadir e sem privar o outro.

Do mesmo modo, identificamos a importância deste papel de sustentação numa proposta

de pedagogia lúdica, na carta a seguir, escrita pelo professor Robson para seus alunos, após uma

vivência no grupo da pesquisa sobre a impressões deixadas pelo curso de extensão:

Queridos alunos,

Venho através desta carta dizer-lhes que vivi momentos inesquecíveis da minha vida. Apreciei e participei de um curso no qual basicamente não sabia o que estava a minha espera. Lembro-me, com se fosse hoje, o dia em que iniciei, passei pela porta da sala e tive medo de entrar e o mais engraçado foi que a palavra medo foi o tema inicial, pois falava dos medos de cada um, do desconhecido entre outras coisas.

Daí em diante as coisas foram melhorando, os medos e a timidez foram saindo de foco. Já conseguia olhar nos olhos das pessoas sem medo e sem vergonha, coisa que antes tinha certa dificuldade. Da mesma maneira que era difícil expor opiniões, abraçar, dançar com pessoas que jamais tinha visto e com personalidades fortes e marcantes e opiniões muitas vezes divergentes, mas que no final chegavam a um consenso.

Tenho certeza de que foi um a das melhores coisas que já fiz na minha vida, pois voltei ao passado várias vezes e por varias vezes me senti criança novamente. Pessoalmente posso informar a todos que me enriqueci com os detalhes e saio daqui mais fortalecido, pois sei que a nossa luta como educadores deve ser incansável e não devemos desistir nunca dos nossos objetivos que é lutar por uma educação justa e igualitária para todos.

Queridos alunos, concluindo posso dizer que conheci um grupo de pessoas maravilhosas e espero que sejam todas muitos felizes na sua vida profissional e pessoal.

Beijos e abraços,

Professor Robson

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Observamos que, ao se deparar com uma situação desconhecida geradora de ansiedade, o

professor quase recuava e desistia do curso. Ao vivenciar, porém, atividades que lhe permitirem

expressão de seus medos e inibições, de forma coletiva, passou a olhar para outras dimensões do

curso, mudando a percepção a respeito deste.

Nesta trilha, a formação docente, uma vez atuando nos “brotos” dos seus formandos com

uma ação lúdica, pode abrir possibilidades similares à do professor Robson: a ampliação da

consciência e um sentido maior para vida.

Sobre este assunto, Porto (2004), ao discutir os sentidos da escolarização, analisou a

necessidade de reconfigurar a função dos professores no processo de conhecimento dos

estudantes. Segundo a autora, a escola atual tem como foco o passado e o futuro. É focada no

passado porque se detém na transmissão dos conhecimentos científicos sem partilhar as suas

múltiplas dimensões, sua compreensão e interação com a vida, limitando-se a dimensão

conceitual. É também uma escola centrada no futuro, pois busca preparar o estudante para o

“tempo ideal”, ou seja, para sua aprovação e inserção no mercado de trabalho:

Ensaiamos em todos os níveis: a criança, ao entrar na educação infantil, ensaia ser um ‘aluno de verdade’, do ensino fundamental (daí a denominação pré-escola). Por sua vez os alunos do ensino fundamental, ensaiam cotidianamente, para o vestibular. Passam anos se preparando para aprovação no vestibular. As escolas privadas são medidas em sua competência pelos índices de aprovação no vestibular, as escolas públicas também. E depois, no ensino superior, o vir-a-ser passa estar relacionado ao trabalho, ao exercício profissional futuro. (ibid, p.17).

Embasada na Psicologia Sócio-histórica de Vigotsgki, a autora propõe que a escola deve

partir do passado, olhando as possibilidades do futuro, mas vivendo o tempo presente. O passado

corresponde neste contexto, ao NDR, conhecimentos trazidos pelo estudante que se afirma no

momento da síncrese na construção do conhecimento. O presente equivale à Zona de

Desenvolvimento Proximal ou Potencial, a ZDP, que são os “brotos” do conhecimento futuro e

por isso, é ao mesmo tempo afirmativo e negativo do conhecimento real, pois dele emerge a

síntese dialética do conhecimento.

Convergindo com este pensamento, porém apresentando outra linguagem, Luckesi (2000,

18-19) completa:

Uma atividade educativa sadia e competente é ao mesmo tempo capaz de organizar o futuro (forças progressivas) e restaurar o passado (forças

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regressivas) de tal forma que crianças, jovens e adultos, vivenciando as práticas educativas possam flexibilizar seus bloqueios, que se expressam na rigidez de condutas, e tornarem-se pessoas pulsantes com a vida e , isso mesmo, tolerantes com os outros.

Dessa forma, podemos compreender que a escola pode atuar com as ferramentas e os

signos que aprovem a curiosidade epistemológica e os atos criativos emergentes das situações de

ensino-aprendizagem, pois ensinar é criar oportunidades, no espaço e no tempo, para

comunicação e elaboração dos conhecimentos; é estar aberto à expressão: indagações,

curiosidade e inibições dos educandos. E aprender não é somente se “adaptar” mas, sobretudo,

transformar a realidade e nela intervir, recriando-a ( FREIRE, 2001).

Assim tais ferramentas e signos podem trazer sentido real para a vida, como quer Rubem

Alves nas palavras do professor Milton: Ludicidade , eu vejo que vem de lúdico e o lúdico é o desenho, é o conto de fadas, é a imagem, é a semântica, é você se ver no espelho, é você se pintar, se maquiar, mudar a cara e brincar. O ato de brincar que Rubem Alves fala, ele disse que a escola hoje não brinca mais e disse lá em São Paulo para gente assim: “Brincar é você desenvolver uma ação que você não sabe onde ela vai parar, porque quando você brinca você não sabe até onde vai chegar.”Se a brincadeira da escola tem limites, ela deixa de ser brincadeira, então cadê o lúdico? Cadê o imaginário? Aí ele fala das ferramentas que a gente carrega que não tem um sentido real para gente, por isso que a escola é enfadonha para o aluno e para o professor, porque se carrega coisas que não tem sentido real para vida. Acho que a ludicidade deve ser uma ciência que dá conta do ser, alguma coisa assim.

Entendemos, todavia, que, para que um processo educativo aconteça mais criativo, é

preciso também o autoconhecimento para a flexibilização de bloqueios e ampliação da percepção

do outro como sujeito. Se, ao conhecer, os sujeitos da práxis pedagógica assumem nova postura

frente ao mundo, assumem também perante a si mesmos, pois todo conhecimento produz auto

conhecimento:

O autoconhecimento pode ser entendido como um contínuo desenvolvimento da observação participante a respeito do próprio pensar, sentir e agir – sem preposições de metas finais, mas em processos cíclicos espiralados. Praticar o auto conhecimento é dispor-se a não ocultar de si mesmo os próprios sentimentos de raiva, inveja, ambição, medos, prazer e sucesso, bondade, compaixão... (OLIVEIRA,2000, p. 72).

Neste sentido, o autoconhecimento apresenta-se como âncora da prática ludopedagógica,

pois é permeado de subjetividade, e é ao mesmo tempo gerado por ela. Dessa forma, é que a

ludicidade pode “dar conta do ser” humano, como supõe o professor Milton. Observamos nos

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discursos das professoras, reproduzidos na sequência, nos debates em grupo, o quanto a ação

lúdica na formação docente mobiliza seus aspectos identitários, seus conteúdos internos:

Prof.ª Juliana:

“Eu descobri estes dias que o aprender a ser professor é uma construção muito individual...o papel do professor na arte de aprender de ensinar. [...] Eu fico esperando chegar a 6ª feira para vim para este curso...é como se fosse parar assim no tempo...eu consigo ficar calma aqui. Eu fico acelerada e 3ª a 6ª feiras de manhã espero ficar aqui para ficar mais calma, como se eu tivesse um tempo para mim, de conhecer , de me ver , de passagem. Começa 6ª feira e vai até domingo como se eu tivesse fora do tempo.”

A professora Juliana percebe o curso como um espaço para ela olhar para si mesma, se

conhecer e re-conhecer na companhia de outros colegas. Enquanto permanece no curso, se sente

absorvida nele com se fosse um intervalo para retornar às suas atividades aceleradas da semana

que não lhe permitem pensar no seu próprio papel. Lembremos mais uma vez de Huizinga

(2004), quando afirma que o jogo evade a vida real, transcendendo-a como um intervalo na vida

cotidiana.

Já a professora Isabel também percebe o curso como espaço e tempo para conhecer o

outro e a si mesma, e expressa a abertura que as atividades lúdicas propiciam para liberdade de

expressão, partilha, contato e para superação dos preconceitos culturais: [...] E este trabalho que nós estamos fazendo aqui, é essa proposta de descobrir e redescobrir o outro e por exemplo, já estamos liberados de algumas situações que algumas vezes nos encontrávamos embaraçados por exemplo conversar, abrir para o outro, olhar nos olhos do outro, falar de suas Unidades, não ter vergonha de dançar, de fazer gestos, uma careta, entende? De mostrar que você já é uma cinquentona, que é balzaquiana e que está brincando, que gosta de brincar[...] Esses discursos também reforçam a afirmação de que a ação lúdica pode contribuir para o

aprender a ser, trazendo à consciência, intencionalidade, reflexões sobre as próprias atitudes e

posicionamentos frente ao mundo.

Sobre este tema, Luckesi (2000) ao analisar os pilares para educação do século XXI,

propostos no relatório de Delors (2001), observa que a educação hoje é centrada no aprender a

conhecer e a fazer, respectivamente, o conhecimento estabelecido e o conhecimento técnico. O

autor propõe uma educação centrada no aprender a ser, ou seja, voltada para as qualidades mais

fundamentais do ser humano, tendo como centro sua tarefa de vida para sua existência.

Dessa forma, esclarece que a prática da educação lúdica enuncia “a formação de um Eu

saudável em cada ser humano, de tal modo que cada um possa administrar a vida pessoal,

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coletiva e profissional da melhor forma possível, pulsante, alegre, realizada” (ibid p. 12). O autor

acredita que as atividades lúdicas, por conduzirem a experiências plenas, possibilitam acesso aos

sentimentos mais indiferenciados e profundos e o contato com forças criativas e restauradoras do

ser humano. Encontramos, nestes argumentos, relevância substancial na compreensão dos

conteúdos das cartas simuladas que os professores fizeram para seus alunos falando sobre a

experiência no curso de extensão realizado na pesquisa. Esta carta foi solicitada ao grupo no

décimo sexto encontro com o objetivo de elaborar um “memorial do curso”, buscando fazer uma

síntese sobre as vivências e discussões realizadas.

Antes da produção das cartas, propomos uma vivência a fim de sensibilizar o grupo para o

tema. Primeiro fizemos uma técnica de centramento e sensibilização denominada “Acordar o

coração”125, na qual foi trabalhado o chakra cardíaco centrado na qualidade e na afetividade do

professor. Em seguida, pedimos para que todos abrissem os olhos e olhassem as imagens do

retroprojetor, enquanto, em silêncio, se ouvia a composição de Milton Nascimento: ‘Coração de

estudante”. As imagens apresentavam cenas que retratavam a situação socioeconômica das

pessoas no mundo contemporâneo, especialmente os jovens, e, ao mesmo tempo, apresentavam

pessoas alegres, em situação de aprendizagem, e fotografias dos momentos vivenciados pelo

grupo. Depois de um tempo, pedimos que o grupo escrevesse uma carta para seus alunos,

contando-lhes como foi o curso de extensão e, em anexo, desenhassem representando o próprio

corpo: como chegou ao curso e como está após o curso.126

Percebemos este momento como catarse do grupo, cujos recursos lúdicos foram necessários

para mediar suas lembranças, sentimentos e expressão. De modo geral, as cartas revelaram a

importância de compartilhar as “dores” e descobrir que elas são comuns à profissão. A exemplo

da “angústia” de buscar o aluno e “encontrá-lo distante, tão perdido, tão sem perspectiva”, como

nos revela a professora Iolanda. E, mesmo com este sentimento, a professora assume posição

diante da educação como caminho para transformação social:

Quero que você saiba que o nosso encontro só será possível quando nós nos rebelarmos e assim possamos fazer a sociedade entender que no nosso encontro está a solução da paz, da justiça social, da distribuição justa de renda, do futuro do nosso país, da igualdade entre os semelhantes, do respeito.

125 Vede descrição APÊNDICE O. 126 Os dados dos desenhos serão analisados no próximo capítulo.

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Os dados mostram maior clareza na consciência dos docentes em relação ao seu papel

como sujeito da práxis pedagógica e à crise de identidade profissional, como complementam os

depoimentos, extraídos das cartas, a seguir:

Prof.ª Solange:

[...]Neste curso ampliei minha visão de vida e sobretudo minha visão de que o ser humano é um ser sócio-histórico e espiritualmente construído. E que nós professores temos muita influência nesta construção. Não imaginei que minha profissão tinha tão relevante papel nesta formação. [...]

Prof.ª Vânia:

[...] Percebí nesse curso o quanto é de fundamental importância trabalhar a afetividade e a ludicidade em sala de aula.Os momentos vividos por mim nesse curso, me fez várias vezes me questionar sobre a minha identidade pessoal e a minha identidade profissional e notar o quanto estão ligadas, o quanto uma é sequência da outra e vice-versa.[...]

Outro aspecto destacado na catarse, comum aos professores, foi a melhor compreensão do

comportamento dos alunos e dos colegas de trabalho, levando a uma flexibilidade maior nos

relacionamentos, ao obterem “maior cuidado consigo mesmo e habilidade para lidar com

determinadas situações sem grandes sofrimentos e angustias”, como nos diz a professora

Francisca. Estes dados nos levaram a afirmar que as vivências lúdicas contribuíram não só para

ampliar a consciência em relação ao trabalho docente, trazendo um novo conhecimento, como

também proporcionaram autoconhecimento e “tocaram” na auto-estima desses professores.

Podemos observar alguns aspectos dessa afirmação nos conteúdos das cartas a seguir:

Prof.ª Margarete:

[...] O curso começou em julho já no fim da greve de 2004. Imagine só, estávamos com os corações desiludidos, inconformados e sem esperança em dias melhores. Mas foi só o começo, porque ao longo do curso, fomos superando estes sentimentos e passamos novamente a nos encantar, acreditar e sonhar.

Até agora falei do grupo como um todo, mas vou falar um pouco de mim. Não sei se vocês notaram que este semestre eu me sentir mais a vontade na sala de aula. Não consegui esquecer quando vocês puxaram as cadeiras para frente para entender melhor a aula. É incrível que depois de tantos anos como professora, só agora posso ver e sentir melhor esse papel. E justamente em um ano tão conturbado, estressado, cheio de idas e vindas.

Mais uma coisa importante que queria partilhar é que não foi um curso como estou acostumada a participar, pelo título vocês já devem desconfiar. Não aprendemos dar aulas, usar novos recursos. Vocês devem estar curiosos. Então vamos lá. Foi um curso onde trabalhamos as emoções através de atividades corporais, bastantes lúdicas. Estranho não é ? Mas aprendemos muito, principalmente a encontrar nossa identidade de professor, que acabamos perdendo no cotidiano frenético que são as nossas vidas.

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No primeiro parágrafo, ela mostra como mudou sua percepção a respeito da experiência

de greve que passou. Podemos dizer, nas palavras de Lukcesi (2004), que ela saiu do estado

focado de consciência, que a fazia ficar presa na desilusão e sem opções, para um estado

ampliado de consciência, quando começa a descortinar outros aspectos da situação e ter uma

perspectiva diferente.

No segundo parágrafo da carta, ela comunica aos seus alunos que, no curso, pôde voltar-

se para a reflexão do seu papel profissional e os efeitos que esta reflexão trouxe para sua postura

na sala de aula, ficando mais motivada e motivante para eles. Este dado nos leva a opinar no

sentido de que pode ter ocorrido a experiência de autoconhecimento (OLIVEIRA,2000), na qual

Margarete observou o seu próprio modo de pensar e agir na sua profissão.

No último parágrafo, ela comunica que a formação lúdica consegue atuar na dimensão

subjetiva do trabalho docente, levando-a a confirmar sua identidade profissional.

A professora Isabel, após comunicar conteúdos similares aos da colega aos seus

educandos, acentua a dialética das emoções127, prazer e dor (VIGOTSKI, 2001 e REICH, 1961),

vivenciadas nos encontros. E acrescenta o quanto seria benéfico para a educação se o curso

pudesse ser estendido para um número maior de professores: [...] Das vivências que tivemos neste curso Coração de Professor, foi possível avaliar o antes e o depois e entre perdas e ganhos, dúvidas e certezas, alegrias e desencantos, cansaço e refazimento, sorriso e seriedade...Tudo nos foi concedido com o maior respeito por nós, pela vida, pelo outro, por vocês... Se fosse possível extender a todos os nossos companheiros de profissão esse momentos tão ricos que compartilhamos, certamente o fazer educação tomaria outro rumo e a conotação de sacerdócio não seria aquela velha idéia vagamente conceitual de professor dos velhos tempos, comparados na sua importância aos magistrados. Sim, porque cada um de nós que se avalia a todo momento sabe o que é preciso mudar e onde para fazer uma educação de qualidade. Só nos resta a compreensão dos olhos que nos observam de cima para compreender que precisamos de braços amigos e comprometidos com a “nossa”, a causa de todos nós.[...]

Frente às discussões aqui apresentadas, a tônica é trazer o caráter lúdico para a prática

educativa, desenvolvendo postura lúdica no educador e curiosidade lúdica no educando. Neste

sentido, observamos que o professor precisa ter consciência da teoria que norteia sua prática

pedagógica e , por meio da visão dialética, compreender que o conhecimento não vem pronto,

mas por aproximações sucessivas, que vai sendo desvelado e nivelado num movimento

dinâmico todo-parte-todo. Em suma, o docente carece de ter a consciência da ação que planeja e

executa e sua interferência (afetiva, corporal, cultural, social) sobre ela.

127 Voltaremos a este tema no próximo capítulo.

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Como em todo processo pedagógico, estas atividades também precisam ser avaliadas e

acompanhadas. A avaliação, em seu caráter lúdico, deve ser executada por procedimentos

construtivos da aprendizagem do educando, sempre voltada para inclusão e não para o

julgamento. Como a avaliação, o acompanhando deve estar sempre presente em todo processo de

busca e organização do conhecimento.

Por conseguinte, o ensino de caráter lúdico tem como proposta a articulação com a vida e

por isso, do tempo presente, da existência dinâmica. E o aprender, nas palavras de Lukcesi

(2004), articula-se com a beleza do momento para compreender a “dinâmica da vida” na

totalidade do tempo. E, assim se apresentando, o ensino-aprendizagem, permeado por suas

múltiplas dimensões, pode convergir para o que sugere Rubem Alves:

O mestre nasce da exuberância da felicidade. E, por isso mesmo, quando perguntados sobre a sua profissão, os professores deveriam ter a coragem para dar a absurda resposta: “Sou um pastor da alegria...” Mas, é claro, somente os seus alunos poderão atestar da verdade da sua declaração... (ALVES, 2000, p. 13).

Desta maneira, compreendemos que o desenvolvimento da postura lúdica só é possível se

o conhecimento sobre ludicidade for levado à ação, carregado de compreensão e envolvimento

afetivo pelo sujeito. O “pastor da alegria” precisa ser formado ludicamente para viver sua

felicidade, buscando e criando outras formas de fazer educação. Pelo que expusemos,

percebemos que a construção do conhecimento, na perspectiva sócio-histórica, não se esgota na

catarse, pois a tomada de consciência não é suficiente para provocar mudanças na prática. O

conhecimento só se torna significativo se provocar mudanças no pensar, no ser e nas interações

sociais e nesta direção, a ludicidade, uma vez que atua nos níveis de desenvolvimento da

consciência e no auto-conhecimento, revela-se como uma dimensão integrante na formação

pessoal e profissional do educador. Desta forma, como desenvolver no educador postura lúdica e

aberta às transformações?

Negrine (1998) acentua que os cursos de formação de professores têm sido

predominantemente teóricos e técnicos, não contemplando o aspecto subjetivo e o conhecimento

prático, ou seja, aquele elaborado nas suas interações a ações cotidianas.

O autor propõe que os currículos da formação inicial e continuada de professores sejam

estruturados de tal forma que contemplem três vertentes: a teórica, a pedagógica e a pessoal,

dimensões análogas ao do processo ensino aprendizagem discutidas neste trabalho. A vertente

teórica se encarrega de fazer a relação entre o conhecimentos prático e o científico, considerando

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o conteúdo afetivo presente no primeiro e os aspectos epistemológicos do segundo. A vertente

pedagógica está voltada para constituição de um conhecimento prático, vinculado à formação

teórica recebida e a uma experiência profissional vivida em diferentes situações. E, por fim, a

formação pessoal, cujo instrumento teórico é o próprio corpo, enseja ao professor vivenciar de

forma lúdica a sua expressão na relação com os objetos, consigo próprio e com seus pares.

Dessa forma, a experiência do professor e os conhecimentos acadêmicos acumulados no

decorrer de sua formação tornam-se tão importantes quanto o trabalho vivencial de sua

afetividade, relacionando-se dialéticamente, sem privilégios de nenhuma das vertentes.

A vertente pessoal na formação docente é chamada por Santos (2001) de formação lúdica

e será discutida no capítulo a seguir, tendo como eixo as falas dos professores e a contribuição da

abordagem reichiana para o trabalho com as atividades lúdicas corporais.

Há tempo, julgamos conclusiva, para este capítulo, a carta da professora Mary, escrita

para seus alunos, após uma vivência lúdica num dos encontros do grupo, pois sintetiza as idéias

aqui defendidas sobre a importância do lúdico no trabalho docente.

Salvador, 10 de dezembro de 2004 Queridos alunos,

Não poderia deixar de contar para vocês a gratificante experiência de participar de um curso para professores onde tive o prazer de dividir momentos de teoria através de textos que argumentaram os meus conhecimentos em relação ensino-aprendizagem focalizando o social, o psico e histórico dentro da abordagem educativa. Porém redescobrir o meu lado criança, adolescente e aluno que me esqueci , talvez com a preocupação de ser um bom professor na execução da profissão. Este lado criança foi ressurgindo através das vivências onde pude perder a vergonha de olhar dentro dos olhos do meu colega, usando este olhar como um espelho que mostrava minha alma lá no fundo.

Sei que vocês dirão: “Pró você mostra seu lado criança na sala quando faz seus jogos e dinâmicas” e eu respondo a vocês que descobri que posso ser mais criança quando deixo de lado medos, timidez, apreensões. Descobri que sou um pedaço de vocês quando me entrego e integro juntamente com vocês no nosso dia a dia.

Antes eu tinha vergonha de mostrar-me criança que brinca, saltita diz o que deseja com alegria. Hoje eu escuto de vocês que meu sorriso sai até do meu olhar. É isto aí, eu descobri que posso olhar sorrindo para o desencanto de ser professor em relação a negação da sociedade em reconhecer a seriedade e beleza do nosso trabalho, porém não perco o encanto de ser o que sou: uma eterna aluna da vida.

Mary