5. cajaíba – da árvore à canoa

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5. Cajaíba – da árvore à canoa

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A BA 001 foi construída na década de1950. A sul de Nazaré das Farinhas – fronteira sul do Recôncavo – a estradaentra pelo manguesal a dentro numa zonaonde tradicionalmente se plantavamandioca para, mais a norte, dar de comeraos escravos das grandes plantações.

Fonte:Google M

aps

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A BA 001atravessaValença.

Esta é “a estrada que substituiu os saveiros” , como diz o amigo Vaz Galvão. Esses barcos maiores, cantados ainda por Jorge Amado, não desapareceram de todo – como vimos em Coqueiros de Paraguaçu.

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O comerciantede canoas deBaiacu, tinha-me dito queelas eram feitaslá no BaixoSul, entreValença eCamamu. Fuiperguntar aosmeus amigosde Valença.Um deles, cujo pai tinha sido armador no porto, assegurou-me quenos estaleiros da cidade já não se fazem canoas de vinhático, até porser proibido usar essa madeira que se vai tornando rara. Segundo ele,porém, a sul de Valença, em Cajaíba, ainda há quem as faça.

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Nos estaleiros em Valença, encontram-se aqui e ali restos deprojectos ambiciosos demais, dando de comer ao busano e aoscaranguejos. Caravelas que não chegaram a navegar depois deesgotado o dinheiro para celebrar os 500 anos da “descoberta”.

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Cajaíba – a povoação domanguesal

Aqui as casas melhores têmduas frentes, uma virada àestrada, mais vistosa; outravirada ao mangue,doméstica, desarrumada,lamacenta. Assim, podemser aproximadas tanto pelaágua, na maré cheia, comopela estrada.

Por trás dessas casas, ao pé do morro da igreja, podemos ver a maré asubir por entre os dendezeiros e as roupas a secar na brisa marinhacaracteristicamente morna.

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Nesta zona costeira, logo para o interior do manguesal, as culturasdominantes são o dendê, o craveiro, a piaçaba e a mandioca. Mais para ointerior, encontramos rebanhos de gado zebu a pastar a erva densa –brancos ou malhados. Sempre lentos e misteriosos, lembram a místicada sua Índia original. São óptimas montadas – calmas, possantes.

Zebu carregado de dendê – BA 001

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Segundo narra ahistória, Cajaíba tema sua origem numbando demercenáriosirlandeses queviraram arruaceirosem Salvador. Os governantes àépoca, conta Galvão,terão decidido dar-lhes terras emCajaíba.E por aqui terão ficado, deixando entre alguns habitantes ascaracterísticas marcas fenotípicas, resultantes da mistura com as escravasíndias e as mulheres mamelucas que por aqui encontraram.

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Nossa Senhora do Desterro – em que pensariam os irlandeses…

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O cemitério de Cajaíba, aolado do dispensário, nastraseiras da igreja, inspirou o“vício fotográfico” da Mónicae do Manuel Ribeiro doRosário quando que por látínhamos passado, há anosatrás.

Chão da igreja

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Chegado a Cajaíba, unstranseuntes sugeriram quefalasse com Seu Chiquito, numacasa cujos fundos se perdem porentre as árvores, a lama e oscanais. Fui simpaticamenterecebido pelo filho – Cafú,“como o jogador,” diz ele,vaidoso do seu “apelido”.

O pai tinha partido para “a Ilha” (Itaparica) com o barco grande,entregar uma canoa em Misericórdia.

Era um fim de dia em que a luz já fugia e eu estava mal preparado parao encanto do que me confrontou: ali mesmo ao lado da estrada, entreos pés de piassaba e dendê, numa zona onde a água ainda chega namaré cheia, um tronco gigantesco de madeira amarela de vinhático!

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O vinhático, quando exposto aoselementos, é de um cinzentoacastanhado, mas, Seu Otávioinsistia que se tratava de uma“madeira amarela”.

E, de facto, quando finalmentecheguei à madeira fresca, aíestava essa cor inconfundível;um lindo amarelo de limãocontrastando com o quase pretodas partes molhadas que tinhamsido arrastadas pelo lodo.

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O “xaboque”antecede acanoa. Na mata,já lheesvaziaram o“geral”. Foideixado umanoite ao lado daestrada, e depoistransportadopara o estaleirode ocasiãoboiando nas águas da maré cheia. Como se tivesse uma vocaçãoimanente, será agora “torneado” para dar forma à beleza do objecto final.O torneador já começou a obra, mas feriu-se gravemente e está“encostado” por quinze dias com um subsídio do INSS.

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O xaboque

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O primeiro corte é logo feito na mata,mal a árvore cai. Sem isso não aconseguiriam transportar. As marcasda motoserra usada grosseiramenteainda estão bem nítidas no interior.Quando se feriu, Seu Romão já tinhacomeçado o processo de desbaste.Tem que se tirar toda a madeirasuperficial, de cor branca.Um tronco de, para aí, 20 metros podedar duas canoas e sai ainda muitamadeira. Numa canoa normal, a proa émais larga que a popa (o que dá o

aspecto aerodinâmico), por isso fica para baixo.Esta aqui, como é uma canoa grande, de 11 metros, deve ter sido tiradada parte de baixo do tronco.

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Segundo os entendidos, o vinhático é a madeira idealpara fazer canoas. Mole por dentro, rijo por fora; muitodenso mas leve, o vinhático dispõe-se à perfeição paraser dug-out, como dizem os ingleses. Existem outrasmadeiras localmente, mas nenhuma delas se comparaem adequação à função, porque:

• Pequi – é má, vai para o fundo.• Moanza – é ruim, não dura.• Cedro verdadeiro – racha no sol.• Louro graveto – faz, mas não é bom.• Outicica – durável e bonita (mais que vinhático)

mas difícil de encontrar.• Ingauçú – não tão bom como o vinhático, mas faz-se.• Jiquitibá – dura pouco dentro de água e “Ibama pega”.• Jaqueira e outras árvores de fruto – são pouco direitas.

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Plathymeniareticulata –vinhático amarelo

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Vinhático

Plathymenia reticulata Benth. –Fabaceae-Mimosoideae

O vinhático é uma árvore nativa do Brasil, cresce desde o baixoAmazonas até São Paulo. Encontra-se disperso com uma incidênciamédia de mais ou menos três árvores por acre.A mais antiga área de ocorrência da espécie é na zona centro-norte doestado de Minas Gerais. A sua zona de maior presença hoje, contudo,é no “cerrado” (savana seca) do sul da Bahia e Espírito Santo.

Foto: http://www.arvores.brasil.nom.br/vinhat1/

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Os xaboquesque chegam a Cajaíba vêmde todo ointerior: Gandú,Piau, Birataia,Tamarati eTiolândia. “Istoé madeira que dáem roça decacau.” Agoraque a economiado cacau

colapsou, os donos das terras (alguns deles políticos importantes) vãofazendo dinheiro com a venda das árvores que tinham ficado dafloresta original para fazer sombra para a cultura do cacau.

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O desbaste do “cerrado” é coisa grave de um ponto de vista ecológico– ninguém com quem falámos ignora isso. Todos sabem que as canoasde vinhático têm os dias contados. Mas como são tão duráveis, aindahaverá canoas nestas águas por mais meio século.

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Um lindo pé de vinhático fazendosombra numa plantação de cacaupara o interior de Nilo Peçanha.

O tronco com a casca característicae as sempre presentes bromélias.

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As folhas da árvore são reticuladas, sugestivas da pertença à família das mimosas. As floresbrancas em cacho surgem entre Novembro eDezembro e dão lugar a uma vagem comsementes castanhas escuras com películastransparentes.“Plathymenia reticulata é uma espécie decídua,heliófita e selectiva xerófita, sendo característicade formações abertas de cerrado e de suatransição para as florestas. Conhecidavulgarmente como ‘vinhático’, essa espécie éeconomicamente importante devido à suamadeira de alta qualidade e o seu uso potencialem recuperação de áreas degradadas.”

Lima Braga et al (2007) “Germinação de Sementes de Plathymeniareticulata Benth. (Fabaceae-Mimosoideae) sob Influência do Tempo deArmazenamento”, Revista Brasileira de Biociências 5 (2), pp. 258-260.

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A altura média é entre 6 e 12 metros, mas podeter bastante mais. Quando cresce em bosque, otronco é alto e esguio; quando cresce solitária,tende a abrir copa com ramos mais abaixo.Chamam-lhe vinhático-do-campo, amarelinho,pau-amarelo e pau-de-canela. Com a casca faz-seum corante amarelo e da entrecasca do caule faz-se uma infusão em água fria que se usa paratratamento de processos inflamatórios.Não é o mesmo “vinhático” ou “mogno daMadeira” que se encontrava nessa ilha atlântica eque era exportado para a Inglaterra e Portugal(Persea indica Spern), onde se encontram aindafrequentemente móveis antigos ditos “devinhático”. Esse último é uma planta da famíliado louro.

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Nos últimos cinco anos, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambientee Recursos Naturais) tem vindo a preocupar-se com o crescentedesmatamento do cerrado, resultante da transformação em pasto paragado das velhas plantações de cacau (onde as árvores grandes da anteriorfloresta protegiam o cacaueiro). Já estão identificados mais de 50 pontosde desmatamento em 14 municípios da Bahia. A Delegacia da PolíciaAmbiental de Ilhéus, à pala da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98),tem apanhado nos últimos anos alguns carregamentos oriundos dosdistritos de Santa Luzia, Canavieiras, Arataca, Camacã e Una queestavam a ser transportados para serem trabalhados em locais costeirosonde há serrarias.A madeira exterior do tronco é usadapara muitas outras coisas, por ser leve,muita densa e resistente. Um carpinteirode Ituberá especializou-se em barris paraenvelhecer cachaça.

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Em 2005 e 2006, a Polícia Federal realizou operações com a finalidade dereprimir as serrarias ilegais de vinhático que atuam no município deCamacã, no sul da Bahia. Foram presos proprietários das serrariasclandestinas, inclusive um político da região, acusados de devastar oremanescente da Mata Atlântica. Também foram realizados em 2007-8raids policiais em Jequié, imediatamente para o interior de Valença onde,ao que tudo indica, se continuam a cortar os toscos das canoas de

vinhático.Segundo a polícia o materialapreendido durante as rusgas éentregue a instituições de assistência.Contudo, comentadores em váriosblogs têm alertado para o facto deque também esse material acaba porse juntar ao que vai parar às serrariase estaleiros.Fonte: http://www.dpf.gov.br/DCS/noticias/2006/

Agosto/ 28082006 _opera%E7aoBA.htm

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Em Abril 2009, o Ibama de Vitória da Conquista voltou a realizar umaoperação chamada “Topo de Morro” em que apreendeu 31.571 metroscúbicos de madeira em pranchas e toras, entre estas consideráveisquantidades de vinhático.Em Setembro 2009, oescritório regional do Ibamaautuou uma serraria quecomercializava madeira ilegalno bairro Sarinha, em Itabuna.O cerco vai-se fechando sobreos xaboqueiros e ostransportadores que, a meioda noite, deixam ao lado daestrada os grandes troncos acaminho de realizarem suavocação como canoas.

Fonte: http://www.nucleodenoticias.com.br/2009/04/04/operacao-topo-de-morro-acao-conjunta-do-ibama-policia-civil-de-itapetinga-e-macarani-ba/

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Um grandexaboqueiro, no seutempo mexia sozinhotroncos gigantescoscom a ajuda de umacorda e um par de bois.Os troncos vinham deGandu, no interior, porrio até ao manguesal da

costa. Explica como se fazum xaboque, com a ajuda deum modelo, que lá tem emcasa para esse fim. Nãosomos os primeiros aperguntar e já escreveramuma brochura sobre ele.

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Num dia desol, canoas a seremtorneadassobre umacama deaparas nointerior domanguesal.A daesquerda éum troncopequeno devinhático; ada direita umgrosso cedro.”

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Cerca de um terço da madeirado xaboque vai ser desbastadapelo torneador com a sua enxó.

As aparas vão parar às cozinhasdos vizinhos e servem ainda parapreparar o delicioso camarãofumado (“defumado”) que éindispensável para a boa comidabahiana.

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Em Valença compramos o camarão.

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No meio do fumo do defumadouro, o sinal que ajudará a vender oscamarões.

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Uma das filhas de Seu Chiquito cozecaranguejo na maré baixapara fazer ‘catado’. Os gatos vagueiam porperto à espera dos restos.

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Mãe e filha. As mulheres dos pescadores e carpinteiros gostam de fazereste trabalho aborrecido em conjunto, falando sobre tudo e rindo-sede todos.”

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A BA001 continua para sul a caminho de Nilo Peçanha, onde as festasjuninas têm como principal padroeiro São Pedro Quilombola – santomeu desconhecido!

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Nessas alturasem que aspessoas domanguesal vêmà vila, osvendedoresambulantesapresentam osseus produtosem cima dacalçada.

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Mais a sul ainda, já perto de Ituberá, celebram o S. João Baptista.

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6. Seu Romão, o torneadorNas mãos de Romão,o rude xaboque virauma esbelta canoaatravés de umatécnica com raízeshistóricas profundas.

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“A quem pertence o xaboque quando cáchega?”, perguntei. Mas não há respostaclara.O homem do caminhão tem a receber; oxaboqueiro que organizou a apanha tema receber; os pobres bóias-frias que forampelo cerrado a dentro – contra matos,contra cobras, por essas ladeiras esconsasa cima – têm a receber; o dono das terrastem a receber; o capataz da fazenda tem areceber; outros ainda (carpinteiros,polícias, guardas, burocratas… quemmais?) têm todos a receber.

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Todos estão metidosdentro desse nexo densode dívidas e créditos quepermeia a vida dos que asi mesmo se apelidam de‘os fracos’.

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Nessa madrugada, a galera(parentes e vizinhos) vemajudar o Romão a rolar a peçapara a água.

Lá vem ela pelos canais a dentro– ainda inacabada, com o furodo geral aberto a meter água,grossa, desajeitada mas já canoa– ou melhor, a bem dizer,jangada é o que ela é nessemomento.

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Vem até ao ponto alto da água e aíeles puxam-na para a cama de aparasdeixada pela anterior.

O fumo da motoserra, o arrastarpelas levadas do cerrado, a chuvadurante o transporte de caminhão, o lodo dos canais, queimaram-na. O xaboque chega ali quase preto,feio, inexpressivo.

Mas, ao primeiro golpe do machadode Romão – ainda nessa madrugadaprimeira – revela logo a sua verdade:amarela e límpida, como umdiamante saindo da lama.

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Primeira coisa a fazer: perceber-lhe as formas, avaliardas suas potencialidades. Como adaptar este pedaçode madeira tosca ao esquema espacial que conforma oque deve ser ou não uma canoa? Começa-se pelo bico.

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O bico não é mera forma; é oque permite a condução dacanoa. Como o fundo écilíndrico e a proa elevada paralevantar a canoa da água, é com obico que se pode julgar dosmovimentos dela. Sem ele équase impossível conduzi-la.

Por aí, então, se começa no sentido de estruturar o que vai ser a “boca” da canoa; quer dizer, os lados entre osquais se abre o interior.

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Primeiro desenha-se o bico com a enxó grande e logo a seguir aparte de cima da proa e dos lados. Só depois se esboça a popa.

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A seguir, começa adesenhar-se o fundo.

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O desenho da popa é feito com precisão.

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Mas o xaboqueiro foi ambicioso demais! Deixou pouca madeira na proa.Fica assim, decide Romão, porque os compradores não gostam delascom remendos. Assim ao menos sabem o que compram.

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O “geral” da popa tapa-se no fim com um pedaço qualquer demadeira que por aí haja. Importa pouco.

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O lugar para o banco do meio e a almofada – a tira mais grossa quefica por baixo do banco e que dá força à estrutura. Num futuro, oburaco para o mastro (carringa) será escavado aqui.

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O banco da proa leva uns desenhos geométricos para lhe dar maiselegância.

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O furo serve para medir a grossura, sem isso não é possível julgar do que se podecortar.

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A enxó pequena bem afiadapara os trabalhos mais precisose finos.

Aqui Romão desenha o formato do fundo.

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Desbastar o fundo com o machado.

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Ao fim de muitos anos e commuita arte à mistura, Seu Romão usa o enormemachado com a segurança com que um calígrafo chinêsusa o seu pincel.

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O branco da madeira – isto é, a madeira superficial logo por baixoda casca da árvore – tem de sertirado. É madeira fraca que vaiapodrecer rapidamente.Em alguns casos – como aqui – oxaboqueiro foi excessivamenteambicioso e desenhou a formagrande demais. Talvez a árvore nãotivesse sido tão direita como seriaideal. Mais cedo ou mais tarde acanoa vai precisar de ser reparada;mas, para já, Seu Romão decidedeixar uma ou outra parte dobranco, porque lhe parece que seaguentará ainda por algum tempo.

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FacãoMarteloFuradoraEnxó de duas mãosEnxó de uma mãoEnxó tipo aliviãoMachado eLápis…

Instrumentos de umasimplicidade surpreendente e de folha única…

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“O serrote foi inventado pelo demónio: corta para os dois lados”.O corte limpo da lâmina de folha única é o que assegura que a madeira da canoa resista sem pintura à água (assim a madeira não se empapa) e a todo o género de fungos e parasitas.

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O formato genérico dacanoa e a escolha dovinhático como madeirapreferida estavam já láantes dos portugueseschegarem. Sãopresumivelmente deorigem tupi que, nestaregião, eram grandescanoeiros. Mas astécnicas e osinstrumentos deconstrução que Seu Romão usaencontram as suas raízesna Europa medieval.

Tapeçaria de Bayeux: construindo os barcoscom os quais o Duque Guilhermeconquistou a Inglaterra, no início do século XII.

Cf. Wolfgang Grape (1994) The Bayeux Tapestry. Munich, Prestel.

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Os barcos dosNormandos (de estiloViking) eram feitos detábuas, não de madeiraescavada. Mas as enxós,os machados e as serraseram as antepassadas dasde hoje. Nada disso existiano Novo Continente.

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Primeiro corta numa direcção …golpes certeiros e sempre paralelos.

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Depois, para desbastar a madeira, corta na direcção oposta…

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Depois, limpa com a enxó de duas mãos.

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Finalmente, aparando transversalmente com a enxó pequena, a superfície fica lisa e terminada, com um toque aveludado.

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Depois começa-se o interior, partindo da zona do buraco, para julgar dagrossura.

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Cuidado! Porque a densidade da madeira não é toda igual. Por isso háque julgar com cuidado da grossura dos lados. É isso que equilibra acanoa na água. É um saber fino e, em última instância, Romão sabe fazermas não sabe explicar.

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O dono da terra, com sua carade irlandês, passa por ali e párapara um pedaço de conversa.

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Alivião.

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Com o acabamento da enxó pequena a madeira fica lisa e suave, comum toque que lembra camurça.

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E agora fechar o geral – a madeira mole da zonainterior do tronco.

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Remendo do geralda popa visto de fora. Não épreciso requintes.

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Desenhar os “bigodes” da canoa.

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Finalmente fecha-se o buraco com um toco de madeira.

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Espera-se pela maréalta, quando a águaentra no maguesalaté à borda doestaleiro. Nessaaltura, nós trêsconseguimosfacilmente meter anova canoa na água.

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Flutuando!

No fim, otorneadorbaixa os olhosà altura doslados dacanoa, verificae sorri-se,satisfeito como seutrabalho.

A canoa flutua com os dois bordos à mesma altura da linha da água! Isto,apesar da madeira ter diferentes densidades e, por isso, das paredes seremde grossuras distintas. Tudo feito a olho e sem medidas, conforme otorneador vai aparando a madeira!

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Os instrumentos da profissão.

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E aí vai ela para ser entregue ao Seu Chiquito.

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Arte? Sim é “arte” em mais do que um sentido.No sentido de arte-de-artesão, sem dúvida. Uma arte antiga de saber-fazer;em que as velhas formas fixas se repetem num jogo de adequações a umobjecto nunca univocamente repetível. A capacidade de exercer umatécnica. Por exemplo, sem análises à densidade da madeira, como preverque ela flutuará equilibradamente? E, no entanto, chegado o momento,ela flutua. O sentimento de orgulho no produto final é correlativo aoperigo do falhanço.No sentido de arte-de-artista também, porque há uma procura deperfeição formal. Há um sentido do imponderável, de saber fazer semsaber explicar, de correr risco. Mas há arte-de-artista ainda mais noutrosdois aspectos:(i) o saber que não é preciso acabar demais; o saber julgar que, o que lá

está, está bem assim como está sem ser preciso meter rebiques ouacabamentos;

(ii) o prazer de fazer o trabalho bem feito; o sentimento de que vale apena, apesar de se ganhar mal, fazer aquilo e não outra coisa.

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No ano seguinte, mal eu cheguei, Romão levou-me a ver a canoa queacabara de tornear. Era, realmente um primor: um tronco perfeito de

vinhático de 8,5 metros.

Ele aprendeu aarte com umartesão maisvelho, para quemtrabalhoudurante mais deum ano semganhar nada.

Até que um dia o homem arranjou dois troncos e deu um só para Seu Romão trabalhar. No fim, comparou e disse: “Pronto, agora ‘cê jánão precisa de mim, não. Pode fazer sozinho”.

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Isso foi na época queMarlene veio vivercom ele e tiveram oprimeiro filho dos dois.Nessa altura, ele sabiaque ia ficar por ali equis ter um ofício quelhe agradasse mais doque o trabalho de catardendê que fazia até aí eque era muito perigosoe desgastante. Precisavade algo de mais seguro.Agora, porque a madeira começa a rarear e ele está a ficar com problemasde ossos, está a pensar em voltar às artes da pesca.Marlene com a sua netinha querida. Grande cozinheira, confirmo.

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Para além disso, ultimamente, tantas vezes, a madeira que lhe entregamnão faz jus ao trabalho.

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Com alguma ciência, quase todas as falhas no xaboque são reparáveis.

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Aqui está um cedro verdadeiro (Cedrela)parecido ao que Seu Romão usou para fazer umacanoa para si mesmo. Quem mo mostrou foi umvelho xaboqueiro agora reformado. Está velho enão tem força já para esse tipo de trabalho, que émuito escravo e cada vez mais perigoso.Conforme viajávamos pelos estradões vermelhosde terra batida (as “variantes”) lá para o interiordas colinas que separam a costa do cerrado, ele ia-me comentando as árvores maiores uma auma. “Depois dessa curva aí da estrada havia doiscedros grandes ...”, e lá vem mais uma história.

Conta histórias detalhadas – às vezes tristes, outras vezes cómicas, outrasvezes heróicas – do que se passou aqui e ali, em lugares que eu próprioteria dificuldade em identificar mas onde existiram árvores que marcarama sua vida e onde agora já só existem arbustos.

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Quem ajudou Romão a transportar o seu tronco foi “o pessoal” – os amigos e parentes ali da vizinhança que,mesmo quando ele não pede, aparecem sempre quando eleprecisa que o ajudem a virar mais um xaboque.

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E aí está o tronco lindo decedro verdadeiro que arranjoupara si. Chiquito já lhe tinhadado duas canoas, mas erampequenas, não gostou delas.Esta sim é a seu gosto. Com elavoltará paulatinamente à arteda pesca com as armadilhas queele próprio fabrica.

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As esteiras são feitas com o talo duroexterior da folha do dendezeiro eatadas com fibra de piaçaba. Sãoestas mesmas esteiras que, montadasem pé na lama, funcionam dearmadilha para o camarão.

A caminho da coroa para seremarmadas …

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A canoa que está a fazer para si,chamar-se-á, quando a inscrever naColônia (o sindicato dospescadores)

Canoa dos Amigos

Foram eles que o ajudaram. Porisso, a mãe dele prometeu que, nodia em que ela for à água, compradois foguetes para deitar!

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7. A vida da canoa – Seu ChiquitoSeuChiquito,compra e vende

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Essa aí foi aprimeira canoa deSeu Chiquito. Seu pai lhaofereceu há mais detrinta anos. Ela jáfoi sua três vezesmas agora pertencea um vizinho.

“Para mim, Chiquito é gente boa. Eu preciso de alguma coisa, vou lá. Me ajuda” – diz Seu Romão. Entre os dois há encontros e desencontros mas há uma co-dependência antiga.

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Seu Chiquito falapouco, fala baixomas fala comprecisão.Na verdade,Chiquito sussurracom um sorrisogentil que é maisde olhos que de boca.Sua vida, assim nos disse, foi sempre a ver com mar. A ver compesca e com barcos.O negócio que faz com canoas é um produto secundário das suasactividades marinhas. Transporta canoas para o Recôncavo quandosabe de alguém que quer comprar; mobiliza os serviços de Romãoquando alguém tem um xaboque para tornear.

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Esse é o barco de Chiquito, que o distingue por ser omaior das vizinhanças.Chiquito é um navegador seguro e experimentado. Sai do manguesal pelo Canal do Morro de São Paulo e vai por mar aberto até à Baía de Todos os Santos. Lá fora, no mar, ainda é possível pescar bastante peixe.

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Chiquito teve várias mulheres,com as quais teve mais de 12 filhos que sempre ajudou acriar. É um pai distante masresponsável. Agora vários delese delas moram ao lado de suacasa, no interior do manguesal.A sua actual esposa não temfilhos biológicos mas criou umsobrinho na bonita e simplescasa que partilha comChiquito.Vive lá também um filho dele.Também ela, tem váriosnegócios com os quais vaifazendo um pé de meia. Mulheres em Coqueiros, no Canal

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Herdou umasartes de pesca noCanal (a zona deágua aberta entreas ilhas e omanguesalcosteiro) queexploroudurante muitotempo, masagora está arender menos

peixe. Já não lhe vale o investimento, porque a pesca no Canaldiminuiu muito. Segundo dizem os pescadores, por causa dapoluição causada pela criação em massa de camarão para os lados doGuaibim e pelo crescimento da cidade de Valença.

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O que resta de um canal de manguesal no interior doBairro do Jacaré, Valença.

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Artes de pesca feitas de talo de folha de dendezeiro e cordade piaçaba secando em Torrinha, à espera de seremmontados na lama na próxima maré baixa.

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As poupanças que vaifazendo, Chiquito vaiinvestindo ajuizadamente.Agora compra uma canoa,logo a vende, depois arranjaum xaboque, paga a Romão otrabalho e revende a canoafazendo algum proveito.Aqui temos uma canoa que Chiquito tinha à venda em 2007protegida por uma esteira de talo de dendezeiro, à espera decomprador.As margens de lucro são baixas – entre o que paga a todos osintervenientes na obtenção de um bom xaboque, mais o que paga aRomão e os gastos de transporte, pouco fica no fim.Mas Seu Chiquito é um negociante seguro tanto quanto um calmoe paciente pescador.

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Xaboque – c. 1 500 Reais.Preço do torneador – c. 400 Reaismais favoresVenda – c. 6 000 Reais.dependendo de vários factores.Segundo Romão, essas eram maisou menos as contas da canoa queprimeiro encontrámos, nesse diaem que Cafú nos levou a ver oxaboque.Talvez estivesse a exagerar umpouco no lucro, porque isso nãoincluía agrados, transporte,depósito, crédito a quem acompra (com todos os riscos queisso comporta).

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E aí está ela prontinha, movida pelo filho mais velho de Romão. Por essa altura, já tinha comprador apalavrado.Contrariamente ao negociante de Baiacu, Seu Chiquito não tem nomede explorador na vizinhança. Quem sabe, por isso, é menos rico.

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Um cliente quer uma canoa mais larga e estável. Seu Chiquito pede aPônia e Chico para cortarem uma canoa, meter-lhe uma tábua no meio,levantar os lados e fazer uma nova proa e uma popa elevada. Já não hátroncos grossos como antigamente, por isso, agora, é assim que se obtémuma canoa maior.

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É um jogo de precisão quedepende da força dos punhos.Nem todos têm a força deChico com uma pesadamotoserra na mão.Especializou-se em trabalho dexaboqueiro – tirar o interior dotronco e fazer as formas geraisda canoa com uma motoserra.Mas, quando há precisão,também se presta a estesserviços que exigem uma mãoabsolutamente segura como asua e uma força descomunal.

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A tábua grossa de cedro para meter a meio da canoa também é cortada apunho com a motoserra do Chico em frente à casa dele, montada numaplaca de cimento, já sobre terreno de maré.

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Aí passa essa canoa, uns meses depois, já restaurada de novo epintadinha. Foi difícil fazer a proa nova. Todos querem mostrar-me,porque estão vaidosos.

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Uns anos depois, pousada sobre a lama da maré baixa emValença, ficará assim. Menos elegante, talvez, mas muito útil.Esta voltou há pouco, o isopor cheio de peixe.

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E volta a partir para mais uma jornada.

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Esta canoa foi cortada a través, ficando mais curta. Fizeram-lheuma nova popa com duas tábuas sólidas e reforçaram-lhe os lados.

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O trabalho éárduo, sim, mas agalera ri-se muito,brinca muito unscom os outros e,nos intervalos, a“dominguinha”sempre ajuda. Diz-se assimporque, quando a gente bebecachaça, todos osdias são Domingo!

De facto, nem Chiquito nem Romão bebem cachaça. Faz-lhes malno dia seguinte. Agora uns copitos de cerveja sabem sempre bem!

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E logo a labuta continua ...

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As canoas vãomudando de mãosdurante as suaslongas vidas ao sabordas vidas atribuladasdos donos. O idealde um pescador é tersua canoa.Mas... boa parte dasmais de 100 canoasque saem de Baiacu para a baía, porém, não pertencem aosmarinheiros mas a donos, que as disponibilizam. Seu Bertinho – comerciante local, que não sai para o mar – temmais ou menos vinte canoas em circulação. Pinta-as cor deabóbora, para as distinguir, assim como às portas dos barracos ondeguarda as suas redes e as suas alfaias.

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Assim se divide, então, uma pescaria em Baiacu (em Cajaíba a pescaé mais individual):

Quando a canoa chega, tira-se logo os quinhões para comer; umpara cada tripulante. O resto vende-se e o resultado é divididodesigualmente, dependendo das funções.Quem vende é o mestre e ele fica responsável pelas contas; excepto,está claro, se houver um pescador com mais jeito para negociar, emcujo caso o mestre subdelega.Como quem compra o peixe demora a pagar, só aí uns 5 dias depoisé que o mestre está em condições de distribuir os proventos.

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10% é para o dono da canoa; 20% para o dono das redes; o resto édividido pelos pescadores – a taxa não é fixa e é difícil saber como é quesai de cada vez, porque depende de muitos factores. O mestre recebesempre mais, está claro.

O preço do peixe também é muito variável: um peixe que hoje custa 2 Reais pode vir a custar 15 Reais umas semanas depois. Depende tudoainda da quantidade de peixe apanhado: 15 baldes já é coisa boa.Em suma, uma pescaria vai acabar por render entre uns 70 Reais e uns200 Reais, se tudo correr bem. Quer dizer que, na opinião de Seu Otávio (porque, nestas coisas, não há contas precisas – os factoressão excessivamente variáveis), um pescador passa um dia fora paraganhar, no máximo dos máximos, e com sorte, uns 20 Reais.

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Se pensarmos que as quantias que passam pelas mãos da maioria dospescadores são desta ordem, vemos como é difícil ganhar para ser donode uma canoa. Tendo trabalhado um pouco para alguém na cidade, oufeito uns arranjos quaisquer em alguma parte, poderá acumular-se aí uns500 a 1000 Reais. Com isso já dá para começar. É que o preço de umacanoa depende de muitas coisas.

Uma grande (12 metros em boas condições) pode custar 7000 Reais.Mas as coisas raramente se contam assim. Por isso até, quando Manuelde Baiacu ou o Seu Chiquito de Cajaíba demonstram dificuldade emdar-me cotações claras, não é desconfiança deles.

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É que, realmente, entre o que sepaga logo e a forma como sepaga o resto, há todo um mundode complexidades. Para além dadifícil avaliação de cada aspectosingular da canoa e das artes dapesca. Se o dono se atrasa nospagamentos – e a tentação égrande – a canoa retorna aointermediário e o dono perdetudo. Basta mandar unshomens desprende-la domourão e levá-la para longe. O que já foi pago fica perdido.É tudo uma questão de “força” eo pescador é “fraco”.

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Mas, nestas coisas, não é comum deixar que o assunto chegue a taisextremos. Conhecem-se todos; há espaço para mediação. Está tudo nonegociar e o pescador que se atrasa na prestação, no fim, só tem que pagarmais para não perder tudo; porque esperar que alguém devolva odinheiro depagamentos jáefectuados ... Issoseria esperardemais!Essa aí, novinhaem folha, veio deCajaíba paraBaiacu uns mesesantes. O actual dono pagou um tanto e depois ficou a dever mensalidadesao intermediário que organizou o negócio – entre 50 e 100 Reais ao mêsé comum.

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Elas têmbigodes massão poucopessoalizadas,ao contráriode tantosbarcos poresse mundofora. Mesmoassim, muitasdelas chegama ter nome.

Umas vezes, por capricho do dono, outras vezes por necessidade, porqueé exigido pôr-lhes nome quando são inscritas na Colônia (o sindicatopesqueiro, que tanto apoio dá esta gente).

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Ao fim dodia, o poentecombina-secom as luzesamarelas docais emItacaré.

Essa primeirachama-se“Celebridade”,explica odonoorgulhoso. É que ele não é famoso, mas ela é, porque saiu numa foto da revistaVeja.

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Parece que o dono desta já estava desiludido antes mesmo de se verobrigado a vendê-la.

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Luziana - o nome da filha

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E este, em Salvador e à chuva, quer lembrar-se de toda a família. Na canoa por trás, porém, anuncia-se para os estrangeirosinteressados o número de celular da agência de viagens do dono.

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Estas três já são velhinhas, já passaram por muitas mãos, mascontinuarão a servir por muitos anos.

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Por vezes, à primeira vista,parece até optimismoexcessivo.Mas não, ninguém perde oseu tempo e os seus meiospara algo que não valerá apena.Ela voltará à água por muitosanos ainda.

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8. Salinas – Uma alternativa moderna?Um conhecido em Salvador disse-me que havia quem fizessemoldes de canoas de vinhático e as reproduzisse em fibra de vidro.Fomos procurá-las em Salinas daMargarida – no Recôncavo, portrás da Ilha de Itaparica, onde o Seu António faz canoas de fibrade vidro há 18 anos. Tem doisestaleiros, na cidade e emConceição de Salinas, do outrolado do canal.

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De profissão mesmo, diz ele, éespecialista em garimpo, masaprendeu a fazer canoas de fibra emTocantins. Quando decidiu voltar àterra, continuou a fazê-las. Durantecerca de seis meses ninguém quiscomprar, mas quando foram pescarcom ele e viram como elas seaguentavam bem, aí começaram.

Ele fabrica-as como lhe apetece e depois deixa-as a boiar na praia,mesmo em frente ao atelier. Aí, as pessoas vêem e acabam por ficartentadas e comprar. Os pescadores gostam delas, porque não apanhambusano – “Depois da pesca, em vez de terem que ir limpar a canoa,podem ir tomar uma cervejinha!” Mais ainda, o tratamento contra obusano chega a custar 400 Reais.

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“Puum!!”Salinas é umpacato porto depesca. Tem doishotéis que ficamvazios fora daestação. Agoraque as salinasestãodesactivadaspouco maisemprego há queo da pesca.

Essa sexta feira de fim de Julho era dia de festa – à saída da missa, osfoguetes ecoavam no areal da maré baixa.

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Celebravam-se os “Cinquentaanos da Independência de Salinas”... como município,bem entendido.

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As novas canoas de vários formatosmisturam-se na praia com as canoasde vinhático (“canoa de rio”).

Seu António faz canoas de rio commoldes que tirou de canoas devinhático. Tem um molde de 8 metrose um de 9. Mas os clientes, aqui,preferem canoas de fibra por causa daquilha, já que nesta zona da Baía a água é funda.O problema é que esses formatos aítêm patente e ele já tem três processoscom reclamações de patentes. Espera poder contornar a coisa, senãoo negócio deixará de ser viável.

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As novas canoastêm muitosaderentes emSalinas. São maisbaratas e práticas.António vendeuma “canoa de rio”de 8 metros porentre 3 mil e 4500Reais, dependendo. As maiores, nosformatos comquilha que levam motor, raramente custam mais do que 6 mil ou 7 mil Reais. Quer dizer, uma canoa inteira, com motor e tudo, ficaaí por uns 10 mil Reais – sendo que as maiores que ele faz chegam a custar 20 mil Reais.

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Mas as velhas canoas devinhático nãodesapareceram – de jeitonenhum! Essa aí ainda estánova e terá custado ao donofacilmente mais mil ou doismil reais que uma canoa defibra acabada de fazer.

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Essa é cuidada com muito carinho. Está pintada com as cores de Exú – diabo... mensageiro dos deuses... protector das encruzilhadas.Com duas velas de traquete, é veloz, segura e fácil de manobrar.

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Em frente aoatelier, ascanoasesperamcomprador.“Isto aqui nãose compra a pronto; aspessoas nãotêm dinheiro.”Seu António combina o preço com o comprador e depois o pescador“vai botando dinheiro para a caixinha, sempre que tiver algum.” Ao fim de um ano, ano e meio, leva a canoa com ele. De qualquerforma, se é para dar de comer aos filhos, tem que ter uma canoa, porquenão há outra forma de ganhar dinheiro por aqui. O barqueiro que faz atravessia para Conceição deu-se bem, já lhe comprou três.

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O atelier:diferentes tiposde canoa emváriosmomentos defabricação.

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As canoastêm umacaixa de arna proa e, no caso dascanoas derio, tambémna popa. A caixa de ar é cheia degarrafas derefrigerantefechadas,para boiar, e depois éselada.

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O fundo é duplo e tem cerca de 5 cms. Põem cimento nele, “para nãotorar” quando o mar bate. Se não as reforçasse, o mar podia parti-las. As dele nãopartem, mas já aconteceu um scoonerde fibra partir a meio com o mar.As madeiras que usa para os lados sãomadeiras de lei e têm que ser boas. É que, são as madeiras que funcionamcomo estrutura para o barco nãodobrar.Os lados delas vão ficando mais finospara cima; no fundo, levam 8 ou maisdemãos; no bordo levam para aí umascinco.

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Esta aqui é uma das canoas de rio que ele fez a partir do formato dascanoas de vinhático. Tem oito metros de cumprimento e está a serusada activamente para a pesca há mais de um ano.

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Parecidas – mas falta à de fibra alguma da elegância da abertura do bicode pato da outra. Faltam os bigodes e o friso aerodinâmico.

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Mais fácil de reparar, omaterial também é maisfrágil que o vinhático.Sobretudo, não se moldaà mão humana da mesmaforma.

No interior do manguesal, onde pode havertroncos cortados escondidos na lama, sãomenos seguras que as de vinhático.

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Quem a usou, assegura-nos que ela se comporta mais ou menos da mesma forma que a de madeira.

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O fundo éduplo e comestrutura decimento e oreforçocentral da“banqueira”continuaainda aservir paraescavar acarringa quesegura a vela.

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Aqui os lados não podem ser furados, como nas de vinhático. Fazem-sefuros verticais na estrutura lateral de madeira para segurar o cordame.

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Ao longe, quem as distingue?

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Em Ituberátambém estãoa fazê-las e,quem sabe,até maiselegantes queas de SeuAntónio emSalinas.Mas, com umformato tãoesbelto, serãomesmoseguras faceao poder dasondas?

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O dono desta não resistiu a reproduzir o desenhotradicional dos bigodes. Existirão razões para isso das quaisnão fui informado, apesar de ter perguntado tantas vezes?

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Os estilos diferentes de canoa coabitam hoje num regime de uso emtotal continuidade com uma longue durée que vai buscar as suas raízesnas populações tupi-guarani que ocupavam a costa no século XVI.

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Há quem insista em chamar-lhes ‘angolanas’ porque parece que, lá dooutro lado do Atlântico de onde vieram os escravos, também há canoasde rio com um formato semelhante.

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Há, apesar de tudo, quem ache que continua a valer a pena reparar osvelhos toros de vinhático.

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Este velho gigante aqui,com cerca de 1,5m de largura na zona central,já teve um motor e dosgrandes.

Apesar do estado em que se encontra, há esperançasde que volte às fainasmarinhas.

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Uma enorme moreia, assinala o simpático pescador.

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Navegando no manguesalque voltou a crescer nas velhas salinasabandonadas.

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Algumas dassalinas foramtransformadasem viveiros decamarão –negócio degrandemonta. Os pescadoresprotestaram e, há uns anos,ocorrerammesmo umasmortes

suspeitas. O velho rasto da violência na resolução de conflitos entre“fortes” e “fracos” na Bahia…

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Para o interior, frente ao canal da Ilha, um pescador prepara os munzuáque irá montar no manguesal logo que a maré suba, dentro de cerca deduas horas. A jangada de bambu será arrastada pela canoa de vinhático.

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Quanto mais tempo ainda a canoa de vinhático?

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9. Canoas como média

Aqui se fala das canoas comoinstrumentos de mediação como mundo– extensões da mão do homem.

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A acção humana pode ser vista sob três aspectos:• o aspecto poético – quer dizer, a nossa capacidade para sermos

livres, para agir, para fazer;• o aspecto formal – quer dizer, a nossa sujeição a coisas e forças

que nos são externas;• o aspecto medial (i.e. os “média”) – quer dizer, os meios que

procuramos para agir sobre o mundo, para mediar a contradição última entre liberdade e necessidade.

Uma canoa é ummédia (no sentidoinglês de media, queos brasileiros dizem“mídia”) – isto é,uma canoa é umapotencialização da nossa capacidade de intervenção sobre o mundo.

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Uma amiga contava-mecomo, em criança, eles erammuito pobres. O pai tinhauma canoa em Taperoá e iaà pesca. Morreu cedo. A família dissolveu-se como recasamento da mãe. Ela própria foi criada porparentes.

Vai lembrar-se para sempre do pai com muito carinho. Às vezes,quando se sente sozinha, chora pensando nele. Em criança, ficava o dia inteiro a brincar na rua com o irmãozito, perto de casa,porque não havia comer. Os dias esticavam-se penosamente,prevendo a alegria que os invadiria quando vissem o vulto do paiatravessar o terreiro ao fundo, com o peixe na mão.

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Com uma canoa umhomem pode dar decomer a outraspessoas e, dessaforma, assegura-se dacontinuidade darelação de amor quetem com elas. Teruma canoa ajuda-mea ter uma mulher,filhos e netos –pessoas que meouvem, me respeitam,me confortam.

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A sociabilidade diurna dos amigos e vizinhos (o pessoal, a galera)tem por fundo a incompletude de todos precisarem de um lugarpara onde ir ao fim do dia.

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A canoa é a esperança de transformar a minha liberdade de fazer em coisas que, passando a não ser eu, se reflectem sobre mim:comida que dá vida a outros; casa que nos protege; uma televisão;uma viagem de ónibus para levar uma criança a um hospital; o relógio do avô que a miudita tanto pede para usar.

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Criar um bébé com a ajuda divina: um filho, um neto, um sobrinho.

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Quando eu ajo sobre o mundo, eu sei onde começa a minha acção,mas nunca sei onde ela vai acabar. Há uma enorme ambiguidade nosmédia. Eles têm um poder expansivo.Com uma canoa eu posso montar armadilhas para peixe; apropriar-mede parte do manguesal, que os outros pescadores respeitarão, sabendoque está a ser usado por mim.

A pesqueira de Chiquito no Canal

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O próprio manguesal responde ao meugesto poético, ao meu poder criativo. Masse eu não o souber respeitar, o podercriativo da canoa e do facão com que oexploro, tornar-se-á destrutivo. O gestode mediação, uma vez iniciado, ficarápara sempre irreversível, ambíguo e sóparcialmente previsível – para o bem epara o mal. Conheci em Ponta Grossa um homemde alcunha Mero Peixe, porque uma vezvieram tantos meros (peixe caro) à suarede que a canoa teria afundado se ostrouxesse todos. Pagou logo ali tudo oque devia e foi viver para Salvador poruns anos.

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Conheci outro em Torrinha que,tendo carregado pedra para o piso dasua nova casa, foi apanhado por umatormenta no meio do Canal. A canoaafundou e ele ficou perdido, masdepois ela voltou a cima por terlargado as pedras no fundo. Nãoconseguiu virá-la, mas agarrou-se a elaa noite toda e está aqui hoje paracontar a história.Um dia, TODOS os caranguejos domanguesal em torno a Cairúmorreram.Talvez por causa dosviveiros modernos de camarão emGuaibim … Muita gente sofreu muito;ninguém foi compensado por nada.

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A canoa prolonga-se nasarmadilhas de verga que o meufilho faz para mim; no mariscoque a minha mulher pega namaré baixa; no dinheiroresultante da venda do produto;na secagem do camarão; nocozinhar da comida; no dar à luzfilhos que virão a ser meus namedida em que, com a canoa, eulhes possa dar de comer.

A canoa liga as pessoas ao mundo, por isso também liga pessoas. A mediação reflecte-se sem fim, não só nas coisas como nas pessoas. E, na mesma medida em que o resultado da acção sobre o mundo não éprevisível, também não é quando se reflecte sobre pessoas.

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O meu corpo,o meu ser,adapta-se aoinstrumentonumacontinuidadeinconfundível.Quem aprendeem criança aandar em pénos lados deuma canoa defundo redondo– como esse aí

– nunca mais esquece como é que se faz. Só mesmo de muito jovem seaprendem essas coisas.

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Um dia, porvelho demais,talvez venha acair à água…A canoa temque ser servida– o homem estápreso a ela comuma espécie defidelidadeservo-mecânica.Quem nãoservir os seusinstrumentosserá ferido por eles. A canoa é tanto uma porta para a vida como para a morte.

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Eu tenho que pagar a canoa. A evolução dos preços das canoasacompanha a evolução dos outros preços todos, num nexo localsegundo o qual, sendo o capital escasso, o trabalho nunca chega parapagar o que é devido. Ainda antes de ser pescado, o peixe já pertenceao credor. Quando peço aos pescadores para me venderem o seu peixe,explicam-me que não podem; já está apalavrado.

Canoas velhas e novas – à esperade comprador.

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Tão resistentes,e com uma vidaactiva superiorem média à deum homem, ascanoas são,afinal, efémeras,fugidias,ambíguas. Estãoconstantementea mudar de mão

e raramente chegam a ser totalmente pagas. Num primeiro momento,elas oferecem liberdade ao pescador; mas, porque urge pagá-las,também coarctam a sua liberdade. Diz Seu Otávio: “A pesca é umquebra-galho!”

Invasão nos subúrbios de Salvador

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Mais cedo ou mais tarde, umhomem jovem vê-se na necessidadede se libertar da sua canoa e ir para acidade à procura de empregoassalariado, para poder adquirir oque só o dinheiro compra. E, como insistia K. Woortmann, nonordeste, “a proletarianização e aescravidão se fundem e se expressampelo cativeiro” (1990: 14).

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Muro decela nacadeiadeValença.

O que fascina nas canoas é o elemento poético – isto é, os dotesartísticos e técnicos dos homens; mas finalmente o que se revela é origor do elemento formal – isto é, o dinheiro e as coisas que com ele secompram, que não são dispensáveis para ninguém e que acabam porser perigosas.

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Em quesentido, então,é isto tudo umaeconomiainformal?Num certosentidoburocrático há,de facto, umaténue fuga aocontrole doaparelhoadministrativo

estadual. Mas se nos perguntarmos que é que permite essa fuga logoveremos que é o facto do manguesal ser um bem público. O Estadoabre um espaço de liberdade à gente “fraca”.

Graciosa – casa construída num banco de piassava e lama, entre a estrada e o manguesal.

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Nas cidades, a subsistência depende do acesso ao dinheiro – porpouco que seja – e isso depende do acesso ao trabalho remunerado.No manguesal, parte da subsistência está assegurada pelo manguesal.Isso constitui uma margem de liberdade; uma forma de respirar fundopara quem,de outraforma, se vêobrigado adependerdo cativeiroque é otrabalhoassalariadonãoqualificado.

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O que é a “subsistência”?Os meios que permitema vida.Onde estão os limitesdesses meios? Comotodas as mediações, estaé vaga e alastra-se.Como sobreviver semqualquer acesso a bensde consumo mediadospor dinheiro?Impossível!

… o bilhete de ónibus… o relógio… a máquina de barbear

Interior da mesma casa de sopapo (Graciosa, Taperoá)

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Mais cedoou maistarde odinheiroimpõe-sepor via dodesejo demelhorar ascondiçõesde vida. A sujeiçãoao poderformal do capitalismo está inscrita tanto nas emoções/desejos daspessoas como nas qualidades intrínsecas dos bens tecnicamenteproduzidos – aspirinas, redes, motores, desinfectantes, programas detelevisão, tomates… etc., etc.

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A modernidade éinescapável e irreversível –pelo que a entrada nomundo capitalista étambém irreversível. A casa que agora ameaçaruir foi construída emvolta a um lindo sofá.

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Modernidadee tradiçãocoabitam semcesuras visíveisno porto deValença.

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Como no porto de Salvador em frente ao Forte de São Marcelo.

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No manguesal, o pescador e amarisqueiraobtêm por seupróprio esforçoalguns meios desubsistência quelhes permitemresistir aocativeiro querepresenta otrabalhoassalariado não-qualificado.

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Já sempre alguém cobiçou tudo o que eu possa querer ter. Que (ou quem) é que permite ao pescador e à marisqueira o acesso aomanguesal?

Em 2005, o Bóia Fria(assalariadorural) estáclaro, perdeu as eleições emItuberá. É caroconvencer oseleitores.

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Mudança de casa numa canoa na foz do Rio das Contas, Itacaré.

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O manguesal é umbem público, talcomo ainda é o mar.É a disponibilidadedestes que permiteaos “fracos”encontrarempequenas janelas deliberdade para fugirpor períodos aopoder formalavassalador docapital. O Estadobrasileiro é, afinal, o garante dessasmargens de liberdade.

Jangada na Baía de Todos os Santos

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Jangadas napraia perto deItacaré.

Aqui o mar jáé aberto, jásaímos domanguesal. As canoas defundoredondo nãotêm aestabilidadenecessária parapescar em maraberto.

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Entre a sebe do proprietário e a linha da maré alta:

Há muitos milénios, bem antes dos portugueses chegarem, quenenhuma terra da costa brasileira está deveras devoluta.

Acampamento do Movimento Sem Terra, estrada BA 001 perto de Ituberá

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O manguesal, por ser uma zona marginal entre o mar e a terra – e asdistintas técnicas de exploração destes – continua a constituir um espaçoonde os “fracos” podem ainda negociar a sua presença.

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10. Um ensaio de ergologia – Pósfácio metodológico

Este é um ensaio deergologia – uma velhatécnica da antropologia.

Em vez de começar pelas pessoas – pelo que elas fazem e pelo queelas dizem – a ergologia opta por começar por situar no mundo ascoisas que as pessoas fazem e que, por sua vez, as fazem pessoas aelas. Dizia-se “cultura material”– infeliz expressão, já que tudo ématerial neste mundo, não há outro tipo de cultura.

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Aquelas canoas aboiar nomanguesal daBahia lembrammilhares deoutras canoas emÁfrica, na Ásia,na Oceania...Timor...Não conseguideixar dever/sentir logo ali

“parecenças de família” que me levaram a entrar num jogo de sentidos,um jogo de linguagens.Se eu não tivesse brincado com barcos na juventude, será que me teriafascinado tanto pelas canoas bahianas?

Timor, Tutuala Beach, Dez. 2006

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Esse jogo de sentidos nunca foi privado, portanto, porque dependeu jádo aprender de canoas que eu fizera noutros mundos, com outrasgentes. Esses mundos fazemparte de mim quando memovo na Bahia.Como não existemlinguagens privadas; pensaré necessariamente umassunto social. É um “jogo”:quer dizer, aplicamos regrasa um esquemapredeterminado de peças,no sentido de chegar a umresultado imprevisível.Todas as explicações dependem de outras explicações – não háexplicações fundacionais nem finais: isso é o holismo do significado.

Cacha Pregos, BA – Agosto 2006

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Trata-se de um jogo de caridade interpretativa perante o que ouço.Mas cheio de resistências face ao que já vi e já ouvi antes e face àsegurança dos grandes trilhos que estruturam o meu mundo: “deixafalar”…

“Quando se tem a intenção de falar, é porque se quer romper com esta tácitaunanimidade e penetrar numa relação de entendimento mútuo, quando se afirma o velho e se diz o novo. […] O jogo de linguagem […] repete este movimentoinaugural da linguagem, movimento que, embora interno a ela, está sempre alargandoe corroendo os seus limites.” (Giannotti 62)

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Não tenho a opção deficar fora desse jogo:

“… tenho que me perguntar:como aprendi eu o sentidodesta palavra […]? A partir deque género de exemplos? Emque jogos de linguagem? Entãoserá mais fácil perceber que apalavra tem toda uma famíliade significados.”(Wittgenstein, §77)

“Falou demais”?“O erro está inevitavelmente àespreita, porque só se fala comsentido quando no horizonteestá a possibilidade de sepensar o novo.” (Giannotti)

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“Não é possível ter uma série decrenças em geral, do género que énecessário ter para poder terqualquer crença, sem estar sujeito asurpresas que envolvem crençassobre a validade (correcção) dasnossas próprias crenças.” (Davidson)

É um jogo, no sentido de que éuma actividade, uma forma deviver.

“O conceito de crença [...) é oconceito de um estado de umorganismo que pode ser verdadeiroou falso, correcto ou incorrecto. Ter o conceito de crença é, portanto,ter o conceito de verdade objectiva.”(Davidson)

Maré alta em Baiacu, BA, Maio 2007

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A etnografia é um jogo de linguagem no sentido em que eu entrodentro de um mundo novo que, a partir desse momento, também éum mundo onde eu vivi.Nem todas as entradas são iguais:posso ser turista; posso ser espião daCIA; posso ser investigador médico;posso ser namorado da dona do café;cunhado do padre; negociante dematerial naval; vendedor de cordas…Não existe tal coisa como uma“cultura Outra” à minha espera: todas as entradas têm uma razão,têm uma porta, fazem ecos no nosso ser anterior, remetem parainteresses … interesses limitados por outros interesses.Há um momento em que entro como etnógrafo – não se nota tantono que faço enquanto estou lá mas mais no que faço depois: – istoque vocês leêm.

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Aqui o exercício envolve canoas monóxilas:trata-se de pegar numa classe de objectosfacilmente reconhecível e com algum tipo deapelo que ultrapasse a simplesfuncionalidade local (hipótese comparativa),e situá-lo no mundo humano. Quer dizer,meter em acção o processo de atribuirsentidos humanos ao mundo face a outroshumanos que o partilham connosco.Na etnografia, esses sentidos são de doisgéneros na medida em que resultam de doistipos distintos de triangulação.É importante saber distinguir entre eles,

apesar dos dois tipos de triangulação se interpenetraremnecessariamente já que a própria pesquisa etnográfica é umexercício social.

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Primeiro, tentamos identificar os sentidos que nos são veiculadospelas pessoas que usam e fabricam estes objectos e por eles sãoinformadas (A). Temos acesso a esses sentidos através da relação deintersubjectividade que construímos com estas pessoas face a essesobjectos durante o trabalho de terreno ([A+C]B).É uma relação dinâmica, mutuamente constitutiva, entre oetnógrafo (C), o etnografado (A) e o mundo face ao qual ambos seencontram e do qual esses objectos fazem parte (B).

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A C

B

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Segundo, tentamos identificar os sentidos que resultam daconfrontação da triangulação anterior com o passado daantropologia e das outras ciências. É uma relação igualmentedinâmica e que, a prazo, também pode ser constitutiva (já que amutualidade do trabalho etnográfico é crescente nos dias quepassam) entre o etnógrafo (C), a experiência de terreno (D) e aantropologia (E), no sentido de uma tradição intelectual porrelação à qual o etnógrafo se situa.

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CD

E

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B C D – eixo da aproximação. O etnógrafo (C) apropria-se dacanoa (B) como forma de melhor compreender o terrenoetnográfico em todo o seu holismo (D) – um ideal nuncaplenamente atingível.A C E – eixo do distanciamento. O etnógrafo (C) distancia-se daUniversidade (E) através da relação com o canoeiro (A) e, depois,distancia-se do canoeiro voltando à Universidade. C passa da relaçãohumana intersubjectiva à essencialização da personna autoral.

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Ao estudar canoas (D) eu afecto a antropologia (E); mas tambémalerto o mundo para as canoas, para os canoeiros, para o mangue, paraos peixes e mariscos, para o vinhático, para a Bahia, para o Brasil.A antropologia que temos resulta dos terrenos que a formaram; osterrenos são afectados directamente pela antropologia que sobre eles sefaz. Que melhor exemplo disso que We, the Tikopia?A aparente independência entre D (o terreno) e E (a antropologia) éuma miragem imperial – de facto, existe uma mutualidade constituinteentre a antropologia e o terreno na medida em que os dois se afectamhistoricamente.

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A triangulação local (A B C) e a triangulação distante (CDE) sãoconjugadas pela figura do antropólogo/etnógrafo (C) e a sua deslocaçãofísica e conceptual – jogando entre a personna humana e a personnaautoral.

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O ponto em que tal ocorre é um tempo/espaço determinado – opresente etnográfico – por relação ao qual tudo o que o etnógrafo relateestá indelevelmente situado.No presente caso, as primeiras excursões ao manguesal de Valençaocorreram em 2004, quando explorava o terreno e descobria o BaixoSul. Em 2005 comecei aexplorar o manguesal para ointerior das Ilhas de Boipeba eTinharé. Foi só em 2006,quando descobri a Igreja deBaiacu, no entanto, que a ideiame surgiu de escrever algo sobre canoas. Em 2007-2008, entre Cajaíba eBaiacu, fiz amizade com com Seu Otávio, Seu Romão, Seu Fidele e SeuChiquito (A). Nessa altura, explorei também o Rio Paraguaçu e as suasinesquecíveis margens lodosas na companhia de vários amigos (entreestes o antropólogo Glenn Bowman).

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Referências bibliográficasAlves, André. 2004. Os argonautas do mangue. Incl. E. Samain “Balinese Character

(re)visitado”. Ed. Unicamp, Campinas.Archenave/Sphan, Minist. Cultura. 1990. Património Cultural Naval do Brasil. Brasília,

Banco Central do Brasil.Assoc. Amigos Museu Nacional do Mar. 2005. Património Naval do Brasil. São Francisco

do Sul, SC.Boyer, Dominic. 2007. Understanding Media: A popular Philosophy. Chicago, Prickly

Paradigm Press, n. 30.Davidson, Donald. 2001. Subjective, Intersubjective, Objective. OUP, Oxford.Giannotti, J. A. 1995. Apresentação do Mundo: Considerações sobre o Pensamento de Ludwig

Wittgenstein. Companhia das Letras, São Paulo.Pina-Cabral, João de. 2000. “The ethnographic present revisited”, in Social Anthropology,

8 (3), Cambridge, 341-348.Wittgenstein, Ludwig. 2001 [1953]. Philosophical Investigations. Trans. G. E. Anscombe.

Blackwell, Oxford.Woortmann, Klass. 1990. “Com parente não se neguceia: o campesinato como ordem

moral” Anuário Antropológico, 87: 11-73. Voltar ao início