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5 - O MALANDRO E A FILOSOFIA DA CAPOEIRA A malícia - a filosofia da capoeira - têm muito a ver com a filosofia da malandragem; vimos como o malandro é o herdeiro das maltas cariocas dos 1800s. Por outro lado, as mulheres foram dominadas pelos homens (os pais, os maridos, etc.) por gerações e tiveram de desenvolver estratégias para poder conviver e "jogar" com os homens. Neste contexto era importante observar e entender os pontos fracos (e fortes) daqueles que tinham o poder; e ocasionalmente disfarçar pensamentos e emoções. A "filosofia da malandragem" assim como a malícia da capoeira tem estas caracteristicas em comum com as "estratégias femininas": era a estratégia do oprimido face àquele que detem o poder. O Malandro e o trabalho Muita confusão é feita acerca do Malandro. Muitos pensam que significa "não trabalhar", mas quem não trabalha é apenas um vagabundo, um vadio. A relação do Malandro com o trabalho é outra: ele simplesmente se recusa a fazer o trabalho duro e alienante, cuja meta final é ganhar o dinheiro para (sobre) viver, e que, na verdade, vai encher o bolso do patrão. Também se recusa, se estiver numa posição econômica mais forte, a dedicar muitas horas ao trabalho para "amealhar fortuna", seguindo o modelito capitalista. A riqueza do Malandro está no próprio viver; ele não vai perder as horas preciosas de seu dia em algo que ele não faria por prazer e de graça. Os norte-americanos dizem que "time is money"; o Malandro concorda mas de um outro ponto-de-vista: - para o americano "time is money" significa que ele não vai

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5 - O MALANDRO E A FILOSOFIA DA CAPOEIRA

A malícia - a filosofia da capoeira - têm muito a ver com a filosofia da malandragem; vimos como o malandro é o herdeiro das maltas cariocas dos 1800s.

Por outro lado, as mulheres foram dominadas pelos homens (os pais, os maridos, etc.) por gerações e tiveram de desenvolver estratégias para poder conviver e "jogar" com os homens. Neste contexto era importante observar e entender os pontos fracos (e fortes) daqueles que tinham o poder; e ocasionalmente disfarçar pensamentos e emoções.

A "filosofia da malandragem" assim como a malícia da capoeira tem estas caracteristicas em comum com as "estratégias femininas": era a estratégia do oprimido face àquele que detem o poder.

O Malandro e o trabalho

Muita confusão é feita acerca do Malandro. Muitos pensam que significa "não trabalhar", mas quem

não trabalha é apenas um vagabundo, um vadio.A relação do Malandro com o trabalho é outra: ele

simplesmente se recusa a fazer o trabalho duro e alienante, cuja meta final é ganhar o dinheiro para (sobre) viver, e que, na verdade, vai encher o bolso do patrão.

Também se recusa, se estiver numa posição econômica mais forte, a dedicar muitas horas ao trabalho para "amealhar fortuna", seguindo o modelito capitalista. A riqueza do Malandro está no próprio viver; ele não vai perder as horas preciosas de seu dia em algo que ele não faria por prazer e de graça. Os norte-americanos dizem que "time is money"; o Malandro concorda mas de um outro ponto-de-vista:

- para o americano "time is money" significa que ele não vai

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parar de trabalhar nem um minuto, pois o tempo é dinheiro, produz dinheiro;

- para o Malandro "time is money" significa que o tempo dele é muito precioso para ser empregado em onda careca.

O Malandro sabe que, tendo uma base mínima de dinheiro, ou uma boa base de prestígio, ele vai curtir a vida como poucos milionários o fariam; o Malandro tem consciência da falácia do "capitalist way of life" onde nunca se está satisfeito com o que se ganha.

Muitos malandros (melhor diríamos, muitas pessoas profundamente escoladas pela Filosofia da Malandragem) têm emprego. Correm atrás da grana porque não estão numa posição da grana correr atrás deles, mas evitam pegar no pesado.

Geraldo Pereira, o sambista e compositor e valente, trabalhava como chofer de caminhão da limpeza urbana. Martinho da Villa foi sargento do exército, mas estava designado como músico da banda. Outros trabalham como fiscal no Cais do Porto, ou apontador de apostas para o Jogo do Bicho, chofer de taxi, jogador de futebol, músico, etc. Mestre Pastinha era pintor de parede, mestre Bimba foi carreteiro, mestre Leopoldina trabalhou na estiva do cais do porto.

O Malandro também é confundido com outros camaradas que trabalham em outras especializações marginais, características mais pesadas e negativas.

Quando era aluno do Leopoldina, por volta de 1965, me lembro que um colega comentou a respeito de um político que tinha roubado uma vultuosa quantia destinada à construção de escolas. Eu, em resposta, comentei qualquer coisa, chamando o político de "malandro". Leopoldina aparteou: "esse cara não é malandro, ele é apenas um ladrão".

O mais instrutivo, na observação de Leo, não foi a

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diferenciação entre as categorias malandro/ladrão. Foi o tom de voz. Não havia qualquer revolta ou condenação moral, apenas a constatação de um fato.

Um outro aluno, mais velho, experiente, e engajado politicamente, comentou agressivamente, um tanto revoltado, que o político no máximo era um malandro-agulha, "toma no buraco (ânus) sem perder a linha", pois ao roubar o dinheiro das escolas estava agravando um quadro social de ignorância e miséria que, em última análise, iria ter repercussões sobre o próprio político - membro da classe dominante -, na forma de roubos, furtos, assaltos e, principalmente, sequestros.

Todos ficamos impressionados com aquela inteligente e lúcida análise, e murmuramos palavras de apoio e admiração. Ainda mais que estávamos em plena ditadura militar (1964-1984), e este tipo de papo era politicamente correto, estava na moda. Mas inadvertidamente olhei para Leopoldina. Seu rosto estava sem nenhuma expressão, parecia um capiau que tinha acabado de chegar na cidade grande e está deslumbrado, e sem entender muito bem o que está acontecendo. Mas, apesar da pouca convivência, na época, eu já tinha sacado que ele usava aquela cara quando ouvia papo (pseudo inteligente) de otário.

O papo era "de otário" pois baseava-se em enfoques e "verdades" do próprio Sistema, para tentar combater injustiças daquele mesmo Sistema. Enfim, aquelas idéias não iam resolver nada pois estavam enclausuradas no "mundo dos otários".

Aliás, é bom lembrar que o "otário" não é somente o bobalhão que vive sendo passado para trás pelos "espertos". "Otário" é também o "esperto", o milionário, o artista e o atleta bem sucedido, o profissional de sucesso, enfim todos que vivem, com "sucesso" ou não, segundo as regras, e o desvio das regras (para os que tem poder), do "mundo dos otários" - o "Sistema", a sociedade estabelecida (capitalista, comunista, socialista, qualquer que seja).

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O Malandro aparece no Rio de Janeiro no começo dos 1900s, logo após a perseguição que dizimou os Guaiamús e Nagoas, liderada pelo chefe de polícia Sampaio Ferraz - o "Cavanhaque de Aço" - depois da Proclamação da República.

O Malandro é o herdeiro dessas maltas; a diferença é que as maltas usavam uma "estratégia de violência", enquanto o malandro usa uma "estratégia de sedução". Apesar desta diferença, há uma semelhança entre o Malandro e as maltas cariocas de capoeira de 1800s, que "forjaram uma cidade dentro da outra" (como nos ensinou Libano Soares):

- o Malandro não se propõe a salvar a humanidade; não se propõe a "fazer a revolução"; nem se propõe a mudar as relações injustas do mundo do trabalho.

Ao invés de reinvindicarem uma unidade dos cativos, elas (as maltas cariocas de capoeira, dos 1800s) lutavam por espaços limitados, restritos, pedaços do estreito mundo urbano colonial. Os conflitos com agentes do Estado colonial ou imperial não eram incoerentes com a guerra crônica entre as maltas de escravos (capoeiras): tanto uns quanto outros (os policiais e as outras maltas) eram invasores, beligerantes, se bem que em planos diferentes... a cidade era sua, mas não toda a cidade, ou toda de uma vez... eles forjaram uma cidade dentro da outra. (121)

Se isto (o Sistema, a cidade) é o que esta aí, diz o Malandro, então isto é o reflexo do que os homens são.

E não adianta derrubar X e colocar Y, pois assim que Y

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estiver lá em cima, vai usar estratégias semelhantes a X. Na verdade, X e Y, monarquistas e republicanos, democratas e anarquistas, socialistas e comunistas, (diz o Malandro) estão todos na mesma panela brigando pelo Poder e suas benesses.

Todos pertencem ao cruel e injusto universo dos otários, e o malandro tem de ir, no sapatinho, procurar as fissuras nas muralhas aparentemente invulneráveis do Sistema para poder sobreviver, ou melhor, viver e curtir, neste "vale de lagrimas".

Algumas das leis do Sistema, do universo dos otários, estão bem expressas em vários provérbios populares. Curiosamente muitas pessoas pensam que são provérbios da malandragem; mas, na real, expressam apenas a rasa filosofia (semelhante a capitalista, mas com um pouco mais de suíngue) dos espertos, dos golpistas, dos escroques, do 171 (todos eles, parte do Sistema):

"A lei é de Muricy,cada um trata de si;e eu já vou tratar de mim"

"Pouca farinha,meu pirão primeiro" Ou a chamada "lei de Gerson", aplaudida por espertos,

golpistas, e homens de negócios em geral. "Lei" cujo nome - "de Gerson" - é uma homenagem ao lateral da seleção brasileira de futebol que decretava num anúncio de aparelho de barbear: "eu levo a melhor em todas".

É bem conhecido, também, como os norte-americanos dividem as pessoas entre "winers" (vencedores) e "loosers" (perdedores).

Mas para o Malandro, winner ou looser, é tudo otário. Estão todos vivendo a ilusão que Bob Marley e os rastafari chamam de rat race, a "corrida de ratazanas" atrás do (valor máximo do

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capitalismo) dinheiro.

E apesar deste enfoque da malandragem, e da recusa em "fazer a revolução social" , que alguns chamariam de postura cínica; o Malandro não é um reacionário.

O Malandro está sempre numa boa e, dentro de suas possibilidades age para que, quem estiver no seu entorno também esteja numa boa.

O Malandro declara, a respeito do trabalho e dos negócios (e atua segundo sua declaração):

"Para o bom malandro,o bom negócioé bom pra todo mundo"

O malandro e o golpista

Os malandros talentosos, que não precisam dar golpes para sobreviver, que "vivem de seus prestígios" e não precisam se enquadrar, nem mesmo, nas regras dos locais onde faturam sua grana, são admirados por todos - determinados músicos, alguns desportistas, etc. Mas os malandros talentosos são poucos, e a generalização"todo malandro é um artista" não é real.

Já vimos o que a malandragem diz do malandro: "Malandro não existe!"

Zeca Pagodinho, por sua vez, afirma: "Otário com sorte é duas vezes malandro!"

Mestre Leopoldina negava ser malandro: "Malandro? Eu? Malandro é o sapo, que levou a perereca pro brejo!" Mas um dia, quando eu estava filmando o Leopoldina (122) em sua casa, na Cidade de Deus (RJ), e já tínhamos fumado e bebido, Leo, que estava se olhando no espelho após vestir um super terno Armani e um belo casacão que combinava com seu

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chapéu de feltro, se virou para a câmera e declarou: "Eu sou um daqueles, que muitos querem ser mas não

podem".

Mas nem sempre o (aprendiz de) malandro é um cara como mestre Leopoldina com sua capoeira, ou como é Zeca Pagodinho com o seu samba. Muitas vezes, aqueles que gostariam de ser e viver como um Malandro não têm nada de excepcional, e também não tem a sorte de arranjar moleza no Cais do Porto, ou no Jogo do Bicho.

Então o cara se encontra num dilema: - ou vai quebrar pedra para engordar o bolso do patrão;- ou vai se virar; dar um golpe aqui, outro ali; ser gigolô ou

cafetão; viver do carteado ou sinuca; ou, até mesmo, vai fazer uns biscates com a turma da pesada (assalto a banco, etc.).

Existe uma hierarquia neste mundo de malandros (com "m" minúsculo) que não tem um talento específico: um malandro que extorque um trabalhador ou tira dinheiro de uma mulher pobre, é considerado de menor status que um outro, que dá um golpe num banco ou tira dinheiro de uma milionária. Mas esta diferença não tem nada a ver com "respeitar os pobres e oprimidos"; mas com a habilidade e o carisma do malandro que trabalha con "clientes" mais difíceis.

O malandro com "m" minúsculo, que é golpista por necessidade, tem uma faceta bizzara e aparentemente paradoxal: ele se envolve e tem simpatia por suas vítimas. Mas isto em nada impede que ele se aproveite e tire vantagens delas.

Aos olhos do malandro esta tudo bem porque ele sempre dá algo em troca. Algo extremamente valioso e raro de encontrar em nossa sociedade. O malandro dá o seu charme; tira sua vítima de sua vidinha entediante, introduzindo-a (por pouco tempo, é verdade) no mundo mágico e excitante onde vive.

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Aos olhos do malandro está tudo bem porque ele faz a cabeça das vítimas, abrindo os olhos delas (após se darem conta que levaram um golpe) para a realidade do mundo.

Aos olhos do malandro/golpista está tudo bem porque ele sabe que o sucesso de seus golpes depende basicamente da vítima querer se dar bem às custas dele (às custas do malandro). Na maioria das vezes, a pessoa só se torna vítima de um "golpe" quando, a própria vítima, está tentando dar um "golpe" no malandro.

É bem conhecido o "golpe do bilhete premiado".O golpista, travestido de capiau recém-chegado à cidade

grande, fica examinando a lista da loteria federal numa banca de jornal, e atrai a atração do cliente (a vítima em potencial).

Fica óbvio para o cliente que o "capiau" está nervoso e está procurando disfarçar o nervosismo.

"Provavelmente ganhou na loteria", pensa o cliente, "e aparentemente está perdido e desprotegido na cidade grande".

Na sequência dos acontecimentos, o cliente diz que vai ajudar o "capiau" a receber seu dinheiro. O cliente parte, todo satisfeito, com o bilhete premiado e deixa algo como garantia com o "capiau"; um relógio, ou uma grana para o "capiau" almoçar no retaurante em frente enquanto espera o cliente voltar com o dinheiro, p.ex.

Obviamente o bilhete é falso.Ou - um golpe mais refinado -, o bilhete é verdadeiro (o

otário examina o bilhete, de alto a baixo, e se convence que não é falsificado); mas a lista de ganhadores que estava pendurada na banca era falsa.

Conheci um golpista que se intitulava Jeca Tatu. O golpe do bilhete que ele aplicava era extremamente sofisticado pois trabalhava com um apoiador, uma loura muito bonita, gostosa, e extremamente bem vestida.

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A loura entrava em cena e se interessava em tomar o bilhete "premiado" ao mesmo tempo que o cliente. Iam os três - Jeca Tatu (o golpista falso capiau), a loura (o apoiador), e o cliente -, por sugestão dela, para um bom restaurante para discutir o assunto; comiam, bebiam, e "convenciam" o (falso) "capiau" que iriam buscar o dinheiro e logo estariam de volta. A loura deixava sua bolsa Luis Vuiton com tudo que tinha dentro com o "capiau"; o cliente ficava tão convencido que, não raro, ia até o seu banco, fazia um saque e chegava a deixar R$ 2.000 ou mais com o "capiau".

Eu perguntei a Jeca Tatu se não era perigoso para o apoioador, pois ela teria que sumir enquanto o cliente tentava receber a grana do (falso) bilhete. "É perigoso", disseram eles, "mas o maior problema", sentenciaram com tristeza, "é que ótario tem boa memória" e "nunca esquece um rosto".

O problema deste golpista é que ele tinha de trabalhar numa área onde houvesse gente de grana, e estas áreas são poucas dentro da cidade. Depois de alguns golpes, Jeca Tatu e o apoiador - a loura - ficavam com medo de esbarrar com uma recente vítima e então iam para São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, onde também armavam seu golpe.

Certa vez faturaram uma grana, contavam eles, em cima de um deputado federal. Quando a loura e o deputado partiram com o (falso) bilhete, o deputado entrou numa de Don Juan; a loura foi com ele para um motel, aplicou-lhe um "Boa Noite, Cinderela" (barbitúrico na bebida da vítima, que adormece), e levou tudo, desde o carro até a aliança de casado.

O malandro e o cafetão

Um malandro não gosta de trabalhar de cafetão; é um trabalho danado, 24 horas por dia, 7 dias na semana:

- As minas bebem, se drogam, ficam doidonas, arranjam

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barulho; o cafetão tem de estar lá pra dar um sacode na vadia e organizar a parada.

- As minas entram em depressão, tentam o suicídio; o cafetão tem de estar lá pra dar uma de psicólogo e pai.

- As minas pegam um freguês violento que entra numa de encher a puta de porrada; o cafetão tem de estar lá pra dar proteção e detonar o safado.

Cafetão tem de ser frio como gelo; tem de ser bom nos negócios; tem de ser bom de papo e porrada; tem de andar armado.

É um trabalho da porra.

No Rio de Janeiro, existe um bar, na verdade é mais um botequim com umas dez mesinhas antigas, quadradas, daquelas com tampo de mármore.

O bar surprende por ser muito mais comprido que esperávamos. Na parte de trás, que está sempre lotada, temos umas oito mesas oficiais de sinuca em ótimo estado. O bar fica aberto 24 horas por dia, e curiosamente também é frequentado por "moças de família" e garotões que chegam com suas turmas pra beber cerveja e jogar sinuca.

Este bar fica numa rua agitada, no pé de um morro. O dono do tráfico e do morro é um patriarca, com filhos e netos que são donos de várias vendinhas e botecos e, talvez, umas trinta casas. É a família mais importante da parada. O patriaca governa o morro como se fosse um ditador benevolente; se dá bem com a associação de moradores, vagabundo não rouba nem estrupa, e seus "soldados" respeitam os moradores.

O coroa é um dos últimos de sua espécie. Hoje em dia, o dono do morro geralmente nem cresceu ali. Não tem nenhuma ligação afetiva com a comunidade local; seus "soldados", muitas vezes, tocam o terror entre a população; sem contar que, de tempos em tempos, uma gangue rival assalta o morro e a favela vira um campo de guerra.

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Voces já devem ter imaginado que o bar, com suas belas mesas de sinuca, também funciona como uma sucursal da boca no alto da favela.

Um dia de madrugada, eu fazia dupla com um malandro, bem mais velho que eu, que tinha sido me apresentado, anos atrás, por Leopoldina. Nós já tínhamos desfilados juntos na ala show da Mangueira, a V.C. Entende, onde ele saía como passista e, eu, como capoeirista. E nos anos seguintes, nos encontramos várias vezes, pois esse malandro é também um talentoso percussionista que sempre está trabalhando em gravações em estúdios de som.

Esse malandro estava arranjando um bico, numa gravação, para um rapaz que jogava sinuca conosco na dupla adversária. Num determinado momento, o rapaz foi ao banheiro, e seu parceiro tinha ido até o balcão pegar mais cerveja.

O malandro me explicou:"Ele é um bom rapaz. É firmeza. Conheço desde menino, o

pai era meu cumpadre. Mas eu já expliquei pra ele que tem de estudar. Tem de tocar todas as peças (da bateria da escola de samba); eu não posso ficar levando um cara que só toca tamborin. Não dá. Ele até que tem suíngue; mas é aquele negócio que você provavelmente já sabe: 10% de inspiração e 90% de transpiração. Tem de plantar pra colher".

Neste momento o rapaz voltou do banheiro, e seu parceiro chegou com as cervejas.

O malandro se inclinou sobre a mesa, deu sua tacada colocando a bola numa inacreditável sinuca-de-bico. Se afastou da mesa, piscou um olho pra mim, e concluiu em voz baixa.

"É um bom rapaz. É um bom malandro. Coitado, anda sem sorte... já teve até de trabalhar de cafetão".

O malandro e o golpista sexual: a dobradinha

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A cafetinagem é um trabalho da porra; mas o golpista que trabalha com o sexo pega mais leve. Especialmente porque com um único golpe, fatura-se; pode-se tirar umas férias.

Recentemente, no norte da Europa, conheci um jovem e simpático dublê : professor de capoeira e gigolô. Ele curtia capoeira, mas não ao ponto de se dedicar e se tornar um destaque. Por outro lado, apesar de esperto, não era excepcionalmente inteligente. Nem tinha um dom, um talento que já vem de nascença.

Enfim, a única coisa que tinha de excepcional é que, na tenra juventude, tinha convivido com uma rapaziada do samba no morro onde fora criado; e portanto tinha a cabeça feita pela filosofia da malandragem.

O cara gostava da boa vida, das coisas caras, mas ficava esperando o mar pegar fogo pra comer peixe assado.

Esse malandrinho se vestia, e se apresentava, tão descaradamente como um gigôlo, que era motivo de riso e piadas. Ele não era nem bonito, mas tinha um certo veneno; tinha um corpo legal, mas era baixinho.

Em compensação era um excelente bailarino; mas era fútil, superfluo, escessivamente "bem vestido" no estilo brega brilhante de John Travolta do "Os embalos de sábado à noite". Estava sempre bem humorado, rindo mais animado que a festa; transitava entre as gringas como se fosse um amigo homosexual, ou um cãozinho de estimação.

Mas o inverno naqueles países ricos do norte Europeu é longo, frio, e escuro. As dez horas da manhã ainda é noite fechada, e às quatro da tarde o sol já se pôs. Não é só o frio, pois na estação de esqui na montanha, apesar do frio, o sol brilha e tudo é atividade física e festa.

O problema é a falta de luz, a umidade; aquele monte de

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casaco e suéter que vestimos; e depois, chegamos a um lugar, despimos; e depois, vestimos novamente para partir.

O problema são as pessoas fechadas; talvez, em grande parte, por causa do clima.

O problema é a falta de uma atividade empolgante pela qual a pessoa seja apaixonada.

O problema é não ter mais sonhos e utopias a serem realizados.

O problema é a solidão.É receita certa para uma deprê fatal.A taxa de suicídio, apesar de não haver, de fato, problemas

de dinheiro; apesar de não haver, de fato, problemas de violência; é altíssima.

Neste cenário, vez por outra, uma daquelas gringas, grande e loura, acabava na cama do nosso malandreco.

Paixão na certa. Os homens do norte da Europa Ocidental não são

especialmente ligados no sexo. Numa pesquisa sobre as dez coisas mais importantes, o sexo ficou em sexto lugar entre as mulheres; mas nem apareceu na lista dos homens, que priorizavam o trabalho, a família, uma boa casa, bom carro, as férias em locais paradisíacos, etc.

Com seu novo e super carinhoso latin lover, a loura ficou toda feliz; era pirocada de manhã, de tarde, e de noite; barba, cabelo e bigode.

Mas um dia, a loura recebeu um telefonema inesperado: seu novo amante tinha sido preso por contrabando. Podia ir em cana. Podia, o que era pior, ser deportado.

Mas havia uma saída: os policiais eram corruptos e podiam ser comprados (conforme a cliente, a quantia varia de e$2.000 a e$10.000). A vítima (a loura) pagou o suborno a um (falso) policial, cupincha do gigolô/golpista; e o normal seria o

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giggolô/golpista sumir com o dinheiro.Tudo bem.Um golpe clássico usado, com algumas variações, por

golpistas de ambos os sexos no mundo inteiro.

Mas, neste momento, entrava em cena a criatividade do nosso malandreco.

Em vez de sumir com a grana, ele voltava ao romance com a vítima, e encenava um segundo ato - por isto, o golpe ficou conhecido como dobradinha, por atingir duas vezes a mesma vítima num curto espaço de tempo.

Ele voltava para os braços da vítima, e a paixão e o sexo atingiam níveis incendiários nas semanas seguintes - afinal tratava-se de amor resgatado a custo de dinheiro, o principal (e único) valor do Primeiro Mundo e dos Países Centrais!

Então, um dia, num restaurante, a vítima percebia que ela e seu querido amante estavam sendo observados por dois homens mal encarados.

Ela comentava com o malandreco.Ele ficava subitamente palido e começava, até mesmo, a

tremer! (o script era pior que novela mexicana, mas dava Ibope).O casal saía precipitademente do restaurante e, quando

chegavam em casa, o malandreco explicava que se tratava de dois gangsters aos quais pedira dinheiro emprestado para fazer a "fracassada" transação de contrabando. E, chorando grossas lágrimas de crocodilo, caía de joelhos, abraçava as pernas da vítima, e soluçava:

"Eu nem me importo com dinheiro. Não foi por dinheiro que tentei o contrabando. Com você, pela primeira vez na vida sou feliz. Com você tenho tudo o que quero. Mas eu queria te fazer uma surpresa. Te dar um presente de meu próprio bolso. Você se lembra daquela sandália Chanel, salto alto, dourada, da qual você gostou tanto, mas que não comprou porque custava uma fortuna? Pois é... o dinheiro do contrabando era

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para isto". (o script, aqui, melhorava um pouquinho)Para que ele não fosse morto, ou fugisse de volta para o

Brasil, a vítima desembolsava mais uns e$ 5.000.

Tempos depois, encontrei este malandreco com algumas de suas antigas vítimas européias, aqui, no Brasil. Surpreendentemente, elas estavam hospedadas na casinha da simpática mãe do malandrinho (que, de certa maneira, elas tinham ajudado a comprar).

Eu fiquei intrigado por estarem todos juntos curtindo - golpista e vítimas -, mas o malandreco me explanou a psicologia da transação: existia uma grande compreensão entre ele e suas antigas vítimas pois, segundo ele, as ladras eram elas.

"Na verdade, elas não tinham tesão, nem alegria, e queriam roubar a minha".

Quando ele tinha sumido, elas tinham ficado deprimidas ou enraivecidas; algumas chegaram a dar queixa na polícia. Mas com o tempo, elas entenderam toda a situação: elas é que eram as pessoas "más"; elas é que tinham querido aprisionar e roubar o "pobre" gigolô da sua alegria de viver e da sua liberdade.

"Agora, elas estão muito mais espertas, tranzando numa boa com os caras".

Elas teriam aprendido um pouco de malandragem por apenas e$ 10.000, "micharia para uma gringa".

"Além de tudo, de vez em quando vêm ao Brasil fazer turismo sexual e ficam hospedadas, de graça, aqui em casa".

E concluiu: "Eu dou até uma supervisionada nos namoradinhos delas;

elas estão mais espertas, mas sabe cumé qui é, tem muito mau caráter dando sopa por aí".

O malandro e a Umbanda

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A maneira de ser desta figura mítica - o Malandro - é tão seminal na ética e no imaginário do brasileiro, que existe uma linha na Umbanda especificamente dedicada ao seu culto.

Durante as cerimônias, através do som dos atabaques, estas entidades são chamadas do longíncquo mundo espiritual ao nosso mundo material.

Malandros míticos de uma sabedoria cósmica, como "seu" Zé Pelintra ou Zé Malandrinho, vêm e incorporam num homem ou mulher com capacidade mediúnica que está dançando no terreiro. O cavalo (o médium), as vezes, cambaleia e cai ao chão quando a entidade penetra pelo topo de sua cabeça. Quando o cavalo - muitas vezes, uma senhora gorda e idosa, cheia de problemas de artrite e tornozelos inchados - se levanta, já incorporado, ele se movimenta, conversa, e dança com um suíngue, leveza, arrogante elegância e brilho no olhar, típicos do Malandro.

Não é mais o médium que está ali, mas um Malandro que viveu as esquinas e as noites de uma outra época e, agora, está de volta para conversar, aconselhar, e partilhar o saber que acumulou nas ruas e na marginalidade que tão bem conheceu.

O aprendizado do malandro

O Malandro é o aristocrata, o filósofo, o PhD da escória do submundo; e ele se orgulha disto.

O Malandro é um solitário; seus iguais são os homens e mulheres formados na malandragem - e só -; e, mesmo entre esses, não existe amizade, apenas respeito ("e o respeito vem do medo", dizia Madame Satã).

Existem muitas escolas na marginalidade; a capoeira, p.ex., é, ou era, uma delas; a malandragem é outra.

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Em relação a homologia malandro/capoeira, note-se o golpe:

- Não é suficiente dar um golpe, como a "dobradinha" numa gringa loura e rica, ou o "bilhete premiado" num otário ganancioso, para se ser um verdadeiro Malandro. Quem dá golpe é golpista.

- Não é suficiente dar um golpe, um rabo-de-arraia ou uma rasteira, para ser um verdadeiro Capoeira. Quem dá golpe é lutador.

Mas não se iludam.Apesar de abominar o confronto fisico e a violência; e no

caso de conflito, sempre resolver a coisa "na conversa"; o Malandro sempre traz - afiada e reluzente -, no bolso do terno de linho branco, ou talvez por baixo de sua camisa de seda vermelha, ou até mesmo enfiada no cós da calça ou escondida na faixa de seu chapéu panamá, a temível navalha que é manejada com destreza se ele for encurralado e não houver outra escapatória.

E então o Malandro se torna um adversário fatalmente perigoso, atacando inesperada e traiçoeiramente - um único golpe letal na jugular e, antes que alguém se de conta do sucedido, ele já se foi.

O Malandro é um homem, ou mulher, das ruas, da noite, da boemia, dos puteiros, do carteado e da sinuca, das casas de jogo e de dança, onde ele exibe suas habilidades, seus "prestígios", e exerce sua sedução.

Com as mulheres, em público, o Malandro é sempre um cavalheiro. Ele oferece flores, murmura doces palavras em seu ouvido. Quando está com dinheiro, presenteia jóias, perfumes, e roupas vistosas

O Malandro é um mão aberta; nunca se preocupa com o amanhã, o amanhã se resolve amanhã. Mas quando esta duro,

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lhes toma o dinheiro sem a mínima consideração, e vai gastá-lo em farras, talvez com outras mulheres.

É comum que velhos malandros, cafetinas, jogadores, prostitutas, tomem "jovens de talento" sob sua proteção. Seria uma pena se aquele jovem, com tanta potencialidade, terminasse como traficante, assaltante, ou pistoleiro.

O malandro, o sexo, e a espiritualidade

Em Leão de chácara, de João Antonio (1974), lemos sobre um malandro temido e escolado, de São Paulo; cafetão de muitas mulheres da zona (local público de prostituição) - Laércio Arrudão -, que toma como aprendiz um pivete - Paulinho Perna-Torta -, que anos mais tarde será o malandro número um do local.

Arrudão é o que poderíamos chamar de um "malandro-valente-capitalista". Em suas conversas com o, então, jovem Paulinho, ficam evidentes várias facetas da "mentalidade dos espertos" e também da "filosofia da malandragem", especialmente às que se referem às mulheres e ao dinheiro.

Mas, na sequência, Paulinho Perna Torta também vai ser atingido pela problemática da espiritualidade.

Arrudão arrastou este aqui para um canto e ensinou.- Você vai deixar de ser um pivete frouxo. Vou te levantar a crista para você dar uma ripada nessa gringa - e me olhou dos pés à cabeça - porque você é gente minha.

... Mulher só serve para dar dinheiro ao seu malandro. Todo o dinheiro. Por isto, entre os malandros da baixa e da alta, as mulheres se

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chaman minas.

... Laércia Arrudão me ensinou:- Outra coisa: duas ondas bestas podem perder um homem. Gostar e mulher bonita. Malandro que é malandro se espianta e evita tudo isso.... Eu precisava tomar uns pontos na ignorância.

... Então, meu nome se espalha e começa a ganhar tamanho na zona. Boquejam à boca pequena:- Um valente ponta firme.(123)

O próprio Sinhô, "certamente o compositor da velha guarda que mais se acercou do estilo e dos assuntos do pessoal do Estácio" (bairro Estácio de Sá, RJ) (124), berço do samba e dos bambas cariocas das décadas de 1920/30, diria num samba:

"A malandragemé um curso primárioque a qualquer é bem necessário.É o arranco da prática da vidaque só a morte decide o contrário"(Sinhô)

Nesta perspectiva, de haver muitos tipos de pessoas "atravessadas" pelos ensinamentos da "Escola da Malandragem"; alguns, de grande talento, se aproximam do perfil do Malandro utópico; outros, como o próprio Laércio Arrudão são "malandros menores".

Mas parte da malandragem de Laércio Arrudão é saber de suas limitações:

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"... duas ondas bestas podem perder um homem. Gostar e mulher bonita. Malandro que é malandro se espianta e evita tudo isso"

Laércio não tinha cabeça suficiente para "gostar", sem cair na armadilha do ciúme e da posse. Mais perigoso ainda seria gostar de "mulher bonita", os grilhões da armadilha seriam mais poderosos.

Na verdade, os "grilhões das armadilhas" - posse e ciúme - deveriam afetar somente os "otários". Fossem eles os otários monogâmicos, que levam no dedo anular da mão esquerda o "bambolê de otário"; ou fossem eles os otários afeitos ao machismo, que se consideram malandros, mas na verdade são meros "malandro-agulha" (toma no buraco sem perder a linha).

O sentimento de posse e o ciúme não deveriam ser um perigo para um "verdadeiro" malandro "cabeça feita"; que sabe que "ninguém é de ninguém; que cada um faz o que quer com seu corpo", nas palavras do falecido Mestre Leopoldina a respeito de suas relações com as mulheres. Ou seja: Leopoldina não pertencia à nenhuma mulher, não lhes devia "fidelidade conjugal"; as mulheres também não deviam a tal "fidelidade" ao Leo (em oposição à maneira de pensar machista).

Este discurso não é para ser moderninho ou feminista. O discurso existe porque qualquer perspectiva de "posse"

de uma mulher, limita a liberdade do malandro. É semelhante ao caso do macaquinho aprisionado.

O caçador amarra um pedaço de doce dentro de uma cabaça semelhante à do berimbau. A abertura feita na cabaça é larga o suficiente para o macaquinho enfiar a mão dentro da cabaça e pegar o doce. Mas com o doce dentro do punho fechado, a abertura da cabaça não é larga o suficiente para o

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macaquinho retirar sua mão fechada. A cabaça esta amarrada numa estaca fincada no chão. O macaquinho ouve o caçador que, ao longe, vem se aproximando. O macaquinho grita, pula, faz caretas, esbraveja, esperneia. Mas não abre a mão, não larga o doce.

Acaba no zoológico ou coisa pior.

Ora o machista pensa que pode comer todo mundo, mas ninguém pode comer a mulher dele. Nem tampouco comer suas amantes, irmãs, filhas, nem mesmo sua vovó ou mamãe (nem mesmo o papai do machista pode comer a mamãe dele, veja-se a problemática do Édipo, levantada por Freud).

O machista se acha "dono" dessas mulheres, especialmente a "sua" mulher, noivas, namoradas e amantes; e a possibilidade que uma delas possa traí-lo - "côrno!" - é uma fonte constante de preocupação, pois o machista é refém da opinião pública, e em especial a dos outros homens.

No discurso de Laécio Arrudão vemos, imbricados, elementos de "valentia" e de "machismo" que não existiriam na cabeça de um "verdadeiro" Malandro:

O brilho de simpatia nos olho de Laércio Arrudão começou por me ensinar que quem bate é o homem, E manda surra a toda hora e fala pouco. Quem chega tarde é o homem. Quem tem cinco-dez mulheres é o homem - a mulher só tem um homem.(125)

Mas vejamos o que finalmente aconteceu com Paulinho Perna-Torta quando já era o "número um" do submundo paulistano (por volta de 1960), anos depois que conheceu seu mentor, Laércio Arrudão.

E vamos ver, logo em seguida, o depoimento de um

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malandro e capoeirista carioca, o Mestre Leopoldina (1933-2007), sobre sua experiência com as mulheres, e sobre sua espiritualidade,

Diz o malandro paulista, Paulinho Perna-Torta:

Não é mulher bonita, nem gostar o que está me perdendo.Laércio Arrudão, os anos de janela e de Detenção não me ensinaram tudo.Que minas eu tenho e até pivas e naimes das mais finas. Tive filhas de bacanas, nas estranjas.

... E bem pensando, os últimos ataques da polícia não me fizeram nada - tenho pororó sobrando e quando me der a telha mando a malandragem de volta para quem a inventou. Posso viver sem ela.A encabulação maior me nasce de umas coisas bestas, cuja descoberta e matutação a ginga macumbeira de Zião da Gameleira começou a me despertar.

... É que fiz trinta anos e pensei umas coisas da minha vida.

... A gente não é ninguém, a gente nunca foi. A gente some apagado, qualquer hora destas, em que a polícia ou outro mais malandro nos acerte.

... Eu acho que ando muito cansado.

"São Cosme e São damião, Doum...

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Caboclinho da Mata é quem manda. São Cosme e São Damião, Doum...Ô saravá, o povo de umbanda!"

Isto é que o Zião da Gameleira foi me aprontar...

"Olhe lá, seu Caveira,Exú tira fogo do ar...É com sol, e com chuvaExú tá em todo o lugarEh, eh... Eh, ah...Exú tá em todo o lugar"

E os atabaques e as gingas e os pontos da crioulada comiam os terreiros de Zião, até as quatro horas da manhã. E aqueles bate-bocas sobre o bem e o mal.

... Às vezes, penso que é uma onda besta que está me tomando. Desguio-me dela, meto maconha. engulo uns copos.

... Trinta e um anos faço pelo São João. E nem Jonas, nem Irvinho Americano, e nem Laércio Arrudão estarão aqui para uma champanha comigo. (126)

Então, existe, assim como na capoeira (baiana), um "fio-terra invisível" que une a ética da malandragem (carioca, paulista, etc.) ao candomblé, à macumba, às práticas "espirituais" mais diversas.

Paulinho Perna Torta, após atingir o auge do sucesso, é atormentado por dúvidas. Isto nos remete à capoeira de

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Salvador que sobreviveu - "com um fio-terra ligado à religião" -; enquanto a pragmática capoeira carioca das maltas, do século XIX, ligada aos políticos e homens de poder (dos quais, eram guarda-costas), foi desbaratada pela polícia, e seu nome (da capoeira carioca) apagado até mesmo da memória da marginalidade, menos de duas décadas após seu auge.

Laércio Arrudão era um "malandro-valente-capitalista", e Paulinho Perna-Torta um "malandro-valente-marginal" - ambos de São Paulo, em 1960.

O carioca Mestre Leopoldina, poderia ser chamado de "bom malandro", ou um "malandro-alto-astral", aquele que, por possuir determinados talentos como a capoeira e a música, não necessitou se valer da criminalidade para sobreviver e ter grana para curtir.

No entanto, veremos que os discursos, dos paulistas e do carioca, têm muito em comum.

Leopoldina conta, num depoimento (gravado em DVD) em 2005:

Quando eu vivia no Morro da Favela e estava aprendendo capoeira (aprox. em 1953, com uns 20 anos de idade), eu costumava ver todos aqueles malandros com suas mulheres.E cada um tinha seu trabalho. Um trabalhava no furto, outro roubava banco, outro era cafetão; e eles tinham suas mulheres.Todas estas mulheres eram prostitutas.E eu via que quando um deles entrava em cana, as mulheres traíam eles. As vezes o cara ainda estava na "Averiguações" e alguém ia dizer: "sua mulher tá sainda com Fulano de Tal".O cara já saia de cana fumegando.

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Então eu decidi só ter mulher minha, quando tivesse emprego.Porque com o negócio de vender jornal, não dava. Eu podia me apaixonar e me tornar um assassino (de uma mulher infiel). Eu já pertencia àquele lance.

Quando eu comeci a trabalhar no Cais do Porto, decidi que era hora de me arranjar uma mulher. Aí me juntei àquela que iria ser a mãe de meus filhos. Ela tinha uns 14 ou 15 anos de idade.Um dia de manhãzinha eu estava na Central do Brasil e uma malandrinha, de nome Dirlene, chegou com ela. Eu perguntei quem ela era. A Dirlene respondeu que era uma amiga.Nos bebemos um caldo de cana e eu fiz o convite.Ela me disse pra encontrar ela as 8 da noite, no Campo de Santana. Ela era uma preta linda.Aí nos fomos pra minha casa e eu perguntei se ela pegava barriga, porque eu não queria ser pai.Ela respondeu que "Não". Mas aí veio o primeiro, o segundo, o terceiro filho.

Todo este tempo, eu trabalhava na estiva.Aí veio uma amiga dela, a mulher do meu primo, e perguntou se eu deixava elas irem ao baile juntas.Eu respondi que tudo bem.

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Daquele dia em diante, perdi a mulher.Toda noite saía pro baile e deixava as crianças chorando com fome.Aí, começaram as discussões e veio a separação.

Depois da separação, eu me perguntei o que era o amor.E até o dia de hoje, eu me pergunto qual é a das mulheres... quero dizer, qual é a do amor.E, hoje, eu penso que, se aos 15 ou 16 anos, eu já soubesse que eu era assim, eu teria mulher minha bem mais cedo.Porque, naquela época, eu tinha medo de gamar.Mas até hoje, eu nunca me apaixonei.É assim que eu vivo: a mulher vem, eu me acostumo com ela. (127)

Então, as mulheres exerciam forte atração sobre o Leopoldina, desde a adolescência. Mas até ele encarnar a "filosofia da malandragem", ele não se sentia à vontade para ter uma ligação com uma mulher.

Leopoldina diz: "eu tinha medo de gamar". E, se a mulher o traísse na sequência dos eventos, Leopoldina tinha medo de assassiná-la, constrangido pelo modo de ser e agir do ambiente marginal (e machista) no qual vivia.

Quando se separou da "mãe dos meus filhos", que ia pros bailes e só voltava no dia seguinte, entendeu, com o correr do tempo, que poderia se relacionar com outras mulheres tranquilamento, sem sofrer, sem estar preso pelos grilhões da possessividade e do ciúme, pois Leopoldina já estava com a cabeça feita pela filosofia da malandragem.

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Além do entendimento que o ciúme e a possessividade aprisionam a pessoa, existe, também, uma razão histórica para esta postura da filosofia da malandragem.

Durante a construção da filosofia da malandragem, nas décadas de 1920 e 1930, e mesmo nas décadas seguintes, as "mulheres honestas" não saíam a noite, nem frequentavam os bares, os dancings, as gafieiras. Então, os malandros e a ralé do submundo, necessariamente se relacionavam somente com as prostitutas. E, evidentemente, não podiam esperar um relacionamento monogâmico (da parte delas), especialmente porque muitos daqueles caras viviam da grana que as minas faziam na noite. Como consequência, temos a ojeriza do malandro pela monogamia, e também pelo sentimento de posse, e pelo ciúme.

Mas além desta infra-estrutura "psicológica", existe também um aprendizado prático do sexo, que será usado pelo malandro nos relacionamentos com as mulheres "otárias", e também com as "malandras".

Na intimidade, o Malandro coloca em ação seu conhecimento sexual e sensual, muitas vezes aprendido com velhas cafetinas e prostitutas de ilimitada experiência, quando ele ainda era um adolescente. Estas distintas senhoras vestem seu protegido com roupas vistosas, brilhantina no cabelo, e um exagero de perfume; enfeitam-no com muitos anéis, grossas pulseiras, e cordões de ouro; formam o jovem malandreco na prática e na teoria do sexo.

Mas qual o teor deste aprendizado sexual?O ensino básico da prática se refere ao clitóris. Ouvi uma

velha megera escolando um de seus protegidos:"Quem gosta de pau duro é viado; mulher gosta é de

siririca!"Quanto à dialética, o ensino também é radical:

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Pra mulher, verdade não quer dizer nada. A verdade que você diz pra mulher é aquela que ela sonha ouvir. É isto que ela quer, apesar de viver dizendo que quer que você "seja honesto com ela". "Ser honesto" quer dizer "ser otário".

A mesma cafetina, numa mesa de bar da Vila Mimosa, a zona de prostituição do Rio de Janeiro, um dia comentou:

Aquela pose da mulher, é tudo fachada pra enganar otário. E engana. Engana mesmo! Aliás, não podia ser de outra maneira: otário nasceu pedindo pra ser enganado. Mas, no fundo, mulher é tudo histérica. Umas mais, outras menos, mas é tudo histérica. Só sossegam com uma boa pirocada.

Quando eu argumentei:"Mas você disse que quem gostava de pirocada é veado, e

que mulher gostava é de siririca".Um cafetão, já grisalho mas em plena forma, argumentou:

Mas, justamente! Qualquer malandro que se preza sabe disso. Mas depois da siririca, aí vem a pirocada; aquelas borrachadas lá no fundo dos ovários da criatura. Elas gostam...

Saber tranzar mulher, saber tranzar sexo, também é uma coisa valorizada, e até mesmo essencial no mundo da capoeira.

Há alguns anos, houve um Encontro de Capoeira numa respeitada universidade; era um encontro para discutir as mais recentes descobertas acerca da história do Jogo. Capoeiristas e mestres compareceram, todos com uma cara muito séria: era

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um evento importante que sinalizava a "conquista" de uma área - a acadêmica - que anteriormente nem sabia que a capoeira existia.

Inesperadamente, um conhecido mestre pega o microfone e começa a desancar um professor, sentado na platéia, que havia abandonado seu (do conhecido mestre) grupo e, agora, era chefe de sua própria escola.

O jovem professor foi impecavel; ouviu impassível aquele ataque colérico ridículo; inscreveu-se na lista dos que pediam a palavra; esperou sua vez; e, num tom de voz tranquilo, disse que "tudo tinha sido fruto de um mal entendido, eu tenho imenso respeito pelo meu primeiro mestre mas decidi por em prática minhas próprias idéias, etc. e tal", e, assim, no sapatinho, conseguiu desfazer o clima de baixaria.

Quando terminou o evento, ouvi um capoeirista mais velho comentar com o professor:

"Você mandou bem. Parabéns! Este mestre é um coitado... não sabe nem tranzar mulher".

Poderíamos criticar o mestre dizendo que um evento numa universidade não era local para ataque pseudo machão. Mas o argumento usado que desqualificou definitivamente o mestre, apesar de não ter nada a ver objetivamente com o ocorrido, era de outra natureza: "... não sabe nem tranzar mulher".

E o subtexto óbvio: "dele, pode se esperar qualquer babaquice".

Existem, também, malandros vividos e sofisticados, que tiveram contatos com pessoas cultas e/ou de formação acadêmica e, no seu discurso, veiculam propostas onde ressoam ecos desta convivência:

Mulher não tem racional. Ou melhor, tem; mas é um racional da mulher.Por exemplo: uma mulher tem um filho

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homem. Dá os peitinhos pro nenem mamar, vive abraçada com a criaturazinha, murmurando coisinhas doces e tolas no ouvido da criança. É tiro e queda: o otariozinho fica completa e profundamente apaixonado pela mamãe - Freud explica.Aí, ela tem um segundo bacuri, homem também. O principezinho mais velho vai pra escanteio; e a vagabunda ainda tem a cara de pau de exigir: 'você tem que amar e tomar conta de seu irmãozinho mais novo'.Mas se o maridão dela chegar em casa com uma mulher mais moça, dizendo que ela vai ter que 'amar e tomar conta da putinha mais nova', ela sobe pelas paredes e bota o barraco abixo.Mulher não tem compaixão; mulher não tem racional; mulher não tem coerência.

"Mulher não tem compaixão; mulher não tem racional; mulher não tem coerência..."

No entanto, a mulher, na visão da malandragem, não é mais (nem menos) inteligente, ou mais (ou menos) capaz que o homem; apesar de ser muito mais esperta.

Na sociedade dos otários, quando uma mulher bonita se separa do marido, ela é ojerizada pelas suas concomitantes (sic). Até a mulher mais otária é esperta o bastante pra não confiar em mulher (solteira, a procura de marido).

A mulher é uma fortaleza, cheia de segredos e cenários

secretos que só compartilha com outras mulheres e

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eventualmente com um amigo homosexual. A aprendeu a ser esperta durante as muitas gerações em que o pai e o marido - os homens - detinham todo o poder.

E a malandragem, e também a malícia da capoeira, é basicamente isto: a estratégia do mais fraco, face a quem detém o poder. Por isto dizemos que a malandragem e a malícia são estratégias femininas, semelhantes à guerrilha (feminino) face ao exército tradicional (masculino).

No entanto esta fortaleza - a mulher - sabe que tem um ponto vulnerável. Diz o malandro:

Mulher faz esse cú doce todo, pra valorizar o produto ao olhar do otário. Mas é mais que isso: ela sabe que, se cair no melaço de um malandro, seguido de uma boa trepada, ela está perdida para sempre; vira escrava.

Poucos são unanimamente reconhecidos como um "verdadeiro" ou "bom malandro" no seio da marginalidade; e, mais ainda, no seio da malandragem.

Conheci um, nascido e criado no Morro do Andaraí, que dizia que era "do tempo em que Nonô jogava no Andaraí"; do tempo em que se comia gaiabada cascão, em caixa - "... é coisa fina, Iaiá, que ninguém mais acha".

Era conhecido como Everton, mas em outros lugares era chamado de Antenor, ou "seu" Claudio. Mas na intimidade de uma turma de coroas que se reunia num boteco, no alto do Morro do Andaraí, os outros coroas o chamavam de Mister X.

Como muitos outros malandros ele tinha emprego: era enfermeiro no Hospital Geral de Bonsucesso, na Avenida Brasil. Mais tarde foi transferido para o Hospital Pinel, em Botafogo, onde passou muitos anos convivendo com malucos, psiquiatras e psicanalistas.

Mister X se aposentou. Mas para minha surpresa descobri

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que ele tinha, desde sempre, outro emprego, também de enfermeiro, no Pedro Ernesto, um hospital-escola na Tijuca, onde era conhecido por, ainda, um outro nome. Creio que talvez possuísse várias certidões de nascimento e carteiras de identidade diferentes.

Mister X frequentava a umbanda; o candomblé; ia também, em algumas datas, à Igreja Católica; e era um dedicado estudioso do Cardecismo, a doutrina espírita que acredita na re-incarnação, e que a Terra é um "planeta hospital", ou "planeta escola", onde as almas "pouco desenvolvidas" vem aprender, e tentar galgar um maior nível de iluminação e conhecimento. Trata-se de uma explicação simplista mas que explica muitos paradoxos e injustiças, humanas e "cósmicas", que presenciamos todos os dias no nosso planeta.

Mais tarde, quando uma série de fascículos enfocando a Psicanálise - Freud, Jung, Reich, Klein, Lacan, Winnicott - começou a ser vendida em banca de jornal, Mister X não perdia um. Me contou que lia e relia os textos, e depois procurava um velho amigo, médico psiquiatra e psicanalista, do tempo em que Mister X era enfermeiro no Pinel, e então "elucidava várias dúvidas".

Mister X também frequentava uma mesa de bar, no "Petisco da Vila", em Vila Isabel, com médicos do Hospital Pedro Ernesto; vários deles também eram Cardecistas. E, ali, rolavam altos papos médicos e metafísicos, nos quais o velho malandro se excedia.

A malandragem, desde os 1920s e 1930s, sempre se sentiu atraída pelo jargão médico e judiciário; e isto transparece no discurso e, algumas vezes, no "samba de malandro": habeas corpus, dura lex sed lex, ipso facto, eram expressões comuns na década de 1960 quando, através mestre Leopoldina, tomei

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contato com a distinta classe.A atração, e o domínio do jargão médico está bem

exemplificado num samba de Geraldo Pereira, "Na subida do Morro", que "Moreira da Silva comprou, explorando ao máximo o longo breque no meio do samba" (128):

"Aí meti a mão lá na duana, lá na peixeira.Porque eu sou de Pernambuco,cidade pequena porém decente.

Peguei o vargulino pelo abdome,desci pelo duodeno,vesícula biliar,e fiz-lhe uma tubagem.Ele caiu todo ensanguentado.

E as senhoras, como sempre, nervosas:"Meu Deus, esse homem morre, moço!Coitado, ele está se esvaindo em sangue".

"Ora minha senhora,dê-lhe Óleo Canforado,Penicilina,Estreptomicina,Crebiose, Idrasid,e até vacina Salk!"

Então, como vemos, o caso de Mister X com seus conhecimentos médicos e até freudianos, não era uma aberração. Longe disto; estava inserido numa antiga tradição da malandragem.

Mas não foi no "Petisco da Vila", um bar que apregoava ter sido frequentado por Noel Rosa, que gravei um longo

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depoimento de Mister X; mas numa virada de noite, num boteco do Morro dos Macacos.

Parte da pobremática (problemática) da mulher é a questão dos cronosona (cromosoma). Porque o homem tem o X e o Y, mas a mulher tem dois X.Então quando o otário reclama - 'ninguém entende as mulheres!' - é óbvio que é mais uma abobrinha, destas típicas do otário, que a multitude (sic) aceita como fato vero.

É óbvio que todo homem entende a mulher!O que acontece é, na realidade, o contrário: a mulher é que não entende, nem poderia entender, o homem; nem na sua mediocridade, nem na sua grandeza, nem nas suas fantasia nem na sua concretitude (sic); pois não tem o cronosona Y; elas só tem o X.

Além disto, na nossa passagem de um outro plano para o Planeta Terra - e aqui estou me referindo à Doutrina Clássica Cardecista, a qual não acredito cegamente, mas é um racional positivista esplanativo, da melhor qualidade de nossa cultura ocidental moderna -, a mulher é nossa hospedeira desde a concepção, através do coito sexual, até o nascimento da criança, nove meses depois.Então, até mesmo estes manés tiveram mãe; e estiveram ipse litera dentro de uma mulher por nove meses!E vem resmungar que 'ninguém conhece as mulheres'!

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Como é que pode?E minha pergunta não é uma metáfora retórica da Prosódia Semântica. Trata-se do ponto crucial da explanação da pobremática (problemática) da infra-estrutura psico-social do otário, e portanto de toda nossa sociedade capitalista, já que ele - o otário - é a celula mater da referida instituição.Como é que o otário pode afirmar que 'ninguém entende as mulheres'?Eis a questão.

Para responder esta pergunta teremos de nos afastar das lides metafísicas e espiritual do espiritismo, e adentrar nos profundos insight (sic) de Sigmundo Freud a respeito do inconsciente humano.Temos, porém, de levar em conta que Freud não entendia porra nenhuma de mulher. Nem ele nem o Nitzsche. Eram ruins de mulher, coitados. Muito ruins mesmo!O Nietzche vivia batendo punheta por uma tal de Salomé, uma mulher malandra e gostosa do tempo dele. O Freud, além de tudo, ainda ficou vivendo, anos seguidos, com a filha dele - uma tal de Ana -, num ti-ti-ti que ninguém realmente sabe o que era.Mas o que nos interessa é que ele - o Freud - lançou luz sobre a tesão sexual do filho pela mãe; um fato que causou escândalo na sociedade da época dele; época do Ford bigode; época em que o três-oitão (revólver calibre .38, de pouca potência comparado às pistolas contemporâneas) ainda falava alto e

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impunha moral.

A mãe é o primeiro amor, um amor fatal e promísco (promíscuo), de todo cidadão. E o otário não consegue se livrar da falsa mentalidade que a mãe dele era a tal; não quer enxergar que a mãe era uma vadia, "tirando uma" (fazendo de conta) de moça de família, como tantas outras.Então, entre o mar e o rochedo; entre a sacação ultra-uterino (sic) que tem da mulher, e a ilusão que quer manter da mamãe honesta; o otário me sai com essa; 'ninguém comprende as mulheres!'. Trata-se de uma transferência, como qualquer desses manés psicanalistas saberia explicar. O que o otário quer dizer, não é "ninguém entende as mulheres"; o otário quer dizer que "eu não quero entender as mulheres"! "Eu não quero entender que minha querida mamãe é um safada igual as outras". É coisa de otário mesmo.

Mister X também defendia que :

... as diferença entre homem e mulher são cultural, de acordo com o país, de acordo com a grana e a classe social; mas sempre, e desde sempre, tinham a ver com o lance do homem detonar mais de um milhão de espermatozóide numa reles punheta, e a mulher só ter um óvulo por mes, a ainda assim só por uns 30 anos. Por isso é que o homem pode estar com a melhor mulher do

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mundo, mas sempre vai olhar pra gostosa que está passando. Tem um cara que disse que a natureza nos engana pra se perpertuarmos (sic). Então o homem, com aqueles zilhões de espermatozóide disponível, cheio de bala na agulha, trepa pra perpetuar a raça humana. Mas a mulher, que só tem aquele óvulo por mes, trepa com uns e outros por safadeza mesmo; é da natureza delas

Na mesma gravação, Mister X analise o samba "Amélia", como uma chave para o entendimento da "mulher otária, a tal que quer ser dominadora na nossa sociedade capitalista".

Aí vem aquelas vagabundas da classe média e da burguesia e crucificaram a Amélia. Tu manja o samba?:

'Nunca vi fazer tanta exigência.nem fazer o que você me faz;Você não sabe o que é consciência,não vê que eu sou um pobre rapaz.Você só pensa em luxo e riqueza,tudo que você vê, você quer.Ai meu deus, que saudades da Amélia;aquilo, sim, é que era mulher.As vezes, passava fome ao meu lado,e achava bonito não ter o que comer;e quando me via contrariado,dizia: meu bem, que se há de fazer?Amélia é que era mulher de verdade; Amélia não tinha a menor vaidade.'

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A Amélia, paulatinamente, era uma mulher cabeça; dessas que segura a onda de um malandro e bota ele pra cima. Mas pra essas piranhas que posam de madame, a Amélia era, mesmo sem querer e nem ter intenções significativas... a Amélia era um dedo acusando o superficialmente dessas vadias. São tudo consumista; é das otárias que estou falando, e não da Amélia que era mulher de verdade.O pobrema delas, não sou eu que falo, é a própia ciência médica que diagnostica; o problema delas é muita celulite e pouco neurônio.

Aí, eu fui convidado por um amigo para ir num sarau na casa de uns bacanas. Aí, tomei uísque de montão, fiquei inspirado e lancei os meus papos.A madame, dona da festa, se virou para mim e retrucou:"Mas que papo careta! Que papo machista! É óbvio que você é um misógino do mais alto grau! A verdade é que você tem medo das mulheres, voce detesta as mulheres"Ela me lançou essa tese na cara, com aquela atitude belicosa... belicosa ou biliosa?... sei lá; as duas coisas!Me lançou esta tese nos meus cornes, mesmo já sabendo que ela não tinha argumento. Ficou me olhando de cima, cheia de marra, e ficou esperando para eu me aborrecer e engalfinhar na intelectualidade com ela. Ficou só na esperança. Olhei pra ela uma

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temporada e depois dei um sorrizinho; só isso.Eu já sabia o que ia acontecer, por isto em vez de ir embora fui ficando até as altas madrugas quando o maridão, já bebum, se retirou pro seus domínios particulares e adormeceu, e só tinham mais uns três ou quatro convidados, tudo doidão. O som rolando na vitrola, eu tirei a madame pra dançar e até que ela mandava direitinho, e falou, como era de se esperar:- Ai... eu adoro dançar. Nem me lembro quando dancei pela última vez e etc. e tal.Moral da história: quando mais tarde fui mijar, ela entrou pelo banheiro adentro e abocanhou minha pica, eu ainda mijando. Mijei no vestido e, de passagem, fui mijando na cara e até na boca da distinta. Fingi que fui embora, conforme o combinado, ela botou os retardados (retardatários) para suas respectivas residências, e nos encontramos na escada de serviço e fudemos até o raiar do dia nos degraus ao lado da lixeira, só paramos quando as empregadas começaram a sair pra comprar pão.Essas ninas metidas a sabichona são assim mesmo. Querem logo cornear o maridão e dar pro malandro. Claro! Elas sabem que o malandro pensa igual a elas.

Bom... falamos da visão da "filosofia da malandragem" em relação ao sexo. Mas o que dizer da capoeira e da malícia?

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Terão necessariamente um ponto de vista semelhante?Vejamos a roda. Eu vou numa roda com minha namorada

capoeirista, e se ela jogar com 10 caras diferentes, e eu jogar com 10 moças diferentes, não tem problema.

Vejamos, agora, uma discoteca, algo típico das cidades modernas. Se eu dançar com 10 moças diferentes, ou ela com 10 caras diferentes e nenhuma vez comigo; é problema na certa!

Então seria um exagero dizer que o "modelo para relacionamento afetivo-sexual" que a capoeira propõe é igual à visão da filsofia da malandragem. Mas é óbvio que a Capoeira não concorda com a monogamia, nem tampouco com o machista que quer ser o único homem de "suas" mulheres; semelhante ao malandro/sambista, a malícia propõe a diversidade de relacionamentos.

NOTAS:121 SOARES, C.E.L. Capoeira escrava, Campinas, Ed.

Unicamp, 2001, pp.231-232.122 Nestor se refere ao DVD documentário, "Mestre

Leopoldina, o útlimo bom malandro", que realizou junto com Vitor Mazilli e Itapuã Beiramar. Infelizmente o DVD só foi concluído em 2008, após a morte de Leopoldina (2007), e os herdeiros do mestre não entraram em acordo com a companhia que ia distribuir e vender o DVD em todo o Brasil. O DVD, até agora, ficou guardado na gaveta. No entanto Itapuã Beiramar e Rose Lacreta realizaram outro DVD documentário, "Mestre Leopoldina, a fina flor da malandragem" (2005), que já foi exibido várias vezes na TVCultura.

123 ANTÔNIO, João. Leão de chácara. RJ: Civilização Brasileira, 1976, pp.78-79.

124 MATOS, Claudia. Acertei no milhar. RJ: Paz e Terra, 1982, p.43.

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125 ANTÔNIO, João. Leão de chácara. RJ: Civilização Brasileira, 1976, p.78.

126 Ibidem. pp. 100-105127 DVD documentário, "Mestre Leopoldina, o útlimo bom

malandro", op. cit.128 MATOS. Claudia, op.cit..1982, p.195.