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5 As Políticas de Propriedade Intelectual do Governo Fernando Henrique Cardoso e a matriz neoliberal de inserção internacional Neste capítulo, dedicamo-nos a examinar as principais ideias, instituições e lideranças que informaram o processo de formulação de políticas de propriedade intelectual no Brasil, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso (1995- 2002). Do ponto de vista ideacional, entendemos que, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, as ideais neoliberais exerceram influência decisiva para a consolidação de determinada concepção do Estado e da economia que repercutiram decisivamente no campo das políticas públicas de propriedade intelectual, mas de diferentes formas. No que se refere à política externa, a tradição das décadas anteriores do vetor ideacional desenvolvimentista no Itamaraty, somada ao processo de aprendizado social pela qual passou a instituição em suas negociações diplomáticas a partir da experiência da Rodada Uruguai do GATT e após o episódio conflito diplomático em torno da universalização do acesso aos medicamentos contra o vírus HIV/AIDS entre 1997 e 2001, contribuíram para que, gradualmente, se consolidasse no MRE a visão de que a propriedade intelectual é tema que exige tratamento diferenciado nas diferentes negociações multilaterais, devido a sua importância para o desenvolvimento econômico e para uma inserção mais competitiva das empresas nacionais na economia internacional. A constatação da natureza transversal e multidisciplinar da propriedade intelectual convenceu aos poucos o Presidente da República e algumas (escassas) lideranças do governo (não comprometidas com as políticas neoliberais), além do próprio MRE, de que ela não poderia ser mais tratada de forma generalista e secundária e que, por sua amplitude e complexidade, demandava tratamento técnico diferenciado, capaz de munir os diplomatas brasileiros de todas as informações necessárias nas negociações internacionais. Isto pressupunha maior

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5 As Políticas de Propriedade Intelectual do Governo Fernando Henrique Cardoso e a matriz neoliberal de inserção internacional

Neste capítulo, dedicamo-nos a examinar as principais ideias, instituições

e lideranças que informaram o processo de formulação de políticas de propriedade

intelectual no Brasil, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-

2002).

Do ponto de vista ideacional, entendemos que, durante o Governo

Fernando Henrique Cardoso, as ideais neoliberais exerceram influência decisiva

para a consolidação de determinada concepção do Estado e da economia que

repercutiram decisivamente no campo das políticas públicas de propriedade

intelectual, mas de diferentes formas. No que se refere à política externa, a

tradição das décadas anteriores do vetor ideacional desenvolvimentista no

Itamaraty, somada ao processo de aprendizado social pela qual passou a

instituição em suas negociações diplomáticas a partir da experiência da Rodada

Uruguai do GATT e após o episódio conflito diplomático em torno da

universalização do acesso aos medicamentos contra o vírus HIV/AIDS entre 1997

e 2001, contribuíram para que, gradualmente, se consolidasse no MRE a visão de

que a propriedade intelectual é tema que exige tratamento diferenciado nas

diferentes negociações multilaterais, devido a sua importância para o

desenvolvimento econômico e para uma inserção mais competitiva das empresas

nacionais na economia internacional.

A constatação da natureza transversal e multidisciplinar da propriedade

intelectual convenceu aos poucos o Presidente da República e algumas (escassas)

lideranças do governo (não comprometidas com as políticas neoliberais), além do

próprio MRE, de que ela não poderia ser mais tratada de forma generalista e

secundária e que, por sua amplitude e complexidade, demandava tratamento

técnico diferenciado, capaz de munir os diplomatas brasileiros de todas as

informações necessárias nas negociações internacionais. Isto pressupunha maior

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qualificação técnica de quadros do Itamarary e o aumento da sua cooperação com

outras áreas do governo.

A criação de uma Divisão de Propriedade Intelectual (DIPI) no âmbito do

Departamento Econômico do MRE, durante a Chancelaria Celso Lafer (2001-

2002), representou um passo importante no processo de aprendizado institucional

do MRE e na institucionalização de uma visão mais estratégica da propriedade

intelectual, como instrumento para o desenvolvimento. Outro evento importante

foi a criação, por intermédio de Decreto Presidencial de 21 de agosto de 2001, do

Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI), ao qual cumpre, entre

outras atribuições, aportar subsídios para a definição de diretrizes da política de

propriedade intelectual, indicar os parâmetros técnicos para as negociações

bilaterais e multilaterais em matéria de propriedade intelectual e manifestar-se

previamente sobre as normas e legislação de propriedade intelectual e temas

correlatos. Foi um fato decisivo para a ampliação do processo decisório da

política externa brasileira de propriedade intelectual para outras agências do

Executivo Federal.258

Apesar da importância material e simbólica desses dois fatos do ponto de

vista institucional, é de se registrar que o processo de aprendizado ao qual nos

referimos foi bastante gradual, já que, tanto o DIPI quanto o GIPI foram

instituições criadas apenas nos dois últimos anos do Governo Fernando Henrique

Cardoso (2001-2002), com a intenção de institucionalizar ideias sobre propriedade

intelectual mais próximas do vetor ideacional desenvolvimentista e não tão caras à

predominante matriz neoliberal. Não houve tempo nem ao menos para o DIPI e o

GIPI operarem de fato e participarem do processo decisório de políticas públicas.

Durante os primeiros anos, a postura do Governo Fernando Henrique

Cardoso foi bem diferente da verificada nos últimos. Empenhou-se o mesmo de

início para que, no âmbito interno, o Brasil se adequasse rapidamente e

disciplinadamente às exigências normativas acarretadas pela Rodada Uruguai do

GATT, por meio da promulgação de uma nova lei da propriedade industrial e uma

258 Neste sentido, ver DA SILVA, SPÉCIE & VITALE (op. cit., pp. 10-11). A criação do GIPI não pode deixar de ser mencionada como um legado relevante da política externa de propriedade intelectual do Governo Fernando Henrique Cardoso. Veremos como sua prática se materializou durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva.

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nova lei de direitos autorais259, alinhadas com os novos (e mais elevados)

patamares de obrigações estabelecidos pelo Acordo TRIPS.260

Identifica-se, durante a maior parte do Governo Fernando Henrique

Cardoso, uma clara ascendência pessoal do Chefe do Executivo sobre a

formulação da política externa e de outras políticas públicas261, de forma a

favorecer, na maior parte das vezes, o insulamento burocrático da tecnocracia

econômica do governo262, à qual deveriam estar submetidas praticamente todas as

demais tecnocracias do governo. Esta orientação presidencial de alinhamento aos

ditames da equipe econômica, responsável pelas políticas monetária e cambial,

não veio a impedir, contudo, que em 1997, outras lideranças do governo, não

monetaristas e de perfil desenvolvimentista-liberal se unissem a lideranças

diplomáticas do MRE, intelectualmente ligadas ao pensamento

desenvolvimentista (em suas mais diferentes vertentes), para engendrar uma

estratégia internacional de defesa da política do Ministério da Saúde de garantia

de acesso à população aos medicamentos genéricos contra o vírus HIV/AIDS. Tal

estratégia ganhou repercussões na esfera internacional e culminou numa 259 Como explicado na Introdução, apesar de termos adotado ao longo do trabalho a expressão “propriedade intelectual”, o foco da pesquisa é a “propriedade industrial”, motivo pelo qual nos reportamos apenas ao processo de promulgação da Lei n° 9, 279, de 14 de maio de 1996 (Lei da Propriedade Industrial) que, registre-se, começou antes do Governo Fernando Henrique Cardoso. 260 A noção de “autonomia pela participação”, presente em FONSECA (1998) é útil para a compreensão deste padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual. Contudo, não quisemos nos aprofundar demais na categorização de alguns analistas de política externa brasileira que adotam como eixo a noção de autonomia para explicar o padrão de inserção internacional do Brasil, em diferentes momentos, consagrando expressões como “autonomia pela distância” (para a maior parte do regime militar, de 1964-1985), “autonomia pela participação” (Governos Fernando Collor de Mello a Fernando Henrique Cardoso) e “autonomia pela diversificação” ou “autonomia pela liderança” (Governo Luiz Inácio Lula da Silva). A razão é que o eixo estruturante de nossa análise é outro: a ideia do desenvolvimento. Remissões tópicas àquelas categorias são apresentadas, mas levando-se em consideração nossa prioridade. A afirmação da autonomia como princípio informador da política externa brasileira remonta à Política Externa Independente dos Governos Jânio Quadros (1960-1961) e João Goulart (1961-1964) e à busca de alternativas ao paradigma americanista vigente desde o período Rio Branco. Ver OLIVEIRA (2005, pp. 87-105). 261 Como esclarece HUDSON (2007, op. cit., p. 39), “a expertise em uma área temática em particular pode ser sinal de que um líder quer deixar sua marca pessoal na política eventualmente escolhida”. É o caso, certamente, de Fernando Henrique Cardoso, que não só por sua formação intelectual, mas também por sua experiência pretérita como Chanceler e Ministro da Fazenda do Governo Itamar Franco logrou imprimir forte influência na formulação de políticas públicas. Como Fernando Henrique utilizou-se sistematicamente do exercício da diplomacia presidencial e também de uma forte ascendência sobre os rumos da política econômica, reputamos sua liderança individual como a de maior peso na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual em seu governo. O apoio dado ao então Ministro Saúde José Serra para o desenvolvimento da política de genéricos contra o vírus HIV/AIDS, contrariando inclusive alguns membros da tecnocracia econômica, é um dos fatos importantes em que o exercício desta liderança se deu de forma clara. 262 Sobre este insulamento, veremos logo em seguida mais detalhes em CASTRO & VALLADÃO (2002) e nos depoimentos de alguns entrevistados.

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controvérsia diplomática de proporções complexas, em termos do leque de atores

e interesse envolvidos, cujo ápice foi a Declaração sobre o “Acordo TRIPS e

Saúde Pública”, na IV Conferência Ministerial da OMC, realizada em Doha, entre

09 e 14 de novembro de 2001.

Nesse contexto, a decisão presidencial pesou na disputa entre monetaristas

e “liberal-desenvolvimetistas” do governo, inclinando-se o Chefe do Executivo

pelos últimos. Não somente a interferência do Presidente, como a de outras

lideranças ajudam a explicar por que foram criadas condições que favoreceram a

formulação de uma política externa de propriedade intelectual mais engajada, a

partir da questão do HIV/AIDS entre 1997 e 2001. A ideia de que era necessário

garantir um amplo acesso às populações dos países mais pobres e em

desenvolvimento aos medicamentos contra o vírus HIV/AIDS, a despeito das

alegações das grandes corporações farmacêuticas transnacionais sobre supostas

violações aos seus direitos de patentes, não foi motivada principalmente ou

substancialmente por indivíduos procurando satisfazer seus interesses egoístas.

Ao contrário, foi amplamente compreendida como de interesse público, mais do

que privado (REICH, 1990, p. 4).263

Esta ideia esteve alinhada com uma determinada concepção de

desenvolvimento, minoritária durante o Governo Fernando Henrique Cardoso e

estranha à ortodoxia neoliberal predominante, por defender uma clara

interferência do Estado no mercado. Apesar de minoritária, como ela logrou

sucesso na questão do HIV/AIDS? Foi essencial que ela fosse aceita entre

lideranças como o próprio Presidente e o Ministro da Saúde José Serra e outras no

MRE que chamaram a atenção da sociedade e mobilizaram expertise e recursos

dentro do governo. Compreender as motivações destas lideranças representa um

dos esforços empreendidos neste capítulo. Entendemos que a experiência da

controvérsia diplomática do HIV/AIDS entre 1997 e 2001 contribuiu para

institucionalizar e motivar um renovado pensar sobre a propriedade intelectual e a

sua relação com o desenvolvimento, tanto na Presidência quanto no MRE, o que 263 Ao tratar do poder das ideias públicas, REICH demonstra que, nos Estados Unidos, as ideias sobre igualdade racial que culminaram na assinatura da Lei dos Direitos Civis nos anos 60, foram apoiadas não porque atendiam precipuamente a interesses específicos de alguns indivíduos ou segmentos da sociedade, mas porque foram percebidas como sendo benéficas para a sociedade como um todo. Os atos oficiais de tomada de decisões – como a promulgação de leis e a afirmação de jurisprudências – foram impregnados pelos movimentos sociais e entendimentos que os moldaram e os motivaram a prosseguir (ibid, p. 4). Na questão do HIV/AIDS entendemos que se passou algo semelhante.

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resultou nas criações do GIPI e do DIPI, além da competência a ANVISA de

participação na concessão de patentes farmacêuticas.264 Mas é preciso

dimensionar corretamente o legado deste episódio.

Apesar de no campo da política externa ser possível constatar um claro e

gradual processo de aprendizado institucional em torno do tema da propriedade

intelectual durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, o mesmo não pôde ser

observado no campo da política industrial. De fato, a prioridade em termos de

poder decisório conferido à (insulada) tecnocracia econômica de orientação

neoliberal repercutiu de forma bastante significativa no Ministério do

Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC)265, acarretando um verdadeiro

estrangulamento da sua autonomia na formulação de políticas, seja em termos

materiais (orçamentários/financeiros) ou ideacionais (pensamento estratégico).

Observa-se no MDIC uma clara subordinação e limitação de suas políticas às de

outros Ministérios e Agências da área econômica, notadamente o Ministério da

Fazenda e o Banco Central. Além disto, a extrema variância dos perfis de sete

diferentes Ministros ao longo de oito anos de governo contribuiu para um claro

processo de descontinuidade e instabilidade institucional no MDIC.266 Este

conjunto de fatores ajuda a explicar as restrições e até censuras às insinuações

sobre política industrial durante o Governo Fernando Henrique Cardoso.267

Decidimos denominar esse fenômeno de “captura ortodoxa”.

264 Sobre a questão da participação da ANVISA na concessão de patentes farmacêuticas, ver DRAHOS (2010, p. 249). 265 O MDIC foi criado em 1999, em substituição ao Ministério da Indústria, Comércio e Turismo, com a missão estratégica de ser um agente do desenvolvimento. Na ocasião de sua criação e da posse do novo Ministro, Celso Lafer, o então Senador Ramez Tebet (PMDB-RS) elogiou a medida afirmando que ela reacendia a esperança de que o país retomaria o caminho do desenvolvimento econômico. Além disso, atentou para a necessidade do governo dotar o país de políticas agrícola, industrial e de habitação. (AGÊNCIA SENADO, 1999). 266 Os Ministros foram: Dorothea Werneck (01° de janeiro de 1995 a 30 de abril de 1996), Francisco Dorneles (06 de maio de 1996 a 30 de março de 1998), José Botafogo Gonçalves (30 de março de 1998 a 31 de dezembro de 1998), Celso Lafer (01° de janeiro de 1999 a 18 de julho de 1999), Clóvis de Barros Carvalho (19 de julho de 1999 a 08 de setembro de 1999), Alcides Lopes Tápias (14 de setembro de 1999 a 31 de julho de 2001) e Sérgio Amaral (1° de agosto de 2001 a 31 de dezembro de 2002). 267 Não se trata de menosprezar os constrangimentos estruturais do regime internacional de propriedade intelectual, nem de negar que as condições da economia mundial durante o Governo Fernando Henrique Cardoso (com as crises asiática, russa e a crise cambial brasileira de 1999) foram menos favoráveis do que durante o Governo Lula para a formulação de políticas de viés mais desenvolvimentistas, como a política industrial. Trata-se apenas de não se satisfazer com esta explicação que credita somente à estrutura a falta de empenho com a formulação de uma política industrial e de buscar nos fatores ideacionais explicações adicionais para possíveis diferenças entre os dois governos. Com efeito, COOPER e PACKARD (1997, op. cit., p. 2) admitem a importância de variáveis estruturais ao afirmar que ideias desenvolvimentistas, por vezes, tiveram ampliada a

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Outra característica presente na tentativa (mal sucedida) do Governo

Fernando Henrique Cardoso de lançar uma política industrial residiu em tentativas

desarticuladas e dispersas de buscar sinérgia com políticas tecnológicas capazes

de estimular o aumento da capacidade de inovação das empresas brasileiras e

voltadas para a liberação da energia potencialmente contida nas empresas. Esta

sinergia é fundamental como forma de impulsionar este potencial (CASTRO &

ÁVILA, 2004, p. 12).

Nesse contexto de desprestígio do MDIC em face da tecnocracia

dominante e da falta de articulação de políticas de estímulo à inovação

tecnológica com a política industrial, não é difícil compreender porque o INPI

seguiu prejudicado nas condições de prestação de seus serviços. Apesar da

existência de projetos de reestruturação do Instituto, em franco sucateamento

desde o Governo Fernando Collor de Mello (1990-1992) - projetos estes que,

inclusive, foram entregues ao MDIC pelos então gestores do INPI, não tiveram

condições de ser adotados, pela pouca receptividade e atenção que receberam.

Escasseavam lideranças no processo de tomada de decisões de políticas

econômicas que fossem comprometidas com políticas industriais e

tecnológicas.268 O INPI, nos últimos anos do Governo Fernando Henrique

Cardoso, experimentou uma tímida tentativa de reestruturação, com poucos

resultados.

Este capítulo está divido em mais seis partes. Na primeira, enfatizamos a

matriz neoliberal de inserção internacional da política externa brasileira, cujo

termo inicial corresponde ao Governo Fernando Collor de Mello (1990-1992).

Refletimos sobre como, durante este governo e o Governo Itamar Franco (1992-

1994), se consolidou uma nova postura da diplomacia brasileira no que tange ao

padrão de inserção nos regimes internacionais, particularmente o regime

internacional de comércio. A busca de credibilidade internacional para a imagem

probabilidade de adoção por governos nacionais em face de condições mais favoráveis da economia mundial, ao passo que, em outros contextos, estas condições foram diminuídas. Mas, assim como HALL, acreditamos que “abordagens estruturais podem nos dizer muito dos constrangimentos que os tomadores de decisão enfrentam, mas a tomada de decisão é baseada tanto na criação, como no constrangimento” (1989, op. cit., p. 361). 268 Mesmo a pressão de setores organizados da indústria, de agentes da propriedade intelectual por meio de suas associações e também de acadêmicos, não foi capaz de sensibilizar os tomadores de decisão e estimular a reestruturação do INPI. Quanto à política industrial, oportunamente re-batizada de “Política de Investimento e de Competitividade” (MENDONÇA DE BARROS & GOLDESTEIN, 1997), críticas das mais diversas ordens também surtiram pouco efeito.

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do país em meio a planos de estabilização econômica e o objetivo de “normalizar”

as relações bilaterais com os Estados Unidos são dois dos fatores que ajudam a

explicar a postura de anuência do Brasil no que se refere à elevação dos patamares

internacionais de proteção à propriedade intelectual, presentes no Acordo TRIPS.

Na segunda parte, destacamos o pensamento econômico de dois dos

principais representantes da política econômica do período Cardoso: Gustavo

Franco e Pedro Malan. Procuramos demonstrar que, não obstante

constrangimentos estruturais, as políticas econômicas do governo foram fruto,

tanto ou mais, de decisões de indivíduos com poder decisório (como os dois

economistas em foco), persuadidos pela aparente adequação das ideias

econômicas neoliberais para lidar com os objetivos identificados como os mais

urgentes da nação: o controle da inflação e a estabilidade macroeconômica.269

Alguns comentários preliminares sobre como operou o aparato institucional de

tomada de decisões de políticas econômicas durante o Governo Fernando

Henrique Cardoso, de forma a oferecer abrigo às ideias dominantes, é outra das

questões abordadas, apesar de seu aprofundamento ser feito apenas um pouco

mais adiante.

A proposta da terceira parte é a de nos concentrarmos na análise das

políticas públicas de propriedade intelectual, a começar pela política externa.

Inicialmente, observamos um movimento claro de adesão incondicional do

Governo Fernando Henrique Cardoso ao novo regime de propriedade intelectual

que se refletiu, inclusive, no reconhecimento de alguns patamares de proteção de

direitos na nova Lei de Propriedade Industrial que ultrapassaram os requisitos

mínimos exigidos pelo TRIPS. Enfatizamos o legado ideacional deixado pelos

Governos Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1994),

presente nas negociações de TRIPS e nas discussões em torno da promulgação da

nova lei da propriedade industrial. A matriz neoliberal de inserção internacional

daqueles dois governos ajuda a explicar o padrão de inserção neutro (acrítico) no

regime internacional de propriedade intelectual. Preocupou-nos também

compreender como o pensamento de Fernando Henrique Cardoso, por intermédio

do exercício da diplomacia presidencial, impactou a formulação da política

269 Alinhados com BARROS de CASTRO & ÁVILA (op. cit., p. 14), entendemos que é possível conciliar estabilidade macroeconômica com políticas industriais versáteis e ágeis. O Governo Fernando Henrique Cardoso empenhou-se quase que exclusivamente com a primeira prioridade.

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externa brasileira de propriedade intelectual. Algumas incoerências e mudanças na

visão do Presidente sobre o papel do Estado e sobre a globalização econômico-

financeira repercutiram na forma como o Brasil definiu sua inserção no regime

internacional de propriedade intelectual.

Ainda no que se refere à política externa, destacamos o processo de

aprendizado social iniciado com a Rodada Uruguai e estimulado pelo embate

diplomático HIV/AIDS, entre 1997 e 2001, que auxiliou na redefinição e no

reposicionamento da propriedade intelectual na agenda de prioridades do

Itamaraty. Entendemos que a tradição do vetor ideacional desenvolvimentista no

MRE teve peso decisivo para a articulação diplomática (bem sucedida) em torno

da questão do HIV/AIDS. Foi também relevante, neste empreendimento, a

atuação de lideranças governamentais não comprometidas com as ideias da equipe

econômica nuclear do Governo (Ministério da Fazenda e no Banco Central). No

plano mais amplo, contudo, a política externa do Governo Fernando Henrique

Cardoso continuou inegavelmente marcada pelo signo do neoliberalismo (SETTI,

2006), em um claro movimento que procurava não conferir importância extrema a

temas que pudessem desestabilizar as relações do Brasil com os países mais

desenvolvidos, sendo o episódio do HIV/AIDS a exceção que confirma a regra.

Esta realidade ajuda a explicar por que, apesar de seu valor emblemático para os

países em desenvolvimento, exerceu efeitos limitados sobre a formulação da

política externa brasileira de propriedade intelectual como um todo, e não resultou

numa revisão ampla de uma agenda complexa por natureza.270

A quarta parte focaliza a política industrial do Governo Fernando Henrique

Cardoso como uma política que, na sua concepção, não procurou incluir as

políticas tecnológicas como uma de suas dimensões prioritárias, nem pretendeu

criar condições favoráveis à produção de inovações pelas empresas brasileiras. A

mesma omissão se verifica em relação às políticas de propriedade intelectual que,

entre outras atribuições, devem ser as encarregadas de conferir um ambiente

institucional e legal seguro para a proteção das inovações, especialmente patentes.

Como não se pensou em estimular as inovações, também não se pensou em

propriedade intelectual. Isto resultou, em grande parte, do já mencionado quadro 270 Mesmo assim veremos que a repercussão do episódio do HIV/AIDS foi bem ampla junto aos atores que compõem a comunidade brasileira de política externa de propriedade intelectual, como ficará demonstrado pelos resultados da pesquisa realizada por meio de questionários. Entrevistados como PARANAGUÁ (2011), contudo, relativizam os méritos da diplomacia brasileira.

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de claro desprestígio do MDIC em face de outros Ministérios e agências

econômicas controlados por lideranças comprometidas com as ideais neoliberais e

obcecadas com a estabilização macroeconômica como panaceia para a resolução

de todos os problemas brasileiros.271

Assim, o máximo que foi possível detectar no Governo Fernando Henrique

Cardoso foi uma tímida insinuação de política industrial, sob a sugestiva alcunha

de “Política de Investimento e de Competitividade” que se fundou na crença de

que as transformações na estrutura institucional deveriam privilegiar as

instituições de mercado (ERBER, 2000). A suposição era a de que se as

instituições funcionassem adequadamente, as estruturas produtivas a elas se

adequariam de modo eficiente (ibid, p. 10). A intervenção estatal tolerada durante

o Governo Fernando Henrique Cardoso foi realizada por meio de instituições

específicas (como o BNDES), através de mecanismos de mercado (redução de

taxas de juros para determinadas atividades ou setores) e sem qualquer perspectiva

da estrutura produtiva (ibid, p. 10).272 Como afirma STIGLITZ (op. cit., p. 128),

“sob o prisma do Consenso de Washington, políticas industriais, por meio das

quais os governos buscam formar a direção da economia, são um erro”. Este foi

um traço característico do pensamento econômico do Governo Fernando Henrique

Cardoso.

Depois de nos debruçarmos sobre a política industrial do Governo

Fernando Henrique Cardoso, nossa proposta é avaliar, na quinta parte, qual foi o

papel conferido ao INPI no âmbito da Administração Pública. O argumento

sustentado é o de que o INPI sofreu um processo de contínua degradação,

refletido na derrocada da qualidade de prestação de seus serviços e na

deterioração das suas condições de trabalho.273 O desprestígio do MDIC refletiu-

se em igual desprestígio do Instituto. Deve-se registrar que este processo teve

início durante o Governo Fernando Collor de Mello. Somente ao final do Governo

Fernando Henrique Cardoso é possível observar uma tênue tentativa de

271 Não se trata de negar à estabilidade macroeconômica a posição de um dos importantes legados do Governo Fernando Henrique Cardoso, mas apenas de questionar seu caráter de “cura para todos os males”. 272 De acordo com ERBER, o regime automobilístico representava bem esse modo de atuação. Foram mobilizados vários instrumentos como tarifas e cotas de importação, incentivos fiscais e crédito do BNDES, sem que houvesse qualquer orientação do Estado sobre a estrutura produtiva desejável (ibid, p. 10). 273 Os indicadores mais flagrantes deste quadro de deterioração se registraram no tempo gasto para a concessão de marcas e patentes, muito acima das médias de outros países.

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revitalização da instituição274 que não produziu resultados substantivos em termos

da melhoria dos serviços e das condições de trabalho, muito menos representou o

início de qualquer mudança paradigmática. Não obstante a existência de projetos

no MDIC com o objetivo de reestruturar o INPI, não estiveram presentes

condições políticas receptivas para levá-los adiante.

Encerramos com uma reflexão sobre o legado ideacional das políticas

públicas do Governo Fernando Henrique Cardoso no campo da propriedade

intelectual. Apresentamos, nesta sexta parte, uma síntese dos principais

argumentos expostos no capítulo, ilustrado em um fluxograma respectivo.

Finalmente, convém apresentar dois esclarecimentos preliminares.

O primeiro deles refere-se ao papel dos economistas na formulação de

políticas públicas (a abordagem que HALL denomina de economic centered), que

enfatizamos ao longo do trabalho. Cabe precisar também, ainda que de forma

pontual, como, na história particular e recente do Estado brasileiro, se deu

efetivamente esta atuação.

Defendemos que a influência do neoliberalismo sobre as políticas públicas

(bem como de qualquer outra corrente econômica) deve passar por vias mais

complexas do que a simples nomeação de economistas com determinados perfis

para postos de decisão política (THÉRET, 1994, p. 49). Significa dizer que:

[...] essa influência não pode ser entendida somente através da análise da circulação das pessoas e das trajetórias pessoais – mesmo que representativas – dos homens, mas deve também ser vista como o resultado de uma circulação de ideias, de uma transferência de representações do campo simbólico, onde elas são “elaboradas”, para os outros campos, onde elas são eficazes enquanto estruturadoras de estratégias e táticas, e mesmo enquanto instituidoras de regras e procedimentos do jogo social. [...] Nunca há [...] simples transferência em um único sentido, mas sempre transformação e trabalho dialético de adaptação ao cabo do qual é difícil distinguir o que é criação própria dos profissionais do saber reconhecido e pura colocação por eles em forma legitimadora de estratégias e de práticas dos detentores políticos (ibid, p. 50).

Uma observação imprescindível a fazer em relação ao trabalho de

THÈRET refere-se ao seu objetivo é examinar o impacto do neoliberalismo sobre

a estrutura do campo político-administrativo de ação das elites estatais na França,

274 Durante o segundo mandato do Governo Fernando Henrique Cardoso foram realizados os primeiros concursos públicos para a contratação de novos servidores, desde a fundação do Instituto, em 1970. No entanto, como será demonstrado, a necessidade de contratação de pessoal era apenas uma entre as tantas prioridades do Instituto, com vistas a sua reestruturação.

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em que, afirma, “o campo de poder do Estado mantém uma relação de

exterioridade com o campo dos economistas” (ibid, p. 49). Na França, a

“transferência de ideias não passa simplesmente pelo duplo pertencimento a esses

espaços de certos profissionais, como talvez tenha sido em compensação, o caso

do Brasil”. Enfim, THÉRET admite que, na França e em outros países275, a

relativa independência que separa o campo de atuação dos tomadores de decisão

estatais do campo de atuação dos economistas profissionais enseja a necessidade

de compreender como funciona o “sistema de translação e tradução” do que é

economia como discurso – as palavras – para a economia como prática – as

políticas públicas.

Neste “sistema”, THÉRET afirma que as “mídias” (imprensa, instituições

de ensino e formação, sindicatos e partidos políticos etc) e os experts econômicos

contribuem para o reconhecimento do interesse estratégico ou tático do discurso

por e para as elites dirigentes, de forma com que o “saber” selecionado já esteja,

como “por encanto”, adaptado às necessidades desse reconhecimento (ibid, p. 50).

Nesse trabalho de mediação, é preciso considerar também o papel exercido pelos

“agentes duplos” que são aqueles em condições de articular os campos do saber

(do discurso) e da prática (da política pública). Os agentes duplos podem

eventualmente buscar investir em um dos campos os recursos tirados do outro, a

fim de ali conquistar posições de proeminência. Eles tendem a manipular sua

inserção ou seu caráter misto, e a função de arbítrio a ela associada, como um

recurso específico para reforçar autonomia do seu próprio espaço, erigindo-o

como instância independente de arbitragem (ibid, p. 50). No Brasil, esta tendência

adquire contornos ainda mais nítidos, em razão do duplo pertencimento de

economistas ao espaço social do discurso (do saber) e ao espaço social político.

Não deixa de existir um “sistema de translação e tradução”. A diferença em

relação a países como a França e os Estados Unidos é a de que, no Brasil, ele é

275 Na França, a ciência econômica esteve atrelada aos cursos de Direito, só conseguindo se autonomizar tardiamente, no final dos anos 50. O recrutamento da classe dirigente, inclusive para as funções de planejamento da economia, foi efetuado não entre economistas, mas entre os graduados pelas chamadas Grandes Escolas, tais como a Escola Nacional de Administração (ENA), Escola Politécnica, Escola Livre de Ciências Políticas etc. Já nos Estados Unidos, a atuação do Estado na economia não implicou a transformação dos economistas em dirigentes políticos. Fatores relacionados às características do sistema político e universitário americano mantêm os economistas fundamentalmente na condição de cientistas ocupantes de cargos acadêmicos. Apesar de trabalharem como consultores governamentais, os economistas não permanecem durante muito tempo em cargos públicos, mesmo porque isto, muitas vezes, é interpretado como sinal de desprestígio em suas universidades (LOUREIRO, 1991).

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fundamentalmente caracterizado pela presença maciça e influente destes “agentes

duplos” (economistas), que tornam o processo de mediação mais hierarquizado a

seu favor e razoavelmente “imunizado” da influência de outras esferas da

Administração Pública, de outras elites profissionais e intelectuais e também da

sociedade organizada de forma geral.276

LOUREIRO (op. cit, p. 1) empreende uma interessante reflexão sobre as

origens históricas do processo social que conferiu aos economistas posição de

destaque no seio das elites político-administrativas do país, o que pode ser

constatado na prática corrente de escolha de Ministros da Fazenda ou Economia,

presidentes e diretores do Banco Central, do Banco Nacional do Desenvolvimento

Econômico e Social (BNDES) e outros, no universo dos economistas notáveis,

que se aproximam, nesta condição, dos grupos políticos de diferentes orientações.

O pressuposto central da análise da autora é o de que a posição de destaque

e influência alcançada pelos economistas no âmbito dos organismos

governamentais no Brasil não é um resultado “natural” decorrente da expansão

das práticas de planejamento econômico que caracterizaram o Estado no período

contemporâneo (ibid, p. 1).277 A presença dos economistas decorre de um trabalho

de grupos e instituições variadas, efetuado ao longo de várias décadas nos meios

acadêmicos e governamentais, “que deu à ciência econômica posição de destaque

na hierarquia das disciplinas universitárias e ao mesmo tempo permitiu aos

economistas ocuparem postos-chave no Governo” (ibid, p. 1).

Enfim, LOUREIRO propõe-se a captar como se deu o processo de

constituição dos economistas como uma elite política específica, e ainda os

mecanismos (também específicos) que lhe forneceram legitimidade e lhe

permitiram assumir uma posição hegemônica no conjunto das elites políticas do

Brasil (ibid, p. 1). Adentrar mais a fundo nos detalhes de sua análise nos desviaria 276 THÉRET ressalta que a atualização política do neoliberalismo, a despeito de sua pretensão à universalidade, se dá de forma diferente em cada país, devido às suas heterogeneidades nos planos culturais, econômicos e políticos. Daí que sua análise dobre a instrumentalização política do neoliberalismo na França não seja válida para outros países, como o Brasil (ibid, p. 50). 277 Como contraponto a esta visão que denomina de simplista, a autora recorda que a ampliação de práticas intervencionistas por parte do Estado em outros países não implicou a atribuição de postos de direção política a economistas, enquanto tais (ibid, p. 1). Vale lembrar que o texto de LOUREIRO foi escrito em 1991, ano em que o Governo COLLOR adotava as reformas econômicas que marcaram o fim do ciclo desenvolvimentista no Brasil. É interessante notar que esta mudança no campo ideacional, contudo, não significou mudança na influência dos economistas na formulação de políticas públicas, muito pelo contrário. Mudou, obviamente, o perfil ideológico dos economistas que passaram a integrar o governo. Mas, enquanto tais, economistas continuaram a ter proeminência na Administração Pública.

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dos objetivos da pesquisa, mas vale registrar, derradeiramente, a originalidade de

seu argumento: a visão dos economistas como participantes de um meio social de

luta material e simbólica e não apenas como um grupo intelectual de ideias

concorrentes (uma espécie de mero repositório ou menu de diferentes tendências)

ou segmento profissional portador de determinadas competências técnicas (ibid,

pp. 1-2). 278

O segundo esclarecimento preliminar é, na realidade, uma premissa.

Assumimos que, durante toda a década de 90 (Governos Fernando Collor de

Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso), uma matriz neoliberal de

inserção internacional reorientou a política externa brasileira e outras políticas

públicas (SILVA, 2005).279 Tal raiz matricial contribuiu para que, não obstante

determinadas nuances e diferenças, se estabelecesse um padrão burocrático

semelhante de tomada de decisões nos três Governos: o aparato institucional do

Estado esteve a serviço da promoção eficaz de uma “linha de política econômica

prioritária, o que contribuiu para consolidar, na fase democrática recente, um

processo decisório excludente e pouco democrático” (PIO, 1995, pp. 8-9). Nos

três governos mencionados, houve uma clara tendência de apresentar as decisões

tomadas pelo seu núcleo burocrático hegemônico – a área econômica, condutora

das reformas estruturais de cunho neoliberal – como sendo de natureza

estritamente técnica, não cabendo maior questionamento do seu processo

decisório (ibid, p. 12). Reforçou-se o insulamento dos economistas nas instâncias

mais estratégicas de tomada de decisões do aparelho estatal.

278 O meio social de luta material e simbólica dos economistas leva em consideração dois espaços sociais diferentes: o das instituições de ensino superior, que produzem os economistas (e diferentes tipos de economistas, que disputam entre si, diferentes tipos de competência ou qualificação) e o espaço do poder – das agências do Governo encarregadas da gestão da economia e das finanças públicas (ministérios, bancos oficiais, empresas públicas, comissões econômicas etc). A disputa pelo monopólio de postos ou posições no Governo que aí se estabelece entre os grupos ou subgrupos (em geral definidos no meio acadêmico das escolas de economia ou centro de estudos e pesquisa) não é, de acordo com LOUREIRO, exclusivamente expressão de interesses materiais ou ideologias distintas. Exprimem também as relações de forças internas ao próprio universo social em que são geradas. (ibid, p. 2). Não entramos no mérito de tentar compreender o universo social de luta material e simbólica dos economistas que ocuparam postos-chave dos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. O trabalho de LOUREIRO serviu-nos para conferir credibilidade ao argumento de que as ideias detidas pelos economistas, que constituem as elites dirigentes, são fundamentais para compreender o processo de formulação de políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil. 279 São inevitáveis, portanto, algumas remissões aos Governos Fernando Collor de Mello e Itamar Franco enquanto estivermos analisando o Governo Fernando Henrique Cardoso. Isto se deve ao fato do período decisivo de negociação do Acordo TRIPS, no âmbito da Rodada Uruguai do GATT, ter se desenvolvido entre1990 e 1994.

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Enfim, no projeto neoliberal implantado a partir do Governo Fernando

Collor de Mello, prevaleceu uma concepção específica de política econômica, em

que quaisquer objetivos relacionados à política industrial e de comércio exterior

estiveram subordinados aos objetivos da política anti-inflacionária e de

estabilização, de início, fracassada (Plano Collor) e, depois, bem sucedida (Plano

Real). A abertura comercial promovida a partir de 1990 foi tomada como mero

instrumento de auxílio no combate à inflação, em detrimento dos que a viam

como possível instrumento de modernização e competitividade, através de política

industrial ativa (RISTOFF, 2008, p. 5). Somente no Governo Luiz Inácio Lula da

Silva, muito em razão de mudanças ideacionais e dos perfis de lideranças, o poder

decisório inclina-se pela segunda opção, sendo convidativo refletir, mais à frente,

se tal mudança foi, até o momento, apenas (ou preponderantemente) de ordem

retórica. No caso das políticas públicas de propriedade intelectual, veremos, há

argumentos tanto a corroborar, quanto a desmentir esta suspeita.

5.1 A Matriz Neoliberal de Inserção Internacional do Início dos nos 90: agonia (mas não morte) do desenvolvimento

Com o triunfo do capitalismo sobre o socialismo soviético, após a queda

do Muro de Berlim, em 1989, e a desintegração da União Soviética, em 1991, as

relações internacionais passaram por um processo de reordenamento, motivado

por três fatores: a ideologia neoliberal, a supremacia dos mercados e a

superioridade bélico-militar dos Estados Unidos (CERVO & BUENO, 2008, p.

456). O processo de globalização contribuiu para a afirmação de uma realidade

econômica marcada pelo aumento do volume dos fluxos financeiros

internacionais, pelo nivelamento comercial em termos de oferta e demanda, pela

convergência de processos produtivos e, finalmente, pela convergência de

regulações nos Estados (ibid, p. 456).

No caso do Brasil, além do reordenamento político do sistema

internacional e do aprofundamento do processo de globalização, o esgotamento do

modelo de substituição de importações no plano interno motivou mudanças no

perfil de inserção internacional do país, cujas premissas orientadoras, de corte

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autonomista, priorizavam uma atuação independente e ativa da política externa no

sistema internacional (HIRST & PINHEIRO, 1995, p. 5).

Fernando Collor de Mello é eleito em 1989, com o tema do novo e do

dinamismo e representando a perspectiva e a necessidade de um Brasil que se

renovasse em todos os sentidos, de forma a continuar sonhando com a

possibilidade de desenvolvimento (OLIVEIRA, op. cit, p. 240). Na percepção do

novo Presidente e das forças que o apoiavam, em um mundo que se renovava com

o fim da bipolaridade ideológica e com a ascensão (e aparente afirmação) dos

Estados Unidos como superpotência vitoriosa, restava ao Brasil uma única opção:

alinhar-se ao campo hegemônico e acatar as diretrizes econômico-financeiras por

ele delineadas (ibid, p. 240). Esperava-se que, com a eliminação das questões

ideológicas280, o mundo iria se concentrar nas questões econômicas, antes

destinadas à segurança, para se voltar para projetos de desenvolvimento (ibid, p.

241). A prioridade para o Brasil deveria ser estreitar sua proximidade e

cooperação com os países mais desenvolvidos, deixando de lado os vínculos com

os países não-desenvolvidos.

Simultaneamente às expectativas no plano doméstico de que o Brasil poria

em marcha um rápido processo de modernização e superação dos obstáculos

criados pela ordem econômica anterior, fortaleceu-se a ideia de que o governo

poderia modificar rapidamente o perfil internacional do país (HIRST e

PINHEIRO, op. cit., p. 6). Entre as tantas prioridades estabelecidas, pode-se dizer

que todas, em seu conjunto, visavam atingir três metas: a) atualizar a agenda

internacional do país de acordo com as novas questões e o novo momento

internacional, 2) construir uma agenda positiva com os Estados Unidos e, 3)

descaracterizar o perfil terceiro-mundista do Brasil (ibid, p. 6). No segundo caso,

destaca-se a vontade de alcançar uma negociação rápida e apaziguadora sobre a

legislação brasileira de propriedade intelectual, tema extremamente sensível, no

280 Além da reunificação da Alemanha e o colapso da União Soviética, vale lembrar a Resolução 678 da Assembléia Geral das Nações Unidas que autorizou, em 1991, forças militares de uma coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos a empregar “todos os meios necessários” para forçar a retirada das tropas do Iraque do Kuwait. Logo após o fim da Operação “Tempestade no Deserto”, o Presidente dos Estados Unidos, George Bush, cunhou a expressão “nova ordem mundial” para retratar as novas realidades da ordem política internacional que parecia surgir. Um ano antes, o Professor John Williamson, do International Institute of Economics, publicou seu influente ensaio “What Washington Means by Policy Reforms?”, responsável, nos anos seguintes, pela consagração internacional da expressão “Consenso de Washington”. Em 1989, Francis Fukuyama proclamou “O Fim da História” (LAMPREIA & SEABRA, 2005, p. 101).

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plano bilateral, durante todo o Governo José Sarney (1985-1990), face às ameaças

realizadas (e cumpridas) de sanções comerciais dos Estados Unidos ao Brasil, por

conta de supostos desrespeitos aos direitos de propriedade intelectual de empresas

norte-americanas.281

LIMA também enfatiza o quanto a “normalização” das relações bilaterais

com os Estados Unidos se tornou uma das prioridades da agenda internacional do

Brasil. Segundo a autora (1995, op. cit, p. 69), o Governo Fernando Collor de

Mello representou uma tentativa de retorno ao americanismo (ou paradigma da

aliança especial), com base em motivações ideológicas e razões pragmáticas. No

plano da ideologia, a autora destaca a crença que se passou a depositar nas

virtudes da estratégia de “modernização via internacionalização”, expressão

cunhada por Adam Przerworski, que contrasta com as estratégias de modernização

baseadas em projetos de desenvolvimento voltados para dentro (ibid, p. 69). Entre

as motivações de natureza pragmática, LIMA destaca o objetivo de remover áreas

de atrito e contenciosos prévios com os Estados Unidos, como em questões

relativas à liberalização comercial e propriedade intelectual (ibid, p. 6).

Com efeito, dois assuntos tiveram importante peso nas negociações

diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, desde o Governo José Sarney (1985-

1990). O primeiro deles refere-se à indústria de informática que, desde os anos 70,

crescera no Brasil de forma protegida da concorrência internacional e com franco

apoio do Estado, na tentativa de superar a situação de dependência em tecnologias

de ponta (CERVO & BUENO, op. cit., p. 433). Durante o Governo Reagan, nos

Estados Unidos, as corporações norte-americanas passaram a exercer pressão para

que o Brasil fosse alvo de investigação e possíveis retaliações comerciais. O alvo

principal era a Lei de Informática (promulgada em outubro de 1984) que,

confirmando a reserva estabelecida desde 1976, determinava o suprimento do

mercado interno de computadores de pequeno porte por produtores e tecnologias

nacionais (ibid, p. 434). Devido à emenda à Seção 301, do Trade Act, aprovada

pelo Congresso dos Estados Unidos também em 1984, o Governo dos Estados

Unidos anunciou, em setembro de 1985, sua disposição de investigar o setor de

281 Vale frisar que este ponto específico da “nova agenda internacional” do Brasil, de desdramatizar as relações com os Estados Unidos, tendo como principal tema a propriedade intelectual, se manteve inalterado e prioritário até o Governo Fernando Henrique Cardoso, não obstante algumas mudanças de rumo na formulação da política externa, entre 1990 e 1995, especialmente durante o Governo Itamar Franco (1992-1995).

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informática do Brasil, sob a alegação que a reserva brasileira constituía uma

prática desleal de comércio. Após uma série de desentendimentos entre os dois

países e reiteradas ameaças norte-americanas de impor sanções, o governo

brasileiro decidiu enviar ao Congresso, um projeto de lei que estabelecia o regime

de direito autoral para programas de computador (softwares), o que agradou os

Estados Unidos (ibid, p. 435). Não obstante, a posição brasileira em relação à Lei

de Informática permaneceu irredutível.282

O segundo ponto sensível na agenda bilateral com os Estados Unidos foi o

das patentes farmacêuticas, não contempladas pela legislação brasileira, então em

vigor. Em julho de 1987, o governo norte-americano iniciou investigação com

base na emenda à Seção 301, o que levou o Presidente Reagan a autorizar

aumentos das taxas impostas aos produtos brasileiros em outubro de 1988

(DRAHOS & BRAITHWAITE, op. cit., p. 136). Pela primeira vez, os Estados

Unidos efetivamente cumpriam as ameaças de retaliação contra qualquer país,

desde o advento da emenda, um sinal significativo do compromisso do setor

privado daquele país com a “causa da propriedade intelectual”. Em julho de 1990,

um negociador brasileiro no grupo de discussão de TRIPS, durante a Rodada

Uruguai, informava ao seu par indiano que estava ali “apenas para observar” (ibid,

p. 136), em uma clara demonstração da postura do governo brasileiro, interessado

em construir o que entendia por uma agenda positiva com os Estados Unidos, a

começar pelo levantamento da sanções comerciais impostas desde 1988.

O Governo Collor representou um projeto de “vôo curto”, interrompido

pela crise ética e política que levou ao impeachment do Presidente, dois anos após

a sua posse (HIRST & PINHEIRO, op. cit., p. 7). No entanto, deixou profundas

marcas no Brasil tanto no que se refere às opções de políticas domésticas, como

no que tange às alternativas de seu perfil internacional (ibid, p. 5). Representou o

momento inicial de adaptação do Brasil à ordem global dos anos 1990 e da

emergência de esforços variados de repensar nosso padrão de inserção

internacional. Deixou como legado a afirmação do ideário neoliberal,

282 De acordo com CERVO & BUENO, os debates nacionais em torno da Lei de Informática serviram para aglutinar a sociedade brasileira contra as pressões norte-americanas. A aprovação da lei de regulamentação dos softwares, em novembro de 1987, impondo restrições à importação de programas com similar nacional, não agradou os Estados Unidos que, contudo, mostraram-se resignados, para não provocar reações de resistência em outros setores de tecnologia de ponta, como o de biotecnologia e da química fina, nos quais o Ministério da Indústria e Comércio aventava impor mais reservas (ibid, p. 435).

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predominante durante toda a década. Isto não significa, contudo, que este ideário

não tenha encontrado muitas resistências. No caso brasileiro, a aceitação plena do

conjunto de valores do projeto neoliberal foi especialmente problemática porque

se chocou “com os valores historicamente hegemônicos entre setores da elite

brasileira [...] de conceber o desenvolvimento como um projeto nacional de corte

industrializante” (LIMA, 1994, op. cit., p. 70).

De fato, no início dos anos 90, foram muitas as controvérsias e polêmicas

que envolviam os meios, acadêmico e diplomático, em torno de qual deveria ser a

nova “ideia-força” a orientar a ação externa do país. O afastamento do poder do

Presidente Fernando Collor de Mello e o hiato do Governo Itamar Franco

contribuíram para tal indefinição (CERVO & BUENO, op. cit., p. 455), assim

como divergências intra-institucionais no Itamaraty.283 Tal momento de polêmica

e reflexão implicou em um fenômeno que é descrito por CERVO & BUENO

283 Apesar de CERVO & BUENO se referirem ao Governo Itamar Franco (1992-1994) como um “hiato”, da mesma forma que VIZENTINI, que afirma que a “Gestão Itamar Franco representa um hiato em uma fase de convergência com a globalização e o neoliberalismo” (2004, p. 152), nossa opinião é a de que tais referências desqualificam e subestimam a importância de um período vital da historia recente do país. Mesmo CERVO & BUENO reconhecem que foi durante o período Itamar Franco que emergiu um forte pensamento crítico em relação à via “da modernização pela internacionalização”, presente nas manifestações de embaixadores como Rubens Ricúpero, Celso Amorim (chanceler do Governo), Luiz Felipe Seixas Corrêa e, principalmente, Samuel Pinheiro Guimarães, então diretor do Instituto de Pesquisa do Itamaraty (ibid, p. 456). Ademais, foi no Governo Itamar Franco que se lançaram as bases do Plano Real que logrou conquistar a estabilização econômica não conseguida pelo governo anterior, fundamental para os avanços das reformas de cunho liberalizante. Foi também durante o Governo Itamar Franco que o pensamento de Fernando Henrique Cardoso começou a ganhar vulto no âmbito da política internacional do país, em um momento em que o Itamaraty, imerso em contradições internas, ainda não conseguia fazer uma leitura razoavelmente homogênea da ordem global. Ao ocupar os cargos de Ministro das Relações Exteriores, entre outubro de 1992 e maio de 1993, e de Ministro da Fazenda, de maio de 1993 a março de 1994, Fernando Henrique Cardoso aumentou seu espectro de influência na área governamental, surgindo como candidato natural à sucessão presidencial. No que tange especificamente à propriedade intelectual, o recrudescimento de posturas desenvolvimentistas na sociedade e a politização do Legislativo durante o processo de impeachment de Fernando Collor de Mello motivaram debates acalorados em torno da Nova Lei de Propriedade Industrial que se discutia no Congresso. Duas posições se esboçaram: a de que a convergência com os Estados Unidos (e com suas proposições para a lei) constituía o caminho para a credibilidade internacional do Brasil; e a de que o distanciamento de Washington asseguraria ao Brasil um espaço de manobra no sistema internacional, vital para a defesa dos interesses nacionais (HIRST & PINHEIRO, op. cit., p. 9). Com os primeiros sinais da estabilização da economia promovida pelo Plano Real, as indicações de credibilidade que começaram a ser emanadas internacionalmente amainaram a politização legislativa e contribuíram para que prevalecesse a opção pela convergência. O Governo Itamar endossou a estratégia do Governo anterior na Rodada Uruguai e flexibilizou sua posição em relação à oposição à inclusão de novos temas, tornando-se um fervoroso defensor da institucionalização do novo regime de comércio internacional (ibid, p. 13). Não por coincidência que as sanções comerciais impostas pelos Estados Unidos no final da década anterior foram suspensas pelo Governo Bill Clinton.

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como “dança de paradigmas” 284; na realidade, a coexistência de três paradigmas

concorrentes: o do “Estado Desenvolvimentista”, o do “Estado Normal” e o do

“Estado Logístico”:

O Estado Desenvolvimentista, de características tradicionais, reforça o aspecto nacional e autônomo da política exterior. Trata-se do Estado empresário, que arrasta a sociedade no caminho do desenvolvimento nacional mediante a superação de dependências econômicas estruturais e a autonomia de segurança. O Estado Normal, invenção latino-americana dos anos 1990, foi assim denominado pelo expoente da comunidade epistêmica argentina, Domingo Cavallo, em 1991, quando era ministro das Relações Exteriores do Governo Menem. [...] A experiência [...] revela que esse paradigma envolve três parâmetros de conduta: como Estado subserviente, submete-se às coerções do centro hegemônico do capitalismo; como Estado destrutivo, dissolve e aliena o núcleo central robusto da economia nacional e transfere renda ao exterior; como Estado regressivo, reserva para a nação as funções da infância social. O terceiro é o paradigma do Estado Logístico, que fortalece o núcleo nacional, transferindo à sociedade responsabilidades empreendedoras e ajudando-a a operar no exterior, para equilibrar os benefícios da interdependência mediante um tipo de inserção madura no mundo globalizado (ibid, p. 457).285

A coexistência desses paradigmas durante a década de 90 teria levado no

Brasil, de acordo com os autores, à agonia do Estado Desenvolvimentista, à

emergência do Estado Normal e ao ensaio de Estado Logístico (ibid, p. 457).286

Cabe, portanto, avaliar como o Governo Fernando Henrique Cardoso

definiu seu padrão de inserção internacional em meio a este contexto de opções de

rumo. A vertente crítica não hesita em qualificar sua estratégia de inserção como

um reflexo de um projeto neoliberal global, cujas influências se encontrariam no

pensamento econômico que reformulou a economia clássica de Adam Smith e

David Ricardo, atingindo o patamar de nova doutrina econômica e política no

final dos anos 70 e início dos 80, com Milton Friedman e a chamada ‘Escola de

Chicago’. Para CERVO (2003, op. cit., p. 17), outro importante componente

merece ser acrescentado: na América Latina, o neoliberalismo teria sido alçado à

condição, mais até do que de uma ideologia, de uma crença ou fundamentalismo

284 Relembramos os comentários apresentados na nota 97. Apesar de estarmos novamente nos referindo, no texto, a “paradigmas”, isto se faz apenas em justiça à categorização de CERVO & BUENO. Na prática, continuamos a enfatizar o que denominamos de “vetor ideacional”. 285 CERVO & BUENO afirmam que o primeiro paradigma teve no Brasil seu protótipo na América Latina e contribuiu para elevar o país ao mais alto nível de desenvolvimento regional; o segundo teve na Argentina o seu protótipo e conduziu o país à crise de 2001, marcada pelo aprofundamento de dependências estruturais e pelo empobrecimento da nação; o terceiro, cujo protótipo foi o Chile, garantiu ao país uma inserção internacional madura (ibid, p. 457). 286 Vale registrar que, em 1994, LIMA já apontava para a necessidade da corporação diplomática enfrentar o desafio de formular um novo paradigma de política externa (1994, op. cit., p. 71).

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típico do fim o século XX. De acordo com o autor, os textos de Cardoso e de sua

equipe, impregnados das expressões como “mudam-se os tempos”, “tempos de

mudança”, revelam um tipo de pensamento que guarda pouco de ciência em seu

bojo e mais uma fé nas fórmulas convencionais do credo neoliberal; fé, sobretudo,

no império do mercado como indutor do desenvolvimento (ibid, p. 17).287 Foi

nesta ideia de mudança que esteve alojado o impulso conceitual de emergência do

Estado Normal, predominante na “Era Cardoso”.

É importante não se perder de vista estas colocações de CERVO, uma vez

que a noção difundida é a de que a ideia do desenvolvimento não integra a agenda

neoliberal (e a do Estado Normal). Não há que se confundir o “desmanche do

desenvolvimentismo” promovido pelos Governos brasileiros na década de 90,

com o desaparecimento da ideia do desenvolvimento. O que ocorreu é que ela

apenas passou a ser apropriada e perseguida de outra forma, não cogitada até

então:

O desenvolvimento não desapareceu no horizonte da política exterior brasileira ao encerrar-se, em 1989, o ciclo desenvolvimentista de sessenta anos. Deixou apenas de ser o elemento de sua racionalidade. A estratégia tradicional foi posta em dúvida porque se supunha que houvesse desembocado na crise do endividamento, da instabilidade monetária e da estagnação econômica dos anos 1980, e que não resistiria diante das transformações da ordem global ao término da Guerra Fria (CERVO & BUENO, op. cit., p. 458, grifamos).288

287 Em artigo publicado na Revista de Política Internacional, em 2001, Fernando Henrique Cardoso, ao apresentar reflexões sobre a política externa do seu Governo, afirmou que ela foi orientada pelos princípios da democracia, estabilidade monetária e abertura econômica. OLIVEIRA (op. cit, p. 255) e CERVO & BUENO (op. cit., p. 459) tecem críticas a estas reflexões. Da constatação de que não se conhecem experiências em que esses comandos tenham servido a Estados maduros como vetores da política exterior, CERVO conclui que a “ideia de mudança” foi responsável, na realidade, por introduzir naturalmente o paradigma do Estado Normal, uma invenção da inteligência periférica do Governo Fernando Henrique Cardoso e de outros governos latino-americanos (ibid, p. 459). Ver CARDOSO (2001a, pp. 5-12). 288 FIORI (2000, op. cit., pp. 23) demonstra, contudo, que, entre 1945 e 1973, época dourada do crescimento capitalista e socialista mundiais, assistiu-se a uma diminuição global da distância entre a riqueza dos “países industrializados” e a dos “países em desenvolvimento”. No caso da América Latina, FIORI acredita que a fragilidade da discussão teórica e das estratégias político-econômicas do desenvolvimento decorreu da mesma ambiguidade encontrada nos clássicos no que se refere à relação entre o Estado, as economias nacionais e os sistemas econômicos e políticos internacionais (ibid, p. 26). Apesar de todos os projetos desenvolvimentistas partirem da defesa explícita de um Estado forte, o problema é que este Estado “foi sempre uma abstração que ora aparecia como construção ideológica idealizada, ora era transformado pela teoria numa dedução lógica ou num mero ente epistemológico requerido pela estratégia de industrialização, sem que se tomasse em conta a natureza das coalizões de poder em que se sustentava” (ibid, p. 26). Essas ideias acabaram sustentando, de acordo com o autor, sobretudo no caso latino-americano, estratégias desenvolvimentistas de natureza extremamente conservadoras, autoritárias e antissociais (ibid, p. 26).

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Portanto, pode-se dizer que, durante a década de 90 (principalmente em

sua primeira metade), o vetor ideacional do desenvolvimento não deixou de se

manifestar, ocasionalmente, em discursos e ações da política externa brasileira.289

Deixou, contudo, de ser um pilar fundamental de sua inserção internacional. O

cenário internacional era o das “grandes unanimidades”, que não conferia

centralidade ao desenvolvimento, mas sim à liberalização econômica, à

democracia, à proteção aos direitos humanos e ao meio ambiente, assuntos então

mais caros às prioridades de agenda dos países desenvolvidos (PINHEIRO, 2004,

p. 58).

Esse cenário contribuiu para que, durante o Governo Fernando Henrique

Cardoso, se consolidasse um padrão de inserção caracterizado pela esterilização

da ideia de projeto nacional e pela crença na abertura comercial e liberalização

econômica como uma estratégia adequada e auto-suficiente para promover a

competitividade da economia brasileira. A estabilização monetária e o controle

inflacionário, logrados pelo Plano Real, permitiram, ao Governo, enfim, afirmar o

objetivo de inserção internacional de espírito liberalizante que, de forma açodada,

impetuosa e desarticulada, havia começado a ser posto em prática pelo Governo

Fernando Collor de Mello.

289 Podemos destacar o pronunciamento de Celso Amorim, na condição de Ministro de Estados das Relações Exteriores, na abertura da 48ª Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1993. Em texto publicado quatro anos depois, em que apresenta e comenta o discurso, AMORIM afirma que a diplomacia brasileira do Governo Itamar Franco esteve voltada para o desenvolvimento do país, para a democracia, guardando um sentido universalista: não teria sido caracterizada por vertentes exclusivas ou excludentes, obedecendo a uma inserção estelar (1997, p. 16). Revela também a preocupação daquele governo com o protecionismo e com os esforços internacionais para que fossem diminuídas ou eliminadas as restrições ao acesso à tecnologia. Durante o período Itamar Franco, podemos mencionar fatos importantes que ocuparam a agenda internacional do Brasil, como a proposta de criação da ALCSA (Área de Livre Comércio Sul-Americana), um contraponto à proposta da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) patrocinada pelos Estados Unidos; e também a tentativa de se discutir uma Agenda para o Desenvolvimento nas Nações Unidas. A atuação destacada do Brasil em algumas Conferências Internacionais, como a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992), a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, 1993) e a Conferência de Cúpula sobre o Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995) são mencionadas por CERVO & BUENO (op. cit., p. 458) como fatos positivos que permitiram ao Brasil manter esporadicamente aceso o objetivo do desenvolvimento.

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5.2 Inserção Internacional, Desenvolvimento e o Pensamento Econômico do Governo Cardoso

Em 1995, a indicação de Celso Lafer (um não-diplomata com bom e

reconhecido trânsito no meio empresarial) para ocupar o cargo de representante do

Brasil na Organização Mundial do Comércio parecia indicar a disposição do

Governo Fernando Henrique Cardoso de reforçar a comunicação entre a

comunidade de negócios do país, em um momento de enfrentamento do desafio

de desenvolver uma estratégia econômica externa que compatibilizasse sua

vocação industrialista com as novas regras do jogo do sistema de comércio

internacional (HIRST & PINHEIRO, op. cit., p. 20), incluídas, entre elas, as do

Acordo TRIPS.

Nosso argumento é o de que este desafio não foi enfrentado, e a vocação

industrialista do país negligenciada, durante o Governo Fernando Henrique

Cardoso. Não obstante ser inconteste, na experiência dos países mais

desenvolvidos (incluídos aí os asiáticos, como Coréia do Sul e Taiwan), o

exercício de uma política externa engajada no fortalecimento da parceria interna

entre o Estado e a Indústria (CUNHA, 1997, p. 353), a opção do Governo

Fernando Henrique Cardoso foi, claramente, no sentido de prestigiar a posição

ortodoxa de sua equipe econômica que não via com bons olhos qualquer

insinuação de interferência estatal (mais ainda, de cunho dirigista) sobre o setor

produtivo industrial. A prioridade foi a inserção rápida, receptiva, acrítica e

cordata nos regimes internacionais, norteadores da governança global, ainda que

isto significasse o sacrifico de políticas de corte nacionalista, entre as quais a

política industrial. Prejudicada a “agenda da indústria”, mais restou também

prejudicada a da propriedade intelectual.

Por que isto ocorreu? Dois traços importantes do processo decisório de

políticas públicas, que começaram a se cimentar no início da década de 90, ainda

durante o Governo Fernando Collor de Mello, nos ajudam a buscar respostas.

O primeiro deles refere-se ao enfraquecimento do Itamaraty no processo

decisório de política externa na primeira metade da década de 90, em razão do

deslocamento das decisões em matéria das finanças externas e da abertura

comercial para as autoridades econômicas que aplicavam diretrizes monetaristas e

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liberais com liberdade e desenvoltura (CERVO & BUENO, op. cit., 456).

Afirmou-se a partir do Governo Fernando Collor de Mello o argumento

tecnocrático de que a eficácia do aparelho estatal na condução das reformas

estruturais dependia do insulamento daquelas elites das pressões dos diversos

setores sociais e, até mesmo, de outras elites estatais (PIO, op. cit., p. 5).290

Consolidou-se um padrão de decisão na dimensão das políticas públicas que se

perpetuou até o Governo Fernando Henrique Cardoso: o de submissão da política

industrial e de outras políticas públicas aos ditames das políticas econômicas de

estabilização e controle da inflação, que tiveram (e tem) no processo de

liberalização comercial sua pedra angular (ibid, p. 9). Em função disto, à presença

constante e tradicional de economistas profissionais em cargos-chave da área

pública, na história republicana brasileira (THÉRET, 1994), soma-se o fruir, por

parte dos mesmos, de uma inédita posição de superioridade insular em relação a

outras elites do Estado e da Sociedade. O prestígio institucional dos economistas

(mais especificamente, da linha neoliberal) nunca esteve tão em alta na esfera

estatal.

O segundo aspecto remete ao exercício do instrumento da diplomacia

presidencial no campo da política externa, ilustrativo da ascendência pessoal e de

pensamento do Presidente Fernando Henrique Cardoso sobre a diplomacia

brasileira, desde que ocupou o cargo de Ministro das Relações Exteriores do

Governo Itamar Franco. Para CERVO, o pensamento e a política do Presidente

nortearam toda a fase de inserção internacional de cunho neoliberal (2003, op. cit.,

p. 16). O afastamento do Itamaraty do núcleo de formulação da política externa,

em favor da presença do Presidente da República, foi um fenômeno que se

manifestou de forma clara no Governo Fernando Collor de Mello (PINHEIRO,

2004, op. cit, p. 56).291 No entanto, a forma impulsiva e até imprudente com que o

Presidente se lançava na discussão de vários temas acabaram por contribuir para

290 Durante o Governo Fernando Collor de Mello, mudanças na política industrial com vistas à abertura comercial e outras alterações macroeconômicas foram feitas por meio de decreto, sem consulta à sociedade ou ao Congresso (NOGUEIRA, op.cit., p. 51; PIO; op. cit; p. 6). O trabalho de PIO fornece detalhes importantes do trajeto da estrutura institucional de articulação de interesses entre o Estado e a Sociedade desde o Governo Fernando Collor de Mello até o Governo Fernando Henrique Cardoso. 291 LAMPRÉIA & CRUZ JR (op. cit., p. 109) afirmam, contudo, que a tendência do exercício da diplomacia presidencial remete ao Governo José Sarney (1985-1990).

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minar a credibilidade de seu governo.292 Foi somente com o Presidente Fernando

Henrique Cardoso que a diplomacia presidencial foi significantemente

desenvolvida. O Presidente envolveu-se pessoalmente nas conferências

internacionais e negociações bilaterais e multilaterais de uma forma sem

precedentes, em comparação a qualquer um de seus predecessores (LAMPRÉIA

& CRUZ JR, op. cit., p. 109). A diplomacia presidencial foi utilizada ao longo da

gestão de Fernando Henrique Cardoso, entre outras coisas, como um instrumento

para incrementar relações de alto nível junto aos países industrializados

(PINHEIRO, 2004, op. cit., p. 64).293 Durante o seu primeiro mandato (1995-

1998), o Presidente realizou um total de 59 viagens presidenciais; vintes e duas

delas aos países europeus, vinte e duas ao continente americano e cinco aos países

asiáticos (DANESE, 1999).294

A diplomacia presidencial sofreu várias críticas que indicam que a

materialização de suas iniciativas foi precária e não conseguiu superar a limitação

diplomática do Brasil, decorrente da redução da margem de manobra do país

frente à globalização e o abandono da noção de projeto de desenvolvimento

(SILVA, op. cit., p. 11). Marco Aurélio Garcia, futuro Assessor para Assuntos

Internacionais do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, denunciou, em 2001, o

que descreveu como um cenário melancólico, em que a diplomacia presidencial

tentou resolver, por meio da retórica, o vazio deixado pela crise do projeto

nacional na política externa (GARCIA, 2001, p. 7). Amado Cervo chega a afirmar

que, para o Presidente e sua equipe econômica, os interesses nacionais se diluíram

na ordem tecida pelo ordenamento multilateral das relações internacionais (2003,

292 Vale recordar o episódio de viagem aos Estados Unidos do Presidente, em janeiro de 1990, antes mesmo de sua posse. Na ocasião, o Presidente Collor anunciou intenção de modificar a lei de propriedade industrial em vigor e de atender as reivindicações norte-americanas em relação às patentes. Ministro da Economia do Governo Collor, Marcílio Marques Moreira afirma que este episódio é exemplo que ilustra o estilo do Presidente Collor anunciar e fazer mudanças: de uma maneira muito ousada, audaz, imprudente, talvez (2001, p. 239). Todas as dificuldades posteriores que se sucederam na discussão legislativa da nova lei, promulgada apenas em 1996, demonstraram que não bastavam os desejos impulsivos do Presidente para se atingir os objetivos do governo. 293 A noção de diplomacia presidencial vai além das funções tradicionais exercidas pelo Presidente em seu gabinete (como as ratificações de Tratados) e envolve sua ativa participação em conferências e negociações internacionais. Estas últimas sempre estiveram tradicionalmente reservadas aos diplomatas, delegados oficiais e Ministros das Relações Exteriores. Mas em países da Europa e nos Estados Unidos, esta concepção minimalista jamais foi levada em consideração e o papel do Presidente (ou do Primeiro Ministro) e de seus principais assessores sempre foi crítico, se não predominante, no processo de tomada de decisões em política externa (LAMPRÉIA & CRUZ JR, op. cit., p. 109). 294 O trabalho de DANESE (1999) é, provavelmente, o mais amplo e esclarecedor existente no Brasil sobre o exercício da diplomacia presidencial. Ver também PRETO (2006).

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op. cit., p. 18). Quanto à política exterior, tornou-se “conceito fora de moda, mero

ornamento da ação do Estado, visto que não se lhe consignava mais a realização

de interesses concretos” (ibid, p. 18). Por isso mesmo que, na Era Cardoso, “o

Itamaraty trocava amiúde de ministro ou mantinha por vários anos quem não

manifestasse vontade forte ou pensamento próprio” (ibid, p. 18).295 Sérgio

Danese, no entanto, faz uma avaliação mais positiva do exercício da diplomacia

presidencial: ela teria contribuído para organizar a ação diplomática, como

elemento que lhe dá coesão e sentido (DANESE, op. cit., p. 26). 296 O autor

defende que uma fórmula genérica para que o Brasil fale no exterior, defendendo

os seus interesses, com voz firme e serena, deve passar por uma boa combinação

tendo, de um lado, uma diplomacia tradicional de princípios, axiomas e

parâmetros que assegurem à política externa brasileira ser um instrumento sólido

e confiável de promoção externa do interesse brasileiro e, de outro, uma

diplomacia presidencial bem concebida, usada com sentido de economicidade e

sem preconceitos ou exageros que a diminuam como instrumento de política

internacional do Brasil (DANESE, 2009, p. 144).

Podemos afirmar sinteticamente que, no plano diplomático, Fernando

Henrique Cardoso conseguiu esvaziar o Itamaraty de suas funções, uma vez que

este representava um foco de resistência do pensamento nacional-

desenvolvimentista.297 O Presidente transferiu as atribuições econômicas do MRE

295 Não há como deixar de identificar esta passagem como uma crítica contundente e direta ao Ex-Chanceler Luiz Felipe Lampréia, que ocupou o cargo de Ministro das Relações Exteriores, de janeiro de 1995 a janeiro de 2001, vindo a ser substituído por Celso Lafer que permaneceu no cargo até o fim do governo. 296 Não obstante a verve crítica de autores como Amado Cervo, Marco Aurélio Garcia e Paulo Fagundes Vizentini, algumas destas análises reconhecem que, na trajetória do Governo Fernando Henrique Cardoso, o padrão de inserção internacional não foi exclusivamente marcado pela busca incessante de credibilidade e por uma postura excessivamente cordata e acrítica em relação aos principais regimes internacionais. VIZENTINI, por exemplo, reconhece que, em seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso esboçou uma inflexão de postura, mostrando-se mais crítico em relação aos rumos da globalização (ibid, p. 381). Já CERVO & BUENO sublinham que, apesar do paradigma do Estado Normal ter impregnado as políticas públicas de Fernando Henrique Cardoso, outro esquema de ação, o do Estado Logístico, também esteve presente nas decisões desse homem de Estado, apesar de por feliz incoerência (op. cit., p. 460). Os autores elencam uma série de fatos que configurariam este “ensaio” de Estado Logístico durante o Governo Fernando Henrique Cardoso (ibid, p. 461). Entre eles, podemos destacar o acionamento vigoroso da diplomacia presidencial nos foros multilaterais e nas relações bilaterais e a denúncia dos ganhos unilaterais da interdependência que se estabeleceu entre o centro hegemônico e os Estados Normais das regiões em desenvolvimento (ibid, p. 461). 297 Apesar deste esvaziamento, veremos que o Itamaraty não aceitou esta iniciativa presidencial com passividade. A constatação (gradual) pelo Governo de que era necessário desenvolver conhecimentos técnicos específicos na corporação diplomática para enfrentar as negociações globais (em particular, as comerciais), contribuiu para a reivindicação, pela diplomacia brasileira,

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para o Ministério da Economia e, ao mesmo tempo, assumiu pessoalmente sua

dimensão política com a introdução da diplomacia presidencial (VIZENTINI,

2005, p. 2). Por estas duas razões, torna-se prioritário compreender, em linhas

gerais, o pensamento do Presidente e de alguns dos principais membros de sua

equipe econômica em relação a qual seria o perfil adequado de inserção

internacional para o Brasil. Foram essas as lideranças que moldaram as

orientações ideacionais da política econômica brasileira durante os oito anos da

Gestão Fernando Henrique Cardoso, com seus impactos respectivos na

formulação de políticas públicas de propriedade intelectual.

Comecemos, pois, pelos economistas, legando à próxima parte reflexões

sobre o pensamento do Presidente, sobre o exercício da diplomacia presidencial e

as suas repercussões na formulação da política externa brasileira de propriedade

intelectual.

Entre as autoridades econômicas, optamos por nos concentrar em duas

delas: Gustavo Franco e Pedro Malan.298 A escolha de Pedro Malan é

praticamente autoexplicativa, uma vez que ocupou a pasta do Ministério da

Fazenda nos dois mandatos do Governo Fernando Henrique Cardoso, com

poderes decisórios sem paralelos na história recente do país, em termos de

políticas econômicas. Quanto a Gustavo Franco, além de ter sido Diretor de

Assuntos Internacionais do Banco Central de outubro de 1993 a agosto de 1997,

foi também Presidente da instituição, de agosto de 1997 a março de 1999 (além de

ter ocupado a presidência interina, de poucos mais de dez dias de duração, em

janeiro de 1995). Mais importante do que isto, desempenhou o papel de um dos

economistas mais engajados da equipe econômica na defesa e consecução do

Plano Real. O texto de sua autoria, A Inserção Externa e o Desenvolvimento,

escrito originalmente em 1996 para circular entre a equipe econômica, e

da recuperação de sua autonomia. O plano concreto das negociações multilaterais, regionais e bilaterais representou um importante campo de aprendizado social para repensar o próprio papel do Itamaraty e sua estrutura de tomada de decisões. Com efeito, as questões comerciais tomaram grande parte da atividade diplomática do Itamaraty, desde a criação da OMC. Hoje, o Itamaraty possui divisões especializadas que lidam com cada aspecto das negociações comerciais multilaterais, entre eles o da propriedade intelectual. LAMPRÉIA e CRUZ JR ressaltam que a partir de 2001, praticamente todos os diplomatas recém-graduados passaram a ser lotados nas divisões especializadas em assuntos comerciais (op. cit., p. 108). Outra ação que se afirmou foi a do envio dos jovens diplomatas, para seu aprendizado, às capitais que abrigam as principais organizações multilaterais comerciais, como Genebra e Bruxelas (ibid, p. 108). 298 Para ter acesso a uma ampla listagem dos policy makers responsáveis pela implantação do Plano Real e por sua consolidação, ver SANTANA (2007, pp. 13-15).

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publicado, com alterações, em 1998, na Revista de Economia Política, alcançou

grande repercussão e pode ser considerado um “documento-síntese” da política

econômica do Governo Fernando Henrique Cardoso. De acordo com o próprio

Gustavo Franco (2008b, p. 29), o texto causou alvoroço não só por ser incomum

que dirigentes do Banco Central produzam ensaios para debates abertos sobre a

natureza do desenvolvimento econômico brasileiro, como também por ser raro ver

o Presidente da República emitir uma recomendação de leitura.299

FRANCO explica que, decorridos dois anos do Plano Real, o documento

era uma “primeira tentativa de alinhavar o processo de desenvolvimento que

naturalmente seria deflagrado com a consolidação da estabilização e das reformas

que lhe conferiam fundamentos” (1999, p 14). De fato, logo de início, é

explicitado este propósito no ensaio de 1996:

[...] A medida que os fundamentos fiscais e monetários vão se consolidando é natural que a agenda da estabilização se confunda com a do desenvolvimento, e numa quadra onde este terá de ter lugar em contornos bastante diversos daqueles do passado recente. Será importante ter clareza sobre a natureza destas bases (1996, p. 1).

Algumas destas bases nos interessam particularmente. A primeira delas

corresponde ao argumento de que o processo de abertura, através de seus efeitos

sobre o dinamismo tecnológico do país, é capaz de definir os contornos básicos do

novo ciclo de desenvolvimento (ibid, p. 2). A abertura é apontada por FRANCO

como vital para garantir uma inserção positiva do país no processo de

internacionalização da produção e como determinante básico do crescimento

acelerado da produtividade; vale dizer, de um modelo de crescimento capaz de

reduzir desigualdades sociais sem impactos inflacionários (ibid, p.2). A segunda

delas reside na disposição do autor em discutir a retórica do desenvolvimento,

“ou, mais precisamente, o modo como se deflagram imperativos de políticas

econômicas que parecem contraditórios com a retórica estabelecida sobre o que

leva ao desenvolvimento” (ibid, p. 3).

299 Posteriormente, em 1999, o mesmo texto foi publicado como um capítulo no livro o Desafio Brasileiro: ensaios sobre Desenvolvimento, Globalização e Moeda (1999). Além do documento original de 1996, que se encontra disponível em meio eletrônico na internet, tivemos acesso ao livro de 1999 (também em formato eletrônico), e a outro ensaio, escrito em 2008, em que Franco revisita as teses do documento de 1996/1998, após dez anos de sua publicação oficial, defendendo a sustentabilidade dos seus argumentos, cuja validade teria se confirmado com o tempo.

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No que tange à abertura, a globalização é apresentada como um

condicionante básico ao desenvolvimento brasileiro nos próximos anos e

identificada “com o crescimento dos fluxos de comércio de bens e serviços e do

investimento internacional em níveis consistentemente superiores aos do

crescimento da produção” (ibid, p. 3). Entre os eixos fundamentais do processo de

globalização, é destacado o crescimento das empresas transnacionais, cujo caráter

de suas atividades lhes determina esforços de racionalização em escala global, dos

quais resulta uma nova identidade supranacional, com amplas e profundas

implicações no tocante às suas propensões ao comércio exterior (ibid, p. 4).

FRANCO acredita que a terminologia “empresa transnacional” expressa

adequadamente consciência da nova natureza dessas empresas: apesar delas serem

originalmente multinacionais, deixaram de ter nacionalidade e perderam a noção

de “matriz”, ao se racionalizarem globalmente (ibid, p. 4).

O processo de globalização tem como agente primordial, para FRANCO,

as empresas transnacionais, que responderiam por cerca de 2/3 do comércio

mundial (ibid, p. 4). A partir da década de 80, a propensão de exportar das filiais

destas empresas no Brasil cresceu enormemente, em função de sua inserção no

processo de globalização (ibid, p. 6). Contudo, a instabilidade macroeconômica,

somada às restrições impostas às importações, acabou por constranger os

investimentos diretos estrangeiros destas empresas no Brasil. De 1980 a 1994, o

Brasil descende da sexta à décima terceira posição no ranking dos países

receptores de investimentos diretos (ibid, p. 7). Para FRANCO, o Brasil teria

perdido uma oportunidade valiosa nos anos 80, sendo a culpa creditada também à

insistência em levar adiante políticas industriais e comerciais inconsistentes com

as tendências internacionais (ibid, p. 10). O Brasil atrasou-se na hora de pegar “o

bonde da globalização”, devido ao viés pró-mercado interno (pró-substituição de

importações) das políticas domésticas e ao optar por manter baixos os níveis de

importação. As imposições deste tipo só teriam servido “para constranger ou

afastar novos participantes do processo de internacionalização da produção” (ibid,

p. 10).

A expectativa manifestada por FRANCO, em 1996, era a de um

crescimento fenomenal do investimento direto estrangeiro no Brasil: a

consolidação da estabilização e a reversão das políticas comerciais e industriais da

década de 80 (chamadas de “anacrônicas”) abririam novas perspectivas para o

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processo de reestruturação das operações das filiais estrangeiras aqui localizadas,

na direção dos padrões internacionais (ibid, p. 10). Em 2008, FRANCO afirma,

por intermédio de vários dados, que as expectativas teriam se confirmado. As

entradas no país, da ordem de US$ 0,8 bilhão, em 1993, saltaram para US$ 29

bilhões, em 2000 (2008b, op. cit., p. 30). No mesmo período, a participação

brasileira nos fluxos mundiais de investimentos externos diretos aumentou de

0,37% para 2,1%, passando por um pico de 3,79%, em 1998 (ibid, p. 30). Nos

anos recentes, a partir de 2005, a retomada dos fluxos globais se confirmou (após

um arrefecimento entre 2000 e 2004), atingindo US$ 720, bilhão, em 2004, e um

recorde de US$ 1.537,0 bilhão, em 2005 (ibid, p. 31).

FRANCO revela ainda, em 2008, entusiasmo pelo aumento da

participação estrangeira em aberturas de capital ocorridas entre 2006 (26 ao todo)

e 2007 (64 ao todo), em torno de 2/3 das ações vendidas no período (ibid, p. 32).

No seu diagnóstico, isso representa uma mudança qualitativa de longo alcance

sobre o modo de funcionar dessas empresas, “não apenas no quesito governança e

formalidade, mas também em todos os atributos que advém da propriedade

estrangeira” (ibid, p. 32). Outro ponto que faz questão de frisar é o do movimento

de internacionalização de empresas brasileiras e a intenção de vários grupos

nacionais de se tornarem players globais nos setores em que atuam (ibid, p. 32):

“com o aumento do grau de desenvolvimento, os países vão se tornando também

investidores, além de receptores, igualam a magnitude dos fluxos ao longo do

tempo e tornam-se primordialmente investidores, sem deixar de ser receptores”

(ibid, p. 32).

É interessante notar, na visão de FRANCO sobre as benesses dos

investimentos diretos estrangeiros trazidos pelas empresas transnacionais, uma

visão otimista e despolitizada da atuação das mesmas, como se, de fato,

possuíssem, todas, identidades verdadeiramente supranacionais e não

obedecessem mais às orientações estratégias de suas matrizes, nem fizessem

questão de continuar a manter vínculos estreitos com os governos dos seus países

de origem. Todo o processo de negociações do Acordo TRIPS, em que ‘gigantes’

dos setores de alta tecnologia (as principais corporações transnacionais do mundo)

empenharam-se em consolidar uma forte aliança política com o governo dos

Estados Unidos na defesa de suas ideias e de seus interesses (processo que depois

transbordou para a Europa e o Japão) desmentem a premissa da

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supranacionalidade, e da “atuação desinteressada” das corporações, que só

obedeceriam à “lógica leal da competitividade do capital, enfim, do mercado” e a

nenhuma outra mais.

A esse respeito, CUNHA (1997) demonstra que a parceria interna entre

Estado e Indústria foi (e ainda é) ingrediente essencial na experiência de

desenvolvimento dos países mais industrializados. Em comentários sobre Akio

Morita (Sony), Alain Gomez (Thomson) e Lee Iacocca (ex-Chrysler), o autor

demonstra que, apesar de ligados a empresas multinacionais e de serem movidos

pelo mesmo desejo de verem seus produtos conquistar o mercado internacional,

existem entre eles diferenças decorrentes, antes de tudo, de estarem presos às suas

origens nacionais ou regionais (no caso, da então Comunidade Europeia, hoje

União Europeia): “Morita, Gomez e Iacocca, apesar de olharem o mundo como

um mercado único, sempre o vêem a partir dos interesses que os distinguem

enquanto japonês, europeu ou americano” (ibid, p. 354). Nas negociações da

Rodada Uruguai do GATT, estiveram presentes discordâncias claras entre estes

dirigentes empresariais, refletindo as posições originais de seus países. Tais

diferenças, no entanto, desapareceram quando o que estava em jogo não era mais

a disputa dos seus mercados de origem, mas o de terceiros, de países menos

desenvolvidos (ibid, p. 354). CUNHA ressalta que os Estados, nesses países de

tradição democrática, não representam, obviamente, apenas os interesses das

grandes empresas. Mas para fazerem valer o interesse da sociedade em geral

(p.ex: pela preservação, ao máximo, do emprego e pelo aumento da do nível de

renda da população) estabelecem com tais empresas verdadeiras parcerias (ibid, p.

355).

Outro ponto a destacar nos comentários de FRANCO sobre os

investimentos estrangeiros diretos é o da pouca preocupação com a qualidade dos

mesmos. Vale dizer, o mero aumento desses investimentos é visto como algo bom

em si mesmo, como se pudesse promover, automaticamente, uma inserção

competitiva da economia do Brasil em termos da criação de vínculos financeiros e

tecnológicos com o processo de produção global (2008b, op. cit., p. 30). A

natureza destes vínculos não é problematizada, nem sequer cogitada.

Entendemos que, na realidade, estes vínculos estão longe de serem

forjados de forma não-hierárquica e (necessariamente) virtuosa. CANO (2006, p.

104) demonstra que, na globalização produtiva, a reestruturação (econômica,

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técnica, administrativa, comercial e financeira) que as empresas transnacionais

vêm fazendo, promovem uma nova divisão internacional do trabalho. Apesar de

admitir a necessidade da vinda e permanência do capital internacional para

complementar nossas necessidades de investimentos, financiamento e acesso a

novas tecnologias, atenta para o fato de ser também verdade que tal ingresso

implica o aumento de nosso grau de dependência externa, em razão de

determinados fatores, entre eles as remessas de lucros e direitos de patentes (que

transferem, para o exterior, parte importante da capacidade de importar,

diminuindo ainda o montante da renda gerada internamente) e o surgimento de

grandes filiais de empresas estrangeiras que, em virtude das dimensões maiores de

sua capacidade de produção, habitualmente monopolizam ou detêm a maior parte

da produção interna a que se dedicam (ibid, p. 103). O resultado disto é que, não

raro, a possibilidade de exportar produtos manufaturados fica condicionada às

decisões das matrizes destas corporações estrangeiras (ibid, p. 104). Mesmo para

países como o Brasil, que integram o seleto grupo de países em desenvolvimento

com condições mínimas para a produção industrial e que possuem pautas

exportadoras diversificadas, torna-se dificultado o acesso a especializações

competitivas em setores de tecnologia avançada (ibid, p. 107).

No que se refere à importação de tecnologia, ERBER (2007, p. 10)

demonstra que, além das remessas que ela origina diretamente, à conta dos

direitos de propriedade e do know how do fornecedor de tecnologia, é

frequentemente realizada sob cláusulas restritivas quanto aos mercados a que se

destinam os produtos feitos sob licença e pode envolver importações atadas de

insumos e partes, o que é capaz de gerar remessas substanciais de divisas no

médio prazo, especialmente quando são feitas dentro do mesmo grupo

empresarial.

Para ERBER, além desses problemas em potencial em termos de

competitividade internacional, o que de fato ocorre na importação da tecnologia é

que, apesar dela transferir os conhecimentos necessários à produção que remunera

a licença, o proprietário da tecnologia licenciada retém os conhecimentos

necessários à inovação e, com frequência, ainda tem direito a se apropriar das

inovações produzidas pelo licenciado (ibid, p. 10). Isso “tende a perpetuar os

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vínculos de dependência entre licenciador e licenciado, expondo o último aos

vagares das decisões do proprietário da tecnologia” (ibid, p. 10).300

Estudos recentes indicam que, apesar do Brasil ter sido apontado como o

país dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) com maior proporção de

investimentos estrangeiros diretos em proporção ao PIB (18%, em 2008, contra

9%, da China), a maior parte veio na forma da compra de ativos já existentes

(MONITOR MERCANTIL, 2010). Exatamente por isto, economistas como

Reinaldo Gonçalves defendem uma estratégia mais soberana de negociação com

as multinacionais, em torno da maior sofisticação industrial do Brasil (ibid.). A

sugestão do professor da UFRJ é a de que sejam adotados critérios de

desempenho para aquelas empresas, condicionando os incentivos (como os

financiamentos do BNDES) ao cumprimento de metas de exportação, tal como

ocorreu no passado, no modelo substitutivo dos países asiáticos (ibid). Seria

necessária, contudo, vontade política para a adoção de tal medida, nos dias atuais,

uma vez que, provavelmente, implicará em conflitos na OMC (ibid).301

De volta a FRANCO, um dos principais argumentos do ensaio de 1996 é o

da associação do esgotamento do modelo de substituição de importações à

estagnação da taxa de crescimento da produtividade no Brasil (1996, op. cit., 11).

São apresentados dados e evidências empíricas que corroborariam sua tese. O

pressuposto defendido é o de que há uma relação positiva entre abertura e

produtividade, o que foi ignorado pelo modelo anterior. O diagnóstico é explícito:

Numa economia protegida, o mundo empresarial reluta em dedicar recursos escassos a investimentos em qualidade e produtividade quando não há necessidade disso, isto é, pode-se ganhar dinheiro “sem fazer força” num mercado não contestável. Num outro contexto, onde existem competidores estrangeiros ávidos para ocupar maiores fatias de mercado, o assunto é outro. O investimento em tecnologia, qualidade e produtividade se torna uma necessidade (ibid, p. 16).

300 ERBER ainda enfatiza que a tendência de reforço dos direitos dos proprietários de tecnologia a partir do fim dos anos oitenta, expressa em acordos e instituições que regem a propriedade intelectual (TRIPS e OMC), ratificada pelas legislações nacionais (frequentemente introduzidas sob pressão dos países centrais, especialmente os Estados Unidos), limita, ainda mais, o alcance da importação de tecnologia (ibid, p. 10). 301 A preocupação com qualidade dos investimentos estrangeiros diretos no Brasil remete às evidências atuais de perda de dinamismo das exportações brasileiras com maior valor adicionado e concentração da pauta exportadora em commodities, o que leva economistas a apontar sinais de desindustrialização no Brasil. Uma boa ilustração do atual estado deste debate entre economistas se encontra em LEO (2010b).

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FRANCO sugere, portanto, que a abertura, ao elevar a constestabilidade

dos mercados e alterar para melhor a conduta das empresas, é capaz de provocar a

aceleração da taxa de crescimento da produtividade, o que, por sua vez, seria

essencial para escapar da famosa armadilha delfiniana do “bolo” (2008b, op. cit.,

p. 32)302:

Outra questão fundamental [...] diz respeito à superação da chamada “teoria do bolo”. É legítimo que se pergunte como se pode, num mundo repleto de trade-offs e onde não existe “almoço grátis”, crescer, distribuir renda e manter competitividade ao mesmo tempo. A resposta a ser dada, se a economia é fechada e o regime político também é a teoria do bolo, ou seja, não é possível fazer as três coisas ao mesmo tempo. A resposta populista a essa questão é a inconseqüência macroeconômica: a inflação como falsa solução, os congelamentos como anestesia. A resposta a partir do Real e da abertura é a única que faz sentido: é possível fazer as três coisas ao mesmo tempo se e somente se a produtividade se mantém crescendo velozmente. Quando isso ocorre, a empresa pode, ao mesmo tempo, aumentar salário, reduzir custo e reduzir preço, ou seja, transferir a produtividade em parte para salários, em parte para o consumidor e em parte para si própria. Só não é almoço grátis porque decorreu de investimentos em qualidade e produtividade (op. cit., 1996, p. 17).

Enfim, para FRANCO, a abertura leva ao crescimento da competitividade

entre as empresas. Esta competitividade, por sua vez, é suficiente para garantir

investimentos em qualidade e produtividade. A premissa assumida, novamente, é

a de que as empresas competem em condições de igualdade ex ante, e dissociadas

de quaisquer vínculos políticos com seus Estados Nacionais de origem.

Prevaleceria uma suposta meritocracia da economia de mercado, por vezes cruel,

que pode levar, de um lado, à saída de firmas de baixa produtividade de diferentes

setores (o “efeito destruição criadora”) e, por outro, à disponibilidade de insumos

e máquinas importadas (o “efeito transferência de tecnologia”). Não há uma

menção sequer a qualquer esforço de intencionalidade ou coordenação pública no

bojo do mercado. Políticas Industriais? O trecho destacado a seguir revela o

posicionamento de FRANCO (e da equipe econômica que integrou) sobre o

assunto:

302 A “teoria do bolo” alude ao período do milagre econômico do final dos anos 60 e início dos anos 70. De acordo com a mesma, a concentração de renda seria uma estratégia necessária e inevitável para aumentar a capacidade de poupança da economia, financiar os investimentos e, com isso, o crescimento econômico, de forma que, depois, todos pudessem usufruir. Ou seja, o “bolo” deveria crescer primeiro para depois ser dividido. A expressão teria sido cunhada pelo Ministro da Fazenda do período do milagre, Delfim Neto, que assumiu o cargo no começo do Governo Costa e Silva (1967), deixando-o ao final do Governo Médici (1974).

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Vale destacar, sem entrar no mérito das políticas específicas, que mudanças em condutas empresariais não se produzem a partir de ações voluntaristas, apelos cívicos, coordenação em foros negociais ou acordos com grandes empresas. Podem até se produzir se o governo põe a mão no bolso (do contribuinte) e induz, através de subsídios, as novas condutas que, espontaneamente, não ocorreriam. Se esta possibilidade não existe (foi típica do período mais dinâmico da substituição de importações), o que resta são políticas de natureza horizontal (em oposição às políticas “verticais” ou setoriais) cujo objetivo básico é modificar as estruturas de mercado e os padrões sistêmicos de competitividade, geralmente agrupados sob a rubrica “custo Brasil” (ibid, p. 16)

Ou seja, “uma economia de mercado tratada com políticas industriais de

corte horizontal303 poderia perfeitamente experimentar um crescimento

desconcentrador de renda, se o crescimento da competitividade fosse acelerado”

(2008b, op. cit., p. 32). É curioso perceber como esta afirmação se choca com,

praticamente, todas as experiências de industrialização (tardias ou não) dos países

mais desenvolvidos. A utilização de políticas industriais setoriais ou seletivas

(verticais) foi uma constante na trajetória histórica de todas as economias mais

desenvolvidas e cremos que CHANG (2002; 2010) é categórico neste sentido.

Como veremos com mais detalhamento adiante, a afirmação de FRANCO nada

mais faz do que sintetizar a tônica do Governo Fernando Henrique Cardoso de

rejeição completa a qualquer tipo de política industrial, na linha da célebre frase

do ex-Presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, para quem “a melhor

política industrial era não ter política industrial” (ibid, p. 40).

É impressionante constatar, igualmente, a invejável confiança de

FRANCO no automatismo virtuoso das políticas horizontais, de forma ao Estado

jamais intervir no “salutar ambiente de competição do mercado”. O “efeito

competição” entre as empresas por si mesmo geraria outros, como o “efeito

transferência de tecnologia”. No ensaio de 2008, FRANCO chega a afirmar que,

entre as várias repercussões positivas sobre a produtividade brasileira, a abertura

303 As medidas de política industrial podem ser de natureza vertical, ou seja, direcionadas para setores industriais, tecnologias ou produtos específicos, ou de caráter horizontal, que de destinam a melhorar as condições de toda a indústria, de forma ampla, sem privilegiar setores. Entre as políticas horizontais, temos as de natureza específica e as de natureza geral. Como exemplos de medidas de natureza específica, se encontram apoio a atividades de P & D nas indústrias, incentivos ao estreitamento de relações entre empresas industriais e universidades, regulação de mecanismo de transferência de tecnologia industrial, apoio ao financiamento industrial etc (GUERRA, 2007, p. 54). Exemplos das ações de natureza geral são as destinadas a transformar a educação, o sistema tributário, a infraestrutura econômica e social etc (ibid, p. 42). GUERRA afirma que “os que negam qualquer tipo de política industrial, por distorcer os sinais de mercado, sugerem que a intervenção estatal seja limitada a ações desta natureza” (ibid, p. 42). Foi o caso do Governo Fernando Henrique Cardoso.

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possibilitou a transferência de tecnologia, mas esta entendida no sentido mais

estrito de disponibilidade de insumos e máquinas importadas (2008b, op. cit., p.

33). A transferência de capacitação, que envolve o know how, e a apropriação

(mais onerosa após o TRIPS) de informação e conhecimento exógenos, é

sumamente ignorada. Aferir se as empresas brasileiras passaram a inovar mais não

faz parte das pretensões do ensaio de 2008. É sintomático não constar em

praticamente nenhuma passagem dos textos dois ensaios de FRANCO as

expressões “propriedade intelectual”, “inovação” ou “política tecnológica”.

Encontramos uma, de caráter claramente demeritório, como destacaremos logo.

Discutidos os aspectos que demarcaram os esforços de FRANCO para

demonstrar os efeitos positivos da abertura no molde do que vislumbrava, em

1996, como o início de um “novo ciclo virtuoso de desenvolvimento”, vejamos,

agora, no plano da retórica, a disposição de contra-argumentar seus opositores,

defensores de modelos alternativos, obviamente discordantes de suas convicções

em política econômica.

Destacamos inicialmente a seguinte passagem:

A observação mais importante a fazer sobre “modelos” e “projetos” de desenvolvimento é a de que essas criaturas, via de regra, pertencem aos historiadores, vale dizer, são racionalizações a posteriori de experiências históricas específicas, cujos traços principais são decantados a fim de lhes revelar, conforme o vezo do exegeta, a sua verdadeira essência. O enunciado do modelo, ou projeto, envolve necessariamente uma combinação daqueles traços específicos que cada historiador identifica como fundamentais, de modo que, com muita freqüência, uma mesma experiência enseja inúmeras e nem sempre consistentes lições. [...] Observa-se, não obstante, uma notável mistificação em torno da possibilidade de definição de um projeto nacional a priori, vale dizer, como resultado de uma mobilização redentora a partir de ideias e interesses clarividentemente articulados, do que resulta algum processo econômico inovador. Presume-se, dessa forma, que as “respostas criadoras” (as inovações institucionais, na política econômica e na esfera tecnológica) se constroem a partir de revoluções intelectuais ou mobilizações políticas prévias (ou no máximo simultâneas) à sua ocorrência. As vanguardas, tanto intelectuais quanto políticas, têm por sua própria conta, sua importância vastamente exagerada, parecendo querer estabelecer uma curiosa primazia do historiador (e na leitura sobre a evolução das forças produtivas) sobre a História (1996, op. cit., pp. 37-38).

Nota-se claramente a pretensão de negar qualquer função à história na

economia e a tentativa de elevar esta última a uma categoria de ciência superior às

demais. As presunções orientadoras do institucionalismo histórico são negadas: a

economia de mercado é “vendida” como algo asséptico, que deve ser imunizado

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dos “vermes patogênicos” do poder, das ideias e das instituições. É preciso

ignorar estes filtros nocivos que corresponderiam às formas arcaicas de ingerência

estatal e que só produzem distorções. A história é um processo irresistível que

nega ao homem e aos agrupamentos sociais qualquer papel político relevante e

verdadeiramente transformador. As inovações institucionais, como as embutidas

nos “projetos nacionais de desenvolvimento”, e as tecnológicas304, como as

políticas industriais seletivas e demais políticas públicas de fomento à pesquisa e

o desenvolvimento, servem exclusivamente para minar os efeitos positivos (a

modernização tecnológica e os ganhos de competitividade) que só a abertura pura

e simples do setor industrial à concorrência externa é capaz de promover.

Curioso notar a negação em conferir qualquer importância às instituições,

em face da determinação comprovada do Governo Fernando Henrique Cardoso de

recorrer ao expediente de utilizar estrategicamente o aparato institucional do

Estado para promover sua linha econômica (PIO, op. cit, p. 8). Por mais que o

processo decisório de política econômica durante a Gestão Cardoso tenha se

caracterizado como excludente e pouco democrático (ibid, p. 9), não deixou de

recorrer a uma estrutura institucional que considerava adequada para abrigar as

ideias da equipe econômica e aplicá-las conforme seus imperativos de

estabilização.305 O que se operou no Governo Fernando Henrique Cardoso foi, na

realidade, uma mudança de estilo na forma do governo recorrer às instituições e

de se valer delas para implementar suas políticas econômicas neoliberais.306 As

reformas institucionais constituíram o caminho escolhido para se tentar chegar às

mudanças. O ditame seguido foi “mudemos as instituições e a estrutura produtiva

vai se adequar”, ao contrário dos desenvolvimentistas que acreditavam ser

304 A menção, em de rodapé, a SCHUMPTER, nesta passagem do texto de 1996, basta por si só para ilustrar o pensamento negativo e crítico de Gustavo Franco sobre a teoria da inovação. 305 Detalhes sobre como foi moldada esta configuração institucional apresentamos mais adiante, ao tratarmos da política industrial do Governo Fernando Henrique Cardoso. 306 Uma mal-humorada reação é sempre constada até hoje entre os economistas que integraram a equipe econômica do Governo Fernando Henrique Cardoso quando são chamados de neoliberais: “devem ser evitados os clichês do debate doutrinário, ou uma discussão dessa misteriosa entidade denominada “o modelo neoliberal”, ou o chamado “Consenso de Washington”, cuja função parece ser a de servir como um referencial negativo para imaginações nacionalistas mal-humoradas, um xingamento dirigido aos que se inserem e contribuem para “isso que aí está” [...]. Não é só a ideologia neoliberal que ganha uma hegemonia temporária. Mais do que isto, é a falência material do Estado, tanto em países ricos quanto pobres, que leva a um esforço de reforma que não pode ser modelado ideologicamente” (FRANCO, 1996, op. cit., p. 40). Aliás, podemos dizer que enquadramentos em categorizações provocam aversão na maior parte dos economistas. Pelo menos, foi esta a impressão que tivemos a partir das entrevistas.

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necessário primeiro transformar a estrutura produtiva para depois adequar as

instituições (ERBER, 2002b).

Vale, por fim, destacar a concepção de Estado subjacente ao ensaio de

FRANCO, de 1996:

[...] resta observar que o novo modelo que se esboça, onde a mola mestra do processo é o crescimento da produtividade, as ações de governos não são, em si, deflagradoras do processo de desenvolvimento. A dinâmica básica do desenvolvimento brasileiro começa a prescindir das ações de governo, especialmente no que toca aos programas e projetos de investimento, embora isto não seja o caso no tocante à configuração macroeconômica básica. O governo se torna coadjuvante e as burocracias e os políticos perdem o papel missionário que assumiram ao longo de décadas. O progresso e o crescimento se obtêm crescentemente na área privada e, nessa circunstância, o governo precisa se acostumar ao exibir um cartel de realizações que não se limita, e nem mesmo prioriza, o número de obras ou programas que iniciou. [...] O investimento ocorre porque o setor privado confia na sustentabilidade de um quadro econômico básico. Não é mais conseqüência de “projeto nacional”, composto de mega-investimentos, urdido em gabinetes. O governo não é mais o agente primordial do processo, e daí, resulta uma angústia básica do político cuja “plataforma” tradicionalmente consiste [...] em uma coleção de despesas relacionadas num documento de metas (1996, op. cit., pp. 40-41).

O ciclo da análise de FRANCO se encerra aí. Uma vez que a empresa

transnacional é, de fato, o grande agente do processo econômico, este processo,

tido como virtuoso em essência, depende de uma abertura franca da economia,

capaz de estimular investimentos estrangeiros diretos e o crescimento da

competitividade, o que, por sua vez, gera benefícios sociais. O máximo que o

Estado deve se contentar em fazer é regular as condições estruturais básicas

macroeconômicas, renunciando ao figurino juscelinista dos “planos nacionais de

desenvolvimento” (op. cit., 2008b, p. 38).307

BELLUZZO (2008) questiona abertamente os argumentos e as visões de

FRANCO.308 O autor menciona estudos recentes da União Europeia que revelam

aspectos importantes do processo de internacionalização da grande empresa nos 307 A proposta de renúncia aos “planos nacionais de desenvolvimento” encontrou resistências dentro do próprio Governo Fernando Henrique Cardoso, especificamente no Ministério do Planejamento, encarregado de aprovar anualmente o PPA (Plano Plurianual), que, segundo FRANCO, “era, e ainda é, uma tentativa de introduzir na rotina do processo orçamentário regular os tais planos de grandes obras” (ibid, p. 38). 308 Optamos por trazer as ideias de BELLUZO, uma vez que seu ensaio, publicado na mesma edição da Revista Interesse Nacional (logo em seguida ao ensaio de FRANCO), representa uma resposta direta ao artigo do Ex-Presidente do Banco Central, sendo esta uma interessante oportunidade em que se visualizou recentemente, na mesma edição de um periódico nacional na área de Ciências Sociais, um debate intelectual aberto entre dois economistas com visões tão díspares.

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anos 1990. Entre as principais conclusões desses estudos, uma delas é a de que,

nos países em desenvolvimento, os benefícios do investimento estrangeiro – tais

como absorção de tecnologias, adensamento de cadeias industriais – dependeram

das políticas públicas nacionais (ibid, p. 42). A “identidade transnacional” das

grandes corporações é posta em xeque:

Para escândalo dos liberais, a grande empresa que se lança às incertezas da concorrência global necessita cada vez mais do apoio dos Estados Nacionais dos países de origem. O Estado está envolvido na sustentação das condições requeridas para o bom desempenho das suas empresas na área da concorrência generalizada e universal. Elas dependem do apoio e da influência política de seus Estados Nacionais para penetrar em terceiros mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes etc.), não podem prescindir do financiamento público para suas exportações nos setores mais dinâmicos e seriam deslocadas pela concorrência sem o benefício dos sistemas nacionais de ciência e tecnologia (ibid, p. 42, grifamos). BELLUZZO prossegue, afirmando que na era da arrancada chinesa, é

“superstição acreditar que a abertura financeira e a exposição pura e simples do

setor industrial à concorrência externa seriam capazes de promover a

modernização tecnológica e os ganhos de competitividade” (ibid, p. 42). A

concorrência dos mercados contemporâneos está, na realidade, marcada por

características que não guardam qualquer semelhança com as crenças dos adeptos

do livre-cambismo e das vantagens comparativas (ibid, p. 42). E ainda arremata:

Neste jogo só entra quem tem cacife tecnológico, poder financeiro, e amparo político dos Estados Nacionais. O resto está na arquibancada batendo palmas. Estas características essenciais da concorrência e do comportamento das empresas, sobretudo na área industrial, estão completamente ausentes das elucubrações dos que pretendem ensinar-nos as virtudes milagrosas do curandeirismo que aspira a foros de ciência (iibid, p. 42). Esta crítica de BELLUZZO aos “mitos do consenso neoliberal”, ou à

retórica neoliberal, consiste na inversão da de FRANCO aos “historiadores da

economia”, ou seja, aos economistas políticos de linha menos ortodoxa.309

309 Um dos comentários mais interessantes de FRANCO a respeito de seus críticos consta da Introdução do livro O Desafio Brasileiro: ensaio sobre desenvolvimento, globalização e moeda, de 1999. Ao comentar as críticas recebidas pelo seu ensaio de 1996, FRANCO reage assim: “[...] as reações negativas mais virulentas vêm dos economistas das correntes alternativas e esotéricas de pensamento econômico, que parecem se julgar proprietários exclusivos da habilidade de escrever para públicos maiores mercê da sua incapacidade de publicar nos circuitos acadêmicos fora de suas igrejinhas. Um desses, por exemplo, disse, a propósito da linguagem do ensaio [...] que era um texto ideológico no mau sentido. É um documento de convencimento. Como se os economistas

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BELLUZZO recoloca a experiência histórica no centro da análise para

desmistificar a dissociação que se procura estabelecer entre o Estado e o mercado,

e demonstrar a falsidade da tentativa de “decretação do fim da política e sua

submissão ao mercado” (ibid, p. 43). A imprescindibilidade do Estado é, portanto,

um mito:

A rivalidade entre as grandes empresas, a febre de fusões e aquisições e a sucessão de crises financeiras tornaram inevitável a mediação do Estado nas disputas entre os competidores privados – sob pena da desestruturação dos mercados. Além dessa “regulação sistêmica”, o Estado Nacional contemporâneo não pode abdicar de outra que lhe é inerente enquanto instância exclusiva de “totalização das relações sociais”. É no interior do Estado que se realiza a mediação entre o movimento estrutural das forças econômicas do capitalismo globalizado e o interesse nacional” (ibid, p. 43). Muitos dos esforços negociadores multilaterais no âmbito do GATT e,

atualmente, da OMC, especificamente na área temática da propriedade intelectual,

corroboram a visão de economistas da linha crítica de BELLUZO e desmentem os

postulados centrais de FRANCO e dos neoclássicos em geral. O papel mediador,

coordenador e coercitivo desempenhado pelos governos dos Estados

desenvolvidos, em especial o dos Estados Unidos, durante todo o processo de

negociação de TRIPS, prova que as dimensões materiais e normativas do poder

continuam (e continuarão) sendo amplamente utilizadas de forma estratégica para

a consecução de objetivos que não são somente transnacionais, mas também (e

ainda) marcadamente nacionais. Prova também que, no plano externo, as grandes

corporações internacionais não podem prescindir de recorrer ao Estado como

forma de perseguir seus interesses comerciais em escala global. Endogenamente,

elas dependem de políticas industriais seletivas, de outras políticas públicas de

fomento à pesquisa e ao desenvolvimento em ciência e tecnologia e da construção

de sistemas nacionais de inovação funcionais que as gabaritem para a

concorrência internacional. Nada disso se constrói sem uma política pública de

propriedade intelectual voltada para o desenvolvimento e sem uma diplomacia

ciente destes desafios e necessidades e habilitada para enfrentá-los, operacional e

intelectualmente. Mas, como vimos, todas estas preocupações estiveram distantes

das reflexões de FRANCO.

não devessem escrever para persuadir!” Note-se que o próprio FRANCO reconhece no ensaio a necessidade de persuadir.

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A trajetória intelectual de Pedro Malan, nos anos que antecederam o

Governo Fernando Henrique Cardoso, estimula-nos a refletir sobre um homem

público que, por vezes, mostrou-se mais inclinado a aceitar um papel de

protagonista reservado ao Estado no financiamento e planejamento do setor

produtivo e na condução direta de políticas de desenvolvimento. Contudo, como

Ministro da Fazenda do Governo Fernando Henrique Cardoso em seus oito anos

de mandato (1995-2002), aquelas ideias não repercutiram no processo decisório

de política econômica e não se materializaram num arcabouço institucional mais

receptivo à realização de políticas industriais e tecnológicas. As ideias que

repercutiram foram de natureza diversa.310

Discorrendo sobre desenvolvimento econômico, em meio ao cenário de

distensão política e restabelecimento da democracia que se desenhava no Brasil e

em outros países no início dos anos 80, MALAN elogia a obra de Gramsci por ter

aberto novos caminhos ao reintroduzir o político em um campo de reflexão teórica

marcado por certo tipo de economicismo vulgar que parece querer explicar tudo

(ex ou post facto) através da “lógica do capital”, “das necessidades de

acumulação” ou “determinações da infraestrutura” (MALAN, 1981, p. 2).311

Reportando-se, naquela ocasião, ao pensamento de Fernando Henrique Cardoso,

presente na obra Dependência e Desenvolvimento Econômico na América Latina,

escrita com Enzo Falleto, MALAN destaca a peculiaridade distintiva do Estado: o

de expressar uma relação de domínio de classes dominantes e, ao mesmo tempo,

ter que aparecer para a consciência nacional como se fosse expressão de um

interesse geral (ibid, p. 2). O Estado, enfim, “constitui uma relação de domínio

que implica em uma ideologia, a qual, constitutivamente, tem que negar esta

parcialidade” (ibid, p. 2). Mas apesar de ser um instrumento veiculador de

ideologia, não está sujeito a qualquer “metafísica” ou ideologia geral da classe

dominante, ele também é permeável às contradições da sociedade civil (ibid, p.

310 Não temos a pretensão de desvendar as razões pessoais de diferentes ordens (intelectual, profissional etc) que podem ter contribuído para qualquer suposta mudança intelectual em Pedro Malan. Desejamos apenas destacá-la, contrastando alguns de seus escritos antes do Governo Fernando Henrique Cardoso com ações tomadas depois, por este, na condução da política econômica. 311 O texto de 1981 consiste em um trabalho apresentado em mesa-redonda organizada pela CLACSO, em Buenos Aires, no final de 1980, que posteriormente o publicou em sua revista. Os demais integrantes da mesa, participantes como comentaristas, foram os seguintes: Francisco Weffort, Jorge Gracianera, Luiz Alberto Moniz Bandeira e José Ibrahim.

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3).312 Por isto, “o espaço aberto à ação política do Estado é muito maior do que

aquele previsto por certas análises economicistas que determinam tudo a partir da

infra-estrutura e de suas imutáveis leis de ferro” (ibid, p. 3).

MALAN prossegue em suas reflexões. Ao tratar do papel do poder púbico

em países democráticos, afirma:

É preciso ter a coragem de reconhecer que a democracia, em especial em países com carências sociais marcadas, tende a gerar um aumento da participação do setor público na economia, alterando a relação bens privados versus bens públicos em favor destes últimos. Mas o crucial não é combater esta tendência em nome de um privatismo doutrinário, e sim insistir na necessidade de ampliar os mecanismos de controle da sociedade sobre o aparato burocrático do Estado. [...] Eventualmente, pode se chegar à tentação de sugerir a necessidade de governar através de “técnicos competentes”. Tecnocracia e democracia são antagônicas inclusive por razões etimológicas. [...] se são poucos aqueles capazes de formular e de executar determinadas políticas, todos temos o direito de julgar tais políticas à luz de informações que os “técnicos competentes” deveriam ter a obrigação de proporcionar.

A preocupação com a ampliação do controle social sobre o Estado

presente neste texto de trinta anos atrás aparentemente contrasta com a

experiência institucional de insulamento burocrático da tecnocracia econômica

(basicamente, as do Ministério da Fazenda e do Banco Central) na tomada de

decisões de políticas monetária e cambial, durante o Governo Fernando Henrique

Cardoso, que é apontada em análises como as de PIO (1995), CASTRO &

CARVALHO (2002), SALLUM Jr (2003), SANTANA (2007) e DELGADO

(2010).313

Mas esta sensação de contraste é relativizada se levarmos em conta a

análise de FIORI (2000, op. cit., p. 33) sobre como o modelo de desenvolvimento

dependente e associado, constante da obra de Cardoso e Faletto dos anos 70, se

converteu, nos anos 90, em um projeto de reforma liberal do modelo

desenvolvimentista que permitiu a formação de uma coalizão de poder reunindo

alguns de seus principais defensores com as velhas elites econômicas e políticas

desenvolvimentistas desligadas do regime militar e agora comprometidas com a

ideia de abertura e desregulamentação da economia e desmontagem da estrutura e

estratégia em que se sustentaram os 30 anos de industrialização brasileira (ibid, p.

312 Nesta passagem, MALAN vale-se novamente de reflexões do texto de Cardoso & Faletto. 313 Estrutura de tomada de decisões sobre a qual discorreremos mais à frente, ao tratarmos da política industrial do Governo Fernando Henrique Cardoso.

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34). A variante da teoria da dependência que via em alguns tipos de dependência

uma oportunidade seletiva e específica de desenvolvimento por meio de uma

associação virtuosa com as economias centrais (oposta à variante que enxergava

na dependência um bloqueio definitivo ao desenvolvimento do capitalismo

periférico) ajudou a sustentar o projeto político de reinserção liberal do Brasil na

economia internacional, nos anos 90 (ibid, p. 33). 314 Assim, considerando os

quase dez anos de intervalo entre o texto de MALAN, de 1981, e o início das

reformas de cunho liberalizante no Brasil, em 1990, poderíamos tentar situar as

ideias de 1981 no seu contexto histórico respectivo, relativizando sinais de

contradição com as experiências posteriores, uma vez que foram emanações

intelectuais em tempos de prioridade conferida à redemocratização - em que a

questão do Estado (do “Estado Democrático”) era, obviamente, a mais central - e

fora de um contexto de pertencimento ao poder público constituído.315

Tais esforços se tornam, contudo, mais complexos, se levarmos em conta

outro texto, de 1991, intitulado Uma Crítica ao Consenso de Washington,

publicado na Revista de Economia Política. Tomando como premissa que, para o

desenvolvimento, não há um único caminho lógico, nem pré-condições

necessárias para atingi-lo, MALAN critica o Consenso de Washington, afirmando

ser perniciosa “a maneira de apresentar condições estritas que precisam ser

satisfeitas para que a reforma tenha alguma chance (1981, p. 8). E ainda

acrescenta:

É mesmo paradoxal a recusa de tratar (mesmo em nível de pensamento) problemas amplamente compartilhados e comuns num contexto maior - como o problema da dívida, ao mesmo tempo em que tende a se pensar “globalmente” em termos de estágios a fases gerais que envolvem um conjunto comum de recomendações de política e, a rigor, uma tautologia: políticas melhores levam a melhores resultados; políticas piores, a piores resultados. Uma afirmação verdadeira, porém pouco original (ibid, p. 9). O que chama mais atenção, no ensaio de 1991, são os três tipos de

políticas que MALAN considera essenciais. Os dois primeiros, mais consensuais,

abrangem, respectivamente, as políticas macroeconômicas e microeconômicas

(ibid, p. 9). No campo das políticas macroeconômicas, são apontadas questões 314 FIORI argumenta que somente uma leitura equivocada da obra de Cardoso & Faletto pode levar à falsa percepção de que a estratégia associada, destes autores, não caberia dentro do espírito das reformas liberais dos anos 90 (ibid, p. 34). 315 Mesmo assim, são interessantes as críticas ao “economicismo” e à tecnocracia.

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globais razoavelmente unânimes, importantes para garantir a estabilidade, como o

papel das expectativas na acomodação das políticas fiscal e monetária, entre

outras (ibid, p. 9). No das microeconômicas, são destacadas medidas destinadas a

aumentar a eficiência do sistema de preços relativos como um dispositivo de

sinalização para a alocação de recursos na produção, consumo e utilização de

fatores (ibid, p. 9).316

O elemento mais surpreendente na análise de MALAN reside no terceiro

conjunto de políticas. Seriam, de acordo com o Ex-Ministro da Fazenda, aquelas

que estariam recebendo “menor atenção, precisamente no momento em que sua

necessidade é mais evidente: políticas que visem assegurar o desenvolvimento

econômico e social de longo termo, com mudança tecnológica” (ibid, p. 10). O

trecho cabe perfeitamente como uma crítica direta aos dois ensaios de seu futuro

colega de Governo, Gustavo Franco, na mesma linha que apresentamos:

Neste ponto, verifica-se uma separação fundamental. Segundo o assim chamado Consenso de Washington [...] uma vez que a estabilidade macroeconômica e a reforma microeconômica sejam atingidas, ou uma vez que esses objetivos estiverem sendo seriamente buscados de modo sustentável, o crescimento e o desenvolvimento advirão, quase naturalmente, como cogumelos selvagens em solo fértil umedecido por uma chuva de primavera. [...] O triste desempenho da maioria dos países latino-americanos por quase uma década, bem como o desempenho desastroso de muitos países africanos por mais de duas décadas suscitava dúvidas fundamentais sobre se a Agenda do Consenso de Washington seria suficiente para restaurar o crescimento e o desenvolvimento uma vez atingida a estabilidade e eliminadas as piores formas de distorção de preços. [...] é preciso mais para assegurar crescimento, desenvolvimento e mudança tecnológica de longo termo. Esta peça que falta não é considerada pela visão atualmente dominante, refletida no assim chamado Consenso de Washington. [...] um setor público modernizado terá que desempenhar um papel essencial, ainda que não intensivo, de coordenação na programação dos investimentos para o crescimento futuro com mudança estrutural e tecnológica (Ibid, p. 10, grifamos). A questão que pretendemos levantar, ao tratarmos da política industrial do

Governo Fernando Henrique Cardoso é a de que este terceiro grupo de políticas

não foi priorizado da forma como chegou a defender o seu Ministro da Fazenda,

em 1991.317 Parte das análises atribui este fato às crises sistêmicas da economia

316 Por exemplo, questões envolvendo o desenvolvimento institucional, sistemas fiscais, políticas de preços dos bens e serviços públicos, regulamentação e supervisão, incentivos e desincentivos etc (ibid, p. 9). 317 Em 1991, Pedro Malan atuava como Consultor Especial e Negociador-Chefe para Assuntos da Dívida Externa do Governo Fernando Collor de Mello, além de ser Diretor Executivo junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento.

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internacional.318 Nosso objetivo é demonstrar que, não obstante o impacto de tais

crises sobre a economia brasileira, a atitude de negligenciar uma política industrial

e tecnológica resultou também de escolhas conscientes dos governantes e não

essencialmente de necessidades materiais impostas ao país (FIORI, 2001, op. cit.,

p. 27).

De fato, é sintomático que, em pronunciamento seis anos depois, realizado

em Ouro Preto, aludindo ao aniversário da Inconfidência Mineira, entre os três

“sonhos” elencados por MALAN para o Brasil como forma de propiciar maior

justiça social a todos – o do controle da inflação, o da estabilidade com

crescimento e o da consolidação das instituições democráticas – a necessidade de

uma política industrial e tecnológica não esteja incluída (MALAN, 1997). O que

aconteceu? Propomo-nos a refletir sobre isto, mais adiante.

Passamos agora então à forma como o pensamento de Fernando Henrique

Cardoso contribuiu para moldar o processo de formulação da política externa

brasileira de propriedade intelectual. Nosso argumento é o de que, no decorrer de

seu mandato, a visão de Fernando Henrique Cardoso sobre os regimes

internacionais, reguladores da governança global, acabou por se refletir na

formulação daquela política. Além da marcada influência de Fernando Henrique

Cardoso por meio da diplomacia presidencial, o processo de aprendizado

institucional a que o Itamaraty foi submetido desde a Rodada Uruguai concorreu

positivamente para que o Brasil começasse a ensaiar uma postura mais crítica,

além de ações de maior envergadura política no questionamento do regime

internacional de propriedade intelectual. Outro fator decisivo foi o esforço

político dos liberal-desenvolvimentistas do Governo, como o Ministro José Serra,

por uma mudança de foco nas políticas públicas de propriedade intelectual, em

face da prioridade que se entendia devia ser conferida às políticas de saúde

pública para assegurar o acesso universal da população brasileira aos

medicamentos genéricos contra o vírus HIV/AIDS. Os desdobramentos

internacionais daí derivados redundaram no maior logro diplomático, em termos

cognitivos e ideacionais, da política externa de propriedade intelectual no período

Cardoso, apesar de ser necessário refletir sobre os seus alcances práticos e a

extensão real dos méritos da diplomacia brasileira.

318 Para um panorama das crises sistêmicas (mexicana, russa e asiática) enfrentadas pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, ver ABREU & WERNECK (2005).

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5.3 A Política Externa de Propriedade Intelectual do Governo FHC: da “globalização impositiva” ao descontentamento

Quando iniciou seu mandato, o Presidente Fernando Henrique Cardoso

declarou seu objetivo de sepultar em definitivo a “Era Varguista”, em referência

ao modelo de desenvolvimento por substituição de importações e à prática de

intervencionismo por parte do Estado, dando continuidade ao projeto que

começara a ser implantado por Fernando Collor de Mello (PINHEIRO, 2004, op.

cit., p. 60).319 De fato, em seu discurso de despedida do Senado Federal, antes de

tomar posse como Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso deixou

claras as bases políticas, econômicas e doutrinárias sobre as quais se assentaria

seu Governo.

No que tange à primeira delas, a estabilidade macroeconômica, o

compromisso assumido era o da inflexibilidade na manutenção da disciplina fiscal

e monetária, para a qual o Presidente eleito manifestava contar com a

solidariedade de seus colaboradores da área econômica e o engajamento de todo o

governo (CARDOSO, 1994, p. 5).320 A questão central era diferenciar a agenda da

modernização do desenvolvimentismo à moda antiga, baseado na pesada

intervenção estatal, seja através da despesa, seja através dos regulamentos

cartoriais (ibid, p. 6). A realidade do comportamento da economia desde a

implantação do Plano Real mostrava, segundo o então Presidente eleito, que era

possível combinar austeridade fiscal (necessária ao controle da inflação) com o

crescimento. (ibid, p. 6).

A segunda base de sustentação consistia no aprofundamento do processo

de abertura da economia brasileira e de sua integração ao mercado mundial (ibid,

p. 6). Para Fernando Henrique Cardoso, a abertura comercial promovida desde

1990 não concorreu para a “quebradeira” da indústria nacional, como previram 319 Para compreender a tradição varguista, ou do “nacional-estatismo” na política brasileira e seus reflexos até os dias de hoje, recomendamos a leitura de entrevista concedida pela historiadora Ângela de Castro Gomes, da UFF e do CPDOC/FGV, ao Jornal O Globo, em 2010. Ver GOMES (2010). CABRAL (2004) também examina a Era Vargas e como, a partir dos anos 50, “ela cristalizou um consenso de base capaz de mobilizar a elite e o povo na sustentação de um projeto nacional de desenvolvimento” (ibid, p. 87). 320 Em termos de linguagem, é interessante notar que à equipe econômica é cobrada “solidariedade”, como que a enfatizar que o consenso era essencial, enquanto que aos demais setores do Governo é solicitado “engajamento”, de forma a transmitir a mensagem de que não poderia haver discordância intra-governo quanto aos rumos da política econômica.

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muitos, mas, ao contrário, ajudou a comprovar a vitalidade do parque industrial

brasileiro (ibid, p. 7). As empresas brasileiras teriam buscado sua reestruturação e

atualização tecnológica e gerencial, conseguindo ganhos expressivos em termos

de qualidade e produtividade (ibid, p. 7).321

A terceira base constante do discurso de despedida do Senado reporta-se à

“Nova relação Estado-Mercado” (ibid, p. 7). No ciclo de desenvolvimento que se

inaugurava, o eixo dinâmico da atividade produtiva passava do setor estatal para o

setor privado:

O Estado produtor direto passa para segundo plano. Entra o Estado regulador, não no sentido de espalhar regras favoráveis especiais a torto e a direito, mas de criar o marco institucional que assegure plena eficácia ao sistema de preços relativos, incentivando assim os investimentos privados na atividade produtiva (ibid, p.8).

Com efeito, em um de seus muitos ensaios sobre o tema, Cardoso explicita

ainda mais qual a concepção de Estado que entende como adequada para o Brasil

em face dos desafios identificados no processo de globalização, o que nos remete

à dimensão do pensamento internacionalista do Presidente322, substrato para o

exercício da diplomacia presidencial:

321 CASTRO & ÁVILA (op. cit., pp. 4-6), contudo, demonstram que, em resposta à abertura, as empresas brasileiras mais agressivas conseguiram, de fato, realizar o equivalente de um parcial emparelhamento (catch up) – limitado, à operação de plantas industriais e à atualização dos produtos por elas levados ao mercado. Por outro lado, numerosas empresas passaram por mudanças muito mais modestas – ou mesmo se limitaram a improvisar soluções para sobreviver. O tecido produtivo resultante do processo de abertura não apresentou, pois, a especialização antevista pelos defensores da abertura (de forma positiva) e pelos seus críticos (de forma negativa). A heterogeneidade intrassetorial e regional da indústria só veio a ser reforçada pelas reações ensejadas pela abertura. Os autores apostam em uma política industrial e tecnológica focada na liberação do potencial das empresas, por meio de iniciativas inovadoras, uma vez que “as empresas que aí estão são sobreviventes de condições a tal ponto inóspitas ou agressivas, que se torna difícil duvidar de sua capacidade de iniciativa” (ibid, p. 10). No mesmo sentido, BONNELLI (2007) afirma que a indústria brasileira que sobreviveu à superinflação dos anos 80 e início dos 90 e às reformas dos anos 90 tem tido um desempenhado exportador bastante favorável. A indústria que sobreviveu tem demonstrado, na expressão do autor, uma “boa musculatura”. Não obstante, a preocupação com um eventual processo de desindustralização da economia, desde a abertura, mobiliza o debate econômico. 322 VELASCO E CRUZ (1999) elabora um exame detalhado de vários discursos e ensaios de Fernando Henrique Cardoso, com o objetivo de compreender suas formulações sobre as propriedades emergentes da economia mundial e as implicações que elas encerram para o Brasil. O intento mais amplo, entretanto, é, em primeiro, o de avaliar o maior ou menor grau de convergência entre o discurso do Presidente e suas antigas análises sobre a dependência (ibid, p. 227); e, em segundo, colher elementos que lhe permitam avançar na tentativa de reconhecer, na sua ação como homem público, a marca de suas antigas ideias (ibid, p 226). Tais objetivos escapam ao escopo desta pesquisa. Não pretendemos problematizar a trajetória intelectual do Presidente desde as suas formulações cepalinas. Todavia, algumas das considerações presentes no texto de VELASCO E CRUZ sobre o pensamento de Fernando Henrique Cardoso, a respeito da globalização (com suas contradições) foram úteis.

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Vivemos hoje num cenário global que traz novos desafios às sociedades e aos Estados Nacionais. Não é nenhuma novidade dizer que estamos numa fase de reorganização tanto do sistema econômico, como também do próprio sistema político mundial. Como conseqüência desse fenômeno, impõe-se a reorganização dos Estados Nacionais, para que eles possam fazer frente a esses desafios que estão presentes na conjuntura atual. [...] É imperativo fazer uma reflexão a um tempo realista e criativa sobre os riscos e oportunidades do processo de globalização, pois somente assim será possível reformar o Estado de tal maneira que ele se adapte às novas demandas do mundo contemporâneo. [...] Reformar o Estado não significa desmantelá-lo. Pelo contrário, a reforma jamais poderia significar uma desorganização do sistema administrativo e do sistema político de decisões, muito menos, é claro, levar à diminuição da capacidade regulatória do Estado, ou ainda, à diminuição do seu poder de liderar o processo de mudanças, definindo o seu rumo (1998, p. 15).

Enfim, Fernando Henrique Cardoso defende que a participação do Estado

brasileiro na economia global pode ser positiva e que o sistema internacional não

é necessariamente hostil (CARDOSO, 1996, p. 4). Contudo, admite ser necessária

cautela no movimento de inserção internacional. O diagnóstico é que o sucesso de

integração na economia global depende, de um lado, da articulação diplomática e

da construção de parcerias comerciais adequadas e, de outro, da realização de

reformas internas, democraticamente conduzidas (ibid, p. 4). Estas reformas, por

sua vez, não devem perder de vista a reafirmação da vocação industrial da

economia brasileira e de sua base tecnológica (CARDOSO, 1994, op. cit., p. 8).

A questão que se coloca é: como foi encarado desafio tão complexo? Ou

ainda: a forma como Fernando Henrique Cardoso concebeu nosso padrão de

inserção internacional (com seus apoiadores no Itamaraty) esteve conciliada com

o objetivo de reafirmar a vocação industrialista brasileira, com uma política

tecnológica? Na busca por respostas, propomo-nos a entender as bases ideacionais

de sustentação do padrão de inserção internacional do Governo Fernando

Henrique Cardoso, com foco no pensamento do Presidente sobre a globalização323

e em algumas enunciações sobre o mesmo tema, por parte de Luiz Felipe

Lampréia, Ministro das Relações Exteriores durante a maior parte de seu

mandato. Esta discussão nos permite analisar, em seguida, a trajetória das

negociações diplomáticas em propriedade intelectual, desde a negociação do

323 Assim como HURRELL (2010, p. 473), cremos que qualquer tentativa de realizar uma análise definitiva ou profunda do pensamento de Fernando Henrique Cardoso demanda grande complexidade, o que foge ao espaço desta pesquisa. A complexa relação entre pensamento e práxis reforça as polêmicas (ibid, p. 499). Nosso propósito é simplesmente sublinhar algumas ideias centrais de seu pensamento sobre a globalização e como estas repercutem na forma como o seu governo definiu seu padrão de inserção no regime internacional de propriedade intelectual.

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Acordo TRIPS, na Rodada Uruguai, passando pelas adequações domésticas,

legais e institucionais, decorrentes da adesão do Brasil ao novo regime de

propriedade intelectual, até o conflito do HIV/AIDS.

5.3.1 A Globalização segundo Cardoso: substrato ideacional da diplomacia presidencial

Nos escritos, entrevistas e discursos de Cardoso sobre a globalização,

podemos destacar um aspecto inicial (e primordial) que é o da abrangência

conferida ao termo em si. A globalização é tratada sob uma ótica

predominantemente econômica (VELASCO & CRUZ, op. cit., p. 230), mesmo

sendo admitido que ela “tornou-se uma espécie de palavra da moda. Muitas vezes

dita, mas raramente com o mesmo significado (CARDOSO, 1996a, p. 1). De

acordo com HURREL (op. cit., p. 474), isto decorre do senso de uma visão de

mundo dominante que se repete constantemente: a dinâmica estrutural da

economia mundial capitalista. Para o autor, o tema constante na obra de Cardoso,

é, sem dúvida, “a sua preocupação com o modo como o capitalismo global está se

desenvolvendo e seu desejo de compreender as implicações dessas mudanças para

os países em desenvolvimento em geral e para o Brasil em particular” (ibid, p.

474). A obra de Cardoso sobre a globalização assume, principalmente nos anos

90, um tom claramente econômico, se não economicista (ibid, p. 475). O que é

salientado é não apenas o aumento de operações e fluxos de capital, força de

trabalho, bens e serviços interestatais, mas também estruturas de produção

transnacionais e o surgimento de novos tipos de mercados desterritorializados

(ibid, p. 475). Quanto às interpretações políticas da globalização, recebem uma

ênfase relativamente menor e se dedicam a analisar o surgimento de novas formas

de governo e autoridade, novas arenas de ação política (“desterritorialização” ou a

“reconfiguração do espaço social), ou novas interpretações de identidade ou

comunidade (ibid, p. 475).

No entanto, embora HURRELL e VELASCO E CRUZ estejam de acordo

a respeito do tom “economicista” da visão de Cardoso sobre a globalização,

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especialmente a partir dos anos 90324, as conclusões a que chegam são um pouco

diferentes. HURRELL não hesita em apontar a postura de Fernando Henrique

Cardoso sobre a globalização como a de um pensador “hiper-globalista”, próxima

a de autores como Anthony Giddens, David Held e Manuel Castells. Para

Cardoso, a globalização “está exercendo um impacto profundo, talvez

revolucionário, principalmente sobre o papel do Estado” (ibid, p. 476). Sua visão

é de aceitação perante a opinião amplamente difundida de que alguns conjuntos de

políticas econômicas deixaram de ser viáveis e que os Estados enfrentam pressões

cada vez maiores para adotar políticas similares que sejam pró-mercado (ibid, p.

476). Devido ao crescente poder dos mercados financeiros, os governos se vêem

forçados a buscar políticas macroeconômicas que contem com a aprovação desses

mercados (ibid, p. 476):

A globalização significa que as variáveis externas passaram a ter influência acrescida nas agendas domésticas, reduzindo o espaço disponível para as escolhas nacionais. [...] Tanto a opinião pública internacional quanto o comportamento dos mercados também passaram a desempenhar um papel que antes não tinham na redefinição dos limites possíveis de ação para o Estado. [...] Qualquer medida julgada por estas entidades imateriais como passo em falso pode impor penalidades. Ao contrário, decisões ou eventos interpretados como positivos são recompensados. A globalização modificou o papel do Estado num outro aspecto. Alterou radicalmente a ênfase da ação governamental, agora dirigida quase exclusivamente a tornar possível às economias nacionais desenvolverem e sustentarem condições estruturais de competitividade em escala global (CARDOSO, 1996a, op. cit., p. 2).

HURRELL sustenta que o movimento intelectual de Fernando Henrique

Cardoso foi o de conferir atualização ao seu pensamento sobre a dependência, ao

acreditar que, na evolução das estruturas do capitalismo mundial, não havia

muitas opções além de se adaptar à globalização, além de serem muito limitadas

as oportunidades para um ativismo de política externa (ibid, p. 477). Portanto, por

mais que o Chanceler Luiz Felipe Lampréia se esforçasse em sustentar que a

condição periférica do Brasil no sistema internacional se restringia

exclusivamente à sua posição geográfica (por não estar situado próximo do núcleo

de países mais desenvolvidos, no hemisfério Norte) e que em nada interferia nas

possibilidades do país buscar, com liberdade, aprimorar seu padrão de inserção na 324 HURRELL afirma que, em comparação com a produção da década de 70, na produção de Fernando Henrique Cardoso da década de 90 há uma ênfase menor no impacto sociopolítico nacional da globalização em sociedades periféricas e nas suas consequências para as relações de classe (ibi, p. 475).

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economia internacional (LAMPRÉIA, 1997), o fato é que a inexorabilidade da

globalização e o imperativo de adaptação disciplinada são os ingredientes que

preenchem a visão de Cardoso sobre a globalização:

Estamos tratando, efetivamente, de um fenômeno muito mais cruel [do que as formas anteriores de dependência]: ou o Sul (ou parte dele) ingressa na corrida democrático-tecnológica-científica, investe pesadamente em pesquisa e desenvolvimento, e suporta a metamorfose da “economia da informação”, ou se torna desinteressante, inexplorado e inexplorável. O Sul se encontra sob uma dupla ameaça – aparentemente incapaz de integrar-se, buscando seus próprios interesses, e tampouco capaz de evitar “ser integrado” como servo das economias mais ricas. Os países (ou parte deles) incapazes de repetir a revolução do mundo contemporâneo e, ao mesmo, encontrar um nicho no mercado internacional, terminarão no “pior dos mundos”. Não valerão ao menos o trabalho de serem explorados, tornar-se-ão irrelevantes, sem qualquer interesse para a economia global em desenvolvimento (CARDOSO, 1996b, p. 12). Enfim, HURRELL acredita que, para Fernando Henrique Cardoso, a

“globalização em suas diversas expressões, tornou-se um componente

incontornável das decisões do governo, condicionando escolhas no plano nacional

e no plano das ações externas” (op. cit., pp. 477-478):

O que decorre dessa compreensão de mundo é que as oportunidades para moldar o sistema são limitadas. Assim, em grande medida, a principal preocupação do governo de Cardoso era a estabilização e as reformas econômicas e não o mundo e a política externa. Houve uma grande ênfase na ideia de que o Brasil precisava reafirmar suas “credenciais” de democracia liberal moderna com um aparelho estatal eficaz e uma política econômica coerente (ibid, p. 478).

HURRELL, entretanto, esclarece que isto não significa que não houve um

grande ativismo no campo da política externa. Ele existiu, mas no marco de um

senso geral, segundo o qual a tarefa principal consistia no que poderia e deveria

ser conquistado dentro do Brasil e não mais nas pretensões de mudar, confrontar

ou desafiar o mundo exterior (ibi, p. 478). O sucesso externo dependia de uma

reforma interna bem implementada. O restabelecimento da credibilidade política e

econômica do Brasil converteu-se em propósito central da política externa (ibid,

pp. 478-479). Contava-se que concorreria positivamente para a consecução

daquele objetivo a imagem internacional do Presidente, de intelectual reconhecido

e prestigiado.325 Quanto à promoção do país, a adesão completa aos principais

325 Em 1997, o historiador ERIC HOBSBAWN, em entrevista ao Programa Milênio, do Canal de Televisão Globonews (reproduzida em livro editado em 2008, com algumas das principais

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regimes internacionais possibilitaria a convergência da política externa brasileira

com tendências mundiais, evitando, assim, seu isolamento do mainstream

internacional (VIGEVANI, OLIVEIRA & CINTRA, 2003, p. 36).

Ao contrário de HURRELL, que enxerga traços mais homogêneos no

pensamento de Cardoso sobre a globalização, apontando-o, inclusive, como um

hiper-globalista, VELASCO & CRUZ sugere que o seu discurso esteve sempre

caracterizado por ambivalências que tornam complexa a tarefa de conferir-lhe

uma categorização simplificada (op. cit., p. 230). De um lado, é possível

identificar uma visão exclusivamente cética (e pessimista) da globalização como

um fenômeno capaz de tornar ainda mais proeminentes as clivagens sociais entre

os países:

O mundo pode ser dividido entre as regiões ou países que participam do processo de globalização e usufruem de seus frutos e aqueles que não participam. Os primeiros estão geralmente associados à ideia de progresso, riqueza, melhores condições de vida; os demais, à exclusão, marginalização, miséria (CARDOSO, 1996, op. cit., p. 4). Em outros momentos, a globalização é apresentada como um processo não

necessariamente (ou somente) hostil. Ela produz desastres, mas traz resultados

positivos também. Enfim, é um processo ambivalente:

[...] vivemos uma transformação equivalente à de 500 anos atrás, quando se deu a formação do capitalismo comercial, a expansão do capitalismo no mundo, a descoberta do Novo Mundo, o Renascimento. Esta é uma época equivalente, em que as mudanças ocorrem sobre uma base de enorme transformação tecnológica. [...] Hoje [...] estamos num outro patamar. Temos a conquista do espaço planetário. Temos um sistema produtivo que se integrou e, o que é mais complicado, os capitais que se liberaram e estão flutuando pelo mundo. Esse ponto é extremamente negativo do ponto de vista da ordem de cada sociedade. Sobre o sistema produtivo se tem controle. Pode-se interferir no processo decisório. Já com relação a essa massa brutal de recursos que flutuam, não há país, não há governo, não há Banco Central, nada é capaz de controlá-la. Tem-se hoje ao mesmo tempo um Renascimento e um sentimento romântico do século XIX, um sentimento de malaise. O Renascimento deu confiança ao homem. Depois, no século XVIII, o Século das Luzes, esse sentimento se reforçou. No século XIX, o romantismo trouxe o malaise, o mal-estar, à Byron. Nós vivemos a fusão dessas duas coisas. Temos um lado renascentista, ou iluminista, dos que

entrevistas realizadas pelo programa), afirmou que os brasileiros tinham sorte, por ser Fernando Henrique Cardoso um intelectual respeitado no mundo e um homem brilhante e inteligente: “os brasileiros têm sorte por viverem num país onde isso ainda é considerado uma vantagem. Nos EUA, não se considera vantajoso ter um renomado sociólogo como candidato à Presidência. Mas, no Brasil, ainda é. Isso ajuda” (HOBSBAWN, 2008, p. 40).

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acreditam na razão, e outro dos que estão angustiados (CARDOSO, 2010, pp. 131-132).326

Pode-se dizer que o lado “Renascentista”, “Iluminista” ou esperançoso é o

que prevaleceu em Cardoso no curso do seu primeiro mandato (1995-1998).327 A

globalização parece representar “uma modernidade universalizante e

historicamente progressista: não resta outra opção para o Brasil, senão adaptar-se

– e também seria normativamente correto fazê-lo” (HURRELL, op. cit., p. 480).

Porém, já no decurso de seu segundo mandato (1999-2002), este otimismo

exacerbado foi dando lugar, gradualmente, ao lado da angústia ou do mal-estar,

refletido numa posição mais crítica sobre os rumos da governança global. O

Presidente, nos primeiros anos de sua gestão, enxergava o Brasil como um país de

muitas fragilidades, que necessitava recuperar sua imagem internacional, bastante

desgastada pelo longo período de ditadura militar e de instabilidade

macroeconômica (BENTES, 2006, p. 196). No entanto, na medida em que esta

imagem foi sendo substituída pela de um país com maior estabilidade política e

econômica e com crescimento razoavelmente sustentado, o Presidente passa a

adotar uma postura mais engajada e crítica do mundo globalizado (ibid, p. 196).

No que tange à atuação diplomática do Brasil na OMC durante o primeiro

mandato de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil buscou adequar suas normas

internas aos regramentos preconizados, com o objetivo de estabelecer uma

imagem positiva e de credibilidade dentro da instituição (ibid, p. 195). Notamos,

neste caso, a prevalência da visão da globalização reificada como uma espécie de

força imperativa e impessoal, que atua coercitivamente sobre os Estados

Nacionais (VELASCO E CRUZ, op. cit., p. 235):

326 Esta citação refere-se a uma entrevista concedida ao jornalista Roberto Pompeu de Toledo, em 1997, reproduzida em livro publicado em 2010. 327 De acordo com VIZENTINI (2004, op. cit., p. 152), nos seus dois mandatos, Fernando Henrique Cardoso enfatizou a convergência da política externa com a agenda da globalização e do neoliberalismo, abandonando a ideia de um projeto nacional, traço do período desenvolvimentista. O pouco que restou, foi uma política de Estado que contrariava a sua política de Governo. A primeira priorizava, por exemplo, as relações com o Mercosul, ao passo que a segunda enfatizava a abertura, a globalização e as relações com o Primeiro Mundo. Apenas após o advento da Crise do Real, em 1999 e, em consequência do Mercosul, o Governo foi estimulado a promover um recuo e a sinalizar a intenção de avançar em direção à integração sul-americana, com as cúpulas presidenciais realizadas em 2002. Os comentários de VIZENTINI reforçam este aspecto de dubiedade e ambivalência presentes no pensamento e nas ações de Cardoso, embora deixando claro que a matriz neoliberal de inserção prevaleceu intocada.

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A globalização [...] conduz a uma crescente uniformidade do arcabouço institucional e do quadro regulatório em todos os países. Pois, para que possa desenvolver-se a globalização da produção, é preciso que as regras nos diferentes países sejam similares, de modo que não venham a prevalecer, em qualquer país, vantagens “artificiais”. Exemplo desta tendência é a introdução, na Organização Mundial do Comércio, de padrões internacionais para os direitos de propriedade intelectual e para as regras de investimento (CARDOSO, 1996, op.cit., p. 2).

Nesse marco, a nova Lei de Propriedade Industrial, aprovada nos primeiros

anos do Governo, constituiu, pois, um dos principais instrumentos com que o

governo pretendia demonstrar sua posição cordata em relação ao novo regime

internacional de comércio e transmitir uma boa imagem perante os mercados, em

termos, principalmente de projetar o Brasil como um ambiente seguro para a

atração dos capitais estrangeiros.328 De acordo com LAMPRÉIA (1999, p. 194),

com a aprovação da lei, eliminávamos uma área de contencioso real ou potencial

com graves riscos para o Brasil, que tinha sua margem de manobra reduzida

quando confrontado com reações externas que, das sanções comerciais ao puro e

simples desinteresse por investir aqui, afetavam de forma adversa a nossa

atividade econômica e reduziam a capacidade de auferir benefício das relações

econômicas internacionais.329

Desta forma, Fernando Henrique Cardoso justifica a decisão brasileira de

promulgar a nova lei:

Ainda como Chanceler, eu ajudara a aprovar no Congresso regras para o Brasil respeitar os direitos de propriedade intelectual internacionalmente aceitos no chamado Acordo TRIPS de 1994. Tema controverso, pois havia quem achasse que melhor seria não haver tais regras, porque sem elas poderíamos copiar livremente patentes, em especial no caso de medicamentos e softwares. O fato, porém, é que o Brasil, já tinha condições de produzir know how, quem produzisse teria vantagens e interesse em patenteá-los e, acima de tudo, nada justificaria ficarmos, como no passado, à margem das regras e da respeitabilidade internacionais (CARDOSO, 2006, p. 613).

A questão do resgate da imagem brasileira perante os mercados globais

está clara nas explicações do Presidente. Nota-se também a crença na capacidade

instalada da indústria brasileira como um todo, em meados da década de 90, em

328 Lei n° 9, 279, de 14 de maio de 1996, publicada no Diário Oficial da União em 15 de maio do mesmo ano. 329 A citação de LAMPRÉIA reporta-se a artigo de sua autoria publicado no Jornal o Globo, em 1° de maio de 1996, após a aprovação legislativa da atual Lei da Propriedade Industrial. O artigo, intitulado “Patentes : um grande passo”, foi reproduzido em livro de 1999.

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um inédito ambiente econômico de competição promovido pela abertura,

“estamos prontos para a competição global, não temos o que temer” é a

mensagem subjacente. O aspecto mais controverso reside, contudo, no trecho

seguinte do texto:

Mais ainda: pela lei de patentes aprovada pelo Congresso, não nos submetemos às restrições que os produtores multinacionais queriam impor. Tanto é que, anos mais tarde, na reunião que lançou uma nova Rodada de Negociações em Doha, no emirado de Qatar, pudemos salvaguardar o princípio de que a saúde do povo vale mais do que o lucro das farmacêuticas multinacionais e as ameaçamos com quebra de patentes, obrigando-as a reduzirem drasticamente os preços dos medicamentos para o combate à AIDS (ibid, p. 613, grifamos).

Em primeiro lugar, observa-se a disposição do Presidente em caracterizar

o debate político no Congresso Nacional em torno da nova lei como um processo

político que ocorreu de forma imunizada das pressões internacionais,

especialmente das grandes corporações multinacionais, de seus lobistas e do

próprio Governo dos Estados Unidos.330 É como se a agenda desse atores não

tivesse sido contemplada, em nenhum dos dispositivos da lei. Como veremos, a

lei brasileira pode ser caracterizada como uma lei “TRIPS-plus”, justamente por

ter ido além das exigências das adequações normativas exigidas pelo acordo,

estabelecendo patamares de proteção mais elevados que os exigidos, atitude que

não foi seguida por outros países em desenvolvimento, como a Índia, que se

aproveitaram mais de suas flexibilidades.

É possível perceber também a intenção do Presidente de estabelecer uma

conexão lógico-causal entre a forma como o Brasil definiu o seu padrão de

330 MOREIRA (2001, p. 240) dá conta de que, no início do Governo Collor, em 1990, em função das sanções da Seção 301, houve a criação de uma Comissão Mista de Consultas Brasil-EUA, de temática comercial, que se reunia de vez em quando. MOREIRA reconhece que, tal comissão foi utilizada pelos norte-americanos como um “veículo para dar palpites” (ibid, p. 240). E acrescenta: “não interessava ao Brasil fazer um esforço grande para depois, lá (leia-se Estados Unidos), se considerar que aquilo não cobria um mínimo de demandas dos reclamantes. Nós precisávamos fazer a coisa de uma maneira que tivesse um mínimo de aceitação” (ibid, p. 240). ABREU (1997, p. 343) afirma que, após a visita do titular do USTR ao Brasil, em meados dos anos 90, a atuação brasileira em relação ao TRIPS tornou-se mais flexível em relação às pretensões dos países demandeurs. Vale esclarecer que não pretendemos abordar os detalhes do debate legislativo que se desenvolveu no Congresso Nacional em torno da aprovação da Lei de Propriedade Industrial. Pretendemos apenas destacar os dispositivos que revelam sua natureza “TRIPS-plus”, ou seja, previsões legais acima das exigidas pelo Acordo constitutivo da OMC, e que caracterizam elevação sem precedentes da proteção à propriedade intelectual. Detalhes ricos em torno das controvérsias entre Brasil e EUA que antecederam a promulgação da Lei n° 9.279, de 14 de maio de 1996, bem como do cenário político doméstico de debate no Legislativo, se encontram em TACHINARDI (2007). A autora detalha os esforços de Fernando Henrique Cardoso como Ministro das Relações do Governo Itamar Franco, para a aprovação da lei.

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inserção internacional no Acordo TRIPS, entre 1990 e 1996 (tendo na aprovação

da nova lei seu principal sustentáculo interno de legitimação) e os resultados

obtidos na Rodada Doha, em 2001. Acreditamos que esta conexão não existe. Os

resultados da Rodada Doha (e a postura diplomática assumida pelo Brasil então)

se devem, em parte, a uma mudança (ainda que tópica e singular), observada no

processo decisório de políticas públicas, que permitiu a uma corrente econômica

minoritária dentro do governo (a dos liberal-desenvolvimentistas, representados

por José Serra, no Ministério da Saúde) forjar uma aliança política com o

Itamaraty, em parte ressentido com a perda de seu prestígio institucional e da

condição do nacional-desenvolvimento como eixo estruturante da política

externa.331 O aprendizado social a que o Itamaraty foi submetido desde a Rodada

Uruguai estimulou a iniciativa de união de esforços entre setores do governo e da

sociedade civil nacional e transnacional, mais simpáticos a uma visão da

propriedade intelectual como instrumento de desenvolvimento, entendido em uma

acepção ampla (humanitária) e não somente econômica.332

De forma geral, a posição brasileira em Doha reflete mudanças na própria

posição do Governo, mais pró-ativa em relação aos regimes internacionais no

segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. A ampla utilização do sistema

de solução de controvérsias da OMC (com vitórias brasileiras nestes

contenciosos) auxiliou a aprimorar a expertise no Itamaraty nas negociações

comerciais multilaterais.333

331 Trata-se do grupo que, popularmente, ficou conhecido como “turma dos barbudinhos” ao qual MOREIRA (op. cit., p. 234) se refere expressamente, quando menciona as resistências que o processo de abertura comercial encontrou no Itamaraty, no início dos anos 90. Do grupo, fazem parte, entre outros, o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. 332 O ambiente internacional, particularmente a atuação de organizações não-governamentais e dos Governos de outros países em desenvolvimento, como a África do Sul e a Índia, representa o outro fator relevante que ajuda a explicar o sucesso da posição diplomática brasileira em Doha. 333 Durante a Gestão Cardoso, o Brasil esteve envolvido em 21 contenciosos na OMC, quatorze, como reclamante e sete, como reclamado. Em 85% deles, os resultados foram favoráveis ao Brasil (BENTES, op. cit, p. 171).

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5.3.2 Do Trips a Declaração de Doha: inflexões ideacionais e aprendizado na política externa

Uma das características mais marcantes da Rodada Uruguai foi a inclusão,

em sua agenda, dos “novos temas”, como a propriedade intelectual. Contribuiu,

para tanto, a decisiva atuação do setor privado, particularmente de líderes e

associações ativistas da comunidade empresarial dos Estados Unidos, do Japão e

da então Comunidade Econômica Europeia (SELL, 2003a, op. cit., p. 7). O Brasil

conduziu, de início, junto com a Índia, uma coalizão de veto, opondo-se àquela

agenda, desejando que a Rodada permanecesse restrita à agenda tradicional de

tarifas de produtos industriais e à remoção das barreiras não alfandegárias e

legislações de defesa comercial dos países desenvolvidos (ALBUQUERQUE,

1996, p. 510). Por razões já expostas, a coalizão não resistiu às estratégias de

coerção ou exercício de poder (material e normativo) dos países mais

desenvolvidos (de forma articulada com as grandes corporações transnacionais)

para que os países aceitassem a inclusão dos novos temas.334

No caso particular do Brasil, a prioridade conferida pela política externa

do Governo Fernando Collor de Mello ao objetivo de remover as áreas de atrito

bilateral com os Estados Unidos (especialmente em matéria de propriedade

intelectual) concorreu também para a mudança de postura da diplomacia

brasileira. A Reunião de Bruxelas do GATT, em 1990, marcou o ponto de

inflexão, em que o Brasil procurou se mostrar mais receptivo às demandas dos

países desenvolvidos em matéria de propriedade intelectual, e passou a se

concentrar na negociação específica das propostas de reformulação dos padrões

internacionais de proteção, sem resistências a priori (ibid, p. 348), postura que

permaneceu até o fim da Rodada Uruguai. Cabe-nos então questionar: como

avaliar o desempenho da diplomacia brasileira desde então? Houve concessões em

excesso? O que foi obtido de contrapartida? A calibragem em relação à posição

mais caudatária dos Estados Unidos e dos países desenvolvidos foi adequada?

334 Detalhes do processo que minou a coalizão Brasil-Índia se encontram em ABREU (1997, op. cit., pp. 345-350) .

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Desta forma, na entrevista que nos concedeu, LAMPRÉIA descreve, em

linhas gerais, a atuação diplomática brasileira, principalmente do momento em

que esteve à frente da delegação brasileira em Genebra, em 1993:

Eu diria que a atuação brasileira não se concentrou, desde o primeiro momento, na área de propriedade intelectual. Ao contrário, muito em virtude da posição de Paulo Nogueira Batista, embaixador do Brasil em Genebra e muito influente no Itamaraty na época, o governo brasileiro se opôs fortemente à inclusão tanto de regras sobre comércio e serviços quanto à propriedade intelectual na Rodada Uruguai. Fez isso, porque acreditava que naquele primeiro momento iria representar um excesso de penetração de empresas, ou capitais, ou direitos de propriedade intelectual de estrangeiros no Brasil e que isso iria tolher e afetar negativamente o desenvolvimento tanto da indústria quanto da propriedade intelectual brasileira. Essa posição, que durou possivelmente até o início dos anos 90 (noventa), foi depois gradativamente modificada, em primeiro lugar pelo embaixador Rubens Ricúpero, que sucedeu a pauta dele em Genebra, e depois, pelo embaixador Celso Amorim, que também trabalhou lá. E, finalmente, comigo, que fui o último negociador. Por duas razões, basicamente. Em primeiro lugar, porque nos parecia que a defesa de uma atitude nacionalista, e digamos autonomista, em matéria de direito de propriedade intelectual, na prática resultava no fechamento de oportunidades de incorporação de recursos mais evoluídos tecnológicos, de pesquisas, enfim de aportes mais evoluídos de propriedades intelectuais não gerados no Brasil. A mudança política que eu acabo de descrever se refletiu também no nível de negociação técnica. E, a partir dos anos 90 (noventa), os delegados brasileiros, jovens diplomatas todos eles, foram orientados a buscar e defender dentro do Acordo TRIPS os interesses brasileiros, mas não se opor sistematicamente ao conceito de um acordo internacional sobre a questão da proteção de direito de propriedade intelectual. Fizeram isso de uma maneira bastante razoável. É claro que o Brasil não tinha naquela ocasião tanto poder de barganha, mas vários deles tiveram uma atuação muito construtiva e funcional [...]. Na área de propriedade intelectual, o principal negociador nosso era justamente o embaixador Roberto Jaguaribe335, que trabalhava diretamente comigo, de grande conhecimento no assunto e que deu uma contribuição muito válida e muito reconhecida na negociação específica do grupo de trabalho que houve lá. De maneira que o resultado final não foi talvez o mais satisfatório para nós, sobretudo na área de agricultura, que era o nosso grande objetivo, onde houve realmente um passo apenas simbólico [...]. Mas o Acordo TRIPS para nós foi considerado perfeitamente razoável e compatível com a visão do Fernando Henrique (LAMPRÈIA, 2008).

Nota-se, nas declarações de LAMPRÉIA, a visão de que a adesão ao

TRIPS se coadunava perfeitamente com os propósitos das políticas econômicas do

Governo Fernando Henrique Cardoso de busca de credibilidade e atração de

investimentos internacionais. É possível constatar também um balanço

predominantemente positivo da atuação diplomática brasileira, mas, ao mesmo

tempo, pragmático, fundamentado na crença de que o poder de barganha brasileiro 335 Roberto Jaguaribe surge como uma figura central da diplomacia brasileira de propriedade intelectual, desde a Rodada Uruguai, com reconhecimento dos dois governos que analisamos.

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era restrito. Uma das razões apontadas por LAMPRÉIA para que isto tenha

ocorrido é, justamente, a falta de apoio técnico dos negociadores brasileiros, ao

contrário dos negociadores dos países desenvolvidos, que contavam com o apoio

técnico de peso (e decisivo) de associações empresariais, think tanks e outros

grupos de interesse organizados de seus países:

[...] nós não éramos procurados – não éramos assessorados. Mesmo na Organização Mundial do Comércio, tínhamos pouquíssimo apoio. Eu sempre defendi (ainda como embaixador em Genebra) a intensificação do debate para uma maior participação na sociedade, dos interessados, afinal de contas. [...] Acho que o Itamaraty não é dono da verdade, não pode ser dono da verdade e não tem condições de ser dono da verdade; não sabe tudo, não pode fazer tudo em cada segmento da sociedade, em cada assunto. É impossível. Então, eu acho que é importante que se faça mais, que se faça mais reunião participativa da resolução como um todo, com todos os atores, com todos os setores. Porque senão o que vai acontecer é o que aconteceu na Rodada Uruguai. A área farmacêutica é que só vinha conversar conosco, os representantes da indústria farmacêutica internacional, por uma razão óbvia: porque eles são muito competentes, eles são bons no que fazem a vida inteira (LAMPRÈIA, 1998). A mesma carência, em termos de assessoramento técnico à diplomacia

brasileira durante a Rodada Uruguai, em assuntos relacionados à propriedade

intelectual, é reconhecida por Elza Parkinson de Castro, Chefe da Divisão de

Propriedade Intelectual do Itamaraty durante parte do Governo Fernando

Henrique Cardoso. A atual Ministra Conselheira na Embaixada de Dublin

apresenta, ainda, outro fator que entende relevante: a clara consciência, por parte

dos negociadores brasileiros da Rodada Uruguai, que estavam fazendo concessões

importantes em propriedade intelectual, com vistas a obter ganhos em

negociações em outras áreas, como a de produtos agrícolas336:

[...] a consciência quanto às implicações da propriedade intelectual para a criação de novos conhecimentos e tecnologias nos países em desenvolvimento sempre foi muito presente entre os negociadores brasileiros desde a Rodada Uruguai, como muito bem atesta o relatório final do negociador brasileiro, Embaixador Piragibe dos Santos Tarragô. Porém, é importante ressalvar que, à época da Rodada Uruguai, a concertação de posições dos países em desenvolvimento era muito precária. (CASTRO, 2010). Embora não tenhamos tido acesso ao Relatório do Embaixador Tarragô,

localizamos artigo de sua autoria na Revista Panorama da Tecnologia, de março 336 Detalhes sobre a negociação agrícola na Rodada Uruguai do GATT se encontram em ABREU (1997).

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de 1995, em que são trazidas à tona suas impressões sobre o desfecho da Rodada

Uruguai, com a criação da OMC. O que se nota é uma postura bastante prudente

(na realidade um alerta) sobre os possíveis desdobramentos do Acordo TRIPS e

da nova legislação brasileira de propriedade intelectual para a dimensão

institucional e decisória das políticas nacionais, industriais e tecnológicas, e

também para o desenvolvimento do país. As ideias reveladas pelo Embaixador

contrastam com a percepção de analistas como SELL (2003a, p. 9), para quem os

países em desenvolvimento não se deram completamente conta das repercussões

de TRIPS sobre suas economias nacionais, à época das negociações. Entendemos

que, pelo menos no caso dos diplomatas brasileiros, sabia-se sim o que

significaria.

A primeira percepção revelada por TARRAGÔ (1995, p. 11) é a de um

provável decréscimo do poder de influência da OMPI sobre a discussão política e

sobre o estabelecimento de padrões em matéria de propriedade intelectual, por

força da consagração do vínculo entre propriedade e comércio internacional na

OMC. Outra inovação importante do TRIPS, a da previsão de submissão de

contenciosos em matéria de propriedade intelectual ao sistema de solução de

controvérsias (SSC) da OMC, é apresentada em suas etapas procedimentais. O

objetivo é alertar os países em desenvolvimento quanto à possibilidade dos países

desenvolvidos, após a submissão de queixas ao SSC em virtude de supostas

violações aos seus direitos de propriedade intelectual, aplicarem sanções em

setores abrangidos por outros acordos constitutivos da OMC, impondo, por

exemplo, barreiras aos produtos agrícolas dos países em desenvolvimento (ibid, p.

15).337

O Embaixador alerta ainda para o fato de que, por propiciar o aporte de um

grande número de inovações, o TRIPS demandaria câmbios acentuados nas

relações comerciais, industriais e tecnológicas e no funcionamento das esferas

administrativas e judiciais nacionais no tocante à propriedade intelectual (ibid, p.

15). O diagnóstico fornecido pelo Embaixador é claro: “o reforço da proteção dos

337 Como explica SELL (2003a, p. 9), o Acordo torna o SSC acessível para dirimir conflitos sob a égide do TRIPS, e fornece a possibilidade de retaliação cruzada aos Estados que não se submeterem às regras e determinações daquele. O mecanismo da “retaliação cruzada” vem despertando, nos últimos anos, atenção do corpo diplomático brasileiro envolvido em negociações de propriedade intelectual, que discutiu formas de aplicá-la de forma favorável aos interesses comerciais brasileiros. Pelo menos um resultado prático da ameaça de aplicação desse mecanismo já ocorreu aé o momento, como se verá no próximo capítulo.

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direitos de propriedade intelectual beneficiará os grandes investidores de

tecnologia” (ibid, p. 15).

Como as regras sobre enforcement tornam a aplicação da proteção à

propriedade intelectual passível de escrutínio multilateral, TARRAGÔ entende

que as “opções nacionais de política industrial e tecnológica deverão levar

necessariamente em conta os novos padrões acordados em TRIPS” (ibid, p 15). A

conclusão do Embaixador, em 1995, era a de que o uso da propriedade intelectual

pelos governos como fator indutor do desenvolvimento teria de ser “melhor

estudado e organizado” (ibid, p. 15). Entre as propostas apresentadas, destaca-se a

dirigida aos órgãos oficiais nacionais, como o INPI, que deveriam, além das

atribuições administrativas, também desenvolver condições de prestar assessoria a

empresas e pesquisadores, para que possam explorar ao máximo as vantagens

proporcionadas pelas novas regras (ibid, p. 15).

No mesmo sentido, o Chefe da Divisão de Comércio Internacional e

Manufaturas do Itamaraty, ao final da Rodada Uruguai, Regis Percy Arslanian,

afirmava, em 1995, que os benefícios que o Brasil poderia obter do Acordo

TRIPS dependiam fundamentalmente da definição de uma nova política voltada

para a capacitação tecnológica, com mecanismo de incentivo à educação, à

criação e às atividades inventivas (ARSLANIAN, 1995, p. 61). Quanto ao

aprimoramento da legislação nacional de proteção à propriedade intelectual,

poderia contribuir para a manutenção e incremento de fluxos tecnológicos e de

investimento para o Brasil, desde que no contexto de uma política industrial

adequada (ibid, p. 63).

Entendemos que os alertas e as sugestões de políticas de TARRAGÔ e

ARSLANIAN tiveram pouco alcance dentro do Governo Fernando Henrique

Cardoso. Por mais que, no Itamaraty, houvesse diplomatas cientes das

repercussões do Acordo TRIPS em termos da menor autonomia que o país

passaria a usufruir para o desenvolvimento de políticas industriais e tecnológicas

ativas, o descompasso dessas apreensões com as diretrizes gerais de inserção

externa, de matriz neoliberal, defendidas não só pela equipe nuclear econômica

(Ministério da Fazenda e Banco Central), como também pelo Presidente e seu

Chanceler, obstaculizava qualquer possibilidade de uma posição negociadora um

pouco mais resistente - isto, para não mencionar a falta de maior respaldo técnico.

Igualmente, contribuíram para o isolamento de posições como as de TARRAGÔ,

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a falta de uma aliança próxima e sinérgica do Estado com o setor empresarial

brasileiro338 e com órgãos de pesquisa, universidades e demais atores mobilizados

em torno das questões de ciência e tecnologia.

Outro aspecto que certamente contribuiu para explicar a posição brasileira

de negociar o Acordo TRIPS foi a esperança de que o multilateralismo

representava uma via vantajosa em relação à opção de prolongamento dos

contenciosos bilaterais, majoritariamente aqueles com os Estados Unidos, que

haviam sido a tônica durante os anos 80. Negociador central na Rodada Uruguai,

Roberto Jaguaribe nos revelou que:

[...] na Rodada Uruguai (posso dizer por que tive participação direta nesse processo) já tínhamos uma noção muito clara do que nos convinha e não nos convinha. E a aceitação se dá em função do pacote geral, sobretudo do fato de que, para o Brasil, sempre é melhor ter regras multilaterais. Consolidar o ordenamento multilateral sempre foi uma prioridade nossa. Acho que, pouco a pouco, não apenas ganhamos mais competência, como ganhamos mais aliados nesse processo (JAGUARIBE, 2010). A expectativa com o Acordo TRIPS era a de que ele fosse um instrumento

para eliminar tensões e institucionalizar conflitos. Esperava-se que a

aplicabilidade do sistema de solução de controvérsias da OMC reduziria

rapidamente as pressões e as medidas unilaterais injustificadas contra países como

o Brasil (ARSLANIAN, op. cit., p. 62). Contudo, ainda durante a Rodada Uruguai

e nos anos seguintes à sua entrada em vigor, tais expectativas foram sendo

minadas pelas ações de países desenvolvidos contra alguns países em

desenvolvimento. O objetivo era convencer estes últimos a adequar logo suas

legislações nacionais aos novos padrões internacionais (apesar de previstos prazos

de transição no acordo para as suas adaptações) e a conferir proteção legal acima

dos patamares previstos no acordo (CORREA, 2000, op. cit., p. 11).

338 CUNHA (op. cit., p. 357) demonstra como a parceria “Estado-Indústria”, efetivada durante os anos 50, se desfez a partir dos anos 80, com o esgotamento do modelo de substituição de importações e a decadência gerencial do Estado. De acordo com o autor, o Governo Collor, aproveitando-se do distanciamento entre Estado e Indústria, atacou a ambos. Para o autor, a década de 90 coincide com um momento de tentativa de restauração da parceria, por meio do surgimento de novas organizações do empresariado e dos trabalhadores (ibid, p. 359). A visão predominantemente negativa do Estado em relação aos industriais brasileiros foi forjada desde os tempos em que Collor referiu-se aos carros brasileiros como “carroças” (sem entrarmos no mérito desta avaliação). Não obstante, CUNHA enxergava, na década de 90, movimentos positivos do surgimento de um núcleo de um novo projeto de desenvolvimento, com o aparecimento de novas organizações da indústria, como o IEDI – Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, e também de trabalhadores (ibid, p. 357).

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Com efeito, de acordo com as disposições do TRIPS, os países dispunham

de dois prazos de carência, de cinco a dez anos, para adaptar suas legislações

nacionais. O primeiro, na realidade, era composto pelo prazo de um ano que todos

os países signatários dispuseram para a entrada em vigor do acordo em seus

territórios, somando-se mais quatro anos, para os países em desenvolvimento

(ibid, p. 9). A esse período de transição de cinco anos, mais um período de cinco

anos foi previsto para países em desenvolvimento protegerem o patenteamento de

produtos em áreas de tecnologia não protegidas em seus territórios, na data geral

de entrada em vigor do acordo (ibid, p. 9). Este dispositivo (artigo 65.4 do Acordo

TRIPS) foi utilizado por países como Índia, Argentina, Egito e outros países

árabes para não conferir patentes a produtos farmacêuticos até o final de 2005.

A opção de alguns países em desenvolvimento de utilizar todos os prazos

de transição previstos no Acordo TRIPS, não escapou das pressões exercidas

pelos Estados Unidos no sentido de aprovarem leis nacionais que, na prática,

ignorassem aqueles. No caso da Argentina, mesmo após aprovar sua nova lei de

patentes, em maio de 1995, o Governo dos Estados Unidos seguidamente

ameaçou aplicar sanções comerciais unilaterais (ibid, p. 12). A principal demanda

norte-americana (repetida no Brasil, mas com diferentes resultados) era a de

proteção retroativa (pipeline) de patentes de produtos farmacêuticos, ignorando os

períodos de transição que a Argentina acabou optando por utilizar. (ibid, p. 12).

Em função disto, em maio de 1997, o Governo dos Estados Unidos anunciou a

retirada parcial dos benefícios da Argentina do Sistema Geral de Preferências, sob

a alegação de que o país não estava observando a proteção dos direitos de

propriedade intelectual de acordo com os padrões internacionais (ibid, p. 12).

A posição do Governo Fernando Henrique Cardoso foi diferente: renunciar

à utilização dos prazos de transição. Na entrevista que nos concedeu, Pedro

critica severamente a postura da política externa brasileira, não só em relação aos

prazos de transição, como também na opção por adotar, na legislação nacional,

patamares de proteção “TRIPS-plus” em variados institutos da propriedade

intelectual, incluídos os direitos autorais:

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[...] Fernando Henrique Cardoso herdou a negociação da OMC e TRIPS, então pouco podia fazer no desfecho de 1995.339 Mas poderia ter tomado medidas quanto à não aplicabilidade do TRIPS, antes de 2000. O TRIPS, como se sabe, é um tratado-contrato. Não é autoaplicável. Precisa ser inserido no ordenamento jurídico para ter validade. Isso é questão pacífica e clara, apesar de opiniões de juristas de peso no sentido contrário (e contratados por empresas estrangeiras com interesse na autoaplicabilidade do TRIPS). O Governo Fernando Henrique Cardoso foi omisso quanto a isso, o que gerou envio de milhões em royalties ao exterior, sem necessidade (e ilegalmente). [...] Tanto a lei 9.279/96 (propriedade industrial) como a lei 9.610/98 (direitos autorais) possuem várias cláusulas TRIPS-plus. Não estávamos obrigados a proteger patente de medicamentos até 2005. Mas o governo sucumbiu às pressões externas. Nesse meio tempo, a Índia avançou tremendamente no setor farmacêutico [...]. Direitos autorais poderiam durar por toda a vida do autor, até cinquenta anos após sua morte. Mas o Brasil escolheu o prazo de setenta anos, ou seja, vinte a mais do que o exigido pela OMC. De novo, um grande erro. Em nada contribui para o incentivo à criação, como diversos estudos econômicos de professores e economistas de renome comprovam. Foram erros injustificáveis do Governo Fernando Henrique Cardoso (PARANAGUÁ, 2011).

Márcio Suguieda também apresenta um olhar crítico sobre o padrão

“TRIPS-plus” de adesão do Brasil ao novo regime internacional de propriedade

intelectual:

O Brasil poderia ter feito uso de outros prazos de transição permitidos no Acordo TRIPS, especialmente em matéria de patentes, mas preferiu ter a então nova Lei de Propriedade Industrial já em 1996. De fato, a plena vigência dela ocorreu em maio de 1997, quase três anos antes do prazo de transição de 1º de janeiro de 2000 e, para setores específicos, quase oito anos antes do prazo de 1º de janeiro de 2005. A Índia utilizou todos os prazos permitidos e acabou fazendo muito bom uso deles. A seleção do setor farmacêutico como um dos setores estratégicos e as políticas públicas adotadas permitiram aproveitar o tempo adicional para a assunção das obrigações em favor da capacitação tecnológica local. A China, em condições diferentes (por ter sido um processo posterior de adesão à OMC), também fez muito bom uso do tempo adicional que teve para implantar e aplicar as suas novas obrigações internacionais em matéria de patentes (SUGUIEDA, 2009).

De acordo com BARBOSA (2005, p. 152), a pseudo-incorporação do

TRIPS na ordem jurídica interna brasileira foi, em regra, bem além do texto final

do acordo e sempre contra o interesse brasileiro. O autor afirma que o legislador

brasileiro, impulsionado pelo Executivo e com a guarida do Judiciário, acabou

339 Discordamos deste trecho da resposta de PARANAGUÁ, em função de, comprovadamente, Fernando Henrique Cardoso ter sido uma figura atuante em todo o processo final de negociação da Rodada Uruguai e de discussão, no Congresso, da nova legislação em propriedade intelectual, período em que ocupou os cargos de Ministro das Relações Exteriores e Ministro da Fazenda do Governo Itamar Franco.

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cedendo à pressão unilateral norte-americana, sem se aproveitar dos ganhos de

razoabilidade que vieram com o TRIPS (ibid, p. 152). As votações dos projetos de

lei no Congresso foram marcadas, de acordo com BARBOSA, por um sentido

patrimonialista (ibid, p. 149). A crítica é direcionada ao entendimento jurídico que

prevaleceu acerca da aplicação imediata do Acordo TRIPS, em desacordo com

texto do próprio tratado e da jurisprudência estrangeira e internacional, que

negaria aquela possibilidade (ibid, p. 149).340

Com efeito, nos anos 1990, havia duas correntes no Brasil com

interpretações distintas sobre a aplicabilidade do TRIPS e suas repercussões para

o prazo de vigência das patentes. De um lado, a que era liderada pela Associação

Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), que defendia que o TRIPS deveria

ser aplicado a partir de 1° de janeiro de 1995, gerando efeitos imediatos (ibid, p.

13). Pela interpretação desta corrente, os pedidos de patentes pendentes em 01º de

janeiro de 1995, e as patentes concedidas por 15 anos em vigor após aquela data,

poderiam solicitar que seus prazos de vigência fossem estendidos por mais cinco

anos, chegando a vinte (ibid, p. 13). Do outro lado, se encontrava a posição

defendida pelo INPI que, através de sua Diretoria de Patentes, externou

entendimento consolidado no Parecer Dirpa 01/97, de que o TRIPS já estaria

vigente no Brasil, mas com sua aplicação imediata adiada até o ano 2000 (ibid, p.

13). Assim, a validade da patente só poderia ser estendida para 20 anos, a partir de

janeiro de 2000. A consequência desta divergência foi uma série de medidas

judiciais contra o INPI, com o objetivo de reconhecimento do prazo de vigência

de 20 anos. As decisões judiciais consolidaram entendimento a favor da primeira

corrente (ibid, p. 14).

340 Para entendermos as diferentes interpretações, é preciso ter em mente determinadas datas. O TRIPS foi ratificado pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo n° 30, de 15 de dezembro de 1994, e promulgado pelo Decreto Presidencial n° 1.355, de 30 de dezembro de 1994, entrando em vigor em 1° de janeiro de 1995. O conflito em relação à aplicabilidade efetiva surgiu do fato do acordo estabelecer alguns parâmetros mínimos de proteção a serem obedecidos pelos países signatários, entre os quais aquele segundo o qual, desde que o TRIPS é aplicado, as patentes têm, em princípio, prazo de vigência de 20 anos. Ocorre que a Lei 9.279 (a nova lei de propriedade industrial) só entrou em vigor em 15 de maio de 1997, finalmente estabelecendo o prazo de 20 anos para vigência das patentes, alinhando-se com o TRIPS. Antes disso, a lei (conhecida como Código da Propriedade Industrial) previa prazo de vigência de 15 anos. Começou-se a difundir a tese de que todas as patentes concedidas com base no antigo Código, por uma interpretação do TRIPS, poderiam ser estendidas por mais cinco anos (DI BLASI, op. cit., p. 13).

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Outro ponto polêmico referente à aplicação do TRIPS envolveu a questão

da exclusão ou discriminação de proteção patentária por setor tecnológico,

admitida pela antiga lei nas áreas química, farmacêutica e alimentícia (ibid, p. 14).

Assim, durante a vigência do Código, não era permitida a proteção por patentes

nestas áreas. Em consonância com o TRIPS, a Lei n° 9. 279 excluiu as limitações

de patenteabilidade por setor tecnológico, para todos os pedidos em andamento

(ibi, p. 14). O INPI externou então entendimento de que os pedidos de patente em

andamento, depositados até 14 de maio de 1997, data em que a lei entrou em

vigor, relativos às exclusões previstas no antigo Código, seriam protegidos por um

procedimento especial, ao qual se deu o nome de pipeline (ibid, p. 14).341 Mas o

pipeline, na prática, acabou funcionado como mais uma opção para os

depositantes dos pedidos de patente. De acordo com uma interpretação sistemática

do TRIPS e da nova lei, os depositantes cujos pedidos em andamento tratavam das

matérias que eram excluídas pelo Código, poderiam optar por continuar com o

andamento dos mesmos, solicitando a inclusão das matérias antes excluídas (ibid,

p. 14).

A opinião da maior parte dos especialistas em propriedade intelectual do

Brasil, juristas ou não, aponta invariavelmente a decisão brasileira de conferir

abrigo legal às patentes pipeline como mais uma concessão às demandas dos

países desenvolvidos (Estados Unidos à frente) pela elevação dos patamares de

proteção, acima inclusive dos exigidos pelo Acordo TRIPS:

[...] o pipeline não tem nada a ver com TRIPS; o pipeline foi rejeitado por TRIPS. A lei interna brasileira incorporou o discurso rentista para efeitos internos numa postura TRIPS-Plus, antes de TRIPS existir (BARBOSA, 2007, p. 2).

O processo de adequação normativa “TRIPS-plus”, conduzido e concebido

pelo Governo Fernando Henrique Cardoso como instrumento capaz de alavancar a

credibilidade e imagem internacionais do país, em plena fase de estabilização

econômica (ponto central da diplomacia presidencial), não impediu que parte dos 341 Pode-se dizer que a patente pipeline é uma espécie de mecanismo de transição que se destina a conceder proteção a produtos e processos que antes não eram patenteáveis, em países que estão modificando suas leis sobre patentes. No caso dos Estados Unidos, o interesse era o de que a proteção pudesse retroagir para atingir os pedidos de patentes referentes a produtos e processos ainda em fase de desenvolvimento, de aprovação pelas autoridades sanitárias do país, e por isto, ainda não colocados no mercado; ou os recém-desenvolvidos, já lançados no mercado norte-americano, mas não no brasileiro. Para uma melhor compreensão técnica e leitura crítica do pipeline, recomendamos a leitura de BARBOSA (2006).

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diplomatas brasileiros, particularmente alguns dos que estiveram mais diretamente

envolvidos nas negociações da Rodada Uruguai, se empenhasse em garantir,

dentro dos limites viáveis, em TRIPS, um arcabouço legal mínimo para a

exploração de algumas flexibilidades ou salvaguardas mais favoráveis aos países

em desenvolvimento. Os depoimentos de JAGUARIBE (2010), ARSLANIAN

(1995) e TARRAGÔ (1995) atestam que os negociadores brasileiros tinham plena

consciência das concessões que estavam sendo feitas, assim como dos desafios a

buscar após a aprovação do TRIPS, em termos da formulação de uma política

nacional industrial e tecnológica. Pode-se dizer que, apesar da ideia do

desenvolvimento ter sido deslocada da condição de eixo estruturante da política

externa, no sentido tradicional que o Itamaraty sempre lhe conferiu (do nacional-

desenvolvimentismo e do “crescimento voltado para dentro”), não foi descartada

por completo. O que era necessário era repensá-la, face os novos

constrangimentos do regime internacional da propriedade intelectual, de forma

particular, e do regime internacional de comércio da OMC, de forma geral.

Entre as salvaguardas presentes em TRIPS, uma das principais é a do

instituto da licença compulsória, em caso, por exemplo, de emergência nacional e

ocorrência de práticas competitivas ou desleais de comércio (abuso de poder

econômico). De acordo com ARSLANIAN, “a existência de salvaguardas reduz a

força dos direitos exclusivos de propriedade intelectual e viabiliza ações

governamentais” (1995, op.cit., p. 62).

O instituto da licença compulsória foi recepcionado pelos artigos 68 e 71

da Lei n° 9.279/96: Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial. [...] Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular.

Além da disposição acima, o artigo 68 determina que a exploração do

objeto da patente deverá ser feita através de fabricação local (inciso I). Caso isso

não ocorra, o titular da patente é penalizado com uma licença compulsória – que

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popularmente ficou conhecida como quebra de patente (DI BLASI, op. cit., p.

16). O suposto conflito entre o artigo 68 com disposições do TRIPS que não

permitiriam discriminação quanto à fabricação local (artigo 27 do Acordo)

ensejaram a abertura de panel dos Estados Unidos contra o Brasil, na OMC, em

fevereiro de 2001. Os norte-americanos reputavam como ilegal a fabricação de

medicamentos protegidos por patentes, pelos laboratórios farmacêuticos

brasileiros, os chamados genéricos (ibid, p. 16). Em resumo, os Estados Unidos se

opunham à exploração de medicamentos sem autorização dos detentores dos

direitos de patentes – no caso, as corporações farmacêuticas norte-americanas

(ibid, p. 16).

De fato, em 1997, o governo brasileiro lançara um programa de combate

ao vírus HIV/AIDS, que tornava obrigatória a distribuição de medicamentos

antirretrovirais aos portadores da doença. Para diminuir os custos do programa, a

Rede de Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Ministério da Saúde passou a

produzir genéricos destes medicamentos, amparada pela Lei dos Genéricos (Lei

n° 9.787, de 10 de fevereiro de 1997). Ocorre que, entre os 12 medicamentos que

faziam parte do coquetel de combate à síndrome, apenas nove eram de domínio

público, podendo ser, portanto, fabricados pelos laboratórios do governo e

distribuídos gratuitamente.342 Os outros três eram explorados pelos seus

respectivos titulares, todos grandes laboratórios farmacêuticos multinacionais dos

Estados Unidos. A falta de consenso entre o governo brasileiro e os titulares

dessas patentes de medicamentos quanto aos preços ensejou, por parte do Brasil, a

intenção de aplicar o artigo 68 da Lei n° 9.279/96. A justificativa manifestada era

a de que a necessidade de pagar aos respectivos titulares das patentes encareceria

muito o programa de distribuição dos medicamentos à população, de caráter

gratuito (DI BLASI, op. cit., p. 18).343

O governo norte-americano temendo que o Brasil fosse, de fato, se valer

licenças compulsórias para fabricar os medicamentos contra o HIV/AIDS, passou

a exercer pressão diplomática, em particular na OMC, para tentar impedir a 342 Como argumentava o Ministro da Saúde, José Serra, tais medicamentos genéricos antirretrovirais produzidos localmente não afrontavam o TRIPS, uma vez que haviam sido todos produzidos sob o advento do antigo Código de Propriedade Industrial, que não permitia o patenteamento de medicamentos (CEPALUNI, op. cit., p. 79). 343 Foi por causa desta alegação que o dispositivo invocado pelo Brasil para aplicar a licença compulsória foi o artigo 68 (que trata do abuso de poder econômico) e não o artigo 71 (que trata dos casos de emergência nacional e interesse público). Os Estados Unidos questionaram, inclusive, esta escolha, durante as discussões do panel contra o Brasil (ibid, p. 18).

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aplicação do instrumento. Não obstante, o Brasil utilizou-se do artigo 68 para

obrigar os detentores das patentes dos três medicamentos a reduzir os seus preços

(ibid, p. 18). Foi esta decisão do Governo Fernando Henrique Cardoso que

motivou os Estados Unidos a, finalmente, recorrerem à OMC. Assim, em 09 de

janeiro de 2001, o Brasil defrontou-se com um pedido de abertura de painel, que

acusava a lei brasileira de violar as regras do Acordo TRIPS. Em 18 de maio do

mesmo ano, numa estratégia diplomática inventiva, o Brasil decidiu apresentar

uma proposta à Organização Mundial de Saúde (OMS) para que o acesso a

medicamentos para pacientes com AIDS fosse reconhecido como direito humano

fundamental. Apesar das resistências da delegação dos Estados Unidos, que

contestava a política brasileira na OMC, a proposta brasileira foi aprovada por

unanimidade pelos 188 membros da Assembleia Geral da organização.

Contribuiu muito para o resultado obtido na OMS o apoio dos países em

desenvolvimento, maioria entre os signatários da instituição (entre eles, países que

enfrentavam conflitos semelhantes, como a África do Sul) e de organizações não-

governamentais de defesa dos direitos humanos e dos portadores do vírus

HIV/AIDS. Um mês depois, em junho de 2001, após um acordo celebrado com o

Brasil, o Governo dos Estados Unidos decidiu retirar a queixa que apresentara na

OMC, ao passo que o governo brasileiro se comprometeu a avisar previamente,

sempre que resolvesse aplicar licenças compulsórias de patentes de medicamentos

fabricados por empresas norte-americanas.344 Finalmente, em novembro do

mesmo ano, a “Declaração sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública” da IV

Conferência Ministerial de Doha reconheceu o direito de cada membro da OMC

de conceder licenças compulsórias e de estabelecer parâmetros para a concessão

das mesmas (ibid, pp. 81-82). 345

344 Para CEPALUNI (2005, p. 81), o Brasil não teve só ganhos, uma vez que abriu mão de sua soberania interna ao estabelecer um acordo em que se comprometeu a avisar aos Estados Unidos todas as vezes que fosse utilizar o artigo 68, em situações envolvendo patentes pertencentes a companhias norte-americanas. O acordo bilateral foi celebrado out-of-court, ou seja, fora do manto institucional da OMC. DI BLASI (op. cit. p. 19) registra também o fato de que, a partir do episódio do panel, muitos produtos brasileiros, como a laranja, o aço etc, passaram a ser sobretaxados no mercado norte-americano, trazendo prejuízos para a balança comercial do país e ensejando novos contenciosos na OMC. 345 Vale lembrar que não somente o pedido de abertura de um painel contra o Brasil por conta das licenças compulsórias que concorreu para o contexto de negociação diplomática que resultou na “Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública”. Outro fato relevante foi um litígio proposto pela indústria farmacêutica contra o Governo da África do Sul, por ter o país implementado uma série de medidas em prol do acesso a medicamentos que supostamente conflitavam com as regras do acordo TRIPS (GUISE, op. cit., p. 93). Deve-se registrar que o pedido original para o Conselho

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A Declaração de Doha contribuiu para o reconhecimento da estreita

vinculação entre propriedade intelectual e saúde pública (DI BLASI, op. cit., p.

20). Reforçou o mesmo princípio advogado pelos países em desenvolvimento, a

OMS e a sociedade civil: “a reafirmação dos direitos dos membros da OMC de

fazer uso total das flexibilidades previstas no Acordo TRIPS para promover a

saúde pública e promover o acesso a medicamentos” (GUISE, op. cit., p. 92). Ao

separar a saúde pública das demais questões relacionadas ao comércio, a

Declaração de Doha reconheceu que os medicamentos não são uma mercadoria

como outra qualquer. Eles não só podem, como devem, receber tratamento

diferenciado de outras invenções em prol da proteção da saúde pública (ibid, p.

92).

Chefe da Divisão de Propriedade Intelectual do Itamaraty durante a maior

parte do Governo Luiz Inácio Lula da Silva, Otávio Brandelli resume assim o

significado da Declaração de Doha para a diplomacia brasileira:

A importância principal foi política, no sentido de contrarrestar o movimento pró-erosão das flexibilidades e ganhos arduamente negociados pelos países em desenvolvimento na Rodada Uruguai. De todos os aspectos da Declaração de Doha, considero que os mais relevantes são os seguintes: (i) reafirmar que a saúde pública deve prevalecer, conforme dispõe o TRIPS em seus artigos 7 e 8 (parágrafo 4 da Declaração de Doha); (ii) reafirmar que cada país membro tem o direito de estabelecer os fundamentos sobre os quais as licenças compulsórias podem ser concedidas (parágrafo 5.a). Este aspecto é importante para rechaçar interpretação equivocada comumente difundida, com vistas a diminuir as flexibilidades do Trips, alegando-se erroneamente que a licença compulsória só poderia ser concedida em casos de emergência ou extrema urgência. Segundo o art 31.b do TRIPS, a emergência ou urgência limitam-se a justificar a dispensa de negociação prévia com o titular do patente, e de forma alguma configuram condições para o licenciamento compulsório (BRANDELLI, 2009).346

de TRIPS se reunir para discutir as relações entre o TRIPS e saúde pública foi feito por um grupo de países africanos, representado pelo Zimbábue, em abril de 2001. 346 Como mencionamos, durante as discussões no panel contra o Brasil, os Estados Unidos questionaram a aplicação das medidas compulsórias, com base no artigo 68 da lei brasileira (que trata de situação de abuso de poder econômico), alegando que o dispositivo correto seria o artigo 71 (que trata de situações de emergência nacional). Cabe salientar que, em 2001, os Estados Unidos e Canadá conjeturaram a possibilidade de fazer uso da licença compulsória para assegurar preços baixos para a ciprofloxacina, logo em seguida aos ataques envolvendo o vírus antraz, em 2001 (GUISE, op. cit., p. 93)

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BRANDELLI também discorre sobre o principal elemento de continuidade

que enxerga na formulação da política externa de propriedade intelectual do

Brasil, desde a finalização da Rodada Uruguai, para o qual a Declaração de Doha

teria contribuído para solidificar ainda mais: a posição de que o Acordo TRIPS é

um “teto de obrigações”. Cabe ao Brasil refutar então qualquer tentativa de

ampliar os compromissos de proteção assumidos no Acordo. Ao contrário, a

prioridade é evitar que as flexibilidades que ele oferece aos países em

desenvolvimento não possam ser adequadamente aproveitadas:

Durante a negociação do TRIPS, o Brasil atuou de forma determinante para incluir as chamadas flexibilidades no Acordo, os princípios e objetivos que o regem e também linguagens de certa ambigüidade que permitiriam a interpretação nacional conforme as tradições jurídicas de cada país. Desde a conclusão da Rodada [...] o Governo brasileiro adotou a posição de que o TRIPS é um teto de compromissos internacionais, e que qualquer nova concessão nessa área só se daria em contexto negociador mais amplo. Temos tido esta posição de que o TRIPS é um teto e que, no interesse público da população brasileira, não se deve fazer qualquer concessão adicional, desnecessária, em matéria de propriedade intelectual. Não foi invenção do Brasil vincular a propriedade intelectual aos temas de comércio, mas, agora, ela está vinculada inexoravelmente aos temas de comércio. Na lógica das negociações comerciais, nenhum país sério entrega gratuitamente seus interesses mediante concessões desnecessárias. Por esse motivo, o Itamaraty tem tido máxima cautela na abordagem de qualquer negociação que possa significar a ampliação desnecessária e inoportuna de compromissos sobre direitos de propriedade intelectual, inclusive no que se refere a processos de “harmonização”. A harmonização não é por si só um valor positivo a ser perseguido. Ao contrário, a harmonização pode significar restrição da margem para a adoção de políticas próprias, voltadas para o atendimento dos interesses nacionais. Essa posição tem sido mantida ao longo dos anos, apesar de fortes interesses exógenos em contrário (BRANDELLI, 2009).

Não obstante esta importante colocação acerca do traço principal de

continuidade que teria demarcado a política externa brasileira de propriedade

intelectual brasileira, desde a Rodada Uruguai, é pertinente refletir

particularmente sobre a questão do HIV/AIDS e seu significado para o Governo

Fernando Henrique Cardoso. De fato, apesar de, no campo da formulação da

política externa, ser possível observar um claro processo de aprendizado na

negociação (demonstrado na forma hábil com que o Brasil forjou uma ampla

aliança transnacional para defender o princípio, material e normativo, de que

TRIPS representa o teto de obrigações), no que tange à dimensão decisória de

políticas públicas, o que se observa, ainda que de uma forma episódica, é um

descolamento do padrão de inserção externa defendido pela equipe econômica do

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Governo, para a qual o que importava era o resgate da credibilidade e da imagem,

a normalização das relações com os Estados Unidos e uma atitude cordata em

relação aos regimes internacionais. Como explicar esta atitude de maior

“rebeldia”?

Em outras palavras, como explicar a postura mais assertiva do Brasil nas

delicadas e controversas negociações sobre licença compulsória e as relações

entre propriedade intelectual e saúde pública, ocorridas na OMC, na OMS e no

plano bilateral com os Estados Unidos? Quais as lideranças e instituições

envolvidas? Quais foram os reais méritos da diplomacia brasileira, em particular,

e do Governo Fernando Henrique Cardoso, de forma geral, para a Declaração de

Doha? O que ela deixou, como legado, para a dimensão da formulação de

políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil, particularmente a política

externa?

As opiniões de nossos entrevistados divergem quanto às questões

levantadas.

Kenneth Nóbrega, diplomata que assumiu a Chefia da Divisão de

Propriedade Intelectual do Itamaraty, após a nomeação de Otávio Brandelli para

constituir a Missão do Brasil na ALADI (Montevidéu), reconhece o “efeito

aprendizado” que as negociações de Doha tiveram sobre a diplomacia brasileira:

[...] nós passamos de uma situação absolutamente defensiva para uma posição mais ofensiva em relação às pressões que vêm de fora, construímos uma postura mais propositiva. [...] Acho que agregamos essa dimensão (NÓBREGA, 2009).

Leopoldo Coutinho, Coordenador de Cooperação Internacional do INPI,

também concorda que o “efeito aprendizado” ajuda a explicar a postura brasileira

em Doha, e em todas as importantes negociações que antecederam a IV

Conferência Ministerial da OMC:

Não há dúvida de que a Declaração de Doha demonstrou que os 8 (oito) anos, que nós ficamos na Rodada Uruguai, não foram em vão. Na área diplomática, houve sim um aprendizado muito grande sobre qual é o caminho a ser seguido, se nós queremos que as nossas teses prevaleçam. Na Rodada Uruguai, o aprendizado que nós tivemos foi o de que houve uma articulação grande dos países desenvolvidos junto à iniciativa privada que deu peso ao posicionamento que eles vinham a colocar para que propriedade intelectual pudesse vir a ser um tema tratado na Organização Mundial do Comércio.[...] na Declaração de Doha [...] a nossa diplomacia se articulou internamente com entidades no Terceiro Setor que tem suas sedes nos principais países desenvolvidos. E essas entidades, com seu

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poder de penetração junto à sociedade civil desses mesmos países, fizeram com que os países desenvolvidos, em seus respectivos governos, ficassem com uma posição pouco confortável para definir teses contrárias ao princípio de que saúde pública está acima dos direitos de propriedade intelectual, o que é o seio da Declaração (COUTINHO, 2010). Por outro lado, alguns entrevistados relativizam os méritos da diplomacia

brasileira e do Governo Fernando Henrique Cardoso. Um deles, Pedro Paranaguá,

apresenta qual foi, na sua visão, o principal evento que motivou a Declaração de

Doha:

Certamente Doha foi marcante. Mas não creio que isso tenha sido por influência do governo Fernando Henrique Cardoso. A situação política internacional na área de patentes e medicamentos é que levou a Doha. Os embates na África do Sul (com repercussão mundial) representaram o principal motivo para a Declaração de Doha. Certamente, José Serra fez bom uso disso, com as ameaças de licenciamento compulsório. (PARANAGUÁ, 2011). Com efeito, não são poucos os que atribuem não tanto ao Brasil, e mais às

demandas dos países africanos (em especial, a África do Sul) ou à atuação das

organizações não-governamentais junto aos países desenvolvidos, os méritos pela

Declaração de Doha.347 De qualquer forma, isto não significa, absolutamente, que

a participação brasileira não tenha sido relevante. Os fatos que levaram a Doha

contaram com acompanhamento inédito da opinião pública nacional e

internacional e certamente contribuíram para projetar a imagem do Brasil como

um líder dos países em desenvolvimento nas controvérsias globais sobre

propriedade intelectual. Para DeSALVO, o Brasil provou ser o mais bem sucedido

desafiante do TRIPS ao proteger os direitos das nações em desenvolvimento (op.

cit., p. 13). O sucesso do programa de distribuição de medicamentos contra o

HIV teria encorajado outros a seguir o modelo (ibid, p. 20). A conclusão do autor

347 O trabalho de SELL e PRAKASH (2004) é interessante neste sentido porque demonstra que, ao contrário do convencionado (da visão predominante), as organizações governamentais empenhadas nas discussões sobre propriedade intelectual e universalização de acesso aos medicamentos agiram obedecendo não somente a princípios normativos ou ideacionais, mas também instrumentais. Os autores discordam das visões sobre as organizações não-governamentais que tendem a considerá-las de natureza diversa dos grupos de interesse. Apesar disso, admitem que a moldura normativa proposta por aquelas organizações – “cópia=vida”, em contraponto à moldura “patentes=lucro=pesquisa=cura”, das corporações farmacêuticas – ajudou a forjar a coalizão transnacional que se mobilizou para a aprovação da Declaração de Doha. Para um estudo aprofundado sobre a influência das organizações internacionais na contestação do regime internacional de propriedade intelectual, a partir de uma perspectiva normativa e instrumental, ver MELLO E SOUZA (2005).

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é a de que o Brasil, ao priorizar a concepção do “desenvolvimento como

liberdade”, em detrimento da concepção do “desenvolvimento como

crescimento”, logrou desestabilizar o sistema de propriedade intelectual e

confrontar as regras postas em vigor pelas instituições internacionais (ibid, p. 13).

Outra crítica é dirigida à Declaração de Doha, mas não propriamente à

declaração em si (ao seu texto e ao princípio que consagrou), mas a um de seus

efeitos ideacionais, no Brasil: a controvérsia originada na saúde pública teria

transbordado para outras áreas, disseminando a ideia da propriedade intelectual

como algo necessariamente nocivo (uma “cultura antipatentes”), o que, no

entender destes críticos, é um pensamento arcaico nos tempos atuais da

“economia do conhecimento”. É a visão que nos apresenta Jorge Ávila:

[...] eu diria que no governo Fernando Henrique não havia uma política de propriedade intelectual. A propriedade intelectual era muito pouco discutida. Ela tinha sido objeto de uma controvérsia gigantesca no período anterior, que gerou a lei, que culminou com a aprovação da lei. [...] no momento em que houve a aprovação, meio que cessou a discussão dentro do governo sobre isso. [...] E não se discutia porque ninguém achava que fosse relevante. Não havia uma compreensão disso. Onde que havia uma discussão sobre propriedade intelectual? Onde o “sapato apertava”: na área da saúde. Ali havia toda uma discussão sobre o acesso aos medicamentos e sobre a questão do HIV. Você tinha uma discussão localizada, como ela deveria ser, mas essa discussão, sobre um problema específico, acaba por conformar uma mentalidade diante da propriedade intelectual. Ou seja, como se problemas específicos daquela área fossem gerados por características universais do sistema e que aquilo fosse uma ocorrência apenas exemplar de um problema que acontece em todas as áreas. O que não é verdade (ÁVILA, 2010). O diagnóstico apresentado por ÁVILA leva-nos a indagar os motivos que

levaram à bem sucedida articulação política do Governo Fernando Henrique

Cardoso em torno, justamente, da questão das licenças compulsórias e dos

medicamentos genéricos e não de outras, com todos os desdobramentos

internacionais que gerou. Os embriões institucionais de tal articulação, ao que

tudo indica, foram o Ministério da Saúde, sob a liderança do Ministro José

Serra348 e o Itamaraty que, desde a Rodada Uruguai, vinha aprimorando seu

padrão de atuação nos contenciosos na OMC e treinando seus jovens diplomatas

em Genebra e Bruxelas, para lidar com cenários de conflito comercial

348 Vale a leitura do artigo do então Ministro da Saúde, na Revista Panorama da Tecnologia, de setembro de 2001. Trata-se de uma síntese de todas as posições defendidas pelo Brasil em Doha. Ver SERRA (2001). Ver também AMORIM & THORTENSEN (2002).

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(LAMPRÈIA & CRUZ, op. cit., p. 108).349 Contudo, uma terceira variável não

pode deixar de ser considerada: tênues mudanças ideacionais na concepção

pessoal de Fernando Henrique Cardoso sobre os rumos dos regimes de

governança global, o que se refletiu em algumas tomadas de decisão no nível

presidencial, como a de prestigiar a política de medicamentos que vinha sendo

empreendida pelo Ministério da Saúde, em detrimento da resistência interna que

ela encontrava na equipe econômica do Governo.

Podemos afirmar que não só o Itamaraty passou por um processo de

aprendizado, mas também o próprio Presidente. A visão de Fernando Henrique

Cardoso da globalização como um fenômeno impositivo, mas ao mesmo tempo

potencialmente inclusivo, foi sofrendo inflexões na medida em que se dava conta

de que os retornos esperados com a opção brasileira de se integrar a todos os

principais regimes internacionais já existentes – como o de não-proliferação

(TNP) - ou novos – como o regime de TRIPS – não se materializavam, como o

maior acesso das exportações brasileiras aos mercados dos países desenvolvidos.

Já no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, devido ao mau rumo das

negociações para a formação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), e

com o advento da crise financeira de 1999 (que denunciou a vulnerabilidade do

país), a política externa brasileira voltou-se novamente para o MERCOSUL e a

América do Sul, elevados à categoria de projetos de inserção internacional

(SILVA, op. cit., p. 15). Aumentou o tom crítico do Presidente acerca das

assimetrias e da distribuição desigual de poder do sistema mundial (ibid. p. 15).350

De acordo com CERVO & BUENO (op. cit., p. 491), Cardoso, o neoliberal, se

tornou cético ao elaborar o conceito de globalização assimétrica.351

349 Entrevistamos um desses jovens diplomatas. Trata-se de Henrique Choer Moraes, que atuou na Divisão de Propriedade Intelectual (DIPI) do Ministério das Relações Exteriores de fevereiro de 2004 a setembro de 2007. Desde outubro de 2007, se encontra na Missão do Brasil junto às Comunidades Europeias (Bruxelas), onde está encarregado de acompanhar temas de propriedade intelectual, além de seguir as atividades da Organização Mundial de Aduanas (OMA). 350 Para VIZENTINI (2004, op. cit., p. 152), contudo, Fernando Henrique Cardoso não possuía as credenciais que possibilitassem ultrapassar um tímido discurso crítico. 351 Por diversas oportunidades, tanto no decurso, como após o seu governo, Cardoso tratou de rejeitar tal qualificação: “há essa acusação ridícula, contra a qual me rebelo sempre, de neoliberalismo. Você é a favor do neoliberalismo? A favor de quê? Da inexistência de regra? Isso não funciona. Eu quero regra.” (CARDOSO, 2010a, op. cit., p. 142). Para HURRELL (op. cit., p. 480), Cardoso não é um neoliberal, já que, em suas formulações, o Estado continua sendo importante, somente precisando de reforma e modernização, uma tarefa difícil e demorada. Com efeito, entre nossos entrevistados, todos que foram questionados quanto à possibilidade de categorizar Fernando Henrique Cardoso como neoliberal, se recusaram a fazê-lo. Mesmo entre adversários intelectuais como GUSMÃO (2010) e JAGUARIBE (2010), a resposta foi a de que

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Foi nesse contexto de desgaste da matriz neoliberal de inserção que

Fernando Henrique Cardoso se sentiu estimulado a prestigiar a política de

medicamentos de José Serra no Ministério da Saúde. As motivações do Presidente

podem ser compreendidas tanto sob uma perspectiva ideacional, quanto material.

A ideacional manifesta-se na postura mais cética e crítica a que acabamos de nos

referir. Já a material está presente na conjuntura política da discussão sobre a

sucessão presidencial, entre os anos de 2000 e 2001, o que certamente contribuiu

para fortalecer a presença de José Serra no Governo.

Durante o tempo em que esteve à frente do então Ministério da Indústria,

do Comércio e do Turismo (MICT), de setembro de 1999 a julho de 2001, Alcides

Tápias presidiu também a Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), órgão

colegiado interministerial, então vinculado diretamente à Presidência da

República.352 Neste período, foi testemunha de disputa entre o Ministério da

Saúde e o Ministério da Fazenda, que só alcançou solução com a intervenção

pessoal do Presidente Fernando Henrique Cardoso:

Na CAMEX, todas as decisões que eram tomadas tinham que ser por unanimidade, pois era uma delegação do Presidente da República. Vários ministros participavam da decisão. [...] José Serra queria a aprovação e uma recomendação da CAMEX para importar produtos farmacêuticos, sem o pagamento de determinados impostos. O Ministro Malan não concordava. Por várias vezes, tentei conduzir a reunião para evitar que não houvesse unanimidade. Mas muitas vezes foi necessário o Presidente da República decidir. E ele decidiu, apoiando a maioria da Camex e me recomendando autorizar a importação, limitada na quantidade, com isenção de impostos, para permitir a fabricação de remédios aqui numa escala maior e a preço mais competitivo. Esse era um embate que acontecia sempre entre o Malan e o Serra, enfim, e eu não ia fazer o papel de árbitro. Eu colocava isso “no colo” do Fernando Henrique..

categorizar Fernando Henrique ou seu governo de neoliberal era por demais simplista e artificial. Para nossa análise, os sentimentos pessoais de identificação intelectual com as ideias pouco importam. Vale mesmo é o seu poder de persuasão, ou seja, de convencer os tomadores de decisão a adotá-las como as mais capazes de lidar com os problemas emergenciais da nação. A persuasão de uma ideia prescinde da identificação intelectual prévia por parte do tomador de decisão. No caso do Brasil, a resposta das ideias neoliberais aos problemas da inflação, da instabilidade econômica e da falta de crescimento foi o que determinou a receptividade que obtiveram. 352 Depois que o MICT foi transformado em MDIC, em 2001, a CAMEX passou a ser subordinada a este. Hoje ela é subordinada ao Conselho de Governo da Presidência da República, por força do Decreto n°4.732, de 10 de junho de 2003. A CAMEX é integrada pelo Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que a preside, e pelos Ministros Chefe da Casa Civil, das Relações Exteriores, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do Planejamento, Orçamento e Gestão, e do Desenvolvimento Agrário. Entre suas atribuições, está a de definir as diretrizes e procedimentos relativos à implementação da política de comércio exterior visando à inserção competitiva do Brasil na economia internacional. Para mais informações, consultar o endereço: <http://www2.desenvolvimento.gov.br/sitio/camex/camex/competencia.php>.

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Do episódio relatado por TAPIAS, nota-se que coube ao Presidente

Fernando Henrique Cardoso posicionar-se favoravelmente à importação de

medicamentos, com o objetivo de favorecer a fabricação local. Naturalmente, o

Ministério da Fazenda colocou-se contrário à medida, pois sabia que isto poderia

ser questionado na OMC, como aconteceu. A decisão do Presidente acabou por

beneficiar, na visão de TAPIAS, o programa universal de acesso gratuito aos

medicamentos antirretrovirais, do Ministério da Saúde, que já vinha sendo

desenvolvido desde 1997, com a Lei dos Genéricos.

O posicionamento “pró-Serra” por parte de Fernando Henrique Cardoso

vai de encontro à percepção de SALLUM JR (op. cit., p. 49) de que, em seu

segundo mandato, o Presidente perdera muito apoio popular, especialmente após a

desvalorização monetária, em 1999. Com a crise cambial, o governo viu-se

impossibilitado de cumprir as promessas de retomada do crescimento econômico

(ibid, p. 49). Apesar da inflação não ter voltado e das atividades econômicas terem

retomado gradualmente o crescimento, um ano depois, o Presidente não conseguiu

recuperar o prestígio político e a liderança que tinha durante o seu primeiro

mandato (ibid, p. 49). Apoiar José Serra, a “causa dos genéricos e das licenças

compulsória” e a investida diplomática contra as corporação farmacêuticas

consistiu em estratégia para tentar resgatar aquela credibilidade minada. Apesar de

José Serra representar uma corrente econômica minoritária durante todo o

governo353, a decisão de apoiar suas propostas se enquadrava, em termos

conjunturais, às pretensões de continuidade no poder do PSDB.

COUTINHO apresenta impressão semelhante do mesmo cenário, apesar

de não ter participado das negociações do governo em torno da política dos

genéricos e da aplicação das licenças compulsórias, bem como das negociações

diplomáticas que se sucederam:

353 De acordo com SALLUM JR, no interior do governo havia, de um lado, a corrente “liberal fundamentalista” orientada basicamente para a estabilização monetária e comprometida com a promoção de uma economia de livre mercado e, de outro, uma tendência liberal-desenvolvimentista, mais inclinada a equilibrar estabilização monetária com um crescimento competitivo da economia local, mediante a intervenção moderada do Estado (ibid, p. 45). Como representantes da primeira corrente, destacaram-se Gustavo Franco e Pedro Malan e, de forma geral, os economistas da PUC-RJ. Da segunda, os principais adeptos eram José Serra (Ministro do Planejamento e, depois, Ministro da Saúde), Luiz Carlos Mendonça de Barros (Presidente do BNDES) e José Roberto Mendonça de Barros, Secretário de Política Econômica. Esta divisão dentro do governo é reconhecida também por ABREU & WERNECK (op. cit., p. 4).

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[...] eu não fui um dos protagonistas em termos de estar presente nas negociações internas do governo. Mas a percepção que tenho é a de que o Serra, à época como ministro da Saúde, com o conhecimento econômico que tinha [...] certamente, houve articulação junto ao Itamaraty para que a propriedade intelectual fosse vista de uma forma, digamos assim, mais adequada no que tange à questão da saúde pública. [...] A saúde pública ganha relevância, talvez em função de um projeto de continuidade de governo e do Serra ser o possível candidato do Fernando Henrique. Então, eu vejo como um cenário de prevalência do José Serra como ator nesse sentido, mas nesse ponto específico da história. É interessante que, quando vem a mudança de governo, e Lula assume, em função da sua ênfase na política social, isso acabou tendo também uma coerência. (COUTINHO, 2010).

Não obstante as razões instrumentais, de ordem conjuntural, que criaram

condições favoráveis para o prestígio alcançado pelas políticas de saúde pública, é

preciso reconhecer que o episódio de aplicação de licenças compulsórias, com

seus desdobramentos na esfera internacional (Declaração de Doha), representou

um legado ideacional da política externa de propriedade intelectual do Governo

Fernando Henrique Cardoso. Projetou a imagem do Brasil, tanto interna quanto

externa, como defensor dos direitos universais das populações mais carentes de

acesso aos medicamentos contra a AIDS. Os reais méritos da diplomacia

brasileira chegam a ser relativizados por alguns especialistas, mas não afetaram

aquela percepção geral.

A repercussão interna pode ser ilustrada pela percepção dos agentes da

propriedade industrial. Indagados sobre o quanto a política de produção de

medicamentos genéricos contra o vírus HIV/AIDS e a aplicação das licenças

compulsórias foi importante para a diplomacia brasileira, os agentes responderam

da seguinte forma:

9%

9%

36%

46%

0%

0% 10% 20% 30% 40% 50%

Sem importância

Pouco importante

Importante

Muito importante

Não estou familiarizado com o assunto

9%

9%

36%

46%

0%

0% 10% 20% 30% 40% 50%

Sem importância

Pouco importante

Importante

Muito importante

Não estou familiarizado com o assunto

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Assim, 82% dos agentes consideram que a política dos genéricos contra o

HIV/AIDS e de aplicação das licenças compulsórias foi um fator muito

importante ou importante no marco da política externa de propriedade intelectual

da Gestão Cardoso..

Esta percepção amplamente positiva não se repete, contudo, na avaliação

mais ampla de toda a política externa brasileira de propriedade intelectual.

Questionados sobre como qualificariam a política externa de propriedade

intelectual do Governo Fernando Henrique Cardoso, os agentes responderam

assim:

Ou seja, 66% dos agentes qualificaram a política externa de propriedade

intelectual do Governo Fernando Henrique Cardoso de regular, passiva ou

inexistente, ao passo que apenas 34% a reputaram de eficiente,

independentemente dos resultados. Um dos fatores que provavelmente ajudam a

explicar por que a percepção altamente positiva dos agentes sobre a política de

genéricos e licenças compulsórias não se repete na percepção mais ampla sobre a

política externa foi, sem dúvida, a situação de debilidade do INPI durante o

Governo Fernando Henrique Cardoso. Como veremos, pouco foi feito para

modificar a situação de deterioração de infraestrutura e de pessoal e dos atrasos

(backlogs) na apreciação dos pedidos de registro de marcas e de patentes, pela

qual o instituto vinha passando desde os governos anteriores. Como são os

agentes que estão no front na intermediação entre o INPI e os usuários que

recorrem aos serviços da instituição, é natural, portanto, que sua visão corporativa

tenha contribuído para uma apreciação crítica em relação ao governo.

17%

17%

32%

17%

17%

0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35%

Inexistente

Passiva

Regular

Eficiente, mas com poucos resultadospositivos

Eficiente, e com resultados expressivos

17%

17%

32%

17%

17%

0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35%

Inexistente

Passiva

Regular

Eficiente, mas com poucos resultadospositivos

Eficiente, e com resultados expressivos

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É interessante notar como a visão crítica dos agentes contrasta com uma

percepção mais positiva por parte dos acadêmicos. Perguntados sobre como

qualificam a política externa de propriedade intelectual do Governo Fernando

Henrique Cardoso, os acadêmicos assim responderam:

A imagem do Brasil como desafiante do TRIPS e defensor da causa da

universalização do acesso aos medicamentos contra o HIV/AIDS, no período

Cardoso, parece ter se impregnado de uma forma bastante clara entre os

estudiosos da política externa. Os resultados dão conta disso: 58% responderam

que a política externa foi eficiente (para 25%, com resultados expressivos, e para

33%, com poucos resultados expressivos) e 42% a qualificaram de regular,

Nenhum dos acadêmicos consultados qualificou-a de passiva ou inexistente.

Apesar de ser necessário reconhecer o valor emblemático e ideacional do

conflito diplomático que resultou na Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde

Pública e que projetou a imagem internacional do Brasil como um “desafiador

crucial de TRIPS” (DeSALVO, 2010), o fato é que o Governo Fernando Henrique

Cardoso não propiciou condições favoráveis para articular endogenamente um

novo padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade

intelectual, especialmente se considerarmos o alerta feito por negociadores

experientes da Rodada Uruguai que chamavam a atenção para a necessidade de

repensar as opções nacionais de política industrial e tecnológica. A equipe

econômica do governo não deu eco aos alertas e a “política industrial” tornou-se

uma expressão non grata. O episódio dos medicamentos contra a AIDS, apesar de

relevante, representou um fato tópico, isolado, favorecido por conjunturas que

0%

0%

42%

33%

25%

0% 10% 20% 30% 40% 50%

Inexistente

Passiva

Regular

Eficiente, mas com poucos resultadospositivos

Eficiente, e com resultadosexpressivos

0%

0%

42%

33%

25%

0% 10% 20% 30% 40% 50%

Inexistente

Passiva

Regular

Eficiente, mas com poucos resultadospositivos

Eficiente, e com resultadosexpressivos

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beneficiaram lideranças circunstanciais e por certo descontentamento presidencial

com os rumos da globalização econômica.

Uma inserção mais articulada, crítica e pró-ativa só se tornou possível no

governo seguinte, devido às mudanças ideacionais e dos perfis de líderes que

afetaram os processos decisórios da política externa e da política industrial e

passaram a compreendê-los dentro de uma concepção sinérgica. Com efeito,

durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, a política externa e a política

industrial percorreram caminhos distintos e incomunicáveis. O resultado desta

desarticulação é que a propriedade intelectual, com sua ampla agenda de

demandas e expectativas, permaneceu desprestigiada. Uma ligeira inflexão de

postura só foi observada nos anos finais do Governo Fernando Henrique Cardoso,

com a iniciativa de apresentar ao Congresso o projeto da Lei de Inovação e com a

criação dos fundos setoriais.

5.4 A Política Industrial do Governo FHC: “Captura Ortodoxa” do MICT (MDIC) e Desarticulação com a Política Externa

Em Conferência proferida no III Encontro Nacional de Estudos

Estratégicos, em 1996, LAMPRÉIA (1996, p. 11) referia-se ao comportamento do

consumidor brasileiro, afirmando que este já teria assumido como conquistas a

abertura econômica e o choque de competitividade por ela gerado na produção

nacional. A definição da política industrial e comercial deveria, então, levar cada

vez mais em conta esse elemento, por ter ficado evidente que qualquer retorno a

esquemas de proteção indiscriminada e incondicional prejudicaria o consumidor e

afetaria sua perspectiva de acesso a bens de consumo, duráveis ou não (ibid, p.

11). O receio de que a política industrial pudesse significar retorno a um modelo

extremamente fechado de economia, por implicar em maior dirigismo estatal,

marcou profundamente a política econômica do Governo Fernando Henrique

Cardoso.

FIORI (2000; 2001) nos permite compreender como tal temor foi

engendrado até se tornar dogma. Para o autor, ele remete à alegação, por parte da

linha econômica ortodoxa neoclássica de que a crise econômica brasileira nos

anos 80 era resultado integral do esgotamento do modelo de substituição de

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importações e do “populismo macroeconômico” praticados pelo militares (2001,

p. 36), ignorando por completo os fatos que constituíam os seus principais

detonadores: o choque externo gigantesco a que o Brasil fora submetido,

provocado simultaneamente pela alta da taxa de juros internacional e dos preços

do petróleo e pela queda do preço de suas exportações, seguida pelo afastamento

do país do sistema financeiro internacional (ibid, p. 30). FIORI demonstra que

parte da crítica econômica ao regime militar defendia que as reformas e o

enfrentamento da dívida externa e do novo contexto econômico internacional

requeriam a mudança radical das bases do poder e a construção de uma nova

coalizão capaz de redesenhar o desenvolvimento nacional com base em outro

conjunto de valores hierarquizados a partir de uma inserção soberana na nova

onda globalizante (2000, pp. 35-36).354 Esta proposta reformista do

desenvolvimento foi derrotada politicamente em 1990, dando lugar, no plano

teórico, à hegemonia de outra vertente, a crítica neoliberal do

“desenvolvimentismo” e, no plano prático, à substituição do projeto de construção

de uma “potência emergente” pelo de um “mercado emergente” (ibid, p. 36). As

ideias neoliberais tornaram-se a “argamassa” ideológica que “recolou” as

tradicionais elites no poder, alinhadas agora aos princípios do Consenso de

Washington (ibid, p. 36).

Assim, além da matriz de inserção neoliberal, havia pelo menos mais uma

alternativa de inserção externa e desenvolvimento cujo objetivo não era o

desmanche do desenvolvimentismo, mas a sua reforma, em bases democráticas e

socializantes. Predominou aquela que, de acordo com FIORI, foi capaz de re-

aglutinar as elites no poder. Nosso ponto de vista ressalta um aspecto que não é

abordado pelo autor: o da persuasão das ideias. As ideias neoliberais aparentavam

responder adequadamente aos problemas do país, no contexto em que este se

encontrava. Seus defensores emprestaram seus conhecimentos pessoais e

habilidades técnicas, forjados nas mais competentes universidades norte-

americanas para propor a adoção de políticas. 354 De acordo com FIORI, esta proposta reformista do desenvolvimentismo brasileiro, visto como conservador e autoritário, ganhou expressão entre 1985 e 1988, nos primeiros anos do Governo José Sarney (1985-1990). Mas depois da crise do Plano Cruzado de estabilização monetária, em 1987, e da promulgação da nova Constituição, em 1988, a preocupação com o desenvolvimento foi definitivamente sepultada e substituída pela fórmula neoclássica para a qual o crescimento estava vinculado à adesão ao livre comércio aos mercados desregulados e competitivos (ibid, p. 37). Sobre este embate entre propostas ortodoxas e heterodoxas de estabilização, ver DELGADO (op. cit., pp. 120-121).

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269

Em síntese, a opção de inserção internacional do Brasil na década de 90

decorreu, em grande parte, de decisões de governo e de estratégias intelectuais e

políticas de persuasão, e não de um processo natural, espontâneo e unânime de

reconhecimento das virtudes do receituário neoliberal e dos malefícios do projeto

desenvolvimentista das décadas anteriores. A nova realidade política e econômica

trazida pelo processo de abertura “resultou de escolhas e decisões políticas

absolutamente conscientes e ideológicas, e não de necessidades impostas ao país”

(FIORI, 2001, op. cit., p. 27).

Em palestra proferida na Escola Superior de Guerra, em novembro de

2002, Samuel Pinheiro Guimarães analisou a estratégia de comércio exterior

brasileira.355 Em um cenário em que já se consumara a vitória de Luiz Inácio Lula

da Silva nas eleições presidenciais, o embaixador denunciou a visão neoliberal de

mundo do Governo Fernando Henrique Cardoso por enxergar o Brasil como um

“país arcaico a ser modernizado, em especial pelos capitais estrangeiros, através

da desregulamentação, da redução do Estado, da liberdade completa para as forças

de mercado, com modestas políticas sociais e compensatórias” (GUIMARÃES,

2002, p. 2). Quanto à política de comércio exterior, criticou a “redução excessiva

de tarifas e suas conseqüências para a desnacionalização da economia e para o

déficit comercial entre 1995 e 2002” (ibid, p. 3). E atribuiu esse resultado não a

uma incapacidade de negociar do Brasil, mas a decisões da equipe econômica,

com a participação dos Chanceleres, que se preocuparam apenas em eliminar

tarifas sem confrontar as grandes potências e apresentar o Brasil como um país

cooperativo, normal e confiável:

Os resultados decepcionantes da Rodada Uruguai, a manutenção dos obstáculos nos países desenvolvidos às exportações brasileiras, os resultados modestos das exportações brasileiras são de sua responsabilidade e de sua crença de que o ingresso, sem regras, de capitais estrangeiros no Brasil, a abertura comercial, a liberdade cambial, a redução do Estado transformariam automaticamente o Brasil em uma “plataforma exportadora” altamente dinâmica. É verdade que os negociadores principais que executaram essa política muitas vezes, acreditavam nelas, por convicção ideológica ou por conveniência. Alguns, poucos, resistiram dentro da burocracia. Não foi assim incompetência técnica para negociar, mas

355 Um dos mais importantes representantes da vertente crítica à política externa do Governo Fernando Henrique Cardoso, Samuel Pinheiro Guimarães foi Secretário-Geral do MRE, durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Diplomatas adeptos de visões semelhantes de mundo vieram a ocupar cargos diretivos importantes na Administração Pública durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, como Roberto Jaguaribe, designado Presidente do INPI, e Otávio Brandelli, nomeado Chefe da Divisão de Propriedade Intelectual.

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sim incompetência das autoridades, econômicas e políticas, a partir do Presidente da República, em compreender a economia internacional e formular uma correta política de comércio exterior (ibid, p. 3).

A percepção de FIORI e de GUIMARÃES de que a adoção das políticas

neoliberais resultou de decisões conscientes do governo, por intermédio de

lideranças localizadas na área econômica, no Ministério das Relações Exteriores e

na Presidência, parece-nos correta. No embate interno que se deu no Governo

Fernando Henrique Cardoso entre os adeptos de visões mais ortodoxas e os mais

simpáticos a formulações desenvolvimentistas, a balança pendeu,

invariavelmente, a favor dos primeiros.356

Durante todo o processo de adoção das ideais neoliberais, era também

necessário moldar um processo decisório de políticas públicas (um abrigo

institucional) confortável para implantá-las. PIO (1995), CASTRO &

CARVALHO (2002), SALLUM JR (2003) e SANTANA (2007) discutem como o

ambiente institucional-burocrático foi engendrado de modo a dar a devida

acolhida às ideais neoliberais, da forma mais imune possível das pressões sociais

ou mesmo das que pudessem surgir de dentro do próprio governo.

PIO demonstra que a estrutura de articulação de interesse e de tomada de

decisões da política econômica do Governo Fernando Henrique Cardoso remete a

um padrão que começou a se institucionalizar durante o Governo Fernando Collor

de Mello. Com efeito, ao lançar as “Diretrizes Básicas da Política Industrial e de

Comércio Exterior” (PICE), em 1990, o Governo Collor optou por submeter as

diretrizes aos objetivos da política anti-inflacionária, privilegiando instrumentos

de pressão sobre o setor privado, sem, contudo, oferecer contrapartida em termos

de incentivos para que cooperassem com as medidas de abertura tomadas pelo

governo (op. cit., p. 5). A política de Collor estabeleceu condições quase

imperativas de reestruturação industrial das empresas instaladas no Brasil, uma

vez que seus padrões de competitividade não suportariam a concorrência dos

produtos importados e não eram assegurados estímulos para reduzir os riscos

envolvidos na reestruturação industrial (ibid, p. 5). O caminho escolhido pelo

356 Na visão de ABREU & WERNECK (op. cit., p. 4), contudo, durante seu primeiro mandato, Fernando Henrique Cardoso mostrou-se ambivalente na condução da política econômica. Somente após o contágio provocado pela crise Russa, no final de 1998, e após a crise cambial que levou o Brasil a realizar um acordo com o FMI no início de 1999, o Presidente teria se inclinado definitivamente pela adoção das políticas defendidas pela corrente econômica ortodoxa do governo.

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governo para atingir os efeitos pretendidos com a mudança da política econômica

foi o insulamento do núcleo burocrático em relação às pressões políticas dos

grupos sociais afetados (ibid, p. 5). 357

Tal tendência foi mantida no Governo Itamar Franco para a consolidação

do Plano Real. As atribuições políticas fundamentais foram concentradas no

Ministério da Fazenda e no Banco Central, a exemplo de alguns dos instrumentos

macroeconômicos de gestão, como taxa de câmbio, taxa de juros, controle do

crédito etc (ibid, p. 10). O governo recriou o antigo Ministério da Indústria, do

Comércio e do Turismo (MICT), mas apesar de ser o órgão formalmente

responsável pela formulação das políticas industrial e comercial, não estava

habilitado a estabelecer canais de articulação com a sociedade, em face da

inexistência de instrumentos de política econômica necessários para a

implementação de qualquer acordo político (ibid, p. 10). Prerrogativas

importantes, como a concessão de benefícios públicos (incentivos e subsídios) e

mesmo a fixação de alíquotas de importação permaneceram sob a

responsabilidade do Ministério da Fazenda (ibid, p. 10). Na prática, o que se

materializou foi uma situação de subordinação das políticas industrial e de

comércio exterior às metas de política macroeconômica a cargo do Ministério da

Fazenda, o que exigia intensa negociação do MICT com aquele ministério para a

definição de instrumentos utilizados para as políticas setoriais e mesmo para as

políticas estruturais (de corte horizontal) (ibid, p. 10). Trata-se da já denominada

“captura ortodoxa”.358

O Governo Fernando Henrique Cardoso manteve o padrão de articulação

de políticas, com ligeiras modificações. As reformas que o governo implantou

tinham por objetivo introduzir mudanças significativas na relação do Estado com

357 No Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, o órgão encarregado das prerrogativas de formulação das políticas industrial e de comércio exterior era a Secretaria Nacional de Economia (SNE), subordinada diretamente ao gabinete do Ministro. Contudo, apesar de dispor do mesmo status da SNE no aparato burocrático, o órgão-chave do ministério era a Secretaria de Política Econômica (SPE), encarregada pela formulação e gestão da política de estabilização. A despreocupação com a articulação externa com os atores sociais foi marcante no Governo Collor, apesar de posteriormente terem sido restabelecidas as Câmaras Setoriais e criados outros canais como a Comissão Empresarial de Competitividade, mas com o propósito claro de conquistar a adesão do setor produtivo nacional às metas de política macroeconômica (ibid, pp. 5-6). 358 Apesar deste importante aspecto relacionado à articulação de políticas públicas, há que se relativizar a caracterização do Governo Itamar Franco como neoliberal. O Governo Itamar representou uma reversão tímida e parcial das políticas liberalizantes inauguradas por Collor, que acabaram por ser retomadas com ímpeto no primeiro mandato do FHC.

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a economia e no papel do capital estrangeiro nas atividades produtivas, dando

continuidade ao processo de desmonte do desenvolvimentismo (CASTRO &

CARVALHO, op. cit., p. 122). Buscaram “construir uma ordem econômica com

característica liberalizante (maior presença nas relações de mercado), mais

integrada à economia globalizada” (ibid, p. 122). Para tanto, foram necessários

aprimoramentos na estrutura do processo de formulação e implementação de

políticas com vistas a tornar a estabilização monetária uma característica

duradoura do sistema econômico (ibid, p. 122).

No que se refere ao processo de tomada de decisões, a principal

característica das reformas empreendidas pelo Governo Fernando Henrique

Cardoso foi o estabelecimento de uma estrutura decisória em dois níveis: no

primeiro, ocorreria uma negociação mais ampla, enquanto no outro teria lugar um

processo de insulamento burocrático (ibid, p. 123). As políticas monetária e fiscal

permaneceram isoladas da negociação política, a cargo de uma equipe econômica

nuclear, orientada por uma visão tecnocrática da administração econômica, ao

passo que as reformas econômicas não-monetárias359 ficaram abertas às

negociações do Executivo com o Congresso (ibid, p. 123).

O Conselho Monetário Nacional (CMN) foi um órgão central do processo

de gestão das políticas monetárias e orçamentárias que consagrou

institucionalmente o insulamento burocrático e o controle administrativo dos

quadros tecnocráticos (ibi, p. 123). O CMN contava com vários membros, entre

eles todos da área econômica, vários da área social, todos os presidentes de

bancos oficiais, cinco membros da iniciativa privada, representante dos sindicatos

e o presidente da FEBRABAN (Federação Brasileira dos Bancos). A partir de

junho de 1995, passou a contar com apenas três integrantes, o Ministro da

Fazenda, o do Planejamento e o Presidente do Banco Central (SANTANA, op.

cit., p. 5).

Um dos principais resultados das modificações empreendidas pelo

Governo Fernando Henrique Cardoso no processo decisório de políticas públicas

foi o crescimento do poder político da equipe econômica nuclear, que também

centralizou os procedimentos de gestão orçamentária (CASTRO & CARVALHO,

op. cit., p. 124). Observou-se então o insulamento de áreas-chave do processo de

359 Por exemplo, as privatizações e as reformas constitucionais para permitir o investimento privado em serviços públicos.

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administração da política macroeconômica e “a subordinação da capacidade

operacional dos ministros às decisões da equipe econômica nuclear, que manteve

autoridade e controle prático sobre os recursos” (ibid, p. 124).

Em entrevista, Alcides Tápias nos revelou as limitações dos instrumentos

dos quais dispunha como Ministro da Indústria, Comércio e Turismo, em face da

estrutura institucional de tomada de decisões que privilegiava o Ministério da

Fazenda e o Banco Central. O diagnóstico é claro: pouco ou nenhum espaço havia

para o desenvolvimento de uma política industrial. Não por acaso que, face às

limitações existentes, nada menos do que sete ministros tenham ocupado a pasta

durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Passemos então ao

depoimento de TÁPIAS (2009)360:

Do ponto de vista de política industrial, eu sempre propus ao governo, mas não quis fazer disso uma questão para trazer para a imprensa, por quê? Porque o espírito era o de equipe. Você discutia – e eu sou duro numa mesa de discussão – internamente o quanto fosse, mas a decisão tomada pela maioria seria defendida por todos.[...] buscava-se enquadrar as contas públicas. Você tinha déficit: gastava-se mais do que se arrecadava. Como é que o governo se equilibrava? Ele colocava títulos públicos. Aí, passava a pagar juros em cima do empréstimo que tomava da sociedade. Então, rapidamente eles queriam tornar a ter o equilíbrio fiscal. O que se arrecadava é aquilo que se podia gastar. Então, nesse período em que se gastava mais do que se arrecadava, não queriam fazer nenhuma concessão que diminuísse a arrecadação. Mas era uma visão de curto prazo. Porque, a longo prazo, se teria mais produção e se recolheria mais imposto da produção e não da máquina em si. Você paga cem mil numa máquina. Quanto ela produz? Se ela produzir dez meses dez mil, ela empata do ponto de vista de imposto. Imaginando que a alíquota da máquina e do produto seja igual. Mas, a máquina dura quanto tempo? Dois meses? Não, ela dura anos. Muito bem. Daí por diante, você vai arrecadar mais porque a arrecadação da máquina foi uma vez. [...] você aumenta o volume. Mas enfim, [...] não sou economista [...]. O fato é que hoje, eu continuo pensando da mesma maneira. Rogo que tenha alguém aí no governo, pensando parecido com isso (TAPIAS, 2009). Tapias prossegue em seu raciocínio, fornecendo um quadro claro das

limitações existentes para levar adiante a política industrial no Governo Fernando

Henrique Cardoso, mas reconhece que, com o aumento da renda, houve uma

melhora do setor produtivo. Aproveita a oportunidade para criticar algumas

políticas sociais como as empreendidas então pelo Governo Luiz Inácio Lula da

Silva: 360 Optamos por entrevistar Alcides Tápias por ser aquele, entre os sete que ocuparam a pasta do MICT (depois, MDIC), com perfil mais semelhante aos dos futuros titulares da pasta, no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, também provenientes do meio empresarial (Luiz Fernando Furlan e Miguel Jorge).

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Você não tinha bem definido o que seria uma política industrial. [...] A prioridade número um era a arrecadação. E depois, infelizmente, é que vinha o resto. Sobrava pouco espaço para fazer uma política industrial. Se desejo tornar o calçado brasileiro acessível, o que é que tenho que fazer para estimular mais gente a fabricar calçado de melhor qualidade e em grande quantidade? De que maneira eu posso fazer isso? Há várias maneiras: compro máquinas mais eficientes para indústria, dou financiamento, ou crio escolas para ensinar a fazer calçados, que é uma outra maneira; ou corto impostos para importar esses equipamentos, ou corto impostos para estimular a fabricação. Todas as vezes que você mexia na arrecadação....Agora, se você opera no sentido de dizer “invista dez para ganhar vinte” e o cidadão não tem os dez? Se não for oferecido estímulo, ele não tomará o empréstimo [...]. Ele diz: “não, você pode me dar o dinheiro e tal, mas eu vou ter que te pagar algum dia e, eu não sei se isso vai ser bom”. Então, ele não aceitava. Mas com o tempo, o próprio mercado interno brasileiro foi crescendo e as condições de renda no país melhoraram e esse foi o grande impulsionador do crescimento da base industrial do Brasil que se fez. Poderia ser melhor, poderia ser mais rápido? Poderia, mas o grande estímulo foi aumentar a renda. É o que o governo continua fazendo de uma maneira, acho, meio tosca, porque o ditado diz ‘você não deve dar peixe; deve ensinar a pescar’. Deveria investir: metade dá de presente como o governo está fazendo, mas a outra metade do que ele gasta hoje deveria investir em escolas, produzir de maneira que aquelas pessoas aprendam a trabalhar, desenvolver coisas para que eles rapidamente fiquem independentes e que você não precise ficar dando um vale “não sei o quê” para ele todo o mês (TAPIAS, 2009).

Finalmente, Tapias revela sua visão pessoal a respeito da posição e do

status do MDIC (ex-MICT) na Administração Pública. Suas reflexões sugerem-

nos pensar que a visão predominante do Governo era a de que o Ministério da

Indústria servia mais, ou basicamente, aos propósitos de favorecer lobbies

empresariais e atender suas demandas setoriais:

O Ministério, que eu sempre chamo, de Indústria e Comércio tem o orçamento ridículo. E não precisa ter um orçamento maior não. O que ele precisa é ter um pouco mais de presença nas decisões da Economia como um todo. [...] Você participa, mas com que peso? Peso muito baixo, por quê? Porque o governo sempre olha, sempre olhou no passado e ainda hoje tem esse viés de que todas as vezes que os empresários vão ao governo pedir alguma coisa é com intuito de botar coisas no bolso [...]. Quando, na verdade, o que o empresário vai buscar é apoio do governo para crescimento sempre. Porque se o país cresce, o empresário ganha mais, porque o que ele produz vai ser comprado por mais pessoas ou por muito mais pessoas que hoje não tem dinheiro para comprar. Então, você cria riqueza e essa riqueza flui, circula dentro da economia. Então, sempre havia aquela ideia de que o empresário procura e faz o lobby como medida de proteção. E de que o representante desse lobby é o “Ministro de Indústria e Comércio” (TAPIAS, 2009).

As reflexões apresentadas por TAPIAS ajudam-nos a corroborar a

caracterização da estrutura de articulação de políticas públicas do Governo

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Fernando Henrique Cardoso como uma estrutura que privilegiou claramente os

instrumentos de política econômica concentrados no Ministério da Fazenda e no

Banco Central em detrimento das políticas mais diretamente voltadas para o setor

produtivo. Mesmo assim, vale ainda refletir sobre a política industrial que parte da

burocracia governamental insistiu em defender durante o Governo Fernando

Henrique Cardoso. Dentro desta política, qual o papel reservado às políticas de

propriedade intelectual, em geral, e ao INPI, em particular?

A divisão dentro do governo entre as correntes que SALLUM JR (2003,

op. cit., p. 45) denomina de “liberais fundamentalistas” e “liberais

desenvolvimentistas” tinha como um dos principais pontos de controvérsia

justamente a política industrial. Enquanto os liberais fundamentalistas entendiam

que a abertura, por si (leia-se, sem qualquer dirigismo estatal), seria capaz de

promover a reestruturação industrial de forma espontânea, em virtude dos efeitos

benéficos gerados pelo aumento do ambiente de competitividade, os liberais

desenvolvimentistas defendiam políticas destinadas a contrabalançar as

consequências negativas da ortodoxia neoliberal para setores específicos da

economia ou mesmo promover o crescimento de algumas atividades produtivas no

país (ibid, p. 45).361 Vale esclarecer que as políticas defendidas pelos liberais

desenvolvimentistas não se destinam à construção de um sistema industrial

nacionalmente integrado, mas sim à participação significativa da produção

doméstica na economia mundial (ibid, p. 45). Os liberais desenvolvimentistas só

aceitam formas de intervenção no setor produtivo que sejam bem definidas como,

por exemplo, políticas industriais setoriais, se limitadas no tempo e no montante

de subsídios (ibid, p. 45). A prioridade é reduzir a dependência externa, por meio

do “adensamento das cadeias produtivas, introduzindo novos elos no tecido

industrial, mas sem perder de vista a necessidade de equiparar sua

competitividade aos padrões internacionais” (ibid, p. 45).

361 Em notícia veiculada na Agência Estado, em 2002, Bresser-Pereira, ao criticar a política de juros do governo e defender uma política industrial que financiasse as empresas com capacidade para exportar ou de substituir importações de forma competitiva, fez questão de ressaltar que sua discordância com a equipe econômica do governo não significava, em absoluto, que se tratava de um embate desenvolvimentista versus monetaristas. Disse então o ex-Ministro da Fazenda: “eu não sou desenvolvimentista em hipótese alguma [...] assim como o Pedro Malan, o Armínio e a equipe do Banco Central não são monetaristas. O monetarismo entrou em crise há pelo menos 10 anos”. Frisou ainda que a discussão verdadeira era sobre como desenvolver o país com estabilidade. Ver AGENCIA ESTADO (2002). A resistência de Bresser-Pereira soa curiosa, diante de suas contribuições teóricas posteriores ao “novo desenvolvimento”.

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É dentro deste posicionamento que José Roberto Mendonça de Barros

(Secretario de Política Econômica do Ministério da Fazenda) e Lídia Goldenstein

(Assessora Especial da Presidência do BNDES) anunciaram as linhas gerais que

deveriam nortear a política industrial do Governo Fernando Henrique Cardoso,

propositadamente batizada de “Política de Investimento e Competitividade”

(1997).

Para os autores, em meio às transformações pela quais o capitalismo

passava no plano internacional, a abertura da economia brasileira e o sucesso

alcançado com o plano de estabilização provocaram transformações significativas

no setor produtivo brasileiro, tornando obsoleta a velha política industrial, que, ao

colocar a internalização e o controle absoluto da matriz industrial como

prioridades, acabou comprometendo a competitividade da economia e as finanças

públicas (BARROS & GOLDESTEIN, p. 4). Assim, a nova política industrial

deveria se pautar pelos novos parâmetros que passaram a reger a economia:

globalização, abertura, privatização e estabilização, priorizando a redução dos

custos da reestruturação produtiva no país e também auxiliando no adensamento

das cadeias produtivas, no aumento do valor agregado e na modernização

tecnológica nas exportações (ibid, p. 4).362

Independentemente das reflexões dos economistas não integrantes da ala

ortodoxa e dominante do governo, simpáticas a uma “nova política industrial”, a

percepção dos economistas ligados à tradição desenvolvimentista era a de que o

Brasil não possuía uma política industrial. É o caso de COUTINHO (1996), para

quem o processo de globalização, a abertura e a valorização cambial foram

responsáveis por expor duramente o parque produtivo nacional, resultando em

desindustrialização parcial, juntamente com a concentração de capitais e a

desnacionalização da produção doméstica. De acordo com o autor, a

desindustrialização só não teria atingido setores competitivos de grande escala

como papel/celulose, alumínio, siderurgia e processamento mineral (todos eles

baseados em recursos naturais e energéticos).

362 As reflexões dos autores constam do Prefácio de uma publicação especial do BNDES intitulada Balanço Setorial, com estudos do desempenho dos diferentes setores da economia em 1997. É interessante notar que os próprios autores reconhecem que os estudos setoriais eram condição sine qua non para avançar na formulação de novas políticas (ibid, p. 5), como que a reconhecer que, até então, políticas voltadas especificamente para o setor industrial não haviam sido objeto de formulação no governo.

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Em GUERRA (1997) é possível encontrar uma síntese do debate sobre a

política industrial no Brasil, nos primeiros anos do Governo Fernando Henrique

Cardoso, tendo, de um lado, críticos como Luciano Coutinho, Mariano Laplane e

Fernando Sarti e, de outro, defensores da política industrial governista, como José

Roberto Mendonça de Barros e Lídia Goldenstein. O autor posicionava-se naquela

ocasião no sentido de que era possível identificar traços de renovação pelo

interesse da política industrial no Brasil, apesar de reconhecer que o

gerenciamento do Plano Real criava incompatibilidades entre as políticas

macroeconômicas e industrial (ibid, p. 52). Compartilhava da previsão (ou aposta)

feita então pelo Secretário de Política Econômica de que o Brasil estaria passando

por uma reestruturação produtiva, com importação de equipamentos e matéria-

prima, que iria dar melhores condições de competitividade internacional às

empresas nacionais, em um prazo de três a quatro anos (ibid, p. 53). GUERRA

mencionava ainda declarações de Fernando Henrique Cardoso, em 1997,

admitindo que chegara a hora de, após promover a abertura, intervir setorialmente

na indústria (ibid, p. 54).

Entendemos que as previsões de GUERRA não se materializaram. Se não

se observou, por um lado, uma completa desarticulação do parque produtivo e

integral desnacionalização da economia, por outro, não se observou, igualmente, a

prática de políticas industriais ativas que aproveitassem o potencial das empresas

brasileiras que sobreviveram à exposição promovida pela abertura, com amplos

instrumentos endógenos de estímulo à inovação, de forma a que pudesse se inserir

competitivamente no mercado global e até estimular empresas novas a fazê-lo. A

precipitação de crises, como a crise cambial brasileira, no final de 1998 e início de

1999, fortaleceu ainda mais a corrente ortodoxa do Governo, especialmente

depois do acordo celebrado com o FMI, que estabeleceu, na arena pública, a

política de metas inflacionárias e de superávit fiscal.

Enfim, compartilhamos do entendimento de que não foi conferida

prioridade à política industrial durante o Governo Fernando Henrique Cardoso.363

Desejamos ainda agregar outro argumento: o de que não foi legada importância às

políticas públicas de propriedade intelectual. Esta negligência das políticas 363 Ver ainda declaração do Presidente do IEDI – Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, em 2002, no sentido de que o país necessitava de uma política industrial definida, com a participação do Estado, para melhorar as condições da empresa competir no mercado internacional. Ver ESTADAO (2002).

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públicas se refletiu na continuidade da situação de deterioração institucional do

INPI. Impressões de nossos entrevistados ajudam a abalizar essa posição.

GUSMÃO (2010) é um dos observadores que destacamos por,

abertamente, compartilhar de uma visão econômica mais próxima a do Governo

Fernando Henrique Cardoso, de que seria a da competição dos mercados abertos a

“mola-mestra” do processo inovador. Não confere crédito às políticas industriais,

tanto no Governo Fernando Henrique Cardoso, como no Governo Lula:

Não estou vendo nenhuma política industrial instalada. Tem outras políticas, que podem gerar consequências na indústria. Mas eu não estou vendo nenhuma industrial. Acho que a política de crédito, por exemplo, afeta muito mais do que o conjunto do que o governo está pensando. Isso é o que eu estou vendo. E do ponto de vista de propriedade intelectual e de inovação [...] enxergo aí uma outra coisa. Eu acho que a competição está levando à área de inovação, que é um caminho secundário. Quer dizer, desde que o Brasil passou a ser mais competitivo, acho que a indústria em algum momento começou a acordar (esse é um processo cultural que é demorado), e se conscientizar de que é preciso procurar se proteger, ou proteger o seu investimento, para poder concorrer de uma forma mais forte, mais musculosa. Então, começaram a desenvolver patente e achar importante checar para ver se não tem patente para não trombar com outros concorrentes. E, ao mesmo tempo, quando se tem uma concorrência que está acirrada, o industrial tem necessidade de inovar, porque o mercado diz para ele, não o governo: “se você não inovar, você não vai sobreviver”. Isto, eu sinto na minha atividade no dia-a-dia. Quer dizer, tem mais ações judiciais, tem mais procura, e eu ouço mais esse discurso do cliente que não está querendo só sobreviver ou ganhar algum no golpe; ele quer fazer um planejamento de longo prazo. E nós já estamos aí assessorando dois ou três grupos financeiros que estão vivendo bem nessa questão e investindo em inovação, botando capital de risco, tirando dinheiro, ou botando na mão de um profissional, que tem uma empresa cujo objetivo primordial é pesquisar e resultar em produto novo em áreas determinadas.

Depois de expressar sua visão particular sobre os empresários como motor

fundamental da inovação, que seriam espontaneamente levados a se preocupar em

recorrer à proteção, por intermédio da propriedade intelectual, GUSMÃO

apresenta considerações sobre a política industrial de Fernando Henrique Cardoso.

Antecipando-nos um pouco à discussão do próximo capítulo, acredita que o

Governo Luiz Inácio Lula da Silva364 não representou qualquer retomada desta

política:

364 Em respeito à ordenação de raciocínio dos entrevistados, resolvemos antecipar algumas de suas impressões sobre o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo porque, ao tratarem do Governo Fernando Henrique Cardoso, menções ao governo posterior foram feitas com frequência.

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Fernando Henrique não implantou política industrial. Eu acho que nós não temos política industrial há muitos anos, há mais de 20 (vinte) anos. Nós tivemos uma política industrial. Ainda no governo Sarney falava-se de uma política industrial. A partir de Collor, não vi nenhuma política industrial. E hoje em dia, não vejo nenhuma política industrial no governo Lula, mas vejo muita conversa. Política industrial não estou vendo não. Vejo política e o Ministério da Fazenda mandando nas coisas. Mas política industrial, de desenvolvimento da indústria, não estou vendo. O que vejo é uma política de desindustrialização, ou melhor, nem posso dizer isso, para ser correto, eu acho que nós estamos vivenciando um momento de desindustrialização por causa do câmbio, muito mais do que por outra coisa. Então veja como é: o câmbio, uma política cambial pode influenciar muito mais a indústria [...].Acho que houve uma época, no governo Fernando Henrique, que eu ouvi que “a política industrial era não ter política industrial”. É isso que eu ouvi. [...] Eu acho que era isso, “nós não temos uma política, nós não vamos tutelar...” Era esse o raciocínio, “nós não vamos tutelar o caminho dos caminhos da indústria”, Agora, não vejo o Governo Lula tutelando também. Vejo o Governo Lula abrindo oportunidades, porque estamos vivenciando uma época de grandeza econômica, de mais aquecimento econômico do que outra coisa. Mas eu não estou vendo planejamento aí não. É isso que estou vendo. O que existia de tutela anteriormente, era assim: “vamos desenvolver a indústria naval”, então se criava um modelo; “vamos desenvolver a siderurgia”, então se criava outro. Hoje, não estou vendo isso. Então, eu acho que não havia e não há política industrial (GUSMÃO, 2010).

Entre os atores estatais, JAGUARIBE também ingressa na seara

comparativa dos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da

Silva, ao tratar da política industrial. Contudo, ao contrário de GUSMÃO, enxerga

mais elementos de continuidade e aprimoramento em um processo político que,

entende, hoje tende a prestigiar mais as políticas industriais e tecnológicas:

[...] penso que, tanto o Governo Fernando Henrique, como o Governo Lula, não encontraram fórmulas suficientemente adequadas para lidar com um dos grandes problemas que nós temos nessa área: como substituir o tão exitoso modelo de substituição de importação para a capacitação industrial (não tanto tecnológica)? Esse modelo de tecnologia pronta, contudo, tinha uma deficiência importante: a completa dicotomia entre os centros de pesquisa e a produção industrial. Não havia no Brasil demanda da indústria para pesquisa, inclusive porque a tecnologia vinha pronta do exterior. Não obstante, durante o período de processo de substituição de importações, o Brasil teve uma política industrial exitosa. Acho que nenhum dos dois governos conseguiu equacionar isso perfeitamente. Inclusive, porque os instrumentos de política industrial, que deveriam estar no Ministério do Desenvolvimento e Indústria, estão mais no Ministério da Fazenda, o que dificulta que as coisas sejam feitas consecutivamente. A minha forte impressão é que depois de um período muito importante de estabilização e de choque de gestão de maior eficácia, que foi o período do presidente Fernando Henrique acoplado à consolidação desse processo, e à expansão da capacidade de inversão e de, sobretudo, atendimento a demandas sociais no Governo Lula, nós vamos ver agora, no futuro governo, independentemente de quem seja eleito, uma grande preocupação e uma grande atenção nessa questão tecnológica industrial [...] (JAGUARIBE, 2010).

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ÁVILA (2010), por sua vez, credita a falta de política industrial no

Governo Fernando Henrique Cardoso à necessidade de se colocar em prática as

reformas e medidas de estabilização econômica que eram necessárias para que se

pudesse voltar a pensar a médio e longo prazos. De acordo com o atual Presidente

do INPI, parte das bases políticas e macroeconômicas para que a propriedade

intelectual pudesse voltar a ser pensada como política de Estado foi cimentada

durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, o que permitiria traçar linhas de

evolução entre este e o Governo Luiz Inácio Lula da Silva:

Eu vejo uma linha de evolução entre os dois governos, não é nem uma continuidade, na mesmice, e nem uma ruptura. Eu acho que desde a Constituição de 88 (oitenta e oito) há um aprendizado no país. E acho que os dois governos representam dois momentos importantes nessa trajetória. O Governo Fernando Henrique é caracterizado por uma reorganização depois do Governo Collor que foi um governo de choque, de desmanche de estruturas que vinham consolidadas há muito tempo. Após esse desmanche, ficou a desordem. Inclusive, a desordem macroeconômica absoluta que o Plano Real vai de alguma maneira dar uma orientação. E aí, a partir da estabilização econômica, você passa a poder novamente pensar política de desenvolvimento de médio e longo prazo. Antes, a inflação não permitia fazer. Então, no primeiro Governo Fernando Henrique, você tem quase que uma proibição de pensar em política industrial. A política industrial era não ter política industrial. Foi uma resposta talvez a um intervencionismo excessivo do Estado na economia que acabou por gerar a hiperinflação e a desorganização do período Collor. Com a estabilização, no segundo governo, você começa de novo a poder pensar em políticas de médio e longo prazo. A política de inovação do Governo Fernando Henrique, do segundo Governo Fernando Henrique, é uma política local, localizada, não setorial [...] já um esboço de uma discussão que no Governo Lula vai ganhar todos os ministérios e ganhar altura de uma política de Estado, primeiro na PITCE e depois PDP (ÁVILA, 2010).

Ministro da Indústria do Governo Luiz Inácio Lula da Silva em seu

segundo mandato, Miguel Jorge revela impressões semelhantes sobre o Governo

Fernando Henrique Cardoso e a política industrial no período:

O Governo FHC logrou a estabilização da economia, a passagem do câmbio fixo ao flutuante, o aumento da carga tributária, e ao final, contas macroeconômicas bastante sólidas, tanto em nível federal quanto estadual e municipal. Na política industrial, o foco foi um aumento da eficiência econômica como um todo, por meio da abertura comercial e das privatizações. Nesse sentido, não foi uma política industrial per se, mas, antes, uma política de especialização produtiva e de aumento dos investimentos privados nos setores de infra-estrutura e serviços básicos (JORGE, 2009).

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A partir dessas explanações, um dos aspectos que nos chama atenção é o

foco nos aspectos de continuidade ou evolução que tendem a minimizar rupturas

do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da

Silva na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual, em sua

dimensão industrial. Seja sob uma ótica negativa, como em GUSMÃO, ou sob

uma ótica “evolucionista”, como em JAGUARIBE, ÁVILA e JORGE, possíveis

traços diferenciadores entre os dois governos não são muito realçados. O legado

deixado por Fernando Henrique Cardoso, o da estabilização econômica e o do

controle da inflação, é visto pelos três últimos como fundamental por ter criado as

condições necessárias para o resgate de uma visão mais estratégica, de longo

prazo, na formulação da política industrial, incluídas as políticas públicas de

propriedade intelectual. Uma das questões que se coloca é: qual a dimensão desse

legado?

ERBER (2007, op. cit., p. 3) demonstra que, nos países avançados, existe

uma política que engloba as políticas industrial, tecnológica, científica e de

relações internacionais. Neles, “política interna e externa são duas faces da mesma

moeda destinada ao desenvolvimento interno e à competitividade internacional e

atuam de forma complementar e sinérgica” (ibid, p. 13). O Governo Fernando

Henrique Cardoso ignorou a experiência dos países que mantém políticas públicas

(doméstica e externa) de apoio explícito aos seus sistemas de inovação. Não

priorizou a necessidade de concebê-las como integrantes de uma mesma lógica,

tal qual alertaram os negociadores brasileiros da Rodada Uruguai.

Com efeito, no plano interno, os governos dos países avançados, entre

outras iniciativas, fomentam diretamente com recursos públicos a reprodução e a

ampliação das partes do sistema que fornecem bens públicos para o resto, como a

educação superior, a pesquisa básica e serviços de infra-estrutura (ibid, p. 12).

Simultaneamente, complementam a ação do mercado através da redução direta do

custo da inovação por meio de crédito concedido em condições favoráveis de

juros, prazos e incentivos fiscais e reduzem os riscos inerentes a esta atividade por

meio da garantia dos direitos de propriedade dos inovadores365, políticas de

compras estatais, proteção do seu mercado por barreiras tarifárias e,

365 A existência de um sistema eficiente de proteção e tutela dos direitos de propriedade intelectual, que não pode prescindir de um órgão nacional bem aparelhado em termos humanos e materiais, entra aqui como requisito indispensável.

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principalmente, não-tarifárias e pelo aporte de capital de risco para as empresas

que fornecem bens de mercado, especialmente aquelas que investem em projetos

de inovação, com maior potencial de transformação, ou seja, os projetos cuja

incerteza é maior e os prazos de maturação mais estendidos (ibi, p. 12).

Quanto ao plano internacional, os países avançados costumam pôr em

prática um conjunto de políticas externas que complementam as políticas de

apoio, no âmbito nacional. Entre elas, destacam-se, de um lado, políticas que

facilitam o acesso de partícipes do sistema nacional de inovação aos recursos de

outros sistemas, como ocorre nos acordos de cooperação e integração. Por outro

lado, os governos buscam garantir a renda dos seus respectivos sistemas nacionais

no exterior (ibid, p. 13). Isto se faz na luta pelo acesso aos mercados externos,

pela liberalização do comércio internacional e do investimento externo direto de

maior intensidade tecnológica, em que estes países contam com vantagens

competitivas. Ao mesmo tempo, defendem as rendas a serem obtidas pelos seus

sistemas, através da garantia dos direitos de propriedade sobre os resultados

daqueles, seja por meio da legislação sobre investimento direto, seja através da

legislação de propriedade intelectual (ibid, p. 13). Esta atuação se dá nas

dimensões bilateral e multilateral, resultando em acordos como o TRIPS e na

criação de organizações como a OMC.

Os sistemas de inovação de países em desenvolvimento como o Brasil

carecem de recursos (humanos, físicos e institucionais) em comparação com os

dos países avançados. Além disso, enquanto estes gozam de uma longa

experiência histórica, aproveitando-se dos efeitos positivos da cumulatividade e

aprendizado, os sistemas dos países em desenvolvimento são mais recentes (ibid,

p. 14). ERBER afirma que durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, com

as reformas preconizadas pelo Consenso de Washington, aprofundaram-se aqueles

sinais de carência. Reduziram-se substancialmente os investimentos públicos e

privados em inovação e os recursos foram redirecionados para projetos com

baixos custos, de períodos curtos e menores riscos (ibid, p. 14). Outro efeito: as

políticas industriais de visão estrutural e de longo prazo foram praticamente

esquecidas, praticando-se apenas políticas de caráter ad hoc, de cunho defensivo,

com vistas a disputar o investimento direto estrangeiro com outros países ou

proteger setores específicos contra práticas desleais de comércio (ibid, p. 14).

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No que se refere à política externa, ERBER afirma que foi “notável o

descaso com o desenvolvimento para a capacidade científica e tecnológica para

competir no mercado internacional” (ibid, p. 14). O autor critica a crença

econômica hegemônica durante o Governo Fernando Henrique Cardoso de que os

investimentos diretos estrangeiros, atraídos pelas reformas e pela estabilidade de

preços, possuíssem, no médio e longo prazos, um viés exportador que iria

compensar, no futuro, o aumento das importações, estabelecendo maior equilíbrio

nas transações comerciais a um nível mais alto de correntes comerciais (ibid, p.

14). Enquanto isso, o capital financeiro cobriria lacunas.

E, finalmente, complementa:

A existência de método na loucura não a transforma em sanidade. O investimento direto que veio foi direcionado principalmente para o mercado interno, ampliado para o MERCOSUL, e parte ponderável foi destinada à aquisição de ativos já existentes, dos quais uma boa parcela produzia serviços non tradable como energia e comunicações. Por outro lado, a aposta na estabilidade e confiabilidade do capital financeiro internacional provou-se falta na medida em que as sucessivas crises internacionais abateram vários mercados emergentes e acabaram por engolfar o Brasil no fim de 1998, atando a política macro pelo segundo mandato do Presidente Cardoso (ibi, p. 15).

Durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, com a ausência de uma

Política Industrial focada na inovação empresarial, o tema da propriedade

intelectual ficou marginalizado nas políticas governamentais e as iniciativas,

dispersas, desarticuladas e débeis, com reflexos negativos desta postura sobre o

INPI. Pode-se afirmar que a situação de deterioração do Instituto esteve longe das

preocupações mais urgentes do governo. Neste ponto, o depoimento dos nossos

entrevistados foi fundamental, como forma de resgate dessa história recente.

5.5 O INPI durante o Governo Fernando Henrique Cardoso: Um Ilustre Esquecido

Instituído pela Lei n° 5.648, de 11 de dezembro de 1970, em substituição

ao Departamento Nacional da Propriedade Industrial (DNPI), o INPI nasceu como

uma autarquia vinculada ao Ministério da Indústria e Comércio, tendo como

atribuições a execução das normas reguladoras da propriedade industrial e a

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efetuação do controle e regulação sobre o comércio de tecnologia no Brasil. De

acordo com MALAVOTA (2006, p. 151), o momento de criação do INPI coincide

com a percepção por parte do governo militar de que era preciso dotar-se de

instrumentos que permitissem uma firme intervenção nas relações estabelecidas

entre empresas nacionais e estrangeiras no mercado de tecnologia, organizando e

representando interesses específicos da indústria nacional, em especial o químico,

o farmacêutico e, principalmente, o de bens de capital.366

O processo de deterioração do INPI e da perda de sua importância na

Administração Pública remete ao final da década de 80 e início da década de 90,

especialmente após a ascensão de Fernando Collor de Mello ao poder, de forma

descompassada com a nova realidade da economia internacional. Após a

finalização da Rodada Uruguai, constatamos que a percepção de alguns dos

negociadores brasileiros na Rodada Uruguai era a de que as possibilidades de

incremento nas margens de rentabilidade propiciadas pelos prazos mais longos de

proteção e regras mais rígidas contra a cópia, previstos no TRIPS, deveriam ser

aproveitadas no incentivo à pesquisa e desenvolvimento local (TARRAGÔ, op.

cit., p. 15). Aos órgãos oficiais nacionais caberia, além das atribuições

administrativas (como, por exemplo, examinar e conceder registros de marcas e

patentes), desenvolver condições de prestar assessoria a empresas e pesquisadores

a fim de que pudessem explorar as vantagens proporcionadas pelo novo regime

internacional (ibid, p. 15).

Advertência semelhante foi dada por Oscar S. Lorenzo Fernandez,

Secretário de Tecnologia Industrial do MICT, em 1998:

Órgãos como o INPI, adjudicadores de direitos e titularidadess, sem os quais o processo produtivo moderno é inviável, são indispensáveis, é claro, em todas as economias, que se industrializam. Mas, e quando se passa da era das “indústrias de chaminé” para as da informação e para a do conhecimento e da criatividade pura – a adjudicação de direitos e titularidades que sentido terá? [...] Em verdade, ela se tornará mais importante do que nunca. Mas, também, muito mais complicada e muito mais difícil. Ao contrário da era “industrial” típica, em que a acumulação e a depreciação do capital tecnológico se faziam de forma mais ou menos progressiva, ligada a espaços geográficos e jurisdições bem delineadas e costumava haver tempo para ajustamentos, hoje, os saltos tecnológicos e os câmbios de preferências dos agentes individuais exigem estratégias cada vez mais

366 Recomendamos a leitura da dissertação de mestrado de MALAVOTA (2006) para se ter acesso à história pregressa do INPI, desde sua criação, em 1970, até 1984, ano em que se deu o movimento da redemocratização no Brasil (Diretas Já).

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refinadas e interativas nas próprias dimensões do sistema internacional (FERNANDEZ, 1998, p. 7)

Se desejarmos resumir o conselho que TARRAGÔ e FERNANDEZ

quiseram transmitir, tratava-se da necessidade de atentar para o fato de que

cumpriria ao INPI, diante dos novos desafios e oportunidades globais, comportar-

se não somente como uma entidade cartorial que desempenhasse satisfatoriamente

sua função adjudicatória de direitos. Esta função continuaria tendo importância,

mas a busca de articulações internas (empresas, universidades, centros de

pesquisa) e externas (órgãos congêneres, instituições de pesquisa etc) para a

promoção e a disseminação de conhecimento em matéria de propriedade

intelectual passaria a ser igualmente estratégica.

Ocorre que, no Brasil, o início dos anos 90 coincide com a predominância

do ideário neoliberal, em que políticas públicas, nos moldes mencionados, não

tinham espaço no processo decisório da Administração Pública, uma vez que

sugeriam um grau de articulação com a sociedade que não era caro à concepção

insular de concentração de poder na área econômica. Ao contrário, a pretensão do

Governo Fernando Collor de Mello, ao menos no início, era de eliminar canais de

comunicação do Estado com os grupos sociais (PIO, 1995).

O resultado é que o INPI, a exemplo do que ocorreu com o MDIC, foi alvo

da “captura ortodoxa”, sendo gradualmente relegado a segundo plano no âmbito

da Administração Pública. Nem mesmo a certeza de que, com a abertura,

promovida a partir de 1990, o Instituto seria destino de um montante inédito de

pedidos de registros de marcas e outros títulos, de empresas multinacionais

incentivadas a investir no Brasil, foi capaz de comover os tomadores de decisão

no sentido de que era preciso aparelhá-lo para enfrentar adequadamente novos

desafios.

JAGUARIBE nos oferece uma reflexão ampla do processo de deterioração

do INPI e às causas que levaram a seu principal problema no que tange à

prestação dos serviços aos usuários. Trata-se do backlog, o atraso na concessão de

marcas e patentes367, muito mais lento e demorado, especialmente quando

comparado às médias de outros países:

367 No caso de marcas, por exemplo, no último ano do Governo Fernando Henrique Cardoso, houve uma diminuição de 31% do número de decisões de mérito na área técnica, em pedidos de

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Na verdade, imputar isso ao Fernando Henrique é um exagero. Trata-se de um processo gradual de deterioração, derivado de dois ou três elementos mais importantes. Primeiro, uma desatenção à questão da política industrial. Isso, na verdade, já vem do final dos anos 80 (oitenta). Posteriormente, veio o impacto do Collor, que teve muitas coisas positivas, mas também outras muito negativas. O próprio Ministério da Indústria foi extinto. A meu juízo, o INPI foi alocado a um Ministério menos adequado para tanto, o da Justiça, para onde também foi o INMETRO. Ficaram cerca de três anos no Ministério da Justiça, dando a impressão de corroborar a interpretação de que aquela área era, sobretudo, de natureza jurídica, o que evidencia uma visão imperfeita da situação. As dificuldades no INPI proviam de dois elementos: primeiro, a crise brasileira dos anos 80 (oitenta), a crise dos recursos, a crise da capacidade de dotação de fortalecimento dos institutos públicos, uma crise do modelo de desenvolvimento, e uma crise do modelo tecnológico industrial. E o INPI foi atingido em massa. A atenção que se dava ao INPI era pouca: os recursos que se davam ao INPI eram muito pequenos. Tudo isso fomenta um descontentamento grande, um elemento meio inercial, captado pelas associações internas, como a Associação de Funcionários, que, aliás, tem preocupações boas e legítimas, mas também muito tendentes a um processo de confrontação [...] (JAGUARIBE, 2010).

GUSMÃO também nos traz impressões sobre o processo de deterioração

do INPI especialmente das condições de trabalho enfrentadas enquanto esteve na

Presidência do Instituto (26/03/1993 a 31/08/1994).368 Agrega ainda outro fato: a

dificuldade de realizar processos licitatórios na instituição devido ao grande

número de processos administrativos e disciplinares movidos por administrações

anteriores contra funcionários:

[...] eu acho que houve uma aceleração do movimento, a que se somou ainda uma deterioração contínua dos meios e recursos do INPI - recursos humanos e físicos já estavam num processo de deterioração. Quando eu fui presidente do INPI, tomei posse, caiu o teto da minha sala. Isso foi em 93 (noventa e três), no fim de semana anterior à minha posse. Eu fui tomar posse na segunda-feira, no fim de semana caiu o teto da minha sala, da secretaria e caiu o teto do banheiro também da presidência. Eu saí de lá em setembro de 94 (noventa e quatro), e ainda não tinha conseguido mandar arrumar o teto que é uma estrutura de gesso simples [...] nada andava no INPI, por que nada andava? [...] Nada funcionava no INPI,

registro de marcas. O Relatório de Gestão Anual atribuiu este dado a alguns fatores: à saída dos 62 funcionários administrativos de apoio, sem que houvesse substituição; às deficiências experimentadas nas unidades administrativas de apoio, fundamentais para o andamento das atividades das divisões técnicas da Diretoria, que afetaram a produtividade do exame técnico; e, à perda de 20 analistas de marcas e 69 auxiliares de marcas contratados temporariamente, assim como de outros que deixaram a função (INPI, 2002). 368 Em artigo datado de dezembro de 1993, GUSMÃO manifestava sus expectativa de que com o advento da nova lei, haveria uma desburocratização e racionalização dos procedimentos administrativos do INPI, para outorga dos títulos relativos às marcas e às patentes. A previsão então era a de que seria reduzido em 60% o prazo para a concessão das marcas e 30% para a das patentes (GUSMÂO, 1993, p. 5), o que não se concretizou, havendo, inclusive, uma piora nos prazos do INPI na concessão de título. No caso de marcas, os prazos até a concessão chegaram a 7/8 anos, desde a data do depósito pelos seus titulares, ao passo que as médias de outros países não ultrapassam, até hoje, 1 ano e meio.

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porque tudo dependia de processo licitatório, e o processo licitatório não andava porque estava todo mundo com medo, porque teve tanto inquérito lá dentro de gente que estava meramente cumprindo seu dever e que se viu acusado de roubo, de corrupção de não sei o quê, que travou: o INPI, não funcionava mais. Então, toda a minha gestão eu fiz sem recurso. Quer dizer, eu não gastei dinheiro. [...] não pude gastar nada porque não tinha condição de fazer ninguém trabalhar, estavam todos traumatizados ali no INPI. Então havia a falta de caneta. Às vezes as pessoas falavam, “olha, eu não vou julgar porque não tenho caneta”, mas não é possível! Comecei a comprar caneta Bic. Tinha gente que trabalhava porque alguns escritórios davam caneta para as pessoas lá dentro, faziam doação de canetas para as pessoas trabalharem. Era uma coisa assim absurda, foi fantasmagórico. Dizem que o processo kafkiano era pouco. A maior contribuição ao backlog foi claramente a deterioração. [...] Quando eu fui presidente do INPI já estava com atraso muito grande, backlog muito grande e só continuou porque não houve investimento, não se permitia. No Governo Fernando Henrique ninguém contratava, era proibido contratar gente. Então, você tinha que trabalhar com as pessoas que estavam lá e não tinha gente de outros órgãos que você pudesse trazer. O serviço público federal estava muito deteriorado naquela época. Essa é uma das críticas que eu acho que deve ser feita ao Fernando Henrique, de fato. Por uma questão de enxugamento do tamanho da máquina pública, provocou-se uma deterioração. Eu acho até que o princípio do enxugamento é devido, quer dizer, eu acho que o Estado deve ter um tamanho menor, mas ele tem que ser muito competente naquilo que ele faz, nas suas atividades principais [...]. E aí ficou contaminado. Havia uma regra de não contratação, a gente não podia fazer absolutamente nada. E tinha também uma restrição muito grande a gasto. Então, por mais que o INPI fosse autossuficiente no seu balanço financeiro, tinha uma dificuldade muito grande de contratar o que quer que seja. Não tinha carro, a sede estava deteriorada, as máquinas todas estavam deterioradas. Administrar naquele tempo ficou muito complicado (GUSMÃO, 2010).

ÁVILA aponta as razões relacionadas à dimensão das políticas públicas

que teriam concorrido para a permanência, durante o Governo Fernando Henrique

Cardoso, do estado de letargia a que o INPI fora imposto desde o Governo

Fernando Collor de Mello, passando pelo Governo Itamar Franco:

Eu acho que o isolamento do INPI se deveu em grande medida à falta de uma discussão aprofundada sobre o papel da propriedade intelectual nas políticas de desenvolvimento, sobre a falta de uma compreensão desse assunto. Então, no INPI, a Lei da Propriedade Industrial é aprovada como se fosse o cumprimento de uma obrigação internacional, como se aquilo não tivesse relação direta com o nosso próprio processo de desenvolvimento. E o INPI é visto em grandes segmentos do governo – Fernando Henrique Cardoso ainda – como um instrumento executor desta obrigação internacional, e não como uma instituição de desenvolvimento. Então, essa é a razão deste descolamento (ÁVILA, 2010).

Podemos notar nas explicações de ÁVILA uma aproximação maior com a

advertência dos negociadores da Rodada Uruguai de que era preciso repensar o

papel do INPI no âmbito das políticas públicas. Sem a inserção do INPI em um

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sistema nacional de inovação ativo e com uma interface positiva e sinérgica com a

política externa, aos moldes da proposta de ERBER (2007) seria difícil revitalizar

a instituição e promover uma mudança paradigmática fundada em uma nova

concepção ideacional da propriedade intelectual: a de que ela é um instrumento

para o desenvolvimento econômico.

O descolamento a que ÁVILA se refere fica claro nos relatos de TÁPIAS.

Não faltaram projetos e ideias para reestruturar o INPI durante o Governo

Fernando Henrique Cardoso. Faltaram sim instrumentos e vontade política para

fazê-lo. Um exemplo é o projeto de trabalho “sem papel”, ou seja, de processar os

pedidos de registro de marcas e outros institutos sem lidar diretamente com os

processos físicos, analisando-os integralmente em formato digital, permitindo

também que os usuários se utilizem desse sistema, depositando seus pedidos de

registro em formato eletrônico369:

Eu achava que o INPI tinha que ser totalmente informatizado, porque ele ainda era movido por papéis que entravam [,,,] o que ensejava um atraso e uma demora muito grande no despacho dos processos. Muito bem. Por causa disso, eu acho que a questão da política industrial fica um pouco atrapalhada, por quê? Porque se há demora em se obter o registro de uma patente – ou de um processo que melhora produto, ou melhora em termos de preço aquilo que você faz – isto retarda o avanço na indústria [...]. Fora isso, tem também as questões de importação e exportação, que você precisa ter a sua patente reconhecida não só no Brasil, mas no exterior. E esse é um processo também bastante lento. Quando eu estive no governo, eu tentei desenvolver um programa. Deixei lá um programa para desenvolver do ponto de vista de informática. Você teria todas as informações registradas num servidor e as pessoas envolvidas nesse processo, ao invés de ficar examinando um pacote de papel [...] consultaria diretamente a tela do computador e isto daria mais agilidade e tal. E para aqueles que quisessem fazer pesquisa, para ver se sobre aquilo que ele imaginava ser uma inovação ou uma novidade, já existia proteção, ficaria muito mais fácil. Ela seria feita em questões de minutos talvez. Mas eu não consegui completar esse processo, mas deixamos o processo encaminhado lá no INPI (TÁPIAS, 2009).

As posições manifestadas por alguns dos atores mais diretamente

envolvidos nas discussões sobre a reestruturação ao INPI dão conta de que se

sabia o que era necessário fazer, em termos materiais, mas não havia os meios

financeiros disponíveis, nem apoio político necessário para implantar as melhorias

que sabidamente eram necessárias (contratação de pessoal, melhoria da estrutura

física, racionalização dos procedimentos com auxílio da tecnologia, reforma do

plano de carreira dos servidores etc). JAGUARIBE reconhece esta realidade, mas 369 Com marcas, o sistema de depósito eletrônico só começou a funcionar em 01/09/2006.

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ressalta, assim como ÁVILA (que se refere à necessidade de pensar o INPI como

instituição de desenvolvimento) a mudança ideacional que, do seu ponto de vista,

era tão ou mais importante do que as melhorias materiais:

Apesar de esforços importantes de vários ministros e até de presidentes do INPI, acho que o período do Fernando Henrique não foi tão favorável à instituição, assim como não tinham sido os outros todos, remontando provavelmente à década de 80 (oitenta). Houve bons presidentes no INPI, fazendo esforços naquele momento, mas desde meados para o fim da década de 80 (oitenta) a situação só fazia se deteriorar [...]. Tenho certeza de que administrações anteriores tinham boas ideias, mas não tinham os instrumentos.370 Embora muitas vezes eu ache que o ponto central não seja nem esse. O ponto central para mim é a orientação do Instituto e essa questão da articulação. Se você não tiver a inserção da propriedade intelectual no âmbito geral da política industrial não vai funcionar adequadamente. (JAGUARIBE, 2010).

Podemos, concluir, portanto, que o INPI passou por um período de

contínua degradação que remonta à década de 80 e que se agravou a partir do

Governo Fernando Collor. A adesão ao Acordo TRIPS e os compromissos nele

embutidos não representaram estímulos aos Governos Collor, Itamar e Cardoso

para prestigiar uma nova política industrial e tecnológica no país, que fosse

preocupada com a gestação e maturação de um sistema nacional de inovação em

que o INPI pudesse promover interfaces, tanto no plano endógeno, com os setores

produtivo, acadêmico e de pesquisa em ciência e tecnologia, quanto no exógeno,

com órgãos congêneres, aprofundando iniciativas de cooperação internacional em

questões técnicas e substantivas. Ao contrário, a “captura ortodoxa” do INPI,

ocorrida entre os Governos Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Fernando

Henrique Cardoso (1995-2002), não somente impossibilitou que o Instituto

encarasse o desafio apresentado desde a Rodada Uruguai, como também que

desempenhasse a contento até mesmo a sua função tradicional, adjudicatória de

direitos, redundando em descrédito junto à sociedade. Ideias hegemônicas na

370 Exemplo disso é o artigo de autoria de José Graça Aranha, Presidente do INPI entre 06/07/1999 e 14/01/2003 (quem ficou mais tempo no cargo durante o Governo Fernando Henrique Cardoso), publicado no Valor Econômico, em que criticava o silêncio na então recém-encerrada campanha eleitoral para Presidente em relação à questão da propriedade intelectual. De acordo com Graça Aranha, a propriedade intelectual e o INPI precisavam mais de valorização e reconhecimento do que de investimentos maciços. Além de ressaltar a importância da propriedade intelectual para alavancar o desenvolvimento tecnológico e econômico dos países, o então Presidente do INPI, que menos de um mês depois deixaria o cargo, sublinhava também a necessidade do instituto contratar 400 novos funcionários de nível superior, adotar um novo plano de cargos e salários e gozar de autonomia administrativa (GRAÇA ARANHA, 2002). Vale mencionar que foi ainda na Administração Graça Aranha que o INPI realizou seu primeiro concurso público para servidores efetivos (estáveis), em 2002.

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equipe econômica e lideranças escassas e cerceadas por um ambiente de tomada

de decisões pouco democrático e receptivo às formulações que contrariassem a

ortodoxia vigente concorreram para a debilidade da formulação de políticas

industriais seletivas e ativas, com rebatimento direto no instituto.

É hora, portanto, de refletir sobre o legado do período Fernando Henrique

Cardoso para a propriedade intelectual.

5.6 O Legado da “Era Cardoso” para a Propriedade Intelectual

Ao examinar os efeitos que o neoliberalismo produziu para as relações

internacionais do Brasil, CERVO & BUENO (op. cit., p. 491) enumeram

consequências positivas e negativas. Entre os efeitos negativos são mencionados:

a abertura sem contrapartida do mercado de consumo nacional, o déficit do

comércio exterior, o endividamento externo, a alienação de ativos de empresas

brasileiras, a submissão a consensos do centro do capitalismo, a obediência às

regras de governança global determinadas pelos países mais desenvolvidos e o

sacrifício das relações com os países emergentes em favor do primeiro mundo.

Esses fatores contribuíram, na visão dos autores, para uma perda de poder do país

no cenário internacional (ibid, p. 492).

Por outro lado, CERVO & BUENO reconhecem que a abertura econômica

resultou em modernização das plantas industriais e aumento da competitividade

sistêmica global da economia brasileira e que o liberalismo contribuiu para a

diminuição do Estado (nem sempre criteriosa, mas necessária) e maior repartição

com a sociedade na distribuição de responsabilidades sobre o crescimento e o

desenvolvimento econômicos (ibid, p. 492). Um exemplo desta maior repartição

foi o incremento da diplomacia empresarial que convocou as associações de

empresários e de trabalhadores e as lideranças de outros segmentos da sociedade

organizada “para auscultar seus interesses na fixação do grau de abertura e nas

opções diante da formação de blocos econômicos” (ibid, p. 461) e em outras

negociações do governo nos principais foros internacionais, como as da OMC.

Em manifestação contundente em prol da herança diplomática do Governo

Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, LAFER

(2004) defende que, em matéria de política externa, o patamar da presença do

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Brasil no mundo teve salto significativo, fruto de significativas mudanças no

plano interno, entre elas: o aprofundamento das práticas democráticas, a

estabilidade da moeda, a responsabilidade fiscal, a maior abertura da economia ao

exterior e a construção de uma rede redistributiva de proteção social. 371 O Ex-

Chanceler do Governo Cardoso (2001-2002) destaca, entre outros eventos, a

experiência brasileira em contenciosos na OMC, iniciados durante a Gestão

Cardoso, que resultou em vitórias como na questão dos subsídios do algodão

(contra dos Estados Unidos). Ressalta, ainda, a postura do governo em relação à

globalização, presente nos problemas denunciados pelo Presidente como o

fundamentalismo de mercado e o déficit da governança mundial.

Nosso posicionamento, já embasado, é de que as críticas de Fernando

Henrique Cardoso à globalização não foram uniformes ao longo dos oitos anos de

seu governo e gradualmente assumiram tonalidades mais fortes. No que tange

especificamente à propriedade intelectual, a política externa de tom mais crítico e

engajado teve seu ponto alto no conflito diplomático que levou à Declaração de

Doha sobre TRIPS e Saúde Pública, contrariando, ainda que de forma tópica e

isolada, as ideias econômicas que pregavam a “normalização das relações

bilaterais com os Estados Unidos” e uma postura cordata em relação ao regime

internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS como comportamentos-

padrão para nossa inserção externa, desde o início da década de 90.

O aprendizado social a que o Itamaraty viu-se submetido desde a Rodada

Uruguai, e que teve oportunidade de aprimorar na série de contenciosos ocorridos

no âmbito da OMC, foi fundamental no sentido de erguer uma aliança com

lideranças e setores não-ortodoxos do Governo (notadamente, no Ministério da

Saúde), que forjaram a bem sucedida estratégia diplomática de Doha, não obstante

avaliações mais céticas sobre os méritos da participação brasileira.

No que se refere à dimensão institucional das políticas públicas, um

importante desdobramento da centralidade conferida à propriedade intelectual

pela controvérsia dos genéricos e das licenças compulsórias foi a criação do

371 ROMERO (2010) também aponta aspectos benignos do legado do Governo Fernando Henrique Cardoso, como a estabilidade de preços, descrita como um “ativo político de valor incomparável”. Menciona ainda avanços na área social, no saneamento do sistema financeiro internacional, nas privatizações e na reorganização das finanças estaduais e municipais.

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GIPI372que coincide com um momento de reconhecimento do caráter transversal e

complexo da propriedade intelectual e de que se trata de um tema que afeta

diversas áreas de conhecimento e, consequentemente, vários ministérios.373

Criado por Decreto Presidencial, de 21 de agosto de 2001, no âmbito da CAMEX,

o GIPI possui as seguintes atribuições, de acordo com seu artigo 1º:

I - aportar subsídios para a definição de diretrizes da política de propriedade intelectual; II - propor o planejamento da ação coordenada dos órgãos responsáveis pela implementação dessa política; III - manifestar-se previamente sobre as normas e a legislação de propriedade intelectual e temas correlatos; IV - indicar os parâmetros técnicos para as negociações bilaterais e multilaterais em matéria de propriedade intelectual; V - aportar subsídios em matéria de propriedade intelectual para a formulação e implementação de outras políticas governamentais; VI - promover a coordenação interministerial nos assuntos que serão tratados pelo GIPI; VII - realizar consultas junto ao setor privado em matéria de propriedade intelectual; VIII - instruir e reportar matérias relativas à propriedade intelectual.

Coordenador-Geral da Secretaria Executivado GIPI, desde 2000, Márcio

Suguieda, nos relata detalhes acerca da atuação do grupo no processo de

formulação de políticas públicas:

A tomada de decisão é baseada em processo exaustivo de busca do consenso, com o devido envolvimento dos vários atores do Governo interessados na matéria, suas visões, demandas, questionamentos, o que fornece maior unicidade na discussão do tema. Ela também agrupa os (ainda poucos) técnicos atuantes no tema em cada Pasta na procura de uma solução comum. Aproveitamos ainda o interesse do setor privado e da sociedade civil organizada no que concerne ao envio de demandas, proposições, subsídios e, em alguns casos, na participação direta em reuniões específicas. A esse propósito, cabe aqui rememorar que a missão do GIPI é a harmonização das posições dos órgãos e entidades do Poder Executivo, o que já é uma tarefa bastante complexa. Dito isso, nem tudo são flores. Tivemos situações em que as decisões já foram tomadas diretamente nas altas instâncias do Governo, não cabendo participação adicional do GIPI ou estando ele sujeito apenas ao envio de subsídios adicionais conforme a conveniência.

372 Nas entrevistas que nos concederam, BRANDELLI (2010) e JAGUARIBE (2010) fizeram questão de ressalvar que, desde a Rodada Uruguai, o GIPI funcionou informalmente. O primeiro grupo interministerial para subsidiar as posições brasileiras sobre o Acordo TRIPS foi coordenado por JAGUARIBE, segundo informações que o próprio nos concedeu. BRANDELLI também esclarece que, na implantação do TRIPS, havia Comitês Interministeriais sobre cada matéria (propriedade industrial, softwares, direitos de autor etc) que também inspiraram a posterior oficialização do GIPI. 373 O MDIC detém a Presidência e a Secretaria Executiva do GIPI, composto atualmente por onze Pastas de Governo.

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Outros processos tinham o consenso, mas mudanças de autoridades ou de entendimento causaram a necessidade de rediscussão ou ajustes. No nosso segmento e em função da complexidade do assunto, da diluição do encargo da decisão entre vários atores, isso felizmente é incomum. O importante é que havendo consenso, mesmo com mais tempo para a sua obtenção, as questões são naturalmente submetidas com maior solidez aos foros internos, tais como o Poder Legislativo, ou aos vários foros externos, por terem conjugado interesses diversos na esfera da Administração Federal direta e indireta (SUGUIEDA (2009). A institucionalização de uma arena com as características do GIPI, ainda

que de caráter consultivo e preparatório significa uma inovação relevante no que

tange ao processo decisório de políticas públicas de propriedade intelectual. No

âmbito interno, promove aproximação entre diferentes áreas do governo e

fundamenta melhor o posicionamento final do Executivo, incluídos os

encaminhamentos ao Legislativo. No campo da política externa, auxilia na

instrumentalização técnica das posições diplomáticas nos principais foros

internacionais, preenchendo uma carência notada durante a Rodada Uruguai.

Contribui, assim, para o aprendizado em termos do aprimoramento de nossa

inserção internacional:

O GIPI, por sua ampla e diversificada composição, contribui para que as várias facetas da propriedade intelectual possam ser discutidas e, eventualmente, harmonizadas, de molde a se encontrar um substrato comum nas posições dos diversos órgãos envolvidos e, com base, nesse substrato, apresentar comentários e sugestões que contribuam para a formulação da política de propriedade intelectual (CASTRO, 2010). Maria Beatriz Amorim reconhece razões importantes para a existência do

GIPI e elogia sua existência e atuação. Contudo, aponta questões que, de seu

ponto de vista, poderiam ser aprimoradas no que tange a sua representatividade e

ao seu relacionamento com o INPI.374

O Brasil é referência nesse processo de organização interministerial, uma conversa interministerial da propriedade intelectual. É referência. Tem problemas? O GIPI tem. Mas, é uma idéia ruim? Não! É assim que eu vejo, é uma excelente iniciativa que precisa... [..] elevar o nível da discussão.. O nível de representatividade ainda é num nível muito técnico demais, e o GIPI é político. O nível de representatividade está técnico, e o GIPI não é técnico. Quer dizer, claro que ele tem que ter o apoio técnico, mas a decisão é uma decisão de governo. É esse o desafio da contradição. É você acomodar a contradição aqui e sair - para

374 O INPI não possui representação no GIPI. Contudo, o Decreto de criação do Grupo prevê que o INPI deverá sempre ser ouvido quando se tratar de matérias de sua esfera de competência.

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fora - com um discurso de governo. Mas isso só dá quando você tem pessoas em um nível de decisão política sentadas ali. Não em todas, porque as reuniões são muito frequentes, mas em alguns momentos do ano. Por exemplo, quatro reuniões por ano: essas seriam as das pessoas com decisão política - apoiadas pelas suas áreas técnicas e tudo o mais, não tem problema. Mas acho, independente desse modus operandis (que tem que ser aperfeiçoado na minha visão), que o GIPI é um exemplo, uma referência. O Chile tem um exemplo muito parecido. O problema é que atores como o INPI, não se conformam com a existência do GIPI. E eu falo com muita tranquilidade, porque a minha referência institucional no Brasil nessa época foi o INPI. [...] O INPI não se conforma, porque [...] dentro do contexto histórico e da interlocução do sistema de propriedade intelectual [...] os “INPIs” têm um protagonismo muito forte no mundo inteiro. [...] Para a maioria dos países, ainda são os “INPIs” as referências. Eu acho que para muita coisa o INPI do Brasil vai continuar sendo referência [...]. Tem muito que contribuir. [...] Mas a conversa interministerial é fundamental para inserir propriedade intelectual nas políticas de governo. E para alcançar uma política externa que fale e que leve a posição de um governo, que não é a posição do INPI; é uma posição de governo (AMORIM, 2010).

Finalmente, COUTINHO nos fornece considerações semelhantes, mas

também sua impressão sobre o relacionamento entre o GIPI e o Itamaraty no

tocante à formulação da política externa de propriedade intelectual. Revela que o

GIPI é ouvido com constância, mas o protagonismo político (a decisão final)

cumpre ainda ao Itamaraty:

O Grupo Interministerial que foi criado, que abre um foro, e o que é uma diferença brasileira que é elogiada por diversos países, inclusive países desenvolvidos. Eu já fui testemunha disso. Ter esse Grupo dentro do governo brasileiro é um exemplo para outros países. Quer dizer, você abrir o leque para que outras instâncias do governo, que tenham atividades afins com propriedade intelectual, possam se manifestar e possam colocar suas posições, dando maior força, fortalecendo o posicionamento que o governo oficialmente vai externar em foros multilaterais é um ganho que já vem, enfim, posso dizer que foi um fruto pelo menos oficial do governo Fernando Henrique Cardoso. Um legado que ficou para o governo Lula. [...] Há dois eixos condutores nas decisões do GIPI. Um está no Ministério do Desenvolvimento [...]. E o outro é o próprio Itamaraty. É óbvio que o Itamaraty não poderia, digamos assim, estar de fora. Ele recebe um input da administração central, da Presidência da República, mas ele é que externa esse posicionamento e dá conhecimento a todos os membros do GIPI de qual é a linha mestra em termos de qual é a decisão a ser tomada ou que caminho que nós temos que seguir. Você sabe que todos os diplomatas, e isso é uma qualidade do Instituto Rio Branco, eles são treinados e preparados para saberem como conduzir uma discussão. Saber como conduzir uma discussão, muitas das vezes para um fim que eles já sabem qual é. Mas a intenção do governo é chegar a esse terminal de posicionamento. Então, nós temos que harmonizar esse conhecimento intragoverno e dar a entender a todos os atores do governo de que esse é o melhor posicionamento possível. Se uma ideia nova surgir nessa discussão que possa ser acoplada a esse posicionamento do governo, talvez ex ante, tanto melhor. Se tiver alguma área do governo que seja completamente discrepante em termos de entendimento, essa linha há que se entender que deverá prevalecer o

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entendimento em favor do governo brasileiro, e nada melhor que o Rio Branco para poder nos colocar qual seria o melhor caminho. É óbvio que quando se parte para um arrazoado mais técnico, os diplomatas estão mais abertos a poderem receber esses inputs e defendê-los em diferentes foros (COUTINHO, 2010).

Podemos afirmar, a partir dos depoimentos colhidos, que o GIPI

representou um legado importante do Governo Fernando Henrique Cardoso, em

termos da formalização de um novo estilo de tomada de decisão em política

externa que foi se solidificando a partir do aprendizado iniciado na Rodada

Uruguai. A criação da Divisão de Propriedade Intelectual (DIPI) do MRE, em

2001, enquadra-se no mesmo contexto. Contudo, foram mais meras

formalizações, decorrentes do reconhecimento um pouco tardio do governo de que

a propriedade intelectual merecia tratamento diferenciado.

Apesar de iniciativas relevantes, como a criação dos Fundos Setoriais de

Ciência e Tecnologia, em 1999 e do envio ao Congresso do Projeto de Lei da

Inovação, em 2002375, o Governo Fernando Henrique Cardoso não logrou

articular tais iniciativas adequadamente dentro de um “guarda-chuva”

institucional mais amplo, capaz de abrigar a política industrial e tecnológica e a

política externa de forma coerente e entrosada. A captura ortodoxa das políticas

públicas de propriedade intelectual se materializou na capacidade limitada do

MDIC agir e na continuidade do processo de deterioração do INPI. Procuramos

sintetizar a discussão deste capítulo no fluxograma a seguir:

375 O discurso de Fernando Henrique Cardoso por ocasião dos 50 anos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQq) ilustra este momento mais favoravelmente inclinado às políticas de financiamento da pesquisa e da inovação (CARDOSO, 2001b).

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Fonte: elaboração ao autor

Como e porque o Governo Luiz Inácio da Silva se dispôs a lidar com esse

cenário e, eventualmente, modificá-lo, é o que nos propomos a discutir agora.

G OVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO(Regim e de Propriedade Intelectual: Poder/Ideias)

NEOLIBERALISM O (Dom inante)DESENVOLVIM ENTISM O -LIBERAL (M inoritário)

LIDERANÇAS(Fernando Henrique Cardoso: D iplomacia

Presidencial)

POLÍTICA EXTERNA(Adesão Passiva ao Crescente

Descontentam ento)

POLÍTICA INDUSTRIAL (Presença M arginal na Agenda Pública)

(Incom unicáveis)

INSTITUIÇÕES(Aprendizado Social)

(M RE; D IPI-MRE; G IPI)

LIDERANÇAS(Tecnocracia Econômica:

Pedro Malan, Gustavo Franco etc.)

INSTITUIÇÕES(Dom inantes: M inistério da Fazenda e Banco Central)

(M ICT/MDIC: Captura Ortodoxa)

(INPI: Aprofundamento da Deterioração)

G OVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO(Regim e de Propriedade Intelectual: Poder/Ideias)

NEOLIBERALISM O (Dom inante)DESENVOLVIM ENTISM O -LIBERAL (M inoritário)

LIDERANÇAS(Fernando Henrique Cardoso: D iplomacia

Presidencial)

POLÍTICA EXTERNA(Adesão Passiva ao Crescente

Descontentam ento)

POLÍTICA INDUSTRIAL (Presença M arginal na Agenda Pública)

(Incom unicáveis)

INSTITUIÇÕES(Aprendizado Social)

(M RE; D IPI-MRE; G IPI)

LIDERANÇAS(Tecnocracia Econômica:

Pedro Malan, Gustavo Franco etc.)

INSTITUIÇÕES(Dom inantes: M inistério da Fazenda e Banco Central)

(M ICT/MDIC: Captura Ortodoxa)

(INPI: Aprofundamento da Deterioração)

NEOLIBERALISM O (Dom inante)DESENVOLVIM ENTISM O -LIBERAL (M inoritário)

LIDERANÇAS(Fernando Henrique Cardoso: D iplomacia

Presidencial)

POLÍTICA EXTERNA(Adesão Passiva ao Crescente

Descontentam ento)

POLÍTICA INDUSTRIAL (Presença M arginal na Agenda Pública)

(Incom unicáveis)

INSTITUIÇÕES(Aprendizado Social)

(M RE; D IPI-MRE; G IPI)

LIDERANÇAS(Tecnocracia Econômica:

Pedro Malan, Gustavo Franco etc.)

INSTITUIÇÕES(Dom inantes: M inistério da Fazenda e Banco Central)

(M ICT/MDIC: Captura Ortodoxa)

(INPI: Aprofundamento da Deterioração)

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