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r i o s G u i l h e rm e M o t a organizadc

w

F o rm a ç ã o : h i s t ó r i a s

X P E R I E N C I AB R A S I L E I R A

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Os 500 Anos de Brasi l são os inspiradores de Viag em inc om pleta. A experiência brasi lei ra (1500-2000), coletânea

de ensaios produzidos por mestres danossa historiografia que, i luminandomo me ntos do passado, lançam luz sobreo presente. Seu coordenador, o histo riador Carlos Gui lherme Mota, autor deimpo rtantes trabalhos individua is, foi oresponsável por duas marcantes obrascoletivas, Brasil em perspectiva (1968) e1822: dimensões (1972) . Neste pr ime i ro vo lume, Vi agem i nco mpleta . Forma

ção: histórias, ao qual se seguirá Viag em i ncompleta . A grande t r a n s a ç ã o , ostemas tratados vão da pré-história daAmérica tro pical à passagem da m onarquia para a república. A Editora SENACSão Paulo e o SESC São Paulo, ao apresentar estas ref lexões, estão certos decontribuir para os debates sobre os fundamentos de nossa cidadania e identi

dade cul tural .

ISBN 85-7359-110-2

Co-edição:

S A O P A U L O

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000).Formação: histórias / Carlos Guilherme Mota (organizador) . - São Paulo : Editora SENAC São Paulo, 2000.

Vários autores.Bibliografia.

"«^JSBN 85-7359-110-2

1. Brasil - Civilização 2. Brasil - H istória - 1500-20003. Cultura - B rasil 4. Raças - B rasil I. Mota, Carlos Guilherme, 1941.

99-5473 CDD-981

índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Civilização 9812. Brasil : Cultura : Civilização : História 9813. Brasil: Formação histórica 9814. Brasil : História: 1500-2000 981

V I A G E M

I N C O M P L E T AC a r l o s G u i l h e r m e M o t a

F o r m a ç ã o : h t e t ó r i a s

A EXPERIÊNCIA

B R A S I L E I R Asenac

D DSÃO PAULO

Go-edição:

S Ã O P A U L O

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A D M I N I S T R A Ç Ã O R E G I O N A L D O SENACN O E S T A D O D E S Ã O P A U L O

Presidente do Conselho Regional: Abram SzajmanDiretor do Departamento Regional: Luiz Francisco de Assis SalgadoSuperintendente de Operações: Darcio Sayad Maia

EDITORA SE NA C SÃO PAULO

Conselho Editorial: Luiz Francisco de Assis SalgadoClairton Martins

Décio Zanirato JúniorDarcio Sayad MaiaA. P. Quartim de Moraes

Editor: A. P. Quartim de Moraes ( [email protected]

Coordenação de Prospecção Editorial: Isabel M. M. Alexandre ([email protected]) Coordenação de Produção Editorial:Antônio Rob erto Bertelli ([email protected]

Preparação de Texto: Luiza Elena LuchiniLuiz Carlos Cardoso

Revisão de Texto: Ivone P. B. GroenitzIzilda de O. PereiraJ. Monteiro

Márcio Delia RosaMaristela S. da NóbregaPesquisa Iconográfico: Emporium Brasilis Memória e Produção CulturalEdição de Imagens e Legendas: Carlos Guilherme Mota e Vladimir SacchettaReproduções Fotográficas e Laboratório: Rangel EstúdioCapa: João Baptista da Costa AguiarEditoração Eletrônica: Antônio Carlos De ÂngeloImpressão e Acabamento: Hamburg Donnelley Gráfica Editora

Gerência Comercial: Marcus Vinicius B. Alves ([email protected]) Vendas: José Carlos de Souza Jr. ([email protected]) Administração: Márcio Tibiriçá ([email protected]

Todos os direitos desta edição reservados àEditora SENAC São PauloRua Teixeira da Silva, 531 - CE P 04002-032Caixa Postal 3595 - CEP 01060-970 - São Paulo - SPTels. (11) 884-8122 / 884-6575 / 889-9294Fax(11)887-2136E-mail:  [email protected] Home page:  http://www.sp.senac.br 

© Carlos Guilherme Mota, 1999

Sumário

Nota do Editor, i

Nota do Co-Editor, 9

Introdução

Carlos Guilherme Mota, 11

Incursões à pré-história da América tropical

A z i z N a c i b A b ' S a b e r, 2 9

A gênese do Brasil

Jorge Couto, 45

Uma Nova LusitâniaEvaldo Cabral de Mello, 71

"Ge nte da terra braziliense da nasçã o". Pensando o B r a s i l : a construção de um povo

Stuart B. Schwartz, 103

Peças de um m osaico (ou apontamentos para o e studo da emergência da identidade

nacional brasileira)

István Jancsó e João Paulo G. Pimenta, 127

Por que o Brasil oi diferente? 0 contexto da independência

Kenneth Maxwe ll, 177

Idéias de B r a s i l : formação e problemas (1817-1850)

Carlos Guilherme Mota, 197

"Nos acha mos e m cam po a tratar da liberdade" : a resistência negra no Brasil oitocentista

João José Reis, 241

Olhares e strangeiros sobre o Brasil do século XIX

Karen Macknow Lisboa, 265

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I

O B r a s i l n o e s p e l h o d o P a r a g u a i

I Francisco Alambert, 301

U m B r a s i l m e s t iç o : r aç a e c u l tu r a n a p a s s a g e m d a m o n a r q u i a ò r e p ú b l i c a

I Roberto Ventura, 329

S o b r e o s a u t o r e s , 3 6 i

Nota do Editor

\ J r a n d e  virtude dos aniversários "redondos" de eventos históricos éque eles convidam à reflexão sobre o período entre os dois pontos-limite. Écomo se um olhar abrangente partisse de u m a posição privilegiada, n u m único lance distinguindo melhor alguns aspectos sem deixar de abarcar comsegurança o conjunto.

Estes 5 00 A nos de B rasil são inspiradores também porque encontrama inteligência do país em plenas condições para um balanço da trajetória.Por acreditar nisso, a Editora SEN AC São P aulo já lançou três livros sobreo tema e prepara-se para outros mais, como este que se apresenta em doisvolume s. A biografia d a heroína brasileira Anita Garibaldi, escrita p o r PauloM arkun, foi o primeiro deles, seguida por Outros 500, uma análise da "almabrasileira" pelo psicanalista Roberto G ambini em d iálogo com a jornalista

Lucy Dias , e por Introdução ao Brasil - um banquete no trópico, coletâne a de resenhas de livros fundamentais do país, organizada por LourençoDantas Mota.

Este Viagem incompleta. Formação: histórias, a que se seguirá Viagem incompleta. A grande transação, vale também como Introdução aoBrasil conduzida com competência por mestres d a historiografia brasileira,aqui coordenados pelo saber de Carlos Guilherme Mota, em um trabalhoque é prova da maturidade alcançada pelos estudos históricos em nossopaís.

A viagem é incompleta pelos motivos que o organizador d o livro expõeadiante. M as tem a admirável completude de uma série de estudos que hon

ram seu grande tema: o B rasil.

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Nota do Co-Editor

x V reflexão sobre nossa formação histórica, mais que uma tarefa, éuma condição permanente de todos aqueles que, para qualificar sua açãocotidiana, necessitam entender as raízes de nossas mazelas e virtudes. Os500 anos de Brasil e, mais precisamente, os 180 anos desde a fundação deum Estado B rasileiro, na verdade, construíram a organização social, políticae cultural com que lidamos a toda hora.

A compreensão das condições atuais de nossa existência como sistemasocial será sempre um processo inacabado, já que não se trata de um olharobjetivo sobre um passado encerrado, mas o recurso a modelo s de interpretação que nascem das necessidades e formulações do presente. Assim, oolhar histórico é, antes de tudo, um olhar para o presente e para a necessi

dade de se buscarem explicações para os fatos que conduzem ou condicionamnossas ações.

O SE SC - Serviço Social do Comércio, cuja missão é oferecer oportunidades de desenvolvimento pessoal e comunitário por meio do lazersociocultural a seu público específico e à população em geral, cumpre doisobjetivos ao assumir a co-edição desta publicação. Em primeiro lugar, propõe-se contribuir para o debate das grandes questões que estão na origemda formação da nacionalidade brasileira, cuja reflexão s e constitui em fundamento para a cidadania. Em segundo lugar, propõe-se contribuir para o aperfeiçoamen to do s modelo s institucionais de ação cultural, na busca de umapedagogia que estabeleça parâmetros para uma educação social e perma

nente, num processo contínuo de encontro da sociedade consigo mesma e,portanto, com a sua capacidade de criação, seus costumes sociais, po líticose eco nôm icos, suas crenças e sua inserção no contexto internacional globalizado.

Este primeiro volume apresenta uma visão renovada da história, novasidéias de Brasil, segundo o organizador Carlos Guilherme M ota, numenfoqueinterdisciplinar, que serão de grande valia para a reflexão sobre a constituição de uma cidadania e identidade cultural, relacionadas com nossa própriaformação social.

Danilo S antos de MirandaDiretor Regional do SESC em São Paulo

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O I R I P T I *

-i ^

Introdução

Carlos Guilherme Mota

0 d e s p o t i s m o d e c e r t o p a í s q u e c o n h e ç o é a ç u c a r a d o e m o l e ; m a s p o r i s s o

m e s m o p e r i g o s o , po r t i r a r t o d o n e r v o a o s e s p í r i t o s , e a b a s t a r d a r os c o r a

ç õ e s .

J o s é B o n i f á c i o

v - i v

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I

-Ldéias de Brasil, eis a temática geral da obra que o leitor tem sob seusolhos.

Trata-se, aqui, de indagar, ao longo dos estudos e ensaios elaboradosporespecialistas convidados, dos sentidos da história do processo civilizadorno B rasil. Procurando escapar dos mod ismos da pós-modernidade periféri

ca e do con vencionalismo, perquirem-se nestas páginas alguns significadosde nossa formação e existência enquanto povo. D e nossos modos de pensare fazer história, enfim. Daí, o tom do minante dos escritos, em que os autores,de orientações intelectuais distintas, reconstroem processos e aspectos m enos óbvios do passado, ao mesmo tempo que discutem com as historiografiasclássica e contemporânea, exercitando a indagação interdisciplinar. Idéias d e"Brasil", vasto campo interdisciplinar, com o "C hina", "Espanha", "Amazonas". Ou - quão dessemelhante - com o a triste "Bahia".

A obra, planejada em dois volu mes, abarca cinco séculos daquilo quese poderia denominar "experiência brasileira". Um longo processo, inacabadocomo tudo em história, porém particularmente incom pleto, se constatarmos

que muito - quase tudo, conforme a perspectiva - ainda resta por fazer naTerra brasilis, sobretudo no que se refere aos direitos e deveres da cidadania. Terra sobre a qual, num distante ano de 1986, um de seus poetas-canto-res, A ntônio Carlos Jobim, ao comentar o encerramento de um longo cic lohistórico-cultural iniciado co m a Semana de 22 , concluiu: "No Brasil, o futuro já era".

Os dois volum es, independentes, obedecem a um plano geral.O primeiro volu me, sob o título geral de "Formação: histórias", trata da

gênese e consolidação de idéias de Brasil, desde os pródromos, primeirasviagens e projetos de um a "N ova Lusitânia" nos trópicos, até a articulação

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14C a r l o s G u i l h e r m e M o t a

de uma ordem colonial escravista, alcançando, já no século X IX , o períododa descolonização e a formação de um "Brasil mestiço". Longo processopontilhado por insurreições, independência política e conflitos agu dos, durante o qual se consolidou, na segunda metade do século, nos quadros doneocolonialismo, uma sociedade por assim dizer nacional. Uma sociedadeem que se misturavam valores da velha ordem estamental-escravista co m osnovos valores da sociedade de classes em ergente, que as obras emblemáticasde G ilberto Freire e C aio Prado Júnior traduziriam exemplarmente.

Os estudos e ensaios aqui incluídos procuram desvendar essas idéiasde Brasil, orientadas no sentido da busca de um novo padrão social, deurbanização e de inserção na ordem internacional, bem como de uma moderna organização institucional, po lítica e cultural.

O segundo volume é dedicado praticamente ao "longo" século XX,sob o título geral "A grande transação". Ne le, sã o tratadas as experiênciasde implantação de idéias republicanas e de conceitos contemporâneos decultura e de E stado, com ênfase nas novas interpretações históricas, socio lógicas, literárias sobre "nossas identidades". Desde o "Brasil mestiço" dos

intelectuais da Primeira República até os impasses da esquerda nas últimasquatro décadas, passando pelos projetos da ditadura civil-militar que nosavassalou no período de 1964 a 1984, deixando seqüelas estruturais e imensadívida social, o leitor encontra nestas páginas elementos para uma visão renovada da história - ou melhor, histórias - dos embates, das produçõesintelectuais, imp asses e resultados do que se poderia denominar pensamentobrasileiro, na teoria e na prática.

I I

"Onde o Brasil?", perguntava num verso conhecido o poeta Carlos

Drummond de Andrade.O s estudos aqui reunidos foram elaborados no apagar de luzes do sé

culo XX. Século de descobertas e inovações, mas também de retrocessos edesencontros culturais, políticos, religiosos e econômicos, que se encerranuma profunda crise mundial de valores. E stes textos carregam o m al-estarde nosso tempo, o travo de nossa mal-ajambrada e improvável civilizaçãoque, à falta de melhor qualificação, se imagina "tropical". E pensando nastarefas que nos aguardam na elaboração de nossa cidadania nacional e internacional no século XXI, trazem eles indagações agônicas, dúvidas antigas.

I n t r o d u ç ã o 15

Como nos inserimos, quase sempre sem sucesso, no mundo contemporâneo? Na entrada de um novo século (e de um novo milênio, fato nãodespiciendo para historiadores), qual o m otivo d essa sensação de estranhainatualidade cultural e política que atravessa nossa cultura? Sobre quais bases materiais e éticas construímos nossas auto-imagens coletivas e nossas

utopias? Em suma, de que história/histórias/estórias está-se falando?Numa visão atualizada, retoma-se aqui a experiência de Brasil em pers

pectiva, obra coletiva de 1968, que, hoje, com mais de vinte reedições,marcou várias gerações de historiadores, jornalistas, diplomatas, pesquisadores, estudantes e leitores em geral, por oferecer abordagens inovadorasda história do Brasil.

Ag ora, o ob jetivo se amplia. Até porque a historiografia brasileira seatualizou bastante, com obras tão estimulantes como as de José Murilo deCarvalho, Evaldo C abral de M ello, João José Reis, Fernando A. N ovais etantos outros. Nos anos 70, a reedição ampliada de Os donos do poder, dojurista e historiador Raym undo Faoro, a continuação e aprofundamento crí

tico das obras de Florestan Fernandes e de An tônio C ândido - três autoresjá consagrados que veriam suas biografias intelectuais intensificadas epolitizadas no último quartel do século X X - , entre muitos outros, sugeremuma revitalização e ampliação notável dos estudos históricos entre nós, embusca da especificidade de nossa formação.

Com efeito, a pesquisa histórica adquiriu novos conteúdos, incorporando as experiências e descobertas de historiadores mais maduros, comoM anuel Correia de Andrade, Francisco I glésias, Luís H enrique Dias Tavares,Ernani Silva B runo, Maria Yedda Linhares, José Honório R odrigues.

Demais, a partir dos anos 50, tornaram-se fundamentais em nossahistoriografia as produções de Stanley e Bárbara Stein, Charles R. Boxer,

Richard M orse, Warren Dean, Joseph L ove, R ichard Graham, John Wirth,Thomas Skidmore, Leslie Bethell, Frédéric Mauro, Joaquim Barradas deCarvalho, para mencionarmos alguns intelectuais e pesquisadores de expre ss ã o . Impo ssível deixar de registrar o papel crítico e solidário que desem penharam na resistência à última ditadura.

M I

N esta via gem transecular, procurou-se evitar persistente visã o linear esupostamente evolutiv a da chamada história do Brasil. N ão se retrocederá

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1 6 C a r l o s G u i l h e r m e M o f a

aqui, portanto, à discussão de " u m " Descobrimento, apenas. A história doBrasil propriamente, n a perspectiva d o organizador, somente s e afirmaria noperíodo d a independência, quando se esboça u m a historiografia "brasileira",delineando-se então, com maior nitidez, os embates em busca de u m projetopara a futura nação. N o período em que se processou a colonização portu

guesa, diversas idéias de B rasil são procuradas ou revisitadas pelos autoresdestes estudos. M as não trabalhamos, vale grifar, com a equivocada "História do Brasil Colonial", que aliás não existe.

N essa perspectiva, o B rasil passaria a existir somente após 1817-1831,mais ou m enos, numa conflituosa, lenta, complicada estruturação política,social, ideológica, econômica que ainda está por se esclarecer. Indicativadessa situação é a coexistência d e costumes, valores, economias, instituiçõese normas que se referem, na atualidade, a "dois Brasis", ou muitos mais,sugerindo as dificuldades de c onvivência ainda hoje - com o percebeu Marxpara outra época e contexto - de "estamentos pretéritos com classes futur a s " nessa região de pesada herança colonial. No caso de nosso país, deremanescentes oligarquias imperiais e d a Primeira República, relacionando-se com novas frações de classe já orientadas no sentido da construção deuma moderna sociedade capitalista, de contrato (ou, em menor escala, deuma ordem socialista e m esmo anarcossindicalista). Os desencontros de formaçõ es de temporalidades tão distintas tornaram-se dramáticos, provocando a sensação de desmobilização, de derrapagem permanente, de eternorecome ço. De inatualidade.

N uma região do planeta em que vários passados irresolvidos ainda sefazem presentes, a atuação d e filhos d e remanescências coloniais, inquisitoriais,filipinas, joanina s, imperiais, patriarcais e outras sugere o quanto resta aindaa se percorrer nesta Viagem incompleta. Em verdade, neste "longo amanhecer" - a expressão é de Celso Furtado - da democracia contemporânea,muitas veze s o historiador vê-se obrigado a se transmudar em arqueólogocultural, tantas são as cam adas histórico-culturais socavadas nesse b loco,opaco e compacto, a que chamamos, para simplificar, de "sociedade brasileira".

O mom ento atual, de crise internacional e nacional, torna-se particularmente propício para tais reflexões. C rise que se esclarece n a confluência deduas ordens de acontecimentos, obviamente não dissociada s. A primeira, ados acontecimentos que sinalizariam o colapso de uma série de mecan ismosexplicativos da História Contemporânea, dando a sensação de "fim de ci-

I n t r o du ç õ o „ 1 7

c i o " , de "fim d a história",\"fim d a s ideologias". Com efeito, a queda d o Murode Berlim , as novas experiências d a China, a desagregação da União Soviética, a unificação européia, as novas tecnologias revolucionando as comunicações e o renascimento de religiões fundamentalistas abalaram os alicercesdas interpretações históricas que definiam e aprisionavam os sentidos mais

radicais da vida social, política, econ ômica e cultural contemporânea, obrigando os pesquisadores a dar maior atenção aos estudos de história paraformular um conceito m ais eficiente e efetivo de democracia. Ne sse quadro,a hegem onia norte-americana e a globalização obrigam-nos a outra consideração histórico-historiográfica, inclusive para se "re-situar" a trajetória doBrasil nessa nova er a histórica, em q u e se revisita a própria idéia de AméricaLatina. Hipóteses de criação de centros de estudos avançados e de pesquisas históricas voltam a preocupar governantes responsáveis e lideranças universitárias, a exem plo do que ocorreu em outros países em conjunturas decrise.

A segunda ordem de acontecime ntos se refere à produção intelectual

em (e sobre) nosso país. Com efeito, é surpreendente o florescimento denovas frentes historiográficas que, desde a última ditadura, vêm revelandoinquietude discreta porém m alcontida em páginas e páginas de teses, estud o s , ensaios, documentários, C D-RO M s e artigos. Portanto, no mesmo passoem que a globalização impõe novos hábitos, atitudes e paradigmas para sepensar o presente co mo história e aprofundar-se a crítica d a cultura, agudiza-se a consciência d a necessidade de reconstrução histórico-cultural de nossasexperiências coletivas e identidades. De nossos modos de viver e fazer ahistória.

E i s , portanto, nestes dois volumes, a resposta ao desafio que nos foiproposto pelos editores. A o incorporarmos muitas das novas contribuiçõesdessa historiografia que se consolida co m todas as inquietações e impassesde nosso presente nesta obra, que enfeixa e me scla interpretações clássicase inéditas sobre as ambíguas identidades do Brasil após 500 anos de histórialuso-brasileira e 180 anos de busca de vida independente, pensamos terconstruído mais um a ponte para o futuro.

O Brasil - ou o conjunto de experiências coletivas a que generosa eespaçosamente denominamos "Brasil" - chega ao século XXI ostentandouma série de indicadores sociais, econômicos e sobretudo culturais - incluam-se aqui a saúde, a educação e a habitação - q u e n ã o permitem entendê-lo com o país moderno. N ão se trata apenas de lugar-comum dizer-se, com o

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18 C a r l o s G u i l h e r m e M o t a

nos anos 40-60, que o peso do passado colonial ainda está presente nosimpedimen tos e resistências aos esforços para se constituir a nova sociedade civil democrática. N esta terra, as estruturas político-administrativas, o squadros mentais e culturais aprimorados nos períod os imperial e republicanoparecem reforçar o peso conservador e e specífico dessa história, mais que

oferecer elem entos para o arranque em direção à contemporaneidade. P orque, de fato, no Brasil, estamos em dívida com a História C ontemporânea,como nos dizem reiteradamente os vigilantes professores Eric Hobsbawm,A lain Touraine, Ignacy S achs, Stanley S tein, entre outros.

Tentar desvendar e traduzir em linguagem renovada os m ecanismos quegeram as múltiplas ambigüidades que confundem e m nosso país os espa çospúblico e privado, medir a assustadora distância entre o atraso e a m odernidade(em várias dimensões, desde o s direitos mínimos de cidadania até educaçãosuperior, acesso às novas tecno logias, formas de participação social em empresas urbanas e rurais, em sindicatos, na justiça do trabalho, etc ), não podeprescindir da discussão renovada sobre nosso passado coletivo. Sem taisdiscussõe s e análises torna-se ínvia a construção do futuro.

Dilacerados entre formas agudas de provincianismo retrógrado e decosmopolitismo elitista acendrado, nossa "vocação" latino-americanista, também não por acaso, demora a se afirmar. Sair desse impasse, nutrido por umdéficit histórico estrutural, e procurar responder às demandas de nosso temp o , eis a tarefa a que se propõem os pesquisadores, professores, diplomat a s , juristas e historiadores que comparecem nesta publicação.

Tais estudiosos, esc olhidos dentre gerações, teorias e instituições distintas, possuem experiência reconhecida, o que permite esperar-se de seustrabalhos algum efeito duradouro nos estudos históricos entre nós. A já longínqua experiência do Brasil e m perspectiva, livro coletiv o da "générationqui monte" - com o Frédéric Mauro registrou na revista Annales, de Braudel

- publicado em 1968 por Paul Monteil e prefaciado pelo saudoso professorJoão Cruz Costa, permite supor não ser impossível alcançarmos o objetivonesta nova e desafiadora empreitada. Qual seja a de auxiliar na renovaçãodos estudos históricos e na compreensão de nosso complexo país.

I V

N o primeiro volume, Formação: histórias, examinam-se algumas idéiasmais remotas de B rasil até a consolidação de uma sociedade por assim dizernacional, "mestiça", já na passagem da monarquia à república.

I n t r o d u ç ã o * , «

Abre o volum e estudo inquietante do professor Aziz Ab'S aber. Procura ele estimular a reflexão do leitor sobre movimentos ancestrais de gentes noespaço no qual viria a se formar o conjunto a que hoje denomina-se "sociedade brasileira". Ou seja, tenta-se por meio do referido estudo rastrear asvicissitudes de grupos que, ao longo de milênios, se deslocaram para este

subcontinente, dando origem ao chamado gentio, isto é, aos habitantes que,aqui, futuro espaço "brasileiro", foram "descobertos" pelos europeus e logoexpostos à pedagogia da sujeição.

Enfrentando a complexidade do tema, relativizam-se aqui, radicalmente , as questões de espaço/tempo e de formação étnica das sociedades plurais dessas partes do planeta, sugerindo-se a abertura de uma abordagempropriamente geo-histórica e civilizacional, em busca de insuspeitada e polêmica história, numa três longue durée. Até porque a geografia humana é,certamente, a mais ancestral das disciplinas históricas.

N estes estud os, entretanto, não nos detivemos no tema das "origens".Preferiu-se adotar a noção de "gênese", na senda dos historiadores Jorge

C outo, István Jancsó e de outros. Com o ponto de partida comum , sugeriu-se aos autores acompanharem desde logo idéias, hipóteses e projetos deBrasil, termo a um só tempo vago e concreto, qual "novo objeto" para avelha História das Men talidades e das representações mentais...

"Brasil", palavra com dim ensão geográfica, histórica, social, pinturescae mitológica, tornou-se com efeito tema d e representações mentais fortíssimas,incorporando sons, core s e valores a um só tem po carregados e animadoresde um imaginário específico, relacionado a modos de ser, pensar, agir. Específico e, por assim dizer, fabricado, adensado e razoavelmente auto-referidoa partir do primeiro quartel do século XIX . N os quadros do neocolonialism o- onde se torna impossíve l distinguir "causas" de "efeitos", visto que ocolonialismo é um sistema - delinearam-se formas próprias de pensamento , que, com flutuações de época, polarizam e incandescem de tempos emtempos a sensibilidade de intérpretes, ideólogos, "explicadores do Brasil"em busca de "nossas" raízes, de "nosso caráter", e assim por diante.

C omo se constata, a história estava no lugar, embora muitos personagens teimassem em viver fora d e foco, temerosos do haitianismo que poderiaincendiar a lavoura e as almas c om as fagulhas da revolução de T oussaint-Louverture. V elha história, essa. Numa visão que a licença poética permite, oHaiti poderia ter sido aqui, região colonial e neocolonial em que a grandelavoura e suas elites continuavam a requerer braços de escravos ne gros, não

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sem resistência e levantes. Tema que hoje persiste, nessas ambigüidades etensões mal-resolvidas ("brancos quase negros, mulatos quase brancos"),nas questões da propriedade, das relações de trabalho e da utópica socieda de capitalista, de "contrato" (entre aspas), frouxamente equacionadas.

"Brasil", representação mental que, e m contrapartida, atiçaria a vigilân

cia e animaria a mordacidade dos cr íticos da cultura contemporânea e dasideologias nacionais, desde Lima Barreto a Dante Moreira Leite, autor doprovocativo Caráter nacional brasileiro. História de uma ideologia.

"Onde o Brasil?". Idéias de "Brasil" deitam suas raízes no universomedieval anglo-saxôn ico, ganhando diminuto espaço em T ordesilhas, també m no M onte Brasil dos A çores, adquirindo então concretude no "fino brasil"de Duarte Pacheco Pereira, autor do Esmeraldo de Situ Orbis, personagem renascentista e provável achador (se é que houve um) das terras daAm érica do Sul em 149 8. Companheiro de viagem de Cabral em 1500, suabiografia ganhou nova dimensão e sentido com a tese do professor JoaquimBarradas de Carvalho, que viveu exilado entre nós nos anos 60. Tese publicada

em 1983 pela Fundação Calouste Gulbenkian em livro apresentado porFernand Braudel, da École des Hautes Études, e prefaciado por PierreChaunu, da Sorbonne, sob o título À Ia recherche de Ia specificité de Iarenaissance portugaise, merece ser revisitada no dealbar deste novo séc ulo.

Interessa notar, ainda, que a inserção do N ovo M undo na geopolítica eeconomia da Modernidade provocaria elaborações notáveis, como testemunham as obras de religiosos e colonizadores da Nova Lusitânia. Visõesdo Paraíso foram alimentadas a cada passo, num intenso processo de m otivaçõe s que S érgio Buarque de Holanda inventariou em obra clássica. Franceses, como o protestante calvinista Jean de Léry, e holandeses, dentre osquais incluem-se o príncipe de Nassau e o pintor Frans Post, também ajuda

riam a delinear o perfil do novo mundo, ao lado de modernos cientistas danatureza e outros observadores.Essa idéia de B rasil, mais elaborada e localizada no e spaço, atormenta

ria no século X VI I o poeta Gregório de M atos Guerra na Bahia, quandolançou o ver so contundente: "Que me quer o Brasil que me persegue?".

N este verso-pergunta que ainda ressoa no ar talvez resida o fulcro denosso projeto coletivo, e a razão que move os autores destes estudos eensaios. E studar a história mas também procurar entender as "maneiras pelas quais os homens percepcionavam a história vivida", como propôs VitorinoM agalhães G odinho, o principal estudioso da expansão portuguesa, constitui

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outra das intenções destes cap ítulos. Em 1970, preocupado com a "situaçãocolonial" de no ssos p ovos, advertia ele: "nesse emaranhado de raízes está ocerne das resistências que hoje [portugueses e brasileiros] temos de vencerse não queremos apenas sobreviver como museus de resolutas eras mas simafirmarmo-nos pela capacidade de construir um mundo em perpétua mu

dança...".No arco do tempo, percorre-se neste primeiro volume desde as pri

meiras experiências da Nova Lusitânia, revisitada superiormente por EvaldoCabral de Me llo, até a constituição, já no fim do sécu lo XI X , de um "Brasilmestiço", so b a lente da crítica de Roberto Ventura. No percurso de quatroséculos, examinam-se os diversos conceitos de "povo", de colonização edescolonização, resistência negra, de identidade, na interpretação dos escritos críticos de Stuart B. Schwartz, István Jancsó e João Paulo Pimenta, deKenneth M axwell, C arlos Guilherme Mota, João José Reis, Karen M. L isboa, Francisco Alambert.

C omo se sabe, idéias de Brasil afirmam-se já no século X VQ , no período

em que a colônia portuguesa esteve sob o domínio habsburgo (1580-1640),quando segme ntos das elites que habitavam estas partes passam a refletirsobre os significados de suas próprias experiências e modos de povoar ocontinente. Dir-se-ia que o Brasil começa a se descobrir Brasil. A corteportuguesa, ocupada com os problemas de sua sobrevivência na Europa,descurou de sua ação co lonial durante a União I bérica, permitindo a emergência de outros interesses e visões no N ovo M undo. Note-se que a idéia deBrasil do governante holandês, o príncipe Maurício de Nassau, ampliavasurpreendentemente a discussão sobre o que seria o Brasil, inaugurandopossibilidades outras para a definição de uma sociedade nova no mundotropical.

Naquele século, mais notáveis entretanto seriam a ação e o trabalhoescrito do padre Antônio V ieira, que dariam projeção e sentido ao B rasil nosquadros da Modernidade. Difíc il imaginar a produção, posteriormente, deuma obra como a do jesuíta toscano A ntonil, autor de Cultura e opulênciado Brasil por suas drogas e minas (1711), em que descreve com rigor aestrutura e funcionamento da açucarocracia, indicando sua natureza, significado e dime nsão internacional. Esse s homens pensadores e de ação, ao ladodo professor Luís dos Santos Vilhena, autor de Recopilação de notíciassoteropolitanas e brasãicas, escrita no fim do século XVIII em Salvador,homem ilustrado para quem não era "das menores desgraças o viver em

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colônias", desenharam uma idéia geral de Brasil mais nítida e, ao mesmotempo, intensamente problemática.

A pós diversos conflitos, inconfidências e conspiraçõe s que marcaramo sécu lo X VI II, além do impacto da ação antijesuítica severa do marquês dePombal n a colônia, alcança-se o século X IX com um a idéia mais abrangente

e universal do que pudesse vir a s er essa entidade abstrata denominada "Brasil". N as linhas d a Ilustração européia, dos planos reacionários da Restauração ou dos projetos dos liberais anglo-saxônicos, o Brasil - e a "SouthAm erica"- passa a t e r seu lugar histórico bem localizado no sistema mundialde dependências. D e fato, a grande insurreição nordestina de 1817 - a chamada "Re volução Pernambucana" de 6 de março - daria o toque de desperta r para um a série de movimentos sociais de porte que sinalizaram o processode descolonização a que se assistiu na primeira metade do século XIX, culminando com a Re volução Praieira (1848), ponto de inflexão no século X IXbrasileiro.

As lutas pela independência, a despeito do caráter regional ou mesm o

local da maior parte delas, inscreveram-se em m ovimen tos e vagas revolucionárias internacionais, todas possuindo forte significado social, econô micoe político, expresso na defesa da liberdade de comércio, na limitação dopoder absoluto dos reis, na abertura de frentes e formas inovadoras de informação e instrução, e a ssim por diante.

A identidade nacional passaria, desde então, a ser tema constante naspautas revolucionárias, aqui como alhures. A "formação das almas", parautilizarmos a expressão do historiador José Murilo de C arvalho, requereu acostura m etódica d o conceito de nacionalidade, num figurino que pressupunha a sucessão de e lites educadas que dele se alimentavam, ao mesm o temp o q u e o reproduziriam indefinidamente. N uma história estrutural prefigurada,com pequenos ajustes às novas necessidades, contextos e modas, dele seutilizaram às vezes como utopia, embora mais freqüentemente como ideo logia.

vN essa história ocorreram entretanto algumas pou cas rupturas. A prin

cipal delas foi a d a Independência, não por acaso denominada "Revolução"pelo historiador C aio Prado Júnior.

A o longo do processo de descolonização, desde a insurreição de 1817até a proclamação da república em 1889, plasmaram-se algumas matrizes

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de pensamento que definiriam a s pautas pelas quais se regeriam a vida política, econômico-administrativa e a organização da sociedade pós-colonial.Idéias de Brasil adquiriram nova dimensão histórica, cultural, geográfica, social e política com o santista José Bonifácio, estadista da independência,homem da Ilustração e fundador d a política externa brasileira. Com ele, mas

também com oponentes a seu projeto de nação, como Cipriano Barata e opadre Di ogo A ntônio Feijó (ex-deputados às cortes de Lisboa ), ou o jornalista Evaristo da Veiga, um dos líderes do 7 de abril de 1831, "nossa identidade" coletiva se delineava. Identidade a s e r alcançada, imaginava Bonifácio,por meio de uma ação po lítica mais abrangente e cosmo polita:

Como o Brasil começava a civilizar-se no século X I X , deve chamar e acolher todos osestrangeiros que lhe podem servir de mestres no ramo da instrução, e economiapública: deve nã o querer ser original, ma s imitador por ora, apropriando-se das outrasnações o q u e convém melhor à s u a situação política, e física.1

O leitor notará q u e , nessa riquíssima viagem histórica, cultural, políticae social a que por vezes denominamos "nossa formação", processo maismarcado p o r continuidades, do que po r rupturas significativas, processo dramaticamente inacabado, privilegiaram-se certos momentos, contextos e situações. Até porque a tal idéia deformação repontou em diferentes períodose fases do longo processo de ocupação e usos sociais do espaço que se foidefinindo, tanto d o ponto d e vista geopolítico como lingüístico-cultural, como"Brasil". Tal foi o caso do Primeiro Reinado (1822-1831), do PeríodoRegencial (183 1-1840) ou da República No va (1930-1937). C onhecem-semelhor, hoje em d i a , as múltiplas características, os variados modos de pens a r e as contraditórias diretivas histórico-culturais desses diferentes "Brasis"que se foram tornando "Brasil". Sinalizações e diretivas por vezes até anta

gônicas que, em casos raros, transformaram-se em teorias do Brasil, alimentando as linhas de força de um ("para dizer assim", na expressãoandradina) pensamento brasileiro. Pensamento, ou formas de pensam entoespecíficas que um analista agudo como M ichel Debrun - autor de Concili

ação e outras estratégias - chegaria até a sistematizar em "arquétipos".Todavia, o conjunto dessas teorias, articuladas numa possível história, pres-

José Bonifácio de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, organização de Míriam Dolhnikoff(São Paulo: Companhia das Letras, 1998), p. 173.

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supõe um rastreamento rigoroso, o mapeamento das escolas, tendências,individualidades, que ainda está po r fazer, cobrindo desde o campo político -econômico ao educacional e filosófico. Uma História do Pensamento Brasileiro, portanto, seria o convite a uma outra viagem, me nos incompleta.

Ao longo do percurso, alguns temas e problemas repontam e persis

t e m . Quem era "povo" nessas partes do Novo Mundo, "a gente da terrabraziliense da nasção"? Com o se forma a nação, encaixada no aparelho deEstado complexo e pesado, transplantado e remodelado durante o períodocolonial? Qual o significado da descolonização a que se assiste na passagemdo século XVIII ao XIX? Como se construiu esse "Brasil mestiço", comsuas ideologias culturais e realidades étnicas? Co mo se cristalizaram as decantadas "heranças coloniais", que seriam objeto d e críticas, histórias e atualizações por parte dos "redescobridores" do Brasil dos anos 30 (Freire,Buarque, C aio, Bonfim, M ário, Milliet, R ubens Borba, Câmara Cascudo) edos econom istas, cientistas políticos, sociólo gos e historiadores dos anos 50(Furtado, Cândido, Faoro, Sodré, José Honório, Florestan, Bastide)? O

quadro se torna mais rico e comple xo quando nos lembramos do papel desempenhado pe lo Instituto Superior de Estudos B rasileiros (Iseb) e por revistas como Anhembi (de Paulo Duarte) e Revista Brasiliense (de CaioPrado Júnior) e, depois, pela Revista Civilização Brasileira (de Ênio Silveirae Moacir Félix) e Tempo Brasileiro (de Eduardo Portela).

É de notar, entretanto, que, no século X X , os educadores-fundadoresda Escola N ova centralizariam no s anos 30 uma notável rede de intérpretesdo Brasil, com figuras estelares como A nísio Teixeira, o sociólo go Fernandode Azevedo (um dos criadores da Universidade de São Paulo), o geógrafoDelgad o de C arvalho (cujos atlas e mapas desenhariam em no sso imaginárioo lugar do "espaço brasileiro" no mundo), o sociólogo Gilberto Freire (queinventaria um povo mestiço para a nova nação), o compositor e musicólogoHeitor Villa-L obos (que uniria a dimensão erudita à produção popular, disseminando um a certa visão de Brasil po r meio d os corais e cantos orfeônicos),o urbanista Lúcio C osta, responsável por um novo c onceito de cidade, alémde Rodrigo M elo Franco de Andrade, na definição de um conceito nacionalde patrimônio histórico. Nesse grupo, ao qual se associava Mário de Andrade,inscreve-se a figura ímpar de Carlos Drummond de  Andrr.de, homem deação e poesia. Fora dessa constelação, na esquerda, muitos intelectuais seafirmariam, como Astrojildo Pereira, Otávio Brandão e Mário Pedrosa. Nadireita, as idéias fortes de O liveira Viana marcariam o debate na primeira

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metade do século XX, provocando até mesmo a crítica de Gilberto Freire eJosé Honório Rodrigues.

Tal conjunto de intelectuais, de quadrantes diversos,  fixaria em definitivo a idéia de Brasil contemporâneo. Nesse contexto, afirmou-se a noção de"Cultura Brasileira", ou seja, de uma ide ologia q u e , com o passar do tempo,

se consolidaria com o a viga mestra de todo um sistema político-cultural delonga duração.Neste mesmo passo, recorde-se que, ainda nos anos 50 uma "terceira

via" já era procurada. Com a aceleração do processo histórico mundial - daqual o Congresso de B andung em 1955 foi apenas um sinal -, idéias e projetos inovadores de Brasil se desenvolveram e expandiram. Em busca deuma política externa independente de W ashington, setores da intelligentsiabrasileira começariam a se descobrir terceiro-mundistas.

A essa altura, uma curiosa mitologia dos "dois Brasis", a de JacquesLam bert, também se difundiria no s meios acadêmicos e políticos, inaugurando a visão dualista na História do Brasil, empobrecendo a interpretaçãoeuclidiana: o país "atrasado", pensavam Lambert e os dualistas, retardava a"integração" do Brasil "moderno" na contemporaneidade. Sem maiores considerações de ordem histórica ou civilizacional, capitalistas e neocapitalistascoordenaram então esforços para romper com o atraso a partir de um esperado take offáo capitalismo no B rasil: para isso, o economista norte-americano Walt Whitman Rostow circulava em vô os rasantes pela América Latinaensinando as fórmulas da redenção a empresários e militares bisonhos. Ne sse contexto, a CEPAL e as idéias de Raul Prebisch eram sinônimos demodernidade.

Transitava-se então, na expressão do professor Antônio Cândido, daconsciên cia am ena de atraso para a consciência de "país subdesenvolvido".A os se gmento s radicalizados das elites urbanas progressistas apresentava-

se então a alternativa clássica que a História costuma apresentar aos p ovos:reforma ou revolução. A o lado das Ligas C amponesas, das lutas da pequenaburguesia urbana por reformas de base, de um a educação democrática e daimplantação da cultura do subdesenvolvim ento, encontrou-se uma fórmulacuriosa, quase uma contrapartida do realismo mágic o da literatura latino-americana daquela época. Com efeito, os ideólogos do reformismo desen-volvimentista, somando seus esforços às lideranças intelectuais de esquerda,preocupadas com a "superação do subd esenvolvimento" a qualquer preço,fabricaram nos anos 60 as discutidas, e em geral bem aceitas, teorias da

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dependência. Um a outra idéia de Brasil despontava, assim, nos horizontesda esquerda, nos "quadros do capitalismo associado e dependente". O problema, entretanto, como escreveria Florestan Fernandes em 1981 é que "nãoenfrentamos com o e enquanto tal a questão da descolonização"...

Se algumas dessas visõ es de B rasil desapareceram, outras porém prosperaram, transformando-se em projetos e políticas públicas, fundamentandotrês possibilidades históricas então esboça das. A primeira, a de implantaçãode uma ordem republicana reformista-desenvolvimentista e "modernizadora"(no sentido dos anos 50- 60), integrada ao novo capitalismo ocidental; a segunda, de uma república socialista-sindicalista mobilizadora, condutora deum projeto amplo de reformas de base, com destacada participação do paísno plano internacional por meio de uma política externa independente; e,finalmente, a terceira, uma hipotética república socialista de base popularoperário-camponesa, com adesão e apoio de setores da pequena burguesiaprogressista radicalizada.

O golpe civil-militar de 1964, com as teorias da contra-revolução preventiva, viria realinhar o Brasil no s quadros da Guerra Fria, revelando a na

tureza e o sentido profundos desta história, condicionada por um modelohistórico-social de cunho fortemente autoritário, com implicaçõe s político-culturais de longa duração. Explicitava-se, de ssa forma, o modelo autocrá-tico-burguês, principal personagem de no ssa história, desvendado nos anos70 pelo professor Florestan Fernandes em sua obra clássica A revoluçãoburguesa no Brasil, de inquietante atualidade.

vi

Para concluir, convém evitar o tom finalista, pois, a despeito de certasdeterminações dos processos de articulação dos sistemas coloniais da História M oderna, as possibilidades históricas de cada época se inscreviam e seinscrevem inescapavelmente nas estruturas de amplos conjuntos de variáveise sistemas de valores. De civilizações enfim, para utilizarmos o velho c onceito , cujos códi gos m ais profundos cumpre aos historiadores ir desvendando.Grande desafio, este, a que m uitos leitores e estudiosos, amantes da pesquisa inspirados pelo velho Lucien Febvre, por Johan Huizinga e outros mestresainda se obstinam em cultivar, sob o rótulo generoso, amarelecido pelo tem po, de História das Mentalidades.

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Finalmente, cinco séculos de História podem representar muito, considerada a História das civilizaçõe s am ericanas, sobretudo no que diz respeitoà exper iência particular afro-luso-brasileira. E xperiência de uma cultura jámiscigenad a na P enínsula Ibérica, que viria a predominar nessas partes doglobo , gerando interpretações inéditas, muito difundidas e discutív eis sobre a"adaptabilidade" dos portugueses nos trópicos, e que marcariam fundamente o pensamento no Brasil no século XX .

Cinco séculos que permitem, na longue durée, indagar do sentido ousentidos das Histórias plurais de nossas formações histórico-ideológicas, apontando para uma revisão profunda de nossa historiografia. S eja na vertentedos encontros e desencontros de civiliz açõe s autóctones e forâneas, seja nareafirmação de uma história "dos de baixo", um outro horizonte se apresenta. Pois, na feitura dessa outra História, em contraposição à história dosbrancos de frei Vicente do Salvador até Varnhagen e Pedro Calmon, começam a surgir as sagas anônimas dos "índios", dos escravos negros e dosnegros livres, dos pés descalços, das mulheres, dos idosos, das crianças,dos excluídos em geral. E, para além de todos, essa categoria imensa e silen

ciosa, nada obstante muito real: a dos sem-história.Para terminar, quero me referir à atualidade de incontáveis formulações

que indicam a existência de consciências críticas e muito agudas ao longo detoda nossa História. Ainda reboam no ar palavras como as de frei Joaquimdo Am or Divino, o Caneca, publicadas no Tiphys Pernambucano a 15 dejaneiro de 1 824, poucos m eses antes de sua prisão e fuzilamento:

E quando teremos constituição feita pela Nação? Nunca, nunca, nunca. E que Impérioentão vem a ser o Brasil? Império projetado, e não Império constituído, e por issonunca império. E um império tal em que ordem deve ser colocado entre as potências?Será uma potência de primeira ordem? Será de segunda? Nem de uma, nem de outraordem. Será potência nullius diocoeseos, porque até hoje é incógnita a ordem das

potências projetadas.

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Incursões à pré-h istó ria

da Am érica tropical

A z i z N a c i b A b ' S á b e r

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XüÉ .

No decorrer do século, que corresponde ao fim do milênio, algumasreflexões sobre atributos essenciais do homem despertaram grande interessecultural entre jove ns pesquisadores v oltados para as ciências humanas. FranzBoa s, na década de 2 0, alertava para a letalidade dos contatos étnicos entregrupos de culturas primárias, diante de representantes agressivos de sociedades mais com plexas. U m fato, certamente fundamental, para o entendimento de acontecimentos tristes e dramáticos da história do N ovo M undo.A Fernand Braudel ficamos deven do o postulado de que "a história é a história de todas as histórias". Uma propositura que ampliou e desdobrou aspossibilidades temáticas da pesquisa historiográfica no Brasil.

Mas um a terceira meditação e reconhecimento ficamos devendo a RogerBastide - em um de seus mom entos de grande clarividência intelectual -quando teceu considerações comparativas entre os atributos das sociedadesanimais e as sociedades humanas. Tendo como ponto de partida o inigualáveltexto de M areei M auss, referente à "Sociologie des Animaux", Bastide chegou à conclusão d e que "o homem é o único ser vivo da face da Terra que écapaz de retraçar a trajetória da espécie, envolvendo todos os tempos etodos os espaços". Para tanto, alguns homens privilegiados contaram com asucessão das escritas; e, por fim, com a invenção do alfabeto: documentosbásicos que forjaram a historiografia. Mas a história da humanidade e da

cultura nasceu há dezenas ou centenas de milhares de anos antes da históriaformal. Vale dizer, muito antes que as relações de trocas de excedentes eantes mesmo do advento do mundo urbano das cidades-estados e vastosimpérios.

Essas meditações nos obrigam a ampliar os procedimentos necessáriospara retraçar a história do ser humano, nos mais diferentes espaços ecológ i- Jcos e conjunturas temporais. Razão pela qual a riqueza dos informes fragmentários — derivados dos estudos pré-históricos somados aos conhecimentosconseguidos na proto-história e nos esforços das etnociências - deve mere-

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cer um lugar especial na reconstrução dos even tos e conquistas culturais dohomem. Não tem sido fácil divulgar para todos os homens a crônica e asetapas dos conhecimentos acumulados sobre su a própria espécie. Aprimorare persistir - na tarefa de socializar informes esse nciais - é a grande tarefa doprocesso educacional. E a pré-história humana não pode ser excluída d essarecuperação de trajetórias, em qualquer tentativa intelectual responsável.

Pablo Martinez Del Rio, nos anos 40, sentenciou que os homens quepovoaram as Américas eram alóctones, mas que as culturas por eles elaboradas foram absolutamente autóctones. Quando se fixou, ao longo do século , a idéia não superada de que a humanidade se dividia em três estoquesraciais básicos - o caucásico, o negróide e o mongolóide -, não mais pôdehaver dúvida sobre a procedência asiática dos mais rem otos grupos humano s q ue chegaram à Am érica. O s paleoíndios mais arcaicos eram mongolóidesdo Leste A siático. M uito mais tarde os caucásicos, colonizadores, vieram daFinisterra portuguesa da Europa, enquanto pobres grupos negróides escravizados - sujeitos a uma tenebrosa migração forçada e desumana - vieramde além-Atlântico (África). De tal forma que, na história populacional doBrasil, participaram todos o s estoques raciais do m undo. N isso tudo, porém,o mais longo período de tempo e a mais com plexa trajetória de homens ficapara os grupos ameríndios, de raízes mongolóid es. Um a história que possuimaior profundidade de tem po quando estendida para a época ou época s dapassagem dos asiáticos para as Américas.

Para entender as possíve is rotas e tempos da passagem - caminhadasdos primeiros humanos para o Novo Mundo -, os pré-historiadores foramobrigados a alternar fatos e hipóteses, fiscalizados por uma imaginação ló gic a . Esse é o caso da vigorosa pressuposição da região de Beringhe, comopossível área de aces so dos caçadores da Eurásia e do Leste E uropeu parao continente americano.

Os grupos humanos coletores-caçadores nômades e seminômades queperambularam por diferentes espaços ec ológi cos da Ásia dependiam quaseexclusiva mente dos atributos da biota regional ou sub-regiona l. Da territorialidade oeste-leste da Eurásia e da Ásia Oriental - para o norte e para o sul -,os grupos humanos dependentes da fauna, da flora e dos rios e riozinhosforam obrigados a se adaptar gradualmente a diversos sistemas ecológ icos,de modo quase passivo e muito sofrido.

Durante os períodos glaciais do pleistoceno o nível do mar recuavadezenas e dezenas de metros, enquanto as massas de gelo estocadas nos

I n c u r s õ e s ò p r é - h i s t ó r i a da A m é r i c a t r o p i c a l

pólos e altas montanhas ampliavam-se no espaço, cobrindo setores de mares subpolares; descendo de cordilheiras superglaciadas e estreitando espaços intermontanos. A região de B eringhe tornou-se uma larga e m aciça pontede gelo (glacial landbridge) que escondia os estreitos e mares adjacentes.

A s adaptações obrigatórias, sofridas por grupos de caçadores coletores pré-históricos da Ásia d o Le ste, somente pode m ser interpretadas comoparte de uma arcaica história de longuíssima duração. Uma e spécie de pré-história longa (parafraseando Braudel) intercalada por rupturas radicais. Lentosdeslocamentos e longas vivências em latitudes diferentes, fugindo sempredas encostas e cimeiras de cordilheiras, sujeitas a glaciações rigorosas nosperíodos muito frios do pleistoceno. Uma preferência marcante por umavivência em terras baixas e corredores de fauna.

Tanto na Europa quanto na Ásia alguns grupos humanos ficaram encurralados entre altas montanhas glaciadas e planuras nórdicas, recobertas porglaciações ditas continentais. Utilizando os interespaços existentes entreglaciários provenientes das montanhas e aqueles oriundos da expansão dosmantos de g elo das regiões polares, muitos grupos migraram para áreas mais

quentes. M as é quase certo que pequenos agrupamentos de homens permaneceram nos espaços colinosos, acantonaram-se em raras grutas e lapas,aprendendo intuitivamente a se defender do frio, através do uso de couros epeles de animais. Aliás e sses estavam tão desorientados quanto os humanos,no entremeio dos espaços glaciados em expansão. E foi assim, através deadaptações sofridas, que alguns pequenos grupos acabaram passando daÁsia para as terras hoje correspondentes ao Ala sca e ao Canadá, sem saberque estavam transpondo continentes. N a cultura primária e intuitiva do homosapiens, a única lógica geográfica comanditária e orientadora residia nasdisponibilidades de recursos naturais, suficientes para a sua alimentação.

Nas regiões mais gélidas desaparecia a possibilidade de se realizarem

coletas da biodiversidade vegetal. Mas, em compensação, cresciam até aoexagero as possibilidades de se desenvolverem atividades de caçadores. Issonão implica dizer que na transposição do paleoespaço de Beringhe todos oshomens seguiram sempre atrás da caça para leste. É possível que manadasoutras, provenientes do L este da Eurásia, seguiam para Oeste, inconscientesde seu destino. M as que, em alguns mom entos críticos da história climática Jquaternária do planeta, pequenos grupos de homen s - exímio s caçadores,ao desenvolve r suas rústicas e rotineiras atividades de sobr eviv ênc ia- atravessaram os largos espaços congelados ou em processo de congelamento

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(Beringhe). M as é possível que tenha havido condições para migrações oes-te-leste, de faunas e de homens, nessas duas ou mais épocas de paleoe spaçosglaciados. Componentes da fauna pleistocênica da Eurásia não teriam passado para o continente americano se não existissem essas presumidas pontes de gelo. E, não fosse m as manadas faunísticas em m igração pelas terras

baixas da Eurásia, os caçadores adaptados aos climas g élidos jamais teriamuma fonte tão rica para sua alimentação. A lém do que a existência do frio edo gelo ofertava um excelen te ambiente de conservação das carnes obtidasnas caçadas mais rendosas. Nesse sentido, pode-se pensar até mais longe,ou seja, queanimais mortos pela fadiga, ou pelo atropelo, ou por outrosanimais, eram ofertas naturais complementares para os silentes habitantesdas terras do frio. Embar cações, nem falar, porque inexistiambiotas vegetaisregionais próximas para qualquer fornecimento de madeiras.

A trajetória dos hom ens pré-históricos, após a transposição do espa çoBeringhe - perambulando pelas diferentes regiões do oeste americano -,deve ter sido muito com plexa, através de montanhas e depressões intermon-tanas de três alinhamentos cordilheiranos; forte glaciação de altitude; limitaçã o de espaços costeiros; nível do mar mais baixo, dominado por águasfrias. Tudo complicando as projeções dos homens para o Sul, em busca deoutros recursos naturais, por meio de impensadas descobertas.

Há que considerar ainda q u e , além das montanhas ocidentais da Am érica do Norte, na faixa atual de fronteiras do Canadá e Estados Unidos,ocorriam fortes atividades de pulsação das línguas das geleiras norte-orien-tais. Aquelas mesmas que, ao fim do último período glacial, haveriam deconstruir os cen ários dos grandes lagos regiona is. Trajetórias entrelaçadas.Conflitos intertribais arcaicos. Lutas pela conquista de espaços ecológicosmais favoráv eis. Parece ter acontecido de tudo um po uco na trajetória queconduziu os grupos pré-históricos para o sudoeste dos Estados Unidos, e

depois ao M éxico, à A mérica Central, e, finalmente, à Colômbia e ao vastocontinente tropical sul-americano, climaticamente desarranjado pelas implicaçõe s das glaciaçõ es quaternárias.

Descendo por entre montanhas geladas e altiplanos ressequidos, osprimeiros homens que saíram da s regiões glaciadas do noroeste americano -através de adaptações sucessiva s - atingiram a Am érica Central, em um oumais tempos. Eram pequenos grupos de caçadores-coletores, predominantemente nômades e muito belicosos, eventualmente sedentarizáveis em grut a s , lapas ou beira de pequenos lagos. Não se sabe nada de quando teriam

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inventado ou recriado a importante arte de fazer fogo. Ou desde quandoadquiriram o hábito cultural do sepultamento. Entretanto, muito cedo descobriram o valor d as cavernas como lugar de moradia. A noite, instintivamente,os am edrontava. G rutas e lapas atenuavam periculosidades, numa proteçãorelativa, durante as horas de sono. Fato particularmente verdadeiro em relaçã o aos homens que se acantonaram nas raras e disputadas cavernas de

distritos cársticos brasileiros (São Raimundo Nonato, arredores de LagoaSanta, sudoeste de Goiás).

Ao atingir o sudoeste dos Estados Unidos e oM é x i c o - tomados apenas como referência - encontraram "ilhas" de umidade no entremeio de terras ressequidas, porém sucessivamente mais cálidas, na direção do Sul. Esomente a partir do M éxic o tiveram a oportunidade de encontrar e se aproveitar dos recursos naturais biodiversos, de sucessivos redutos florestais, atéchegar ao território atual da C olômbia e Venezuela; e, mais tarde, por váriosflancos, atingir espaços intertropicais das terras brasileiras. Cumpre notar,porém, que na época dessa miúda e extensa trajetória, as florestas estavamem recuo e climas mais se cos tendiam a penetrar por imensas e alongadas

depressões interplanálticas do grande planalto brasileiro. E, também, nasmargens de uma Am azônia contraída e biogeograficamente fragmentada.

A diferenciação de línguas e culturas - derivadas de condicionantesecológicas regionais - parece ter se iniciado, ou amadurecido, durante asfases de sedentarização relativa de alguns grupos, dotados de uma certafixidez locacion al, em esca la sub-regional. Fato que provavelmente acontece u ao sabor dos processos de (re)tropicalização do e spaço total, os quaisalcançaram o seu máximo por ocasião do atimum climático, entre 6.000 e5.500 anos A.P.* Um momento em que o nível do mar que tinha estado a-100 metros, no pleistoceno terminal, elevou-se até 3 metros acima de seunível de hoje.

N o que diz respeito à idade das glac iações quaternárias, para e feitosde cotejo com os sítios pré-históricos de datações obtidas pela técnica C14,existem apenas duas a três correlações possíveis. Nos últimos anos, o pe ríodo glacial do pleistoceno superior - conhecido genericamente por Wü r m-Wisconsin sofreu um detalhamento maior que conduziu os especialistas asubdividirem o aludido período em quatro estádios: Würm IV (de 22.000 a13.000 anos A .P.), Würm III (de 40.000 a 26.000 A .P.), Würm II (de 62.000

* Antes do presente.

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a 46.000 A.P.), Würm I (85.000 a 70.000 A.P.) - em termos médios eaproximados, segundo diversos autores. Todos os subperíodos de Würmsendo separados por interestádios cálidos - em geral de ma is curta duraçãodo que os tempos glaciados - designados respectivamente por Pardorf,

Gottweig e Brorup Amersfort. D e 2.200.000 até 120.000 A.P. - abaixo

do interglaciário Eemein - ocorreram quatro macroperíodos glaciais: Riss,Mendel, Gunz e Bibed.

Nesse conjunto todo de interestádios ou intergracionários, o homosapiens moderno passou a existir desde Eemein, ou seja, no máximo desde100.000 a 80.000 anos A.P. Ninguém sabe ao certo em que estádio ouinterestádio os primeiros grupos de homo sapiens passaram do nordesteeurasiático para as Américas. No entanto, conhecendo-se os intervalos detempo do período glaciário de Würm-Wisconsin superior, assim como aidade relativa máxim a de homo sapiens e sua possível diferenciação na categoria macroestoque racial, pode-se chegar à conclusão de que o períodoprincipal das transposições foi Würm TV (de 22.000 a 13.000 anos A.P.).Teria sido assim no paleoespaço de Beringhe, co mo também na extremidadesul, para a passagem A ustrália e N ova Z elândia, através de arcos insularesexondados.

Estavam n esse pé as tendências para a aceitação científica da época depassagem e chegada de grupos mongolóides para a América do Norte e ocontinente australiano, quando surgiu um informe complicador, relacionadoàs datações de alguns componentes do jazigo pré-histórico de São RaimundoNonato (Piauí), por Niede Guidon e sua equipe.

O conhecim ento sobre as profundidades de tempo do período quaternário - época essenc ial para a história evolutiva da espécie humana - é imprescindível para qualquer discussão séria sobre a chegada do homo sapiensdas Américas. É certo que, no momento em que se processaram grandesmigrações de pequenos grupos humanos ao longo da fachada pacífica daÁsia e Oc eania, já se haviam diferenciado os três macroestoques raciais daface da Terra: negróides da África; caucasóides da Europa; e os m ongolóidesda Ásia, durante e entre os estádios glaciares do pleistoceno superior ( Wü r m-Wisconsin). N a realidade grupos humanos mongo lóides caminharam para osul-sudeste e para o norte-nordeste, a partir de uma indefinida área de difusão migratória. O homo sapiens atingiu a A ustrália e a N ova Zelândia através de espaços emersos criados pela emendação das ilhas dos chamadosarcos insulares regionais. Doutra banda, por caminhos e ambientes muito

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mais difíceis, grupos humanos de caçadores atingiram o extremo nordeste daÁsia, cruzando uma larga e maciça ponte de gelo, que ali existiu durantemilhares de anos (Würm IV ). M uito antes, grupos humanos arcaicos já haviam estado na Austrália, ali chegando pela eventual coalescênc ia dos "arcosinsulares" regionais, no mom ento em que o nível dos mares desceu a poucomais de uma centena de metros. No nordeste da Ásia, onde caçadores nãoteriam chanc e de navegar de um continente para outro, o rebaixamento donível do mar - em Würm IV - possibilitou outro quadro de trânsito pré-histórico, porém, no caso, com a gradual formação de uma gigantesca pontede gelo (glacial landbridgé).

E m busca d e u m a precisão relativa para se atingir um a idéia mais lógicasobre o tempo principal - ou os possív eis tempos - das migrações humanasoeste-leste, da Eurásia Oriental para a América do Norte, existe a necessidade de conhecer melhor os quatro estádios glaciais do período Wü r m-Wisconsin superior. O homo sapiens, que existe no mínimo há 80.000 anosantes do presente, teria passado para o A lasca apenas em Würm IV, ou emoutros subperíodos "würmianos". Há q ue considerar sempre que "pontes de

gelo" na região de Beringhe existiram em outros estádios de Wü r m - e,provavelmente, em Riss. Nosso problema, porém, fica restrito ao tempopré-histórico do homo sapiens, que abrange sobretudo Würm IV , Würm IIIe Würm II .

A té hoje, porém, a tendência entre diversos cientistas reside em co nsiderar a "passagem" ou a "chegada" do homem pré-histórico nas A méricascomo sendo, grosso modo, em Würm IV. Ou seja, de 22.000 até 13.000A . P .

Um importante fato complicador, que pode introduzir modificações radicais nesse raciocínio, está ligado às datações e pesquisas de Niede Guidon,no sul do Piauí. Inesperadamente, surgiram datações sobre a presença de

homens pré-históricos n a região de São R aimundo Nonato, que fazem recuarbastante a época das primeiras migrações de grupos humanos para as Am éricas. Por meio de pesquisas arqueológicas pré-históricas - muito bemconduzidas pelo grupo de Niede e sua equipe, composta de brasileiros efranceses -, descobriram-se alguns sinais da presença humana mais antiga naregião, que remontariam a 43.0 00 anos A.P. Trata-se de um espaço de tempo duas veze s maior, ou pouco m ais, do que as datações feitas em jazigos daAmérica do Norte e porção ocidental da América do Sul. Fato que nãoautoriza ninguém a pensar em nenhuma autoctonia, pois os mongolóides com

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certeza vieram d a Ásia. Já ficou explicado que passando por flutuantes mantos de gelo , na condição de caçadores nô mades, não teria sido fácil deixarsinais marcantes de sua arcaica diáspora.

Em São Raimundo Nonato foram detectados registros concretos dapresença humana através de ossadas de aproximadamente 1 0.000 anos A .P.

Entretanto, abaixo dos achados mais diretos, foram detectados "cinzeiros" eblocos de pedras que fizeram remontar a idade dos sítios habitados porhumanos para 43.0 00 anos A .P. Ou, com maior grau de certeza, para 25.00 0anos A.P.

Para quem não saiba, "cinzeiros" na linguagem dos arqueólogos sãocinzas de ancestrais fogueiras, para arcaicos churrasqueamentos de produtos da caça, em grupos de caçadores-coletores. De forma que, descendentes de remotos caçadores, os pequenos grupos humanos chegados à AméricaTropical passaram a exercer atividades híbridas de coletores, caçadores eeventualmente pescadores. No estado atual da s pesquisas, os diversos achadosde S ão R aimundo Nonato representam o encontro de sítios de sedentarização,

por vagas e vagas de peque nos grupos humanos que encontraram sua moradia natural em cavernas e seu entorno. Os sinais de fogueiras, representadaspelos "cinzeiros" basais, existentes no chão das lapas de São Raimundo,constituem evidências concretas de que os seus habitantes mais antigos jásabiam fazer e manejar o fogo. Se os blocos de pedras, encontrados nasproximidades dos "cinzeiros", forem alóctones em relação às paredes, tetose emboques das lapas, seria mais verossímil no cenário dos velhos abrigosnaturais dos mais antigos povoadores da região. As datações podem ocasionar controvérsias mas o significado ar queológico permanece com muitalógica.

Um a das questões em aberto da pré-história dos grupos humanos maisantigos aqui chegados reside na inexistência de registros de uma ancestralcaminhada pela faixa costeira do Brasil atlântico. As datações mais antigastêm sido encontradas em sítios de notável continentalidade, com pletamenteà margem dos litorais. Somente entre 6.000 e 3.000 anos A.P. existe garantia total que alguns grupos ocuparam preferencialmente setores d a costa emáreas dotadas de lagunas, restingas, estuários ou lagamares, ou e m m argensde baías oriundas de ingressões marinhas, relacionadas com o otimum cli

mático (de 6.500 a 5.500 an os A.P ) .De sses fatos decorreram algumas indagações que, em sua maioria, fi

caram sem respostas. Freqüentemente se pergunta " p o r que inexistem docu-

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mentos d a presença ameríndia n o litoral brasileiro, mais antiga d o que a época dos sambaquis?". Um questionamento que às vezes se desdobra em sutisafirmações: "não existem registros concretos da presença de homens pré-históricos na região costeira porque os únicos registros arqueológicos devem estar abaixo das atuais águas costeiras!". Uma afirmação que tem apenaso valor de um lembrete, mas que n a realidade revela um certo conformism ocom as questões enigmáticas.

Em termos de interdisciplinaridade tem grande importância para a pré-história brasileira saber q u e , entre 23.000 e 13.000 anos A. P, o nível do marrecuou pela plataforma continental adentro, até menos de 100 ou 110 metros,em relação ao nível de hoje. Tudo indica que o recuo foi lento a princípio ebastante rápido - g eologicamente falando - entre 15.000 e 12.000 anos A .PA o ensejo dessa tão importante regressão - de tipo glácio-eustático -, aspraias preexistentes recuaram por dezenas de quilômetros, ou mais, ao longoda rampa exondada da plataforma continental. O mar desceu e as correntesmarítimas frias subiram até níveis de latitude mais baixos. Nesse contexto asecura d a faixa costeira tornou-se marcante devido à atomização d a umidade

forçada pela presença de uma vigorosa corrente das águas frias (páleo-Malvinas/Falkland). Além da semi-aridez da retroterra, as massas de areiasdispostas em largas rampas pela regressão marinha em processo criavam umambiente hostil e temporariamente n ã o ecumênico, d o q u e resultava u m a grande impossibilidade de ocupação por parte de grupos humanos, tradicional eancestralmente vinculados à caça e à coleta. Um fato paradoxal, já que osmares em recuo, sob o impacto da corrente fria em avanço sul-norte, aumentavam substancialmente a  riqueza e a diversidade da biota aquática salobra.Entretanto, atomizava a umidade provinda d o Atlântico, determinando semi-aridez costeira e faixas semi-áridas em com partimentos de relevo interiores.

Tudo, ou quase tudo, aconteceu, ao inverso, quando o mar tornou a

subir no holoc eno, até chegar ao nível aproximadamente de 3 metros acimade seu nível atual. A transgressão responsável por tais processos dependeuda liberação de águas que estavam retidas nas geleiras dos pólos e altasmontanhas. Existem razões para se pensar que o processo transgressivo inicial foi relativamente lento, atingindo o s eu máximo de altura durante o otimumclimático, quando a retomada da tropicalidade foi mais radical. A maiorparte das restingas e lagun as d a costa brasileira teve s u a origem ou definição,dependentes de pequenos recuos e avanços dos mares tropicais, em umafase flutuante posterior ao máx imo alcançado n o aludido otimum.

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O litoral sul de S ão Paulo, designado corretamente de região lagunar-estuarina de C ananéia-Iguape, é o setor da costa brasileira que melhor documenta o feixe alternado de restingas elaborado ao sabor dos pequenosavanços e recuos do nível geral terminal dos ocean os. A massa fantástica deareias geradas durante a regressão pré-flandiana (ou, entre nós, pré-

cananeense) foi o capital básico de sedimentos (re)aproveitados para geraros sucessivos terraços de construção marinha, encarceradores de lagunaspiscosas. Foi nesse momento, e em tais circunstâncias fisiográficas e ecológic a s , que antigos grupos de caçadores-coletores encontraram condições paraviver mais próxim os do mar, transformando-se e m pescadores-caçadores ecriando uma nov a cultura d e marcante vinculação ecológic a.

Vale dizer que assim se constituiu o grupo humano responsável pelaconstrução dos sambaquis: os chamados "homens dos sambaquis". Sobreeles ex istem numerosas informações em nossa rica bibliografia pré-histórica.

N o que tange aos vastíssimos esp aços da hinterlândia brasileira, osarqueó logos e pré-historiadores - através de duras pesqui sas de campo -conseguiram recuperar parte dos segredos d e jazigo s fragmentários. E, ass i m , desvendar complexos de culturas regionais dos ameríndios que se fixara m em div ersos sítio s e áreas de influência pretéritas. Na verdade, o retornoda tropicalidade após 12.000 anos A.P. ocasionou mudanças ecológicasmarcantes, traduzidas pela coalescência dos redutos florestais. A o que sesomaram o aumento progressivo e irregular do nível do mar; a decomposição de rochas e argilização; a formação de solos aluviais argilosos em sedimentos transportados po r rios triturados po r massas de argilas em suspensão.

Durante a máxima acentuação da semi-aridez na América Tropical -acontecida entre 15.000 e 12.700 anos A.P. -, os grupos humanos mongo-lóides da Ásia até a América do Norte e Central entraram pelo territóriobrasileiro adentro utilizando o s am plos corredores e depressões colino sas,

então existentes. Era uma escolha preferencial, relacionada com a presençade formações abertas em compartimento de relevo extremamente favoráveisa deslocamentos extensivos e progressivos. Era uma época em que os pequenos grupos humanos dependiam da caça nas caatingas arbóreas e trechos de cerrados existentes nos rebordos de chapadas e chapadões. Ou,ainda, de atividades de c oleta e caça nas florestas biodiversas dos redutosde flora eventualmente ocorrentes. Não ex istiam aproximações freqüentesem relação à beira-rio, porque a maior parte da drenagem era ainda intermitente sazonária, por im enso s tratos do território.

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Os "corredores" de terras baixas (lowlands), sujeitos à ampliação dasemi-aridez, correspondiam ao e ixo maior das depressões interplanálticasexistentes entre chapadas descontínuas, ou entre serranias e chapadões interiores. Em muitas áreas, tal como hoje no Nordeste S eco, ocorriam tratos dechão pedregosos e lajedos rasos, dispostos em mosaico, no domínio ampliado

das caatingas. Tem-se a impressão de que os pequenos grupos de caçadores-coletores preferiam obrigatoriamente os corredores de formações abert a s , mas vasculhavam com freqüência os rebordos úmidos de chapadas eserras, e grotas florestadas de m ananciais, para complementação de aliment o s . N o conjunto dessas tarefas para busca de sítios ecológ icos - para sobrevivência -, acabaram por descobrir e utilizar subáreas espaçadas decavernas, grutas e lapas. A crescidos de abrigos em lajedos, onde ocorriamdesvãos de blocos rochosos residuais superpostos. O fato de muitas lapas ecavernas estarem localizadas nos sopés de chapadas de calcários e arenitostornava possível o encontro de dois ou três ecossistemas dotados de recursos naturais diferentes: caatingas e agrestes, cerrados e eventuais redutosflorestais. Um fato que significava um a diversificação d e ofertas da naturezarústica, a pa r com o importante acontecimento relacionado com a presençade moradias naturais, propiciadoras de sedentarização.

É importante assinalar que (à exceção d o caso anôm alo e controversode São R aimundo Nonato) a ocupação das escassas cavernas processou-seentre 20.000 e 9.000 anos A.P. A s pesquisas arqueológicas na pilha de sedimentos antropogênicos do chão das lapas e cavernas revelam diferentesvagas de ocupação que se estenderam por milhares de anos a partir dasdescobertas iniciais.

Tudo induz à crença de que grupos humanos de culturas pré-históricasdiferentes - b em caracterizadas pelos arqu eólogos brasileiros - utilizaram la

pas e cavernas até aproximadamente a grande diáspora dos povos de língu as

guaranis ou até as mudanças climáticas e ec ológic as processadas no territóriopela (re)tropicalização plena, que fez emendar florestas  na fachada atlântica ena Amazônia; reduzir cerrados a os chapadões e altiplanos d o Brasil C entral; eretrair caatingas para o contex to do atual Nordeste S eco. O aparecimento desedimentos aluviais argilosos nas planícies de inundação, assim como aperenização da drenagem, durante os últimos milênios do holoceno, favoreceuuma preferência por sítios beiradeiros, descoberta da cerâmica, e um importante acréscimo de ofertas da natureza pela piscosidade dos rios que ficaramem franca e extensiva perenização, ressalvado o caso do N ordeste Seco.

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O s povo s de língua tupi-guarani que vasculharam e fizeram migraçõessucessiva s e progressivas por m ilhões de qu ilômetros quadrados do território tropical e subtropical da A mérica do Sul caracterizam-se por forte adap-tabilidade aos d omínios de florestas, ao uso dos rios, incluindo moradias etabas construídas em pontos de diques m arginais e sítios de baixos terraços.

Desalojando, finalmente, os homens dos sambaquis fixados em beira derestingas, adaptados a viver d a pesca e co leta de "frutos do m a r " . Expulsando e sobrepondo-se belicosamente aos viventes dos sistemas lagunaresestuarinos, os tupis incorporaram pela primeira vez, n a pré-história brasileira , toda a faixa litorânea frontal do país, tendo p o r preferência barras de riose riachos encostadas em morrotes ou maciços costeiros florestados. E chegaram até a Amazônia.

Foi nesse contexto de ocupação, bastante generalizada dos povos delíngua tupi-guarani, que os colonizadores caucasóides, procedentes da Europa Ocidental, entraram em contato com os povos indígenas de origemmongolóide. Um contato que redundou em vasta, complicada e desumana

letalidade. A inda q u e p o r alguns séculos o país tenha vivido u m a plena proto-história. Do que resultou uma trágica eliminação étnica, a p a r com uma miscigenação gradual - envolvendo índios e negros, forjadores de um povodiversificado e m aravilhoso, permanentemente pressionado p ela insensibilidade do invasor, alheio às desigualdades sociais e aos atributos eternos daciência e d a cultura.

Dom inados por latifundiários, comandados p o r elites insensíveis e umatecnoburocracia incompetente e pouco criativa. P o r u m capitalismo hipócritae uma nefasta pseudoglobalização.

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A gênese d o Brasil

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J o r g e C o u t o

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longo de milênios, os ameríndios, primitivos habitantes do território que, posteriormente, viria a ser designado por Brasil, ocuparam progressivamente o vasto espaço sul-americano, desenvolveram um mod elo deaproveitamento do ecossistema, construíram uma civilização original e combateram ferozmente pela conquista dos nichos ecológicos mais favoráveis.

A partir dos contatos estabelecidos pelos homens da esquadra de Cabralcom a terra e a gente brasílicas, em abril de 1500, divulgaram-se em Portugal e, subseqüentemente, em outros Estados europeus, notícias sobre o

"adiamento", na região ocidental do Atlântico Sul, de uma terra firme habitada por gentes desconh ecidas, daí resultando, na feliz expressão do historiador Capistrano de Abreu, o "descobrimento soc iológico do Brasil".

O surto de expansão quatrocentista e quinhentista lusitano contribuiudecisivamente para o estabelecimento de ligações marítimas e comerciaisentre todos os continentes, bem com o para o surgimento de profundas mutações de natureza cultural, designadamente nos campos da geografia, botânica e zoologia, avultando, entre os mais relevantes, a modificação da concepçãoeuropéia do mundo. A arribada dos portugueses provocou, assim, aos maisdiversos níveis, profundas repercussões na Am érica do Sul.

Ilha ou terra firme? Eis a primeira interrogação que o "adiamento"

colocou aos homens da esquadra de Cabral, seguindo-se, de imediato, asquestões suscitadas pelo encontro de gentes tão diferentes das então conhecidas.

A forma de integrar a possessão sul-americana no con texto do ImpérioPortuguês levou à adoção dos sistemas de arrendamento e, posteriormente,de "capitanias de mar e terra", inserindo-se no contexto das opções estratégicas globais definidas pela corte de Lisboa nas três primeiras décadas deQuinhentos.

A s significativas alterações geopolíticas e econôm icas, ocorridas entre1529 e 1548, induziram o governo d e d. João III a desencadear o processo

A ,

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de colonização do Brasil, tendo, ao longo desse período, experimentadosucessivamente três mo delos institucionais distintos que levaram à elevaçãoda Terra do Brasil à dignidade de Província de Santa Cruz.

A tenaz luta travada pelos portugueses para garantir a soberania sobrea fachada leste do continente sul-americano influenciou a formulação do pro

jeto - consubstanciado na fórmula de Ilha Brasil - de construir uma Am érica Portuguesa do Amazonas ao Prata.

Os visíveis progressos alcançados em finais de Quinhentos nos domínios do controle do litoral, do aumento demográfico, do crescimento dosespaços urbanos, da ampliação da área cultivada, do incremento das atividades econômicas e da expansão do catolicismo levaram muitos a consider a r a promissora província sul-americana um a Nova Lusitânia ou um OutroPortugal.

Tendo o Brasil resultado de um processo de construção empreendidopelos portugueses em cooperação ou conflito com outros grupos étnicos, ouseja, ameríndios e africanos, destacam-se os aspectos relacionados com os

intercâmbios civilizacionais euro-afro-americanos — da lingüística à zoologiae da gastronomia às epidemias - que deram origem a u m a criação profundamente original e distinta de cada uma das suas comp onentes.

1 . I lha ou terra fi rm e?

A 9 de março de 1500 zarpou de Lisboa a segunda armada da índia,constituída por 13 velas (n ove naus, três caravelas e uma naveta de m anti-mentos) capitaneadas por Pedro Álvares Cabral, Sancho de Tovar (que co

mandava a na u El-Rei, estando investido no cargo de sota-capitão, ou seja,lugar-tenente, tendo por missão substituir o capitão-mor em caso de impedimento deste), Simão d e Miranda de Azevedo, Aires Gom es da Silva, NicolauCoelho, N uno Leitão da Cunha, Vasco de Ataíde, Bartolomeu Dias, D iogoDias, G aspar de Lemos, Luís Pires, Simão de Pina e Pero de A taíde.

A esquadra transportava entre 1.200 e 1.500 homens, incluindo a tripulação, a gente de guerra, o feitor, os agentes comerciais e escrivães, ocosmógrafo mestre João, um vigário e oito sacerdotes seculares, oito religiosos franciscanos, os intérpretes, os indianos que tinham sido levados paraLisboa por Vasco da Gama e alguns degredados.

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A 14 desse mês, a armada passou ao largo do arquipélago das Canáriase a 22 alcançou as ilhas de Cabo Verde, tendo o capitão-mor optado pornão se deter nessas ilhas para efetuar a aguada prevista nas instruções.

Entre os dias 29 e 30, a esquadra encontrar-se-ia a 5 o N, iniciando apenetração na zona das calmarias equatoriais - que levou dez dias a trans

por -, tendo a corrente equatorial sul afastado a sua rota cerca de noventamilhas para oeste. A I o 1/4 a norte do equador, a frota encontrou ventoescasso, iniciando, então, de acordo com as recomendações de Vasco daGama, a volta pelo largo em busca do alísio de sudeste, rumando muitoprovavelmente para sudoeste, devido ao regime de ventos que ocorre naregião. Ultrapassada a linha equinocial, por volta de 10 de abril, a rota terásido corrigida para sul-sudoeste, passando a frota a cerca de 210 milhas aocidente do arquipélago de Fernando de Noronha.

Por volta do dia 18, a armada encontrar-se-ia na altura da baía deTod os os S antos (13° S ), área em que o vento se aproxima bastante de leste,favorecendo a busca de terra, pelo que a esquadra terá passado a navegar a

um rumo próximo do sudoeste, fechando sempre sobre a costa.Na terça-feira, 2 1, segundo o testemunho d o célebre escrivão cabralino,os m embros da tripulação encontraram alguns sina is de terra: "muita quantidade d'ervas compridas a q u e os marcantes chamam botelho e a ssim outras,a que também chamam rabo d'asno". Apesar de, nessa latitude (cerca de17° S), dispor de vento favorável - que sopra francamente de leste - paraatingir mais rapidamente o seu objetivo prioritário que era o de alcançar amonçã o do Índ ico, o capitão-mor alterou deliberadamente o rumo para oeste em b usca de terra.

A 22 de abril toparam, pela manhã, "com aves, a que chamam fura-buchos [...] e, a horas de véspera [entre as 15 horas e o sol-posto]" tiveram"vista de terra, isto é, primeiramente d'um grande monte, mui alto e redondo ,

e d'outras serras mais baixa s a sul dele e de terra chã com grandes arvored o s , ao qual monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal e à terra aTerra de Vera Cruz".

Após esse adiamento, a armada fundeou a cerca de 6 léguas (19 milhas) da costa. No dia imediato (quinta-feira, 23 de abril), os navios maisligeiros (caravelas), seguidos pelos de maior tonelagem (naus), procedendo Jcautelosamente a operações de sondagem, ancoraram a cerca de meia légua(milha e m eia) da foz d o posteriormente denom inado rio do Frade. Foi, ent ã o , decidido enviar um batei a terra, comandado por N icolau C oelho, paraentabular relações com os indígenas que se encontravam na praia.

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O s primeiros contatos entre os tripulantes da pequena embarcação e ogrupo de 18 a 20 ameríndios foram d ificultados pelo barulho ensurdecedorprovocado pela rebentação que impediu tentativas mais prolongadas de entendimento. Contudo, ainda houve oportunidade para trocar um barrete vermelho, uma carapuça de linho e um sombreiro preto por "um sombreiro de

penas d'aves, com pridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhase pardas, como de papagaio [...] e um ramal [colar] grande de continhasbrancas, miúdas [...]".

Na noite de quinta para sexta-feira, uma forte ventania de "sudeste,com ch uvaceiros, que fez caçar [afastar do local onde estavam fundeadas]as naus, especialmente a capitania", levou a que os capitães e os pilotosdecidissem aproar a norte, ao amanhecer, em busca de um ancoradouroabrigado, onde p udessem verificar o estado de abastecimento da frota emágua e lenha, com o objetivo de dispensar a aguada na costa da África.

Dep ois de percorrerem cerca de 10 léguas (quase 32 m ilhas), os pilotos ultrapassaram a barra do Buranhém, encontraram "um arrecife [a Coroa

Vermelha] com um porto dentro, muito bom e mu ito seguro [a baía Cabrália],com uma mui larga entrada", onde lançaram as âncoras, tendo as naus fundeado a cerca de uma légua do recife, por terem atingido o local pouco antesdo pôr-do-sol. Afonso Lopes, piloto do capitão-mor, sondou o porto, tendo , no decurso dessa operação, capturado dois mancebos índios que seencontravam num a almadia, conduzindo-os à nau-capitânia com o objetivode os interrogar.

N o sábado, 25 de abril, as embarcações de maior tonelagem penetraram na baía, aí fundeando. Concluídas as tarefas de marinharia, reuniram-setodos os comandantes na nau de Cabral, sendo N icolau Coelho e BartolomeuDias incum bidos pelo capitão-mor de devolver à liberdade, com presentes,

os dois n ativos aprisionados na véspera e de desembarcar o degredado AfonsoRibeiro, que tinha por missão obter informações m ais detalhadas sobre osautóctones.

N a praia encontravam-se perto de duzentos homens armados com arcos e flechas, tendo-os deposto a pedido dos seus companheiros que seencontravam nos batéis. A partir de então começaram progressivamente aestabelecer-se relações cordiais entre os marinheiros lusos e os tupiniquinstraduzidas em trocas de objetos (carapuças, manilhas e guizos por arcos,flechas e adornos de penas) e na colaboração prestada pelos indígenas nasoperações de abastecimento de água e lenha.

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O s ameríndios não permitiram que o degredado ficasse entre eles, com-pelindo-o a regressar à armada. Na tarde do mesmo dia, uma parte da tripulação foi folgar e pescar no ilhéu, distante da praia, onde os nativos só tinhampossibilidades de chegar a nado ou em canoa. Essa decisão foi tomada porCabral como medida d e segurança para evitar quaisquer hipóteses de ata

ques de surpresa de que, por exemplo, os tripulantes das expedições deDias e G ama tinham sido alvo na costa africana.

N o dom ingo, dia de P ascoela, o capitão-mor mandou armar, no ilhéuda Coroa V ermelha, um altar destinado à celebração da missa. A primeiracerimônia cristã no B rasil, à qual assistiram a tripulação e cerca de duzentostupiniquins que se encontravam na praia fronteiriça, foi presidida por freiHenrique de Coimbra, guardião dos franciscanos, que, num improvisadopúlpito, também se encarregou da pregação, dissertando sobre o significadoda quadra pascal e do descobrimento daquela terra.

No mesmo dia, o comandante reuniu em conselho na nau-capitâniatodos os capitães da esquadra que concordaram com a sua proposta no

sentido de mandar ao rei o navio auxiliar com a "nova do achamento" daTerra de V era Cruz e, também, com a missão de a explorar mais detalhadamente na viagem de regresso. Foi ainda deliberado que se não tomassenenhum indígena para o enviar ao reino, optando-se apenas por deixar doisdegredados com a missão de aprender a língua e recolher informações. T erminada a reunião, o capitão-mor foi efetuar um reconhecimento das margensdo rio Mutari, autorizando a tripulação a folgar, circunstância que foi aproveitada por Diogo Dias para organizar um baile, ao som de gaita, no qualparticiparam portugueses e ameríndios.

N os dias imediatos procedeu-se à transferência da carga da naveta demantimentos para as outras 11 embarcações, à conclusão do aprovisiona-

mento de água e lenha, à construção de um a grande cruz, à prossecução dastentativas para obter mais informações sobre os habitantes da terra e à criação de um clima de cordialidade com os tupiniquins, alguns dos quais foramconvidados a tomar refeições e a pernoitar nas naus.

O cosmógrafo, bem como os pilotos das naus do capitão-mor e dosota-capitão, respectivamente, A fonso Lopes e Pero Escobar, aproveitarama perman ência em terra para armar na praia o grande astrolábio de pau -mais confiável do que os pequ enos astrolábios de latão utilizados a bordo -com o objetivo d e tomar a altura do sol ao meio-dia, comparar os cá lculosdas léguas percorridas e estimar a distância a que se encontravam do cabo

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da Boa Esperança. A medição da latitude da baía Cabrália (que está atualmente fixada em 1 6 ° 2 1 ' S), efetuada a 27 de abril por aqueles três técnicos,deu o resultado de 17° S, tendo, por conseguinte, um a margem de erro inferior a 40' por excesso.

Na carta que enviou a d. Manuel I, mestre João Faras, além de reco

mendações de natureza náutica, procede à primeira descrição e a um esboçode representação da Cruz, ou seja, da constelação austral. O cosm ógrafo efísico régio acrescenta, ainda, uma passagem em que informa o monarca déque, para conhecer a localização da nova terra, bastaria consultar o mapa-múndi que se encontrava em Lisboa, na posse de Pero Vaz da Cunha, oBisagudo, onde a mesma estava desenhada. No entanto, ressalva que setratava de uma carta antiga, não indicando se a terra era ou não habitada.Essa referência a uma hipotética representação cartográfica da Terra do Brasil,anterior a abril de 1500, tem suscitado acesa polêmica devido às implicações decorrentes da sua interpretação apontarem ou não para a existênciade precursores de Cabral naquela região brasílica.

N ão são concordantes as opiniões dos autores dos três relatos sobre odescobrimento d o B rasil relativamente à natureza da terra achada. Pero V azde C aminha considera-a uma ilha, uma vez que no encerramento da Carta ad. M anuel data-a de "Porto Seguro, da vossa ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500". O bacharel mestre João, por seu turno,refere que "[...] quase entendemos por acenos que esta era ilha, e que eramquatro, e que de outra ilha vêm aqui almadias [...]", endereçando a s u a missivade "Vera Cruz no primeiro de maio de 500" .

O autor da vulgarmente designada Relação do piloto anônimo abordaa questão de forma mais dubitativa, indicando que a terra era "grande, porém não pudemos saber se era ilha ou terra firme", adiantando, contudo, que

se inclinava para a "última opinião p elo seu tamanho". Esta última testemun h a n ã o ficou, todavia, circunscrita ao litoral reconhecido até à baía Cabrália,tendo tido oportunidade, no prosseguimento da derrota rumo ao cabo daBoa Esperança, de avistar mais uma parcela da orla marítima, o que lhepermitiu adquirir um a visão m ais próxima da realidade.

A 1Q de maio, sexta-feira, o capitão-mor procedeu à escolha do sítioonde deveria ser erguida a grande cruz construída em madeira da terra, deforma a, de acordo com o escrivão cabralino, "melhor ser vista". Foi entãoorganizada um a procissão que transportou a cruz, em que foram pregadas asarmas e a divisa reais, até ao local selecionado, situado nas proximidades da

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foz do rio  M utari, que não é visível do m a r , onde a implantaram, seguindo-sea celebração da segunda missa na Terra de Vera Cruz. C oncluídas as cerimônias litúrgicas, o comandante da ex pedição ordenou a partida para Lisboa da naveta de mantimentos, comandada por Gaspar de Lem os, enviandoa o r e i papagaios, arcos, flechas e outros objetos fornecidos pelos tupiniquins,

bem com o as missivas dos capitães, do feitor, do cosmógrafo e do escrivãosobre o "achamento da terra nova".No sábado, 2 de maio, a esquadra cabralina zarpou do ancoradouro

brasílico, deixando, todavia, em terra, dois grumetes que tinham desertadonas vésperas da partida e igual núm ero de degredados, "os quais começaram a chorar, e foram animados pelos naturais do país que mostravam terpiedade deles".

A naveta de mantimentos, comandada por Gaspar de Lemos, efetuou,na viagem de retorno a Lisboa, um reconhecimento d o litoral brasílico compreendido entre Porto Seguro e o cabo de S ão Jorge - identificado com oatual cabo de Santo A gostinho - numa extensão superior a 150 léguas, o que

permitiu obter a confirmação de que se tratava de um continente. O traçadogeral da faixa costeira explorada, uma legenda alusiva ao descobrimento, ostopônimos correspondentes às estremas atingidas, sendo que a do norte seencontra assinalada com uma bandeira das Quinas, foram, na seqüên cia daexpedição cabralina, inseridos no padrão cartográfico real.

2 . Terra de Santa Cruz, Terra dos Papagaios e Novo Mundo

D . Manuel I recebeu, provavelmente no decorrer de julho de 1500,

Gaspar d e Le mos, tomando conhecimento d os sucessos protagonizados pelasegunda armada da índia até 1Q de maio inclusive, bem como da existênciano poente de uma grandiosa terra firme austral que o monarca denominou deTerra de Santa Cruz. N a previsão de que a nova descoberta pudesse suscita r a eclosão de d isputas com C astela acerca da esfera de influência em queo n ovo do mínio se situava, o rei decidiu manter segredo sobre o assunto atéobter informações sobre os respectivos limites.

N o início de 1501, ultrapassados diversos constrangimentos políticose d iplomáticos, o rei de P ortugal tomou decisões conducentes a integrar funcionalmente os domínios do N ovo M undo no contexto do Império.

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A primeira consistiu em da r instruções a João da N ova, capitão-mor daterceira armada da índia, para tornar refresco na Terra de Santa Cruz. Comefeito, a frota zarpou do T ejo n a primeira quinzena de março, iniciou a aproximação ao litoral brasílico por alturas do cabo de Santo Agostinho e efetuou a aguada na costa pernambucana.

A segunda - e mais importante - foi a de armar uma flotilha de trêscaravelas, cujo comando confiou a Gonçalo Coelho, com a missão de determinar os limites da terra firme descoberta p or Cabral. É muito provável queentre os objetivos cometidos à expedição de 1501-1502 se encontrasse ode efetuar um levantamento das potencialidades econômicas da Terra deSanta Cruz, fato indiciado p ela participação de dois d estacados florentinosque se encontravam intimamente associados a empreendimentos marítimos ecomerciais nas "índias de C astela".

Os navios de Gonçalo Coelho zarparam de Lisboa entre 10 e 14 demaio de 15 01, dirigindo-se a Bezeguiche (Senegal) para tomar refresco. Nofinal do mês encontraram ancoradas nesse porto duas naus da armada deCabral q u e regressavam da índia, tendo-se efetuado importantes conciliábulosentre alguns membros de ambas as tripulações que permitiram a V espúciochegar à conclusão de que a Terra de Santa C ruz pertencia ao mesm o con tinente que ele havia visitado no decurso da expedição de O jeda, situando-s e , todavia, n a região meridional.

Apesar de todas essas movimentações, não transpiraram notícias sobre a descoberta efetuada pela esquadra de Cabral nas paragens ocidentais,o que revela a existência de um calendário político para a sua divulgação. Oargumento de que a inexistência d e informações sobre o assunto se deveria àpouca importância atribuída por d . M anuel I ao adiamento do Brasil é invalidado pela tomada das d ecisões já referidas que apontam no sentido contrário ao dessa hipótese.

Na noite de 23 para 24 d e junho de 1501 chegou ao Tejo a nau Anunciada, pertencente à sociedade constituída entre d. Álvaro de Bragança emercadores italianos, comandada por Nuno L eitão da Cunha, primeira unidade da segunda armada da índia a regressar do Oriente. A partir de 26desse m ê s , a s missivas d e italianos residentes em Portugal e Castela (Affaitadi,Cretico, M archioni, Pisani e Trevisano) vão aludir constantemente ao d escobrimento da Terra dos Papagaios - designação que lhe foi atribuída poresses diplomatas e mercadores -, pondo em relevo o encontro de uma terradesconhecida, a existência d e populaçõ es caracterizadas pela nudez e a abundância e variedade de papagaios.

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A o receber as notícias sobre a descoberta da grande terra firme austral- cujas estremas setentrional e meridional eram desconhecidas -, d. M anuelapercebeu-se qu e, para além de ter vencido os reis católicos na corrida pelachegada ao Oriente (149 9), acabava de abrir uma nova frente de competição com C astela, dessa vez no hemisfério ocidental.

Os m onarcas castelhanos - alertados pelos rumores que circulavamsobre o achamento, por navios lusos, de terras no poente que poderiamestar situadas no seu hem isfério de influência - deram instruções ao seu representante em Portugal para q u e insistisse junto do "d ileto filho" no sentidode lhes dar conta dos resultados obtidos pela segunda armada da índia. Osoberano lusitano, pressionado pelo embaixador d os sogros, enviou-lhes umamissiva (28 de agosto de 1501), redigida em linguagem muito cautelosa eambígua, em q u e atribui a descoberta feita p or Cabral a um "m ilagre divino",sublinhando que a mesma er a muito conveniente e necessária para a navegação da índia. O mite, todavia, os dados sobre a posição geográfica da Terrade Vera Cruz, bem como os resultados das medições de latitude efetuadas

em Porto Seguro, e não faz a mínima referência ao envio da expedição deCo elho que havia partido de Lisboa em m aio.

O selo de secretismo com que o Venturoso rodeou os resultados náuticos da expedição de C abral encontra-se bem patente numa missiva, datadade 10 de agosto desse ano, em qu e Ângelo T revisano, secretário do embaixador veneziano Dom enico Pisani junto de Isabel e Fernando, informava oanalista Malap iero que não tinha sido p ossíve l obter uma carta de marear dareferida viagem, "porque o rei impôs a pena de morte a quem a mandar para

fora".

No início de agosto de 1501, a flotilha comandada por Gonçalo Coelho atingiu a costa brasílica no Rio Grande do Norte, por volta dos 5 o S ,

iniciando aí o reconh ecimento da orla marítima que se estendeu até ligeiramente ao sul de C ananéia (25° 0 3 ' S), numa extensão superior a 370 léguas.N o decurso da viagem foram descobertos e batizados importantes acidentesgeográficos, designadamente o cabo de São Roque (16 de agosto), o cabode Santa Cruz (posteriormente designado de Santo A gostinho), o rio de SãoFrancisco (4 de outubro), a baía de Todos os Santos (1 Q de novembro), aserra de São Tom e (21 de dezembro), cabo Frio, a baía (Angra) dos Reis (6de janeiro), o porto de São Vicente (22 de janeiro) e a Cananéia (29 defevereiro). No início de março de 1502, a flotilha afastou-se do litoral apartir aproximadamente dos 26° S, seguiu o rumo sudeste e efetuou uma

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profunda incursão em águas austrais até cerca de 50°, enfrentando violentastempestades, frio intenso e ilhas de gelo. Regressou a Lisboa entre 22 dejulho e 7 de setembro desse ano.

Uma das conseqüências da viagem de 1501-1502 consistiu em reforçar a noção de continentalidade da terra firme ocidental que já ganhara con

sistência na corte manuelina no decurso de 1501, com o mostra o fato de, em18 de outubro desse ano, P edro Pasqualigo, embaixador de V eneza, atestarque os homens da expedição de Gaspar Corte-Real, acabados de regressarda Terra N ova (Canadá), acreditavam na continuidade da "quarta parte" domundo d esde a região glacial até a Terra dos P apagaios.

O s resultados das explorações lusitanas nas paragens ocidentais - doextremo setentrional (Terra Nova) à região austral (Cananéia) - foram incorporados, como acontecia com os territórios pertencentes ao Velho Mundo,nas cartas padrão regias. Da valiosa p rodução cartográfica de 1502 somente se conserva o planisfério português anônimo, o famoso "Cantino". Noentanto, o traçado da costa brasílica desde Cananéia - local por onde pas

sava, ao sul, o meridiano de T ordesilhas - encontra-se deslocado para oriente, ou seja, foi falsificado de modo a impedir a revelação de que as terrassituadas a partir daquele local pertenciam à coroa de C astela. Esse tipo dealteração intencional introduzida n as cartas-portulano por motivos políticosmanteve-se até 1515-1516, época em que João Dias de Sólis, um pilotoportuguês a serviço de Fernando, o Católico, conduziu uma expediçãocastelhana às terras austrais.

Após o regresso a Lisboa, Américo Vespúcio redigiu uma relação sumária da viagem de 1501-15 02 que enviou a Lourenço di Pierfrancesco de'M ediei. Este primeiro documento impresso sobre o Brasil foi publicado emitaliano na cidade de Paris, provavelmente em 1503, com numerosas alterações introduzidas sem o conhecim ento do autor, tendo, pouco d epois, saídodos prelos a versão latina intitulada Mundus Novus (Veneza, 1504). A expressão divulgou -se rapidamente, passando a ser mu ito utilizada para nomear o continente austral recentemente descoberto pela armada de Cabral.Contud o, ela já era empregada nos círculos portugueses desde 1501, conforme comprova a seguinte passagem de uma carta remetida, em julho dessea n o , por Marchioni para Florença: "Este rei [d. Manuel] descobriu nesta[viagem de 1500] um novo mundo, mas é perigoso navegar no âmbito desses mares".

A carta-portulano de Fano, datada de 8 de junho de 1504, contém, narepresentação cartográfica do N ovo M undo austral, a seguinte inscrição em

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dia leto geno vês: Terá de Gonsalvo Coigo vocatur Santa Croxe, ou seja,Terra de G onçalo C oelho que se chama Santa Cruz, designação atribuída aoBrasil pelo cartografo Vesconte de M aiollo em homenagem ao navegadorque comandara a expedição de reconhecimento de 1501-1502.

3. Terra do Brasil

Em data anterior a 3 de outubro de 1502, d. M anuel I arrendou a Terra

de Santa Cruz a uma associação de mercadores. O contrato, de acordo comas informações fornecidas por Pedro R ondine lli, tinha uma duração previstade três anos. C oncedia o m onopólio da exploração do território à sociedadeencabeçada por Fernão de Loronha e vedava a importação do Oriente davariedade asiática do pau-brasil.

Decorrido algum tempo sobre o arrendamento do Brasil, d. M anuel Iprocedeu à primeira doação efetuada pela monarquia portuguesa em territó

rio americano. Com efeito, o rei concedeu , em janeiro de 15 04, a capitaniada Ilha de São João (atual Fernando de Noronha) a Fernão de Loronha,pelo prazo de duas vidas, c om a obrigação do beneficiário a povoar e aproveitar econom icamente. A s contrapartidas consistiam n o pagamento anualdo quarto e do dízimo dos rendimentos obtidos, excetuando as matérias-primas tintureiras, drogas e especiarias, que ficavam reservadas para a coroa.

A afirmação de que "é achada esta terra não navegada pelos navios deVossa A lteza e, por vosso m andado e licença, os dos vosso s naturais" significa que, à data da redação do Esmeraldo de Situ Orbis, da autoria deDuarte Pacheco Pereira (1505), a exploração geográfica e comercial doBrasil estava confiada à sociedade d e mercadores chefiada por Fernão de

Loronha, pelo que a mesma não era freqüentada por embarcações regias,mas s im pelas pertencentes aos respectivos arrendatários.Em 1513, Jorge Lopes Bixorda - grande armador que em 1509 co

mandara pessoalm ente uma nau de sua propriedade que partiu para a índiaintegrada na armada do marechal d. Fernando C outinho - detinha o exclu sivo do com ércio da árvore tintureira po r prazo e em condições desconhecidos.

A experiência proporcionada pela realização da viagem de 1501-1502revelou que o aprovisionamento de pau-brasil efetuado no decurso da permanência d os navios nos ancoradouros tornava a operação muito demorada-e, por conseguinte, p ouco lucrativa. Daí que se tenha chegado à cono íuslb O^

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de que a solução m ais rentável consistiria em edificar uma feitoria, cuja guar-nição deveria obter a colaboração dos indígenas para o abate e preparaçãodas árvores no período em que se aguardava a chegada das naus, de modoque estas, logo que arribassem, pu dessem ser rapidamente carregadas.

A 10 de junho de 1503 zarpou de Lisboa a segunda armada de G onça-lo Coelho, constituída por seis navios, que tinha como um dos objetivosprioritários o de construir uma feitoria na terra do pau-brasil. Depois de refrescar nas ilhas de C abo V erde, rumou, por razões náuticas, para sudeste,dirigindo-se, em seguida, para sul-sudoeste. A 10 de agosto a expediçãoencontrou a ilha de São João, que rebatizou de S ão Louren ço, tendo a nau-capitânia naufragado, nesse mesmo dia, nos seus baixios. Devido a essa ocorrência, a esquadra dispersou-se, daí resultando que uma das unidadesdescobriu, em outubro, a ilha da Ascensão, posteriormente rebatizada deTrindade (20° 30' S).

A pós terem aguardado inutilmente na baía de Todos os San tos - localde encontro fixado pelo regimento régio para o reagrupamento das armadas- a chegada do capitão-mor, os navios de Vespúcio e de outro comandante

cuja identidade se descon hece rumaram para sul a fim de cumprir uma dascláusulas do contrato de arrendamento: fundar um estabelecimento lusitanono Novo Mundo. Durante cinco meses edificaram a feitoria-fortaleza numailha nas imediações d o cabo Frio, deixando o feitor João de Braga com umaguarnição de 24 hom ens, 12 peças de artilharia, armas, mun ições e m anti-mentos para seis me ses, tendo regressado a Portugal a 18 de junho de 1504.

A Lettera dirigida a Pedro Soderini, concluída em Lisboa a 4 de setembro de 1504, em que Américo Vespúcio descreve as viagens que efetuou, designadamente a de 1503-1504, foi, após ter sido modificada eampliada por um compilador, impressa em Florença em 1505 ou 1506. Ocosmógrafo alemão M artim W aldseemuller traduziu-a para o latim, sob o

título Quatuor Navigationes e publicou-a na sua Cosmographiae Introdução (Saint-Dié, L orena, 1507), onde apareceu pela primeira vez o neolo-gismo América, por ele criado.

Foi a partir do ltinerarium Portugallensium (Milão, 1508) - versãolatina da coletânea de relações de viagens portuguesas e castelhanas, organizada por Fracanzano da Montalboddo, intitulada Paesi Novamente Retrovati(Vicenza, 1507), na qual figuravam os textos vespucianos - que ThomasMore tomou conhecimento do episódio referente à fundação da primeirafeitoria portuguesa no N ovo M undo, fato que integrou na trama da sua célebre obra, Utopia (Louvain, 1516).

A g ê n e s e d o B r a s i l ç n

N o início da segunda década de Quinhentos, surgiu, pela primeira vez,numa carta de Afonso de Albuquerque a d. Manuel I e no globo de Marini(1512), o termo Brasil (tradução de ibirapitanga, ou seja, "árvore vermelha" ou "pau cor de brasa") para identificar a terra austral, designação quegradualmente suplantou a denominação oficial de Terra de Santa Cruz e a si talianas de Terra dos Papagaios ou de Gonçalo Coelho. A substituição dosímbolo da paixão e redenção cristãs por um "pau que tinge panos" seriaduramente criticada, na segunda metade do século X V I, por João de B arrose por Pero de Magalhães de Gândavo, atribuindo-a a obra do demônio.

O s navegadores p ortugueses exploraram, até 1514, o trecho do litoralcompreendido entre Cananéia e o rio de Santa Maria (Prata). Aliás, o cabode Santa Maria (Punta dei Este, Uruguai), situado na entrada do estuáriodaquele rio (34° 59 ' S ), já aparece referenciado no Livro de marinharia, deJoão de Lisboa, concluído por volta de 1514, que atribui àquele acidentegeográfico a latitude de 35°. Esta obra inclui ainda a primeira menção conhecida de Cruzeiro do Sul, bem como o respectivo regimento para a determinação de latitudes, provavelmente também da autoria daquele reputado piloto.

Lisboa procedeu, na primeira vintena de Quinhentos, a medições delatitude de norte a sul do litoral da Terra de Santa Cruz, conforme demonstram, por um lado, a tábua incluída na sua obra que apresenta os primeirostopônimos e "alturas da costa do Brasil" para a região costeira sul-americanacompreendida entre os 25 e 35° e, por outro, o fato de nas imediações dabaía do Maranhão (2 o 1/3 S ) surgir cartografado no atlas H omem -Re inéisum  rio  denominado "Joham de lixboa".

Por volta de 1516, foram impressas, pela primeira vez, no Regimentoda declinação do sol, tábuas de latitudes das regiões situadas ao sul doequador, abrangendo a "terra do Brasil, da banda do sul" a costa compreendida entre o "rio do arrecife" (2 o S) e o "cabo de Santa Maria" (35° S). A

divulgação desses dados até então ciosamente conservados em sigilo - depois de os castelhanos terem chegado ao rio da Prata - revela uma mudançade estratégia da coroa portuguesa. Desvendado o segredo de que o reinovizinho tinha direito a uma parcela das terras austrais, d. M anuel apressou-sea mandar publicá-los de forma a poder invocar, nas inevitáveis n egociaçõesque se seguiriam sobre a definição dos respectivos limites, os direitos dePortugal aos territórios situados entre Cananéia e o rio da Prata, baseadosna prioridade do descobrimento.

Os elementos fornecidos pelo Guia náutico de Évora foram incorporados na Suma de geographia (Sevilh a, 1519), da autoria de Martin Fernández

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de Enciso, que ao descrever o litoral brasílico situado entre o cabo de SantoA gostinho e o cabo de Santa Maria fornece as latitudes corretas, mas ao tratarda costa ao norte do primeiro topôn imo é "incrivelmente errôneo", arbitrandoao rio Maranon (Am azonas) a latitude de 7 o 30' S.

Nu ma primeira fase (1500 -1530 ), o relacionamento entre portuguesese indígenas limitou-se à prática do escamb o, à criação de feitorias, à fixaçãode um es casso número de "lançados" no Brasil, e às pouc o frutuosas tentativas de missionação empreendidas por franciscanos.

4. Província de Santa Cruz

A partir de finais da década de 20 de Quinhentos, d. João III (1521-1557) decidiu iniciar a colonização do Brasil, tendo adotado, ao longo doperíodo compreendido entre 153 0 e 1548, três modelos diferentes para garantir o sucesso da empresa, pretendendo responder à tenaz resistência opostapor vários grupos tribais ameríndios à fixação de portugueses no seu território e às alterações verificadas n as vertentes geop olítica e econôm ica mundiais.

Através do primeiro modelo - de exclusividade regia (1530-1533) -,a coroa procurou assegurar com os seus próprios recursos tão ambiciosatarefa. N o entanto, em p ouco tempo, concluiu que tal empresa exigia avulta-dos recursos financeiros e dem ográficos de que não dispunha, devido ao seuempenhamento em outras zonas geográficas do globo então consideradasprioritárias.

O governo régio optou, a partir de 1534, por recorrer a particularespara quem transferiu na quase totalidade a iniciativa da colonização. Este

segundo modelo - de exclusividade particular (1534-1548) - revelou-se,contudo, insuficiente para atingir os objetivos pretendidos devido à desproporção existente entre as elevadas exigências materiais e humanas que a suaconcretização implicava e as disponibilidades dos donatários (capitães-go-vernadores) e também aos abusos a que dava ocasião a total ausência defiscalização regia.

N o fim de 1548, d. João III resolveu experimentar uma terceira solução - o sistema misto - que articulava um forte empenhamento militar, econômico e judicial da coroa com a manutenção das capitanias-donatárias,embora expropriando os seus titulares de mu itas das competências inicial-

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mente concedidas. Adotou, po r conseguinte, um m odelo misto que m antinhaas capitanias-donatárias, embora reduzindo substancialmente as suas atribuições iniciais, articulava-as com o funcionamento de órgãos da administração regia estabelecidos na Província de Santa Cruz e, em vários domínios(militar, judicial e fiscal), submetia-as à inspeção de representantes diretamente n omeados pelo rei instalados no próprio território. Esta solução, queconjugava recursos régios e particulares, consolidava a presença lusitana noBrasil, defendendo-a, simultaneamente, de ataques internos e externos tendopermitido alcançar progressos significativos na ocupação da terra brasílica,resistir vitoriosamente às investidas francesas, fomentar o crescimento econômico e aperfeiçoar o funcionamento das instituições.

Os progressos verificados a partir da criação do governo geral foramtão significativos que um dos donatários, o humanista João de B arros, escrev e u , em 1552, na Primeira década da Ásia: "E por honra de tão grandeterra chamemos-lhe Província".

Uma das conseqüências do avanço do processo colonizador residiu,contudo, na introdução de profundas m odificações no quadro das relaçõesentre tupis e portugueses, o qual garantira, até então, a manutenção da autonomia dos grupos tribais. A paulatina fixação dos europeus, com caráterpermanente, em diversos pontos da costa brasílica pôs em causa o equilíbrioexistente, provocando dois tipos de reações distintas por parte das comunidades aborígines: aceitação pacífica ou resistência armada.

Pode-se afirmar que as características geográficas de várias regiões,com especial incidência no sudeste, dificultaram significativamente a penetração portuguesa no sertão, condicionando a forma de ocupação do territóriobrasílico nos séculos XV I e XV II.

O isolamento do litoral, devido às dificuldades em transpor as barreirastopográficas, constitui um importante elemento para a interpretação do process o quinhentista de colonização do B rasil. A estreita faixa costeira, separada do planalto por linhas de escarpas abruptas com alturas superiores a800 metros, localizadas a curta distância das terras baixas, representou umsério obstáculo para as ligações entre os sítios portuários da costa e os com-partimentos do planalto de clima tropical de altitude. Essa situação eraagravada pela existência de um reduzido número de vales importantes entreos rios Doce (ao norte) e Jacuí (ao sul).

A lém d os condicionalismos de ordem geográfica, fatores de naturezasocioeconôm ica e geop olítica encontram-se na origem da "colonização pon-

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tual", ou seja, a ocupação apenas dos pontos estratégicos da orla costeira.Dispondo Portugal de reduzidos recursos demográficos no século XVI, ogoverno régio optou por concentrá-los na costa, já que, em primeiro lugar,urgia enfrentar a ameaça francesa, ocu pando tod as as baías e embo cadurasde rios suscetíveis de permitir a ancoragem de navios gauleses e, em segu ndo lugar, as condições ideais para a cultura da cana sacarina e o fabrico d eaçúcar - essen ciais para viabilizar a empresa colonizadora - se conjugaremnas proximidades da faixa marítima.

O "modelo insular" de fixação no terri tório brasíl ico foi sagazmenteapreendido por frei Vicente do Salvador que escreveu, em 1625, contentarem-se os portugueses em arranhar a costa como os caranguejos, nela nãopenetrando d ecididamente com o o t inham feito os espanhóis.

A estratégia lusitana de consolidação e ampliação da América portuguesa assentou, do ponto de v ista geopolítico, num tripé: na escolha da Bahia- região central na época quinhentista - para sede do governo geral, funcionando, segundo as palavras de um franciscano seiscentista, como o "coração no meio do corpo, donde todas se socorressem e fossem governadas";

na fundação de São Paulo, base estabelecida no planalto de Piratininga queconstituía uma cun ha para a penetração na região platina, e, finalmente, nacriação de São Sebastião do Janeiro, cidade que assegurava o domínioefetivo da baía da Guanabara, essencial, por um lado, para manter a l igaçãoentre as capitanias do Norte e do Sul e, por outro, através do sertão, comSão Paulo, reforçando, desse modo, a segurança de ambas as povoações.

Em meados de Quinhentos, a fase da economia de escambo foi superada, consolidando-se a economia de produção em que a cultura da cana eo fabrico do açúcar - complem entados por roças de mantimentos e criaçãode gado - assu miram um papel primord ial. A opçã o pela agricultura de exportação, única que permitia integrar o Brasil na economia-m undo, originou

uma estrutura fundiária caracterizada pela grande propriedade e pelo recurso intensivo a mão-de-obra escrava, primeiramente formada por indígenasque foram sen do, a partir de meados do século XV I, gradualmente substituídos por cativos africanos, daí resultando a criação de um eixo triangular:Metrópole-Brasil-África.

Esse t ipo de estrutura econômica gerou uma formação social dominadapor um restri to número de membros (os senhores de engenho) em que amassa da popu lação era constituída por escravos, verificando-se a existência de um setor intermédio pouco numeroso (lavradores, mercadores e

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artesãos). Apesar dessa configuração, a sociedade colonial possuía um apreciável grau de mobilidade.

5. " I lha Brasi l"

A coroa de P ortugal nunca desistiu de ampliar os l imites meridionais daAmérica portuguesa até, pelo menos, a margem norte do rio da Prata. D.João III incumbiu, em novembro-dezembro de 1553, o seu representante nacorte de Carlos V de efetuar dil igências junto d o sobrinho e genro - o príncipe herdeiro de C astela (futuro Filipe II) - no sentido de impedir a saída deuma exp edição espanho la, que se aprestava para partir de Sevilha com destino ao rio da Prata, uma vez que aquela região sul-americana "é da minhaconquista e cai debaixo da minha demarcação".

A recepção do mito ameríndio da "Ilha Brasil" - que encontra claroacolhimento na cartografia lusa a partir de meados de Q uinhentos - insere-se

na estratégia portuguesa de desenvo lver a teoria de que a Província de S antaCruz seria uma ilha "rodeada pelo oceano e por dois grandes rios [o A mazonas e o Prata], unidos por um lago".

Tratava-se de util izar um argumento de natureza geográfica - u ma vezque o Brasil constituiria uma entidade territorial distinta, separada da América Espan hola por "fronteiras n aturais", ou seja, pelas duas principais baciashidrográficas sul-americanas com unicantes através de um grande lago central , a "lagoa Eupan a", localizado no interior - que justificaria a inclusão deuma hipótese não prevista no articulado do Tratado de Tordesilhas. Essasolução surgia com o a única fórmula suscetível de conferir legitimidade àsambições lusitanas de estender as fronteiras da A mérica portuguesa tão des-

mesuradam ente para o sul da l inha divisória.Essa concepção teve importantes repercussões nas cartas-portulano,verificando-se q ue aquela visão fabulosa da geografia sul-americana se difundiu lentamen te na Europa a partir de protótipos portugueses da segundametade de Quinhen tos - em que o mapa de Bartolomeu Velho (1561) assumiu uma função paradigmática -, logrando alcançar grande aceitação nasescolas cartográficas flamengas, francesas e i talianas, sobretudo no séculoX V I I .

As pretensões portuguesas de ampliar significativamente a extensão daProvíncia de Santa Cruz estão bem patentes, mesmo no período d a Monar-

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quia Dual (1580-1640), numa obra de cariz náutico da autoria de LuísTeixeira, elaborada por vo lta de 1586, que incluía a foz do rio da Prata n ohemisfério português, bem com o numa impo rtante descrição do Brasil que,em 1587, defendia que os l imites da demarcação da coroa de Portugal naAmérica do Sul se estendiam à ponta do Marco, bem ao sul do estuárioplatino.

Simão de Vasconcelos, um jesuíta seiscentista português, sintetizouadmiravelmente, no seguinte trecho, o projeto luso de construção de umgrande Brasil:

Estes dois rios, o das Amazonas e o da Prata, princípio e fim desta costa, são doisportentos da natureza... São como duas chaves de prata, ou de ouro, que fecham aterra do Brasil. Ou sã o como duas colunas de líquido cristal q u e a demarcam entre nóse C astela, não só por parte do marítimo, mas também do terreno.

Ainda em finais do século XVDI afirmava Alexandre Rodrigues Ferreira,um incansável pesquisador da fauna e da flora amazôn icas, que "pelo Brasil

entendo aquela parte da América, compreendida entre os rios Amazonas eda Prata", o que revela as marcas indeléveis que este projeto plasmou noimaginário luso-b rasileiro.

6. Um outro Portugal?

No final de Quinhentos, o jesuíta Fernão Cardim, que viveu a maiorparte da sua vida no B rasil , afirmava, na obra Tratados da terra e gente doBrasil (1585), que "este Brasil é já outro Portugal". No entanto, tratava-sede uma componente do império português que possuía características bemvincadas e que - apesar da prevalência, sobretudo nas áreas urbanas, deelementos d a matriz cultural, l ingüística e religiosa lusitana - não po deria,desde o início do processo de colonização, ser automaticamente associadaao padrão metropolitano.

Com efeito, a miscigenação, o escambo, a atividade missionária e oengenho d esempenharam , desde os primórdios da construção do Brasil , umpapel fundamental no processo de aculturação entre índios, portugueses eafricanos.

Um dos elementos fundamentais do contato interétnico foi a mulherindígena, representante das funções dom ésticas e principal força produtora

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no sustento do grupo tribal. Ela constituiu, através da gradual e crescenteligação com o europeu , um instrumento para a desorganização social e conseqüente transferência da propriedade dos meios de produção das sociedades nativas para a emergente sociedade colonial. Além desse aspectofundamental, os laços matrimoniais entre portugueses e mulheres índias contribuíram para que os primeiros adotassem muitos hábitos tupis (na alimentaç ã o , no mobiliário doméstico, nas formas de sociabilidade, etc) , provocando,assim, informalmente, a aculturação dos colonos.

Os mest iços desempenharam um papel decis ivo como agentes deaculturação, sintetizando, num a primeira fase, os elementos das culturas européia e ameríndia, transmitindo-os a grup os tribais que nunca tinham entradoem contato com os portugueses. A partir da segunda metade de Quinhentos,o processo d e aculturação foi enriquecido com o elemento africano, inician-do-se, então, a gradual simbiose entre as componentes euro-afro-americanaque viria a moldar biológica e culturalmente a formação d a sociedade brasileira.

A língua tupi constituiu um veículo privilegiado de contato entre euro

peus e indígenas, estendendo-se a áreas de outras formações l ingüísticasameríndias. Funcionou, na prática, como uma verdadeira língua geral, designação que, contudo , somente começou a ser uti l izada na segunda m etadedo século XVII. Até então era referida por "língua do Brasil", "l íngua daterra" e, sobretudo, "língua brasíl ica".

Os primeiros jesuítas ded icaram particular atenção à l íngua tupi, estu-dando-a e elaborando, ainda em Quinhentos, algumas obras sobre o tema.O primei ro Vocabulário na língua brasílica foi composto pelo padre Leonardo do Vale (c. 1538-1591) que viveu quase 40 anos entre os índios daBahia, Porto Seguro e São Paulo, tendo sido, no início da década de 1570,nomeado lente de Língua Brasíl ica no Colégio da Bahia. Elaborou ainda uma

Doutrina geral na língua do Brasil (1574), bem como sermões e avisospara a educação e instrução dos índios na Língua do Brasil .O padre José de Anchieta redigiu a primeira Arte de grammatica da

lingoa mais usada na costa do Brasil, que circulou manuscrita largo temp o , tendo merecido honras de impressão em Coimbra, em 1595, na oficinade An tônio de Mariz. Esta obra, de cariz fortemente com paratista, designadamente com o latim, "representa uma nova estratégia de abordagem da sl ínguas exóticas que entram no colóquio universalizante do m undo descobert o " . Com pôs, a inda, um Dialogo da doctrina christãa, um Confessionáriobrasílico, sermões, poe sias, cantigas e outras obras em língua tupi.

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Dos contatos luso-ameríndios resultaram, n omeadamente, contributoslingüísticos que se traduziram pela incorporação na língua portuguesa devocábulos de origem tupi-guarani, sobretudo ligados a espéc ies botânicas,como abacaxi, aipim, amendoim (da raiz tupi mindoim, menduí ou outrasvariantes, influenciadas pelo vocábulo amêndoa), ananás (do guarani naná),araçá, caju, capim , cipó, jenipapo, mandioca, mangaba, maracujá e piaçaba,ou zoológicas, como arara, cutia, jararaca, jibóia, maracanã, paca, piranha,sagüim, surucucu, tamanduá, tatu, toim, tucano e urubu, além de outros relacionados com a gastronomia, como beiju, carimã, mingau, pipoca ou tapioca.

Verificou-se a rápida adoção pelos índ ios da tecnologia européia nosmais variados domínios, da caça e pesca à construção de habitações e àguerra. Saliente-se que a introdução de utensílios metálicos aumentou orendimento das atividades indígen as: na agricultura, através da utilizaçãode machados no abate de árvores, de enxadas no cultivo da terra e defacas para cortar as ramas da mandioca; na pesca, m ediante o uso do anzolde metal - o pindaré ("anzol diferente") - e de pontas de ferro nos arpões;e, ainda, na confecção de alimentos, pela introdução da chapa de ferro

perfurada no ralador, em substituição das pedras aguçadas, dentes ou espinhos.

O con hecimento do cão - utilizado pelos índios para perseguir os animais e forçá-los a abandonar os esconderijos — associado ao uso de armasde fogo facilitaram o esforço de caça. A utilização de armas européias, incluindo as de fogo, aumentou a eficácia das expedições e alterou os padrõesguerreiros, mas o incremento do clima de conflito provocou uma mudançanas estruturas dos assentamentos indígenas, generalizando-se a construçãode paliçadas. A lguns autores suspeitam que a utilização de barro nas construções indígenas se deve também à influência lusitana.

Tend o-se revestido o processo d e aculturação em terras brasílicas deum caracter recíproco, também os p ortugueses assimilaram produtos, objetos, estilos de vida e, até, táticas guerreiras aborígines, como a das emboscadas.

Um dos hábitos ameríndios que mais arraigadamente se entranharamnos costumes dos colonos foi o do consumo de tabaco, largamente utilizadonas sociedades indígenas com finalidades mágico-religiosas e m edicinais, masque era também fumado e mascado conforme o comprova a descobertaarqueológica de cachimbos. E ssa prática divulgou-se de tal forma que o primeiro bispo do Brasil condenou publicamente o donatário do Espírito Santo,

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Vasco Fernandes Coutinho, por praticar o rito gentílico de "beber fumo"como os plebeus. No decênio de 1580, um jesuíta censurava grande partedos portugueses que viviam n o Brasil por "beberem este fumo, e o têm porvício, ou por preguiça, e imitando os índios gastam nisso dias e noites".

O hábito de fumar terá sido introduzido em Portugal por Luís de Góis,

um dos companheiros de Martim Afonso de Sousa na fundação de SãoVicente e que v eio, posteriormente, a ingressar na Companhia de Jesus. Oembaixador gaulês N icot conheceu o tabaco em P ortugal, remeteu amostrasa Catarina de M édicis com recomendações sobre as suas virtualidades medicinais, tendo-se d ivulgado, inicialmente, na França com a designação de"erva da rainha" e, depois, em homenagem àquele diplomata, passado achamar-se "nicotina".

As mulheres portuguesas preparavam diversas especialidades culinárias com base nos derivados da mandioca, como os beijus, bolos semelhantesa filhos, feitos com farinha e condimentados com leite de coco, açúcar ebordados de canela e, a partir da tapioca (fécu la alimen tícia da mandioca), a

"tapioca-molhada" ou "tapioca-de-coco". C om a carimã (farinha seca fina)aquecida faziam "muito bom pão, e bolos amassados com leite e gema deovos" e outras "mil invenções" que eram sobremaneira apreciadas.

Segund o Gabriel Soares de Sousa, um senhor de engenho do Recôncavo B aiano, que concluiu e m 1587 a redação da sua obra Notícia do Brasil,

as mulheres portuguesas confeccionavam com amendoim "todas as coisasdoces, que fazem das amêndoas, e cortados os fazem de açúcar de misturacomo os confeitos. E também os curam em peças delgadas e compridas, deque fazem pinhoadas". Várias frutas, além de consumidas frescas, eram também utilizadas para fazer conservas (ananás) e marmeladas (ibá, camuci earaçá) que, já em 1561, eram enviadas para Portugal para tratar os enfer

mos. O s cruzamentos étnicos de portugueses com ameríndias e negras, bemcomo entre as diversas variantes possíveis, contribuíram para criar uma sociedade fortemente miscigenada, do ponto de vista biológico, na qual osintercâmbios lingüísticos, religiosos, técnicos, botânicos e zo ológicos geraram uma cultura portadora de uma profunda originalidade.

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V-^u riosam ente, a mod alidade inicial que o sentimento nativista assume nas crônicas do primeiro século de colonização (1532-1630) não consiste, como ocorrerá adiante, na afirmação da originalidade da nova terra,mas ao contrário no orgulho pela lusitanidade que já caracterizaria a vidacotidiana nos principais núcleos de povoamen to. Gândavo , por exemplo, jádescrevia o Brasil como um a "nova L usitânia"; o padre Cardim afiançava:"Este Brasil é já outro P ortugal".

O fenômeno torna-se compreensível quando se tem em mente a pers

picaz observação de Stuart B . Schw artz segundo a qual, "em termos sociaisou religiosos, o Brasil foi criado para reproduzir P ortugal, não para transformá-lo ou transcendê-lo", asserção, aliás, igualmente v álida para os estabelecimentos criados no hemisfério pelas demais nações européias, com exceçãoda No va Inglaterra, vale dizer, de Massachusetts, onde a rigorosa motivaçãoreligiosa dos colonos insuflou o projeto de um a nova S ion, de uma sociedadeparalela destinada a realizar, desse lado do A tlântico, as aspirações religiosas e polít icas da Reforma, frustradas p elo anglicanismo, o que, nesse caso,emprestava ao adjetivo o significado de uma ruptura, ausente das outrasdesignações. Dessa ambição de prolongar o Velho Mundo no Novo, a prática de apor-se às áreas conquistadas os nomes das regiões ou dos países

donde eram originários os seus fundadores: Nova Espanha, Nova Galícia,Nov a Granada, Nov a Ext remadura , Nova França , Nova Holanda. A par demanifestação afetiva, tais denominações exprim iam de forma abreviada u mmesmo program a colonial.

A o designar de No va Lu sitânia a capitania que lhe doara d. João III , daboca meridional do canal de Santa C ruz à foz do São Francisco, o donatárioDuarte Coelho não se apartou da praxe. O chamado foral que concedeu àvila de Olinda e suas cartas a el-rei são invariavelmente datadas d' "estaN ova Lusitânia", jamais de Pernambuco. C ontudo, Nova L usitânia tampoucovingou. Ao menos desde os anos sessenta do século XVI, empregava-se o

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topônimo tupi, originalmente utilizado apenas para designar o ponto do litoral, na terra firme fronteira à ilha de Itamaracá, onde se situara a feitoria deCristóvão Jaques, topônimo posteriormente adotado para o ancoradouro dafoz do Capibaribe-Beberibe. Falecido o primeiro donatário, a correspondência oficial consagrou o costume, embora a viúva, d. Brites de Albuquerque,

teimasse, provavelmente por fidelidade à memória do marido, em referir-seà N ova L usitânia, termo que já na "Prosopopéia" viria a adquirir travo literário e erudito. Procurou-se também conciliar as denominações em "P ernambucoda N ova L usitânia"; e o autor da relação do naufrágio alude mesm o à "capitania de P ernambuco, das partes do B rasil d a nova Lusitânia". Só excepcionalmente Nova Lusitânia foi empregado para designar toda a Américaportuguesa, com o fez Brito Freire, no século subseqüente, na sua história daguerra holandesa. Na E uropa, adotou-se naturalmente o uso que se imp use-ra na terra. A correspondência dos cônsules ven ezianos em L isboa menciona a "terra di Pernambuci"; e o relato da expedição de James Lancaster falasempre de "Fernambuck", e do pau-brasil, como de "pau de Pernambuco",costume que seguirão os holandeses, que chamaram a madeira "Pernambucohout". A designação de pernambucanos para os moradores e os naturais dacapitania não se fez, portanto, esperar. Assim, já os denomina frei Vicente doSalvador, o qual, contudo, ainda intitula seus conterrâneos os baianos de "osda Bahia".

A preterição sofrida pelo nome de N ova L usitânia fora a mesma que jávitimara o de Santa C ruz, inicialmente conferido à América portuguesa, substituição muito criticada então por João de Barros e por Pedro de Mariz.Gândavo insistiu no emprego d a primitiva designação, pois a de Brasil foradada pelo "vulgo m al considerado", soando m ais agradavelmente a ou vidoscristãos o nome de um lenho em que se realizara o mistério da Redenção e

não o de uma madeira que servia apenas para tinturaria. Também protestoucontra a mudança o autor dos Diálogos das grandezas do Brasil, talvez porcautela de cristão-novo. O fato é que a escolha de Nova Lusitânia denota,no primeiro donatário, certo gosto das hum anidades, sabido que o empregode Lusitânia constituiu novidade dos fins do séc ulo X V trazida pelo renascimento dos estud os clássicos, que haviam identificado o s portugueses aoslusitanos sublevados outrora contra a dominação romana. Quando se iniciava a colonização do Brasil, Lusitânia e lusitanijà eram vocábu los que circulavam nas obras de autores portugueses e estrangeiros, o que poderiareforçar uma das explicações aventadas para o nome de O linda. Rejeitando

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a versão, que considerava ridícula, segundo a qual ele teria nascido da exclamação de um criado de Duarte Coelho extasiado diante da beleza do sítioem q u e se ergueria a vila, Varnhagen sugeriu que ele adviria d e "alguma casa,quinta ou burgo" cara a Duarte Coelho, ou de uma das personagens femininas do Amadis de Gaula, novela de cavalaria então na moda. Em conseqüência, o mesm o gosto literário que o levou a batizar su a capitania d e NovaLusitânia pode tê-lo induzido a designar a urbe fundada no ângulo do mar edo B eberibe com o nome de uma heroína de romance. Destarte, ficaria afastada a objeção levantada por Sérgio B uarque de Holanda, segundo a qual,caracterizando-se O linda no Amadis pela qualidade de "mesurada", isto é,de comedida, resultaria incompatível com as inclinações de povoadores rústicos. Que Duarte Coelho não o fora, já percebera havia muito o historiadorPedro de A zeved o, que chamara a atenção para sua inclinação a empregarexpressões latinas na correspondência com el-rei.

A substituição de N ova Lu sitânia por Pernambuco simboliza no planoda toponímia a mutação que viria a sofrer o programa colonial do primeirodonatário. Nas entrelinhas das suas cartas dá para perceber que sua resistência às pressões da coroa visando à busca de m etais preciosos e sua oposição ao corte de pau-brasil, atividades eminentemente d ispersivas do esforçocolonizador, por conseguinte, comprometedoras da estabilidade da capitania, resultavam d o seu projeto de criação de uma colônia baseada na produção de açúcar por número reduzido de engen hos, que concentrariam a etapafabril e que moeriam a cana de uma classe média de agricultores, encarregados do cultivo d a cana. Tratar-se-ia, portanto, menos de uma Nova Lusitâniado que de uma Nova Madeira. Nos anos imediatamente anteriores à suachegada à terra, Duarte Coelho servira como capitão-mor de armadas noAtlântico, ocasião em que terá podido conhecer o sistema agroindustrial daM adeira, que foi verdadeiramente o mo delo da sua experiência brasileira,

inclusive sob o aspecto de certa diversidade d a produção exportável, que alifoi o vinho e entre nós o algodão, de maneira a evitar as distorções damonocultura da cana, de cujos inconvenientes ele teve plena consciência,como se vê d o seu elog io da lavoura de subsistência. Embora tenha solicitado licença regia para importar escravos da Guiné, no seu espírito a NovaLusitânia deveria ser a chasse gardée não dos detentores do equipamentofabril mas de um a classe de m édios e pequ enos produtores que se valendosubsidiariamente da mão-de-obra servil, com o ocorria na M adeira, representaria a espinha dorsal d a colônia. Donde informar certa feita haver agido

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contra os "donos dos engenhos [que] queriam esfolar o povo", isto é, oslavradores que lhes forneciam a matéria-prima e os víveres.1

Desde finais do século XV, vigia n a M adeira um sistema misto em queo açúcar desempenhava o papel hegemônico, mas não exclusivo, graças àpresença d a vinha e da cultura tritícola, que haviam originalmente predominado na ilha. Como assinalaram Virgínia Rau e Jorge Borges de Macedo,devido às condiçõe s eco lógicas e à disponibilidade limitada de terras ará-veis, forjara-se ali uma paisagem agrária bem diversa da que o açúcar virá acriar nos espaço s continentais do B rasil. A topografia acidentada d a Madeira favorecia a irrigação por meio das levadas, cuja técnica seus peritos trouxeram inclusive para nós; ela também causou o parcelamento intenso dos"poios", isto é, dos terrenos agricultados. Essas condições , com o também aprópria tradição da agroindústria açucareira do Mediterrâneo, induziram aseparação entre o cultivo da cana e o fabrico do açúcar, o engenho locali-zando-se à distância da matéria-prima indispensável às suas moendas.Destarte, via d e regra os proprietários de fábricas não possuíam canaviais.O regime da terra caracterizou-se, portanto, pela m édia e p equena propriedade. A um número restrito de fábricas, correspondia um número amplo delavradores de cana, que não se podiam evidentemente dar ao luxo de recorre r maciçamente ao trabalho escravo.

Embora os engenh os madeirenses o utilizassem subsidiariamente, es setipo de mão-de-obra concentrava-se no me io urbano, indício de uma escravatura de feitio m editerrâneo, doméstico e artesanal, desvinculada d o camp o , a exemplo d o que acontecia n o Portugal metropolitano, onde os africanosadensavam-se tã o somente em I isboae cidades principais, exceção d a grandepropriedade alentejana, sendo também empregados na exploração do sal.Na Madeira dos primeiros decênios do século XVI, apenas 16% dos produtores de açúcar são donos de escravos. A grande maioria deles (89%)não possui mais de cinco e os que detêm maior número não dispõem de maisde 14. O valor da mão-de-obra limita-se a 5% do investimento açucareiro.Se ao longo de Quinhentos, a presença africana aumentou, isto se deveu à

1 Cartas d e Duarte Coelho a el-rei, ed. J. A. Gonsalves de Mello e Cleonir Xavier de Albuquerque(Recife: 1967), pp. 46-7. A leitura paleográfica deste trecho acrescenta: "amtes vou comtra opovo que com tra os donos dos enjenhos mas ha negra cobiça d o mundo he tanta que turba o juizoaos homens para não comsederem no que é razão e justiça" (pp. 48-9). É evidente, porém, que,à luz do sentido do período, o escriba donatarial escreveu por inadvertência "contra o povo " emlugar de "com o povo".

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proximidade da costa africana e ao papel desempenhado pela ilha nodevassamento d essa região. Como acentuou Alberto Vieira, a M adeira nãoconheceu a simbiose entre o açúcar e o escravo que se verificou nas Canáriase sobretudo no Brasil e no C aribe. Certa tonalidade democrática manifesta-se na presença de fidalgos, comerciantes, artesãos e funcionários da coroaentre os lavradores de cana. A o passo que a etapa produtiva tinha assim um afeição eminentemente lusitana, a comercialização achava-se sob o controlede florentinos, genoveses e flamengos, os quais, porém, terminarão porsedentarizar-se em proprietários de engenhos . A descrição feita por DuarteCoelho da estrutura social da sua donatária poderia ter sido copiada da queexistia na M adeira, mediante a simp les substituição da referência aos algo-doais pela alusão à vinha e ao trigo:

Entre todos os moradores e povoadores, uns fazem engenhos de açúcar porque sãopoderosos para isso, outros canaviais, outros algodoais, outros, mantimentos, que éa principal e mais necessária coisa para a terra, outros usam de pescar, que também émuito necessário para a terra, outros usam de navios que andam buscando mantimen

tos e tratando por terra conforme ao regimento que tenho posto, outros são m estresde engenhos, outros mestres de açúcares, carpinteiros, ferreiros, oleiros e oficiais deformas e sinos para os açúcares e outros oficiais.2

Essa Nova Madeira do projeto donatarial não sobreviverá ao derradeiro quartel do século XVI, vale dizer, ao boom açucareiro iniciado nosanos setenta mercê do avanço d a fronteira agrícola pela mata pernambucana.Quando Duarte Coelho faleceu (16 54), sua capitania er a apenas a "ilha", nosentido freiriano da expressã o, compreendida entre Igaraçu ao norte, e várzea do Capibaribe ao sul; nela, situavam-se as cinco fábricas de açúcar existentes. A expansão territorial não foi obra do primeiro donatário, mas dosseus filhos e do seu cunhado, Jerônimo de A lbuquerque, que a pretexto dahostilidade do gentio encetaram, a partir dos anos sessenta, a conquista daárea litorânea entre os m ontes G uararapes e a região de Porto C alvo. M aistarde, ocupou-se a terra firme de Itamaracá, fronteira à ilha homônima, pe-netrando-se pelos vales do Araripe, Itapirema e Catuama mas, sobretudo,pela várzea do Goiana. Deu -se início à colonização da Paraíba, fundou-se avila de Natal (1 599) e avançou-se pela metade meridional de A lagoas. Abriu-

Alberto Vieira, "Escravos com e sem açúcar na Madeira", em Atas do Seminário Internacional,Funchal, 1996. pp. 93, 102.

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se assim à iniciativa dos colon os toda a franja marítima do Rio Grande doNorte ao São Francisco. Ao constituir-se em Brasil holandês, essa regiãoera predominantemente latitudinal, de vez que no rumo oeste a ocupaçãonão ultrapassara os setenta quilômetros. N a ribeira do Capibaribe, Mussurepeera o extremo dos canaviais, embora a fronteira de roçados e de currais seprolongasse até a altura de Lagoa do C arro ou Lim oeiro, onde a cartografiaholandesa registrará os derradeiros topônimos. Fora sobretudo pela várzeado C apibaribe que se adentrara essa modesta ocupação e onde se verificaramaior proporcionalidade entre a área de produção açucareira e a de subsistência. N a várzea do Pirapama, a penetração ainda não alcançara o pontomédio da bacia fluvial. Na d o Sirinhaém, os canaviais cessavam na confluência com o C amaragibe, vale dizer, a cerca de 10 km da vila. No rio Formosoe em Una, a ocupação agarrava-se ainda mais ao litoral.

O solo e a topografia do sul pernambucano prestavam-se à culturaextensiva da cana bem melhor que os do núcleo histórico duartino. Osgeógrafos costumam distinguir a mata norte e a m ata sul, separadas grossomodo pelo paralelo do Recife. D o ponto de vista geológ ico, elas se diferenciam graças ao fato de que, enquanto a mata norte engloba, junto ao terraçolitorâneo, uma subzona d e tabuleiros sedimentares e, a poente, outra subzonacristalina, esta última estrutura é a que domina na superfície da mata sul. Doponto de vista climático, embora ambas as zonas sofram a diminuição d ostotais pluviométricos no sentido leste-oeste, ela se faz sentir mais fortementen a mata norte do qu e n a mata sul. Daí q u e a mata norte e a mata sul tambémsejam designadas como mata seca e mata úmida, embora a utilização simultânea d o critério estrutural introduza n a mata norte a distinção entre a subzonasedimentar a leste, e a cristalina, a oeste. A cultura da cana teve de adaptar-se a estas con dições. Enquanto na mata norte os canaviais ficaram circunscritos às várzeas quaternárias recortadas pelos tab uleiros, às várzeas f luviais

e às en costas suaves, fugindo das chãs e dos tabuleiros interflúvios, n a matasul eles podiam caminhar desimpedidamente pela superfície de "meias laran

j a s " , poupando apenas, para fornecimento de lenha aos engenhos, os cimosdas colinas, onde se refugiaram os restos da mata atlântica.

Se me detenho no caso pernambucano, não é apenas pór conhecê-lode perto, mas também porque ele permite observar, mais nitidamente do quena Bahia o u n o R i o , a liquidação d o modelo m adeirense pela continentalização,que tornava disponíveis terras mais planturosas, viabilizando o recurso maciço à mão-de-obra servil, indígena e africana, e encorajando a monocultura.

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C omo pressentiu Gilberto Freire, a experiência barbadiana de meados deSeiscentos, que se situa n o extremo oposto d a madeirense, ajuda a compreender, graças a essa polarização, a mudança por que passou a Nova Lusitânia,do falecimento de Duarte Coelho ao final de Quinhentos. O Pernambucopós-duartino foi em vários sentidos a prefiguração de B arbados; e se o d omínio da grande lavoura não atingiu entre nós o ponto a q u e chegou naquelailha do Caribe, foi sobretudo graças ao contrapeso oferecido pela conti-nentalidade brasileira, isto é, pela oferta de terras, e pela presença de população nativa, condições ambas inexistentes e m Barbados. Aí, n os dois primeirosdecênios, os colonos ingleses experimentaram sucessivamente, sob o regimede engajamento (indentured service), com o fum o, o algodão e o anil, todosvitimados no curto prazo pela instabilidade do mercado internacional. Emmeados do século XV II, com a insurreição pernambucana contra o domínioholandês, o açúcar deu-lhe finalmente a oportunidade de que necessitava,substituindo rapidamente o trabalho engajado pelo africano e prom ovendouma concentração acelerada da propriedade da terra.

Entre n ó s , com o na M adeira, o engenho de açúcar constituiu inicialmentea prolongação da loja, do comércio e da vida urbana. As primeiras fábricasforam edificadas nos arredores de Olinda, como o engenho do Salvador doM undo, levantado po r Duarte C oelho, e o de Nossa Senhora d a Ajuda, erguid o p o r seu cunhado. A quem inicialmente afoitou-se a construí-los a distância,podia ocorrer o que ocorreu a D iogo F ernandes, cujo engenho de Camaragibefoi destruído pela indiada hostil. P or outro lado, a Olinda ante bellum concentrou as funções urbanas do comércio de importação e exportação e de sededas autoridades civis e eclesiásticas, o que já não se verificará a partir dodomínio neerlandês. O engenho er a sobretudo a fábrica, isto é, o equipamentomanufatureiro, de ver que as atividades agrícolas estavam terceirizadas, prevalecendo um grau importante de integração d as etapas comercial e industrial,o que eqüivale a dizer que a propriedade do engenho correspondia freqüentemente ao comerciante olind ense, características bem distintas d a s q u e dominarão no Pernambuco post bellum. A s casas-grandes que pintou Franz Posteram, segundo Robert C. Smith, "uma transcrição quase literal do tipo maiscomum das casas rurais da mãe-pátria", marcado "desde o Minho e Trás-os-M ontes e p or toda a Beira Alta e a Beira B aixa" pelas mesm as características:"os mesmos esteios no andar térreo usado para depósito, as varandas abertase as escadas externas, quer no centro quer num dos ângulos da fachada, e osmesmos telhados d e quatro águas e cumeeira d o Pernambuco d o século X V Q " .

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Tipo de habitação que persistiu já entrado o século X IX , embora passasse aser construído co m material nobre e se tornasse m elhor acomodado às exigências de conforto de um grupo social que entrementes abandonara a vidaurbana pela rural. E ste primitivismo ante bellum tinha sua razão de ser inclusive no fato de que a existência cotidiana do grande proprietário rural ainda

encontrava-se presa à vila, pois mercê da mod éstia d as distâncias que prevalecia antes da co ntinentalização, ela transcorria entre a d upla residência d a vilae do campo.

N os paisagistas n assoviano s, já se pode visualizar o decantado "triângulo rural", isto é, o m odelo de organização espacial do engenho de açúcar(casa-grande, fábrica e capela), transportado, armas e bagagen s, da M adeira para o B rasil, sem criação nossa, no m áximo adaptações às circunstânciasmais anchas da ecologia da mata. Embora esses edifícios desconhecessemoriginalmente uma disposição rígida entre si, a iconografia holan desa já indica as linhas de força do seu assentamento em termos da ocupação dos n íveisdo terreno: a instalação da fábrica na proximidade do curso d'água de que

depende para a força motriz e para outros usos ; a construção da casa-grande na parte mais elevada do terreno, via de regra, na meia encosta, em d ecorrência da necessidade prática de controle das atividades e d o imperativosimbólico de expressão de dom ínio; e a ereção da capela ao mesm o nível dacasa-grande ou mais acima, conotando a predominância do Sagrado. Sómuito depois, esse ordenamento assumiu moldes mais estáveis sob a formade um pátio retangular, disposição que Geraldo Gomes, único estudioso aocupar-se competentemente do assunto, sugeriu que pode ter resultado doexem plo das co lônias açucareiras do C aribe, divulgado entre nós por publicações c om o O fazendeiro do Brasil e do Manu al do agricultor brasileiro , editados em fins de S etecentos e em m eados da centúria seguinte.

N a esteira da continentalização, as sesmarias são generosamente co ncedidas, os partidos de cana se fundam pelas várzeas, as fábricas de açúcarse levantam à beira dos cursos d'água, as casas-grandes n a eminência próxima, m as a toponímia d os engen hos resiste a aderir aos nom es da terra. EmPernambuco ou na Bahia, seguiu-se ao longo de Quinhentos o costumemadeirense de designar o engenho pelo nom e do seu proprietário: "engenhode Pero Cardigo". Quando se possui mais de um engenho, a distinção écronológica: "engenho v elho de Fernão Soares", "engenho novo de FernãoSoares". Quando, no passar do tempo, o nome do dono for abandonado, apropriedade passará a chamar-se apenas d e engenho Velho o u engenho Novo .

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Essa nomenclatura tornou-se insuficiente ao se acelerarem a tendência aoarrendamento e a transmissão por venda ou herança da propriedadeaçucareira; e, sobretudo, durante o período holandês, d evido à renovaçãosubstancial dos quadros açucarocráticos. (Daí te r sido as autoridades batavasa adotar a prática, em seu s relatórios, de designar os engenho s segund o o s

oragos ou o topônimo indígena.) Como n a M adeira, o termo "engenho" ainda não se havia generalizado para o conjunto da unidade produtiva, masaludia apenas às instalações fabris, que só muito posteriormente serãodistinguidas pela denominação de moita. Em lugar da expressão "engenho",usava-se a voz "terras" ("terras de Pero Dias da Fonseca") ou "fazenda"("fazenda d e Vicente Correia"). Enquanto a primeira parece indicar a propriedade fundiária que extrapola a utilização açucareira, servindo à criação degado o u ao cultivo d e subsistência, "fazenda" referia-se à parte agrícola doconjunto açucareiro, como ainda ocorrerá no século XLX .

Som ente a partir de finais de Quinhentos, insinuam-se o s dois outroscritérios que substituirão vinte, trinta anos depois, o costume de usar o nome

do proprietário. O primeiro é o nome do orago, cujo êxito dependia daprática de s e dotar de capela o engenho de açúcar, prática que então distavade ser geral: "engenho d e São Brás". O segundo critério é o topônimo indígena:Araripe, do nome do rio em cuja margem a fábrica se ergueu. Escusadoassinalar que am bos critérios podiam ser usados para a mesma propriedade:A gostinho de Holanda preferia designar seu engenho por Santo Ago stinho,ao passo que seu feitor já o invoca p elo topônimo indígena, Subipema. M asnos documentos oficiais, a designação segundo o nome do proprietário resistiu por mais tempo, m esmo se na vida real ela e ra progressivamente abandonada. Quando Diogo de Campos Moreno redigiu a primeira versão do"Livro que dá razão do Estado do Brasil", os engenhos da Paraíba,

Pernambuco e Bahia foram sistematicamente listados pelos nomes dos don o s , critério também adotado por José Israel da Costa na sua relação de1 6 2 3 . Recurso com preensível em v ista de que essas listas foram elaboradascom base em documentos de natureza fiscal, em que o relevante era o nom edo contribuinte. O m esmo pode ser dito acerca do "livro das urcas", documento alfandegário. Num texto oficial de meados de S eiscentos, já expulsosos holandeses, os engenhos ainda eram majoritariamente relacionados segundo os proprietários.

A ambição de fundar uma Nova Lusitânia, mesmo quando esta designação já fora descartada, resistiu quanto pôde, e muitas veze s sutilmente,

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aos efeitos d a continentalização. N o começo do século XV II, o companheiro de La Ravardière, preso com ele em Olinda após a liquidação da presença francesa no Maranhão, observava que "os descendentes dos primeirosconquistadores não diferem em nada, em costum es e hábitos, dos de Portugal". Bast a percorrer as páginas da visitação inquisitorial, vinte e tantos anosantes,

para topar com o teor eminentemente reinol que ainda tinha o cotidiano colonial, devido, inclusive, à segregação d a escravatura africana nos engenhos, uma das razões da sua presença rala, quase imperceptível, nadocumentação do S anto Ofício. A vila pertence aos reinóis e a seus descen dentes, cujo serviço doméstico está freqüentemente a cargo de índias emamelucas, sem falar em que certas atividades subalternas eram monopolizadas po r imigrantes portugueses do sexo mascu lino antes de serem relegadasno século XV II aos escravos ou à população mestiça mais livre de ambos ossexos. Então, O linda ainda nã o possuía mercado de africanos, os quais eramvendidos no porto do Rec ife. O preto que se atrevesse a aparecer n a vila poriniciativa própria corria o risco de ser delatado e recambiado para o meiorural. O autor dos Diálogos das grandezas simplesmente ignorou a existência de escravidão ao descrever a estrutura social da capitania, praticamentenos mesmos termos em que o fizera Duarte Coelho setenta anos antes. E,contudo, na altura em que ele escrevia completava-se, como demonstrouStuart Schwartz, o p rocesso de adoção do trabalho africano nos engenh os,incentivado pelo avanço da fronteira agrícola e p elos preços do açúcar.

O Brasil estava deixando de ser a Nova Lusitânia para transformar-sena Nova Guiné, de que falava Brandônio, preocupação que ele partilhava,entre muitos, com o próprio governador-geral d. Diogo de Meneses. Esteopinava que o gentio da terra devia proporcionar a principal mão-de-obra,de modo a evitar "tanto negro de Guiné", causa do endividamento crescentedos colonos. Mas se a longo prazo a ocupação de novos espaços condenarao projeto duartino, o crescimento da riqueza colonial dela decorrente permitiu que, no curto, a colônia pudesse entreter a ficção de ser o prolongamentoamericano de Portugal. Um ex emplo, entre muitos, da persistência dos mo delos de vida urbana dizia respeito à con dição feminina. Já Gilberto Freirehavia percebido que "nos primeiros tempos de colonização [...] a mulhergozou de uma liberdade maior de ação". E, com efeito, a leitura da documentação inquisitorial passa a impressão de certa autonomia feminina, quevirá a ser reprimida pela ruralização da vida colonial e pela conseqüentereclusão das mulheres dos grupos privilegiados, inclusive as restrições cria-

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das para o seu deslocamento, que se fazia naqueles andores de pau-de-jangada a que se referiu Brandônio, e, sobretudo, em redes. O autor dosDiálogos faz, aliás, o elogio da rede como m eio de transporte sobre a cadei-rinha, com o em P ortugal, e sobre o palanquim, como na índia.

Veja-se também o caso dos artesãos. Sua quase totalidade compunha-se de reinóis, indivíduos de origem rural, rebentos de lavradores pobres ouremediados para quem a atividade mesteiral representava u m a promoção social. Fenômeno específico da nova terra? Nada d isso, pois a instabilidade e aimprovisação tam bém caracterizavam os quadros corporativos no reino. Portugal desconheceu uma tradição gremial sólida e suas corporações de ofíciodatavam apenas de um século, su a regulamentação só se processando ao longo de Quinhentos e de Seiscentos. A organização dos mesteres resumia-se àconcentração urbana segundo as principais especialidades e à incorporaçãode confrarias religiosas que funcionavam como entidades de benemerência,estas últimas transplantadas para o Brasil. Não prevaleceu assim a rigidezinstitucional d e outros países da Europa, inclusive no tocante ao grau de treinamento e de conhecimento da arte que se exigia do oficial que a praticava,campeando a tolerância n a aplicação das regras. É no cotidiano mesteiral quese pode melhor entrever a vigência do modelo de relações cidade-campoimportado do reino, que resistirá inutilmente à continentalização. Os artesãosresidem em Olinda, atendendo indiferentemente a clientela urbana e a rural,como se vê no caso do pedreiro Pero da Silva, cujas andanças em períodorelativamente breve podem ser reconstituídas. Além d as obras feitas no telhado olindense de João Nu nes, ei-lo trabalhando em P aratibe, no Cabo e emJaboatão. Outros artífices independentes e nomádicos, m oradores na vila, surgem de empreitada pelos engenhos, gozando, relativamente à grande propriedade, de uma independência maior do que virá a ocorrer, embora já se façamnotar os primeiros efeitos da expansão territorial n a tensão entre a liberdade da

empreitada e a absorção da mão-de-obra mesteiral pelo engenho sob a formade salário. Ademais dos artesãos que se assoldadam por empreitada ou porcurtos períodos, já são freqüentes os que se estabelecem mais duradouramente, sobretudo carpinteiros, dos quais se necessitava de inverno a verão,inclusive na entressafra, quando se efetuava o "apontamento", isto é, a manutenção do equ ipamento fabril.

Esses carpinas são particularmente numerosos na população mesteiralde Pernambuco de finais de Quinhentos, que vive uma fase de acentuadocrescimento econômico. Deles necessitavam os engenhos para levantar a

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casa-grande e o s dem ais edifícios; para a feitura das moendas, dos carros deboi e das embarcações; para a confecção das caixas de açúcar; e enfim paraa renovação e reparação periódica de todo esse equipamento. Um séculodepois, eles ou já estarão substituídos pela mão-de-obra servil ou entãodefinitivamente integrados ao salariado dos engenho s. N o Pernambuco de

finais de Quinhentos, o ofício possuisu a

hierarquia especializada. A nata eracomposta de "carpinteiros de engenho", também chamados "mestres de fazer engenho", que num caso excepcionalmente bem-sucedido, ascendeu àcondição de senhor; no outro extremo, a de "carpinteiro de carro", muitodemandado num sistema de produção em que o transporte d a matéria-primano interior do engenho e do açúcar encaixado para os trapiches estava acargo dos carros de boi. O oleiro é outro ofício muito procurado no meiorural, embora não requeresse a assiduidade do carpina, tanto assim que notempo de A ntonil ainda se debatia a necessidade da sua presença contínuano engenho.

Mesmo quando não assalariava o artesão, o senhor de engenho de

Quinhentos tinha todo interesse em tê-lo à m ã o e em evitar os inconvenientesda concorrência, para o que já se lhe começava a conferir o status de morador, com a possibilidade de trabalhar para terceiros quando não fosse necessário. É assim q u e a documentação inquisitorial identifica com o moradoresde engenho até mesmo um imaginário, um marceneiro, um sapateiro, umferreiro e um seleiro, este últim o antepassado distante do mestre José Am aro,do Fogo morto, de José Lins do R ego. M as não havia que se fiar nessesartistas de beira de estrada, que se tornavam muitas vezes tão impontuais einconfiáveis quanto os da vila. Que o dissesse o senhor do engenho do M eio,homem arreliado de seu, o qual tendo entregue a um deles o conserto de umacaldeira, só conseguiu tê-la de volta após invectivá-lo com expre ssões des

respeitosas a Deus e à Virgem Maria, que lhe custariam um processo peloSanto O fício. Para as demais tarefas, a demanda do engenho era esporádic a; e de tais artesãos, os engenhos da várzea do Capibaribe ou de Igaraçudispunham n a vila. A coisa só m udava de figura n as fábricas sitas em freguesias apartadas, que ainda não avizinhavam povoaçõe s su ficientemente importantes para atraí-los. Ne ssa dificuldade bem com o na do pagamento desalário estarão a longo prazo os incentivos ao treinamento de escravos. Este,por enquanto, ainda não se pratica, pois os mesteres são monopolizadospelos filhos do reino e pelos naturais da terra.

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Caberia ainda deter-se em outros aspectos do feitio lusitano da existência, a que se referiam com indisfarçada satisfação os cronistas do séculoXVI. Pode-se, inclusive, reconstituir o projeto colonial da Nova Lusitâniaatravés da paisagem que os colonos procuraram implantar entre nós mediante a aclimatação de espécies vegetais do reino. De Pernambuco, o já men

cionado companheiro de La Ravardière dirá: "o que faz as coisas maisagradáveis é que agora se encontra comumente n o país o que lhe era exóticono passado. Pois que a curiosidade dos portugueses, querendo todas ascoisas na medida do seu gosto [...] levou-os a transferir para ali muitas plantas estrangeiras, tanto da Europa quanto da África". Fundamental foi a esterespeito o papel dos jesuítas. As casas da Companhia de Jesus possuíaminvariavelmente suas "cercas", isto é, pomares e h ortas, aonde era um prazermerendar ao ar livre como n o colégio de O linda, "o melhor e o mais alegreque vi no Brasil", segundo o padre Cardim, nada ficando a dever aos dePortugal, com su a horta "muito grande, e dentro nela um jardim fechado commuitas ervas cheirosas e duas ruas de pilares de tijolo com parreiras e umafruta que chamam maracujá",

um grande romeiral de que colhem carros de romãs, figueiras de Portugal e outrasfrutas da terra. E tantos melões que não há [como] esgotá-los, com muitos pepinos eoutras boas comodidades. Também tem um poço, fonte e tanque, ainda que não énecessário para as laranjeiras, porque o céu as rega.3

Olinda, como Salvador ou o Rio, estava cingida por um cinturão dehortas em que se cultivava toda sorte de vegetais da metrópole, inclusivediversas variedades de frutas de espinho. Ao invadir a capitania, os holandeses encontrarão "em todos os lugares [...] grandes e belos pomares e hortas,nos quais há de tudo", o que na pena de uma batavo não é pequeno e logio.

Até m esmo os moradores de Natal, "pobremente acomodados nas vivendasdas casas", eram abastados de legu mes de Portugal. Já houve, aliás, quemobservasse a semelhança entre o horto do colégio de Olinda e a cerca idealimaginada pelo autor dos Diálogos, o qual, leitor dos c lássicos, lembrava-sedecerto do velho tópico do jardim de delícias, herdeiro do locus amenus.Esse devaneio estético-utilitário será realizado anos depois pelo conde deNassau no seu palácio de Friburgo.

3 Fernão Cardim, Tratados d a terra e gente d o Brasil (3 . ed. São P aulo: Nacional, 1978), p . 197.

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86 E v a l d o C a b r a l d e M e l l o

Já se insinuavam, p orém, aqui e ali, as diferenças. E nquanto, no jardimdos jesuítas, só se admitira o maracujá, no de Brandôn io já existiam a goia-beira, o tamarineiro e o ananás, vegeta is nativos particularmente estimad ospelo sabor. E também se haviam adaptado vegetais africanos e asiáticos,graças a os jesuítas que transplantaram inc lusive o coqueiro, o qual inicialmente s ó existia nas hortas e quintais, donde se disseminou p ela franja costeira, cujos terraços marítimos haviam sido o hábitat do cajueiro. Dev ido àescassez de documen tação, mal se vislumbra a verdadeira mutação da paisagem ao impor-se o coqueiro do O riente ao cajueiro nativo, tão vinculado àalimentação e à cultura indígenas. Há muito os cajueirais fazem figura deparente pobre, tendo-se resignado a ceder a linha de frente aos cenográficoscoqueirais, que se tornaram um símbolo local, o biombo que oferecia aoviajante que vinha por mar a primeira visão da terra. Os naveg antes do primeiro século, como Pero Lopes de Sousa, enxergavam apenas uma terranonotonamente baixa, bem arborizada de bosques de cajueiros e dosmanguezais d a foz dos rios, e cortada, num ou noutro ponto, pela retaguardadas falésias que rematavam os tabuleiros. No litoral da índia, o coqu eiro eraa base imemorial de um com plexo econôm ico e ecológico, sendo uti lizadocomo material de construção civil e até de construção naval, como nasM aldivas. Da casca, a população fazia cuias de beber; na alimentação, con-sumiam-se-lhe a água e o miolo e fabricava-se o "copra", o azeite para osalimentos e para a iluminação. Dele também se tiravam aguardente, vinagre eaçúcar. Por fim, o ó leo tinha valor medicinal com o laxativo e no comba te aoreumatismo.

No período ante bellum, quase todos esses usos, que não provocariam surpresa no futuro brasileiro, pareciam insólitos às primeiras geraçõesde colono s portugueses, tanto assim q u e só m uito tempo decorrido da aclimatação do coqueiro começaram a contemplá-lo com olhos utilitários. Aindaao tempo de frei Vicente do Salvador, a única utilização do coco consistiaem co mer sua polpa e beber sua água, u so, na realidade, essencial, em áreaspraieiras afastadas de água potável, a não ser a da chuva. Markgraf, aoreferir às vantagens que se tiravam do co co na Am érica hispânica e nas Filipinas, praticamente o s me smo s que G arcia da Orta descrevera para a índia,menciona quanto ao B rasil apenas a água, "doce, fria e clara", seu leite, "como qual se cozinha arroz para iguaria", e as cuias feitas d a casca. Esses primeiros coqueirais vieram, com o tantas outras espécies vegetais e animais, através de Cabo Verde. N o caso de P ernambuco, é até possível datar os primeiros

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transplantes. Quando Nassau ajardinou seu palácio de Friburgo, mandoutrazer em carros de boi, d e três ou quatro milhas de distância, setecentosp é s , muitos do s quais septuagenários ou octogenários, o que significa q u e asárvores datavam das décadas de 1560 e 1570. Àquela altura, Gândavoainda não menciona o coqueiro m as nos anos oitenta ele surge nos pomares

dos colégios da Companhia de Jesus em Salvador, Ilhéus, Porto Seguro,mas não no de Olinda. Pouco depois, Gabriel Soares pretenderia que ocoqueiro se adaptara tão facilmente que, entre nós, produzia ao cabo decinco ou seis anos, ao passo que na índia seria necessário esperar vinte.Con tudo, tanto ele quanto Am brósio Fernandes Brandão e frei Vicente manifestaram a queixa de que os colono s do Brasil não sabiam aproveitá-lo.

O autor dos Diálogos das grandezas é, aliás, mais explícito, lamentando que não se fizesse o vinho de coco, nem se lhe utilizasse o azeite e nemsequer a palha. O coqueiro tinha de enfrentar os hábitos da terra, que privilegiavam seus próprios vegetais, e só poderia triunfar depois de provar suasvantagens, um p rocesso lento que im plicava vencer as inércias do cotidiano

material. P or isso, a primeira função do coqueiro n a Am érica portuguesa foimeramente ornamental. Com esse fim, Brandônio dispunha-se a plantá-lo noseu jardim ideal, aconselha ndo liricamente ao interlocutor:

porque não suceda invejardes os alamos e choupos de nosso Portugal, com que seornam grandemente semelhantes pomares e jardins, vos quero dar em seu lugar crescidos e alevantados coqueiros, que não menos zunido fazem com suas folhas açoitadas do vento.4

M as foi N assau quem tirou todo o partido decorativo da árvore. Sendoa ilha de Antônio V a z , n a descrição de Barléus, uma "planície safara, despidade arvoredos e arbustos que, por estar desaproveitada, cobria-se de mato",o conde resolveu sombrear seu palácio com avenidas de coqueiros, oferecendo um espaço de lazer aos habitantes. Essas alamedas, que frei Caladocomparou às famosas de Aranjuez, tinham o papel de delimitar o espaçoexterno e interno, circunscrevendo, de um lado, a área onde se ergueu oedifício e o próprio jardim, e, de outro, as áreas internas em que este últimose repartia: a área de recreação, a de serviço, os pomares, a de criação deanimais domésticos e o s grandes viveiros.

Ambrósio Fernandes Brandão, Diálogos das grandezas do Brasil, ed. por J. A. Gonsalves deMello (2. ed. Recife: Imprensa Universitária, 1966), p. 146.

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88 E v o l d o C a b r a l d e M e l l o

No fim da vida, Nassau recordava suas experiências de jardinagem,gabando-se de haver plantado, no decurso de sua vida no Brasil, na Alem anha e nos Países B aixos, "m ais de 40.000 árvores de toda espécie, sem falarnuma quantidade inumerável das mais comuns". Entre nós, plantara

principalmente coqueiros, d e 6 0 e 7 0 p é s d e altura e da espessura d e u m tonei, com asfolhas e os frutos, cerca de 2.000 ao todo, sem que um só tenha morrido, paraadmiração de todo o mundo e de todos os habitantes, que não haviam jamais vistoreplantar uma árvore, principalmente desta espécie e tamanho.5

Barléus falou de setecentos coqu eiros nas aléias de Friburgo, mas freiCalado, que passeou por elas, mencionou nada menos de dois mil, cifraidêntica à d e Nassau, de qu em provavelmente a ouviu. O provável é que estaúltima correspondesse ao total de coqueiros plantados pelo conde em todoo R ecife e não apenas em Friburgo. Nassau aboletara-se inicialmente numaenorme casa de construção portuguesa, existente na atual praça Dezess ete.A í, antes, portanto, da conclusão de Friburgo, ele criara um horto, o en tão

chamado "terreiro dos coqu eiros", atual praça da Independência, no espaçoentre sua residência e o Forte Ernesto (C onvento de S anto An tônio). Plantado o horto, Nassau abandonara a casa, vindo habitar nele. Esse primeirojardim nassoviano situava-se, po r conseguinte, no interior do chamado grootkwartier, que excluía a área ao norte do Forte Ernesto, onde veio a serconstruído Friburgo. Uma gravura de Mauriciópolis permite distinguir essescoqueiros, mais altos e densos, espiando de trás d as edificações que margeiamo rio, dos coq ueiros do jardim do palácio. O utra gravura, esta da B oa V ista,mostra claramente os dois hortos: o coqueiral mais denso sob a legenda"Mauritiopolis" e o coqueiral menor de Friburgo.

N os primeiros decênios de sua aclimatação em Pernambuco, o coquei

ro ainda er a be m raro, limitando-se aos núcleos de população e servindo dedecoração a uma que outra casa-grande de engenho. Uma gravura anteriorao incêndio de Olinda registra os coqueiros d o horto dos jesuítas, ao passoqu e a fachada marítima carece deles, vendo-se apenas terras baixas, areiais,vegetação rasteira e cajueiros, como ao tempo de Pero Lopes de Sousa.Uma gravura d a vila da C onceição (ilha de Itamaracá) representa coqueiros

5 "Mémoire", transcrito por J. A. Gonsalves de M ello, de Tempo d o s lamengos Rio de Janeiro:José Olympio, 1947), pp. 313-6.

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nas elevações mas não nas terras baixas de um e outro lado do canal deSanta Cruz. N a Paraíba, existia um pequen o coqueiral ao lado do forte damargem norte do rio. Em 1630, quando da invasão holandesa, os famososcoqueirais das praias olindenses ainda não existiam. M archando pela praiade Pau A marelo, Richshoffer divisava a vila sobre as colinas , o que não seriapossível caso eles já aí estivessem. Só n o burgo ele e a soldadesca puderam

ser providos de co cos. Por outro lado, quando das marchas pelo interior, ossoldados se dessedentavam com laranjas, limões e roletes de cana. O bosque, referido por Baers, situado ao norte de O linda, era provavelmente umamata d e cajueiros, pois sendo "denso e intrincado" não poderia correspondera um coqueiral. A substituição maciça do cajueiro pelo coqueiro ao longo donosso litoral, que comportou um a verdadeira revolução ecológica, foi, porconseguinte, fenômen o de longo prazo, posterior ao período holandês.

N esse s núcleos urbanos de Quinhentos, o estilo da existência materialvigente no reino resiste tã o brava quanto inutilmente ao impacto da continen-talização e da ruralização. A começar pelos hábitos alimentares. O s gruposprivilegiados mantêm-se fiéis à tríade can ônica d o trigo, do vinho e d o azeite.N os anos sessenta, ainda com anterioridade ao boom açucareiro, P ernambucojá e ra bem abastecido dos gêneros do reino. E em começos do século X VII ,Pyrard de Lavai observou que o Brasil importava toda espécie de víveresnão só de Portugal com o das ilhas, o que atribuía à produção insuficiente dacolônia, sem levar em conta a inércia dos hábitos alimentares dos habitantes.Frei Vicente verá "as casas dos ricos (ainda que seja à custa alheia, poismuitos devem quanto têm) providas de todo o necessário", inclusive da farinha de trigo trazida de Portugal ou de São Paulo. Ao tempo da invasãoholandesa, a situação não m udara, com o se conclui da carga das embarcações portuguesas apresadas pelos inim igos, rotineiramente carregadas daqueles artigos. O provável é que a aceitação dos produtos alternativos da

terra pela gente de prol só se tenha generalizado a partir da guerra ho landesa , que afetou o suprimento de gêneros reinóis e reduziu o nível de renda daaçucarocracia, e da ruralização dos modos de vida, que o conflito previsivel-mente apressou.

Destarte, nesse primeiro sécu lo, o uso da farinha de mandioca não foitão universal quanto se pretendeu. Informa An chieta que o pão de trigo eraconsum ido sobretudo em P ernambuco e na Bahia. Trinta anos depois, referem os Diálogos das grandezas que "alguns e não poucos usam também dep ã o , que mandam amassar e cozer em suas casas, feito de farinha que com -

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pram do R eino ou mandam buscar às casas das padeiras, porque há muitasque vivem desse ofício", c omo se verificava no reino, onde a profissão eraespecialidade feminina. Só quando as estreitezas da guerra complicaram oabastecimento, os luso-brasileiros transformaram o pão de trigo numa iguaria refinada, fazendo dele "tanta questão que o cobrem de açúcar", segundoM oreau. Pela gente de prol, a mandioca e ra preferencialmente ingerida sob a

forma de beijus, estimados por mais saborosos e de digestão mais fácil. Obeiju, aliás, já é invenção da arte culinária d as colonas, utilizando a matéria-prima d a terra à maneira de com o se fazia em Portugal com a farinha d e trigon a confecção de filhos mouriscas. M esmo quem , como era o caso dos jesuít a s , havia adotado a farinha de mandioca, não dispensava os outros gênerosda metrópole, como o vinh o e o azeite, além do vinagre, das azeitonas, dosqueijos e de outras coisas de comer. O vinho, sobretudo da Madeira e dasCanárias, mais resistentes ao transporte e ao calor, fazia parte do passadomesm o dos reinóis modestos. A despeito d a quantidade de vinhas cultivadasna terra ("nunca vi em Portugal tantas uvas juntas, com o vi nestas vinhas",confessava Cardim) e de em São Paulo fabricarem a bebida, o Brasil era

sempre abastecido pelo produto do reino. Do A lgarve, chegavam, adem aisdo vinho de A lvor, passas e figos. Importava-se até mesm o queijo de ovelha,embora no Rio G rande do Norte se fizessem queijos e requeijões à maneirade Lisboa. Do ponto de vista da adaptação alimentar, é provável que a A m é rica espanhola se tenha antecipado à portuguesa. Naquela, co mo observouBraudel, devido à crise de meados do século X V I, os "criollos" convertiam-se progressivamente ao milho, à mandioca e a outros alimentos indígenas,enquanto os m azombos brasileiros, graças à prosperidade açucareira, continuariam ainda dependentes do aprovisionamento de víveres metropolitanos.

A despeito do clima, a grande maioria dos colonos apegava-se às modas do reino. Anchieta notou que os colon os vestiam-se "de todas as sedas,

veludos, damascos, rases e mais panos finos como em Portugal, e nisto setratam com fausto, máxim e as mulheres, que vestem muitas sedas e jóias ecreio que levam nisto vantagem, por não serem tão nobres, às de Portugal",isso evidentemente nos domingos e dias de festa, pois no reino como noBrasil o vestuário dos dias de semana é chão. Devido ao clima, a seda era otecido mais bu scado, inclusive por gente modesta. Brandônio assegurava terouvido "a homens mui experimentados na corte de M adri, que se não trajamelhor nela do que se trajam no B rasil os senhores de engenho, suas mulheres e filhas, e outros homen s afazendados e mercadores". Quando C ardim

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foi pregar na matriz de Olinda, os mordomos da confraria do SantíssimoSacramento, "todos vestidos de veludo e damasco de várias cores, me acompanharam até o púlpito, e n ão é m uito achar-se esta polícia em Pernambuco,pois é Olinda d a N ova Lusitânia". O fenômeno evidentemente é a conhecidamanifestação de novo-riquismo. As exceções eram o Rio de Janeiro e SãoVicente, devido à falta d e navios. Daí q u e os habitantes de P iratininga trajassem arcaicamente "de burel e pelotos pardos e azuis, de pertinas compridas"e freqüentassem a missa dom inical em "roupões ou bernéus de cacheira semcapa", segundo Anch ieta. A diferença em relação ao reino consistia em que,devido à temperança do clima, a roupa de verão servia para o inverno, semnecessidade de ser guardada. Quanto aos religiosos, estavam adstritos obv iamente à obrigação de se vestirem com o em Portugal. No interior das residências, o consumo conspícuo tomava a forma de serviços de prata e decamas ornadas de damasco, com franjas de ouro e colchas da índia.

Quanto às práticas médicas, o s colon os ainda davam preferência, nocomeço do século XVII, aos purgativos importados do reino e a médicos,barbeiros e cirurgiões. Brandônio criticava, aliás, os povoadores por nãohaverem ainda se aproveitado das raízes e ervas da terra, "havendo pormelhores as que vêm de Portugal já corruptas, porque custam dinheiro".Co mo ali, as parturientes guardavam-se do ar , embora não guardassem tanto tempo o leito. Contudo, já se recorria a "diferentes estilos" de tratamentodas enfermidades e já avançava a assimilação de vegetais nativos, como abatata e os pinh ões m uito utilizados nas purgas. Adem ais, generalizava-se aaplicação nas feridas do azeite da copaúba, de quem os cronistas diziammaravilhas. Já se havia também descoberto as virtudes da água da Paraíbano tratamento das eólicas e da dor de pedra, razão pela qual a genteacaudalada de Pernambuco m andava buscá-la, só querendo servir-se dela.Os primeiros cronistas já se gabavam, aliás, de que o Brasil já convertia

Portugal a vários dos seus costu mes, co mo o bálsamo da cabriúva, e a batata e os pinhõe s com o purgativo, o ananás em conserva, mu ito apropriado àdor de pedra, embora não fizesse tanto efeito quanto o ananás verde, a marmelada de ibás, camueis e araçás, excelentes contra as câimbras. Mas nãoeram apenas as ervas e frutas brasileiras que começavam a ser utilizadas nametrópole. O jacarandá já estava sendo empregado na fabricação de leitos eem outros fins. E havia grande estima pelos sagüins, bugios e papagaios,embora fossem poucos entre os primeiros os que sobreviviam à mudança declima.

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Somente em finais de Quinhentos e começos de Seiscentos é que começaram a se afirmar as modalidades do sentimento local que já não secontentavam em frisar o casticismo da Am érica portuguesa. A ssim, o tema, aque se tornará crescentemente sensível a colônia, d a fundação de "um grande império" no B rasil, o qual, previa Gabriel Soares, "se fará tão soberanoque seja um dos Estados do mundo". Do Pará a São Vicente, exultava

Brandônio, são "quase setecentas léguas: terra bastantíssima para se podersituar nela grandes reinos e impérios". A arquicitada lamentação de frei V icentedo Salvador sobre a tendência dos colonos a comportarem-se com o caranguejos não tem outra inspiração. Em termos da dicotomia freiriana, ela já éuma clara opção p elo continente contra a ilha, sobretudo porque o continente é a promessa de minas, e a ilha, o trabalho rotineiro da lavoura. O tem a do"grande reino" surge inclusive em autores do reino, como Luís Mendes deVasconcelos, em conexão com o argumento do apoio mútuo que, em casode necessidade, devem prestar-se metrópole e colônia. Nesse sentido, nossos primeiros cronistas foram também nosso s primeiros ufanistas. Esse sonhado grande impér io já n ã o é mais apenas o prolongamento ultramarino do

reino, mas já conta com evidentes superioridades sobre a metrópole, aomenos desde a crônica de Gabriel Soares. É certo que Gândavo já escrevera que os bolo s de aipim excediam no sabor ao pão do reino e que o ananásera tão delicioso que não conh ecia em Portugal fruta que lhe fizesse vantagem; e que o s peixes, embora cá e lá fossem da mesma casta, tinham muitomelhor sabor. A exceção era o peixe-boi, que, tendo o mesmo gosto dacarne de vaca (ou, segundo G ândavo, de lombo de porco ou veado), provocaria a calorosa querela teológica a que se referiu o autor dos Diálogos dasgrandezas, a qual concluiu tratar-se verdadeiramente de um pescad o, tendoem vista que seu hábitat eram as águas, não saindo a pastar fora delas, ooposto da capivara, que, vivendo nos rios, pastava na terra, sendo con side

rada, portanto, carne e não peixe.M as é Gabriel Soares, radicado na terra, que a compara e a seus pro

dutos de maneira sistematicamente favorável. A ssim, certo rio da Bahia era"tão formoso com o o do G uadiana, mas tem muito mais fundo". Os b ovinossão muito mais fecundos, pois as novilhas já recebem o touro, ao cabo doprimeiro a n o , e já parem n o segundo. O s eqüinos m ultiplicam-se vertiginosamente, a ponto de seus preços haverem caído seis v ezes em relação ao quecustavam no começo. As éguas baianas eram "tão formosas [...] como asmelhores de Espanha". A carne de porco era tão sadia que fazia na terra as

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vezes da galinha n a alimentação dos enfermos n o reino, podendo se r ingeridaao longo do ano, embora o toucinho não fosse tão gordo, exceto em SãoV icente e no R io de Janeiro. A s galinhas baianas "eram maiores e mais gord a s " que as portuguesas. A lavoura d e mantimentos, tão rica e variada quanto a da Espanha, entend a-se, da península ibérica, tinha ademais sobre estaa vantagem de custar menos trabalho. A farinha de mandioca só perdia emqualidade e sabor para o trigo de boa esp écie, d e vez que o "trigo do mar",o milho, o centeio e a cevada eram inferiores à mandioca. Mesm o admitindoa superioridade d o bom trigo, Gabriel Soares ressalvava que a farinha demandioca era "mais sadia e proveitosa [...] por ser de melhor digestão",como haviam podido constatar os primeiros governadores-gerais, que "nãocomiam no B rasil pão de trigo, por se não acharem bem com e le, e assim ofazem outras muitas pessoas".

Ao contrário da Madeira ou do Velho Mundo, a cana-de-açúcar nãoexigia irrigação ou estéreo, plantando-se até mesmo n os altos. Sendo aindade seis m eses, acamavam, crescendo "tão compridas como lanças". O viçodos canaviais das várzeas era tal que o sumo das suas canas só coalhavaquando misturado ao de canas velhas. Enquanto na Madeira a planta sódava duas safras, havia canaviais na B ahia que davam h avia trinta anos, asterras baixas não cansando jamais e as altas produzindo quatro, cinco vezese até mais. A s figueiras não criavam bicho com o em P ortugal nem as atacavam as formigas. A água de laranjeira tinha "mais suave cheiro que a dePortugal". A s limas e as cidreiras eram maiores e mais saborosas que as doreino. Os pepinos se davam melhor do que em Lisboa, sem necessidade derega nem de estéreo, e as abóboras e as couves, do que em Alvalade. Asfavas podiam ultrapassar as de Évora em tamanho; e certo gênero delas"tem melhor sabor que as de Portugal". Até mesmo os nabos e rábanos,quintessência dos legum es metropolitanos, "davam-se melhor n o Brasil que

no Minho", para não mencionar o manjericão, "mais alto e forte que emPortugal". A beleza, o sabor e o cheiro do ananás levavam de ven cida todasas outras frutas da Espanha.

É sabido que os Diálogos das grandezas foram construídos com basena oposição entre os interlocutores, Alviano e Brandônio, que exprimemduas atitudes distintas. Na realidade, por trás dela, surge a dicotomia daterra e do homem, que exprime o antagonismo do reinol recém-chegado edo colono estabelecido na terra; ao passo que Alviano atribui à naturezabrasileira os males da colonização, Brandônio os imputa aos povoadores.

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94 E v a l d o C a b r a l d e M e l l o

Na sua condição de cristão-novo, Ambrósio Fernandes Brandão podia tomar u m a distância crítica vis-à-vis d os demais reinóis. Tendo afirmado A lvianoter o Brasil na conta da terra "mais ruim do mundo", pois se os colon os seempregam no cu ltivo da cana e no fabrico do açúcar, isto se deve a que nãoa acham "capaz de mais benefício", replica-lhe Brandônio tratar-se de "errocrasso", de vez que, ao contrário, "a terra é disposta para se haver de fazer

nela todas as agriculturas do mundo", sendo fértil de tudo, não vendo "nenhuma província ou reino dos que h á n a Europa, Ásia ou África que seja tãoabundante". O defeito não é da terra mas da "culpa, negligência e poucaindústria de seus moradores", da "pouca curiosidade e menos indústria dosque a habitam". Ele mesmo, Brandônio, plantara e colhera trigo, constatandoque ele se dava muito bem nas campinas mas não nas várzeas. Nã o experimentara nem centeio nem cevada m a s o milho europeu

se dá melhor e em mais quantidade do que se dá em P ortugal; mas não se usa dele,porque a gente da terra se contenta somente com aquilo q u e o s passados deixaram em

u s o , s e m quererem anadir outras novidades de novo, ainda qu e entendam claramente

que se lhes há de conseguir do uso delas muita utilidade, de maneira que se vêm amostrar nisto serem todos padrastos d o Brasil, co m lhes s e r e l e madre assaz benigna.6

Bran dônio inventaria, aliás, as potencialidades inexploradas da terra, acomeçar pelo "m uito algodão que aqui se colhe" e de que se poderia fazertoda sorte de tecidos, seguindo o exem plo da índia. Em vez de se aproveitarem da lã das ovelhas, mesmo que fosse apenas para "enchimento de colchões", os colon os preferem comprar a que vem do reino muito cara, o quetambém pode ser afirmado a respeito do queijo feito do leite do mesmoanimal. Em lugar d e se cultivar hortaliças, importam-se de Portugal. Alvianomesmo admitira q u e , "com tantas sortes de vinhos [indígenas], bem se pude

ram escusar os que se trazem das Canárias e ilha da M adeira"; e Brandônioaventara a conveniênc ia de se escusar o próprio azeite do reino, ademais de"outras muitas coisas". Os muares criavam-se facilmente no Brasil, tanto assim que "de alguns asnos cavalares que se mandaram vir do R eino se produziram maravilhosos machos e mulas", mas sua utilização deixou de serpraticada por pura inércia. A longo prazo, porém, Brandônio mostrara-se

6 Ambrósio Fernandes B randão, o p . c i t . , p p . 142 e ss.

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otimista, julgando q u e semelhante falta de iniciativa seria remediada pe lo crescimento demográfico, de vez que "os que ficarem sem ocupação, de forçahão de buscar alguma de novo de que lancem m ã o " , com o que já não haveria "necessidade de c oisa nenhuma das que trazem de P ortugal, e quando ahouvesse, fora de poucas".

Do ideal, apenas insinuado, de autarquia colonial, frei Vicente do Sal

vador fará todo um programa nativista. A o passo que G abriel Soares, porexem plo, assinalara a superioridade do produto reinol cultivado no Brasilsobre seu similar metropolitano, o autor da História do Brasil vai além,afirmando a superioridade do produto nativo sobre o português, como nadescrição das madeiras utilíssimas desconh ecidas do outro lado do A tlântic o . Para o nosso franciscano, o B rasil tinha o melhor dos dois m undos, poisnão somente possuía uma flora mais rica como também assimilava a alheiaem c ondições mais vantajosas que as do próprio lugar de origem, embora,ao contrário de B randônio, que propusera o plano de cultivar no B rasil asdrogas da índia para destruir o comércio holandês das especiarias, a exemplo do que fizera d. M anuel com os venezianos, o cronista franciscano prefe

rirá a solução q ue, tirando partido da brevidade e segurança da navegaçãocom o reino, fizesse do Brasil o entreposto desses produtos. À maneira dosantecessores, frei V icente não se priva das comparações, e até aduz vantagens, como as das favas e feijões, que não criavam bicho nem tinham a cascatão dura como no reino; as da mandioca e do aipim, que, ao contrário dotrigo, não consumiam as sementes na planta nem se recolhiam em celeiros,onde eram vítimas do gorgulho. O s camarões, não os h avia apenas no mar,com o em Portugal, mas também nos rios. Destarte, "é o Brasil mais abastado de m antimentos que quantas terras há no mundo, porque nele se dão o smantimentos de todas as outras", ademais dos próprios. Como seusantecessores, o cronista acentua não existirem no B rasil piolhos e perceve-

j o s , não sendo as pulgas tantas, embora nem mesmo um nativista enragécomo ele ousasse negar a nocividade e o incômodo do bicho-de-pé. FreiV icente incorre mesm o em grave ofensa às suscetibilidades reinóis quandoassinala ser a língua geral mais rica de vocábu los que a língua portuguesa,citando o exemplo do vocabulário do parentesco, que, sabemos, graças àantropolog ia, ser geralmente mais discriminador nas socieda des primitivas j

do que nas históricas. Uma réplica, talvez, ao argumento muito usado de queo tupi descon hecia o F, o L e o R, carência fonética interpretada no sentidode que os indígenas eram destituídos de Fé, de Lei e de Rei.

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Escusa do assinalar que a conotação autárquica desses tópicos acarretava potencialmente a contestação do monopólio colonial. Foi frei Vicenteque concluiu a redação da sua história sob o impacto da ocup ação holand esa de Salvador (162 4-16 25) , quem formulou o primeiro programa nativistapara o Brasil. Preso à sua cultura eclesiástica, ele coloca em termos dasEscrituras a questão de se é preferível a autarcia ou seu contrário. Ora, elas

fornecem uma resposta equívoca, pois se o salmista louva Sião por ter suasportas abertas a todos, louva também Jerusalém por ter tudo dentro de si. OBrasil gozava de ambas vantagens, mas não há dúvida para que lado seinclina a argumentação do frade:

pois primeiramente pode sustentar-se com seus portos fechados sem socorro deoutras terras. Senão pergunto eu : de Portugal vem farinha d e trigo? a da terra basta.Vinho? de açúcar se faz mui suave e, para quem o quer ijo, com o deixar ferver doisdias embebeda como de uvas. Azeite? faz-se de cocos de palmeiras. Pano? faz-se dealgodão com menos trabalho do que lá se faz o de linho e de lã, porque debaixo doalgodoeiro o pode a fiandeira estar colhendo e iando, nem faltam tintas com que setinja. Sal? c á s e faz artificial e natural, como agora dissemos. Ferro? muitas minas há

dele, e em S ã o Vicente está um engenho onde se lavra finíssimo. Especiaria? há muitasespécies de pimenta e gengibre. Amêndoas? também se escusam com a castanha decaju, et s i c d e ceterís. Se me disserem que não pode sustentar-se a terra q ue não tempão de trigo e vinho de uvas para as missas, concedo, pois este divino sacramento énosso verdadeiro sustento; mas para isto basta o que se dá no mesmo Brasil em SãoVicente e campo de São P aulo. E com isto está que tem os portos abertos e grandesbarras e baías, por onde cada dia lh e entram navios carregados d e trigo, vinho e outrasricas mercadorias, que deixam a troco d as da terra.7

Destarte, a história d e frei Vicente já fere algumas teclas nativistas, umadelas o tratamento dispensado no reino à colônia. Após constatar que "comnão haver hoje cem a nos [...] que se com eçou a povoar, já se hão despovoa

do alguns lugares e, sendo a terra tão grande e fértil [...] nem por isso vai emaumento, antes em diminuição", ele acusa os monarcas portugueses de fazerem pouco ca so do B rasil, a ponto de não lhe usarem o nom e, preferindo seintitularem reis da Guiné " p o r u m a caravelinha q u e l á vai e v e m " . A condenação abrange indiferentemente os A vis lusitanos e os Habsburgo castelhanos,que só cuidam da América para receber seus rendimentos, exceção de d.

7 Frei Vicente do Salvador, História d o Brasil (4 . ed. São Paulo: M elhoramentos, 1954), p . 71 .

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João III, único a sabê-la verdadeiramente estimar. Os serviços prestados noBrasil não eram recompensados, p ois "raramente se pagam", com o indicavao com portamento da coroa para com o primeiro donatário de Pernambuco,para com Pero Coelho de Sousa e para com certo pró-homem baiano, quehospedara e banqueteara o almirante Diogo Valdez e seu séquito duranteoito mes es, sem que se lhe fizesse qualquer mercê. O s comerciantes reinóis

eram acusados de só virem "a destruir a terra, levando dela em três ou quatro anos que cá estavam quanto podiam", ao passo que "os moradores eramos que a conservavam e acrescentavam com seu trabalho e haviam conq uistado à custa do seu sangue". Daí que frei V icente reserve avaramente seuselogios aos governadores-gerais que protegiam os colonos da usura mercantil, ou quem, co mo d. Francisco de Sousa, tornara-se querido e respeitad o , "porque, tratando os mais [governadores] do que hão-de levar e guardar,ele só tratava do que havia de dar e gastar". Nem mesmo os povoadoresescapam à crítica: " p o r mais arraigados que na terra estejam e mais ricos quesejam, tudo pretendem levar a Portugal [...] e isto não têm só os que de lávieram mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra não

como senhores mas como usufrutuários", argumento já esgrimido porBrandônio. (Este já lamentara, aliás, que os lucros do Brasil fossem todospara os reinóis, que m onopolizavam o com ércio, "porque os naturais da terra se ocupam no granjeamento dos seus engenhos e no benefício de suaslavouras, sem quererem tratar de mercancias, posto que alguns o fazem".

N este século d e Quinhentos, já vigia também entre os colon os a crençano papel messiân ico a ser desempenhad o pelo B rasil nos destinos de Portugal. B randônio refere haver previsto um astrólogo d a corte de d. Manuel quea terra que vinha recém-descoberta por Cabral haveria de tornar-se "umaopulenta província, refugio e abrigo da gente portuguesa". Frei Vicente pretenderá q u e , já ao tempo da fundação de Salvador e ao long o do reinado de

d. João I I I , cogitou -se, para a eventualidade de invasão estrangeira d o reino,da possibilidade de passarem-se el-rei e seus vassalos à América, que proporcionaria a base ideal para a reconquista da mãe-pátria, d evido à sua posição estratégica, superior à dos Açores, demasiado próximos, e da índia,demasiado distante. Devido a seu reduzido território, as ilhas podiam serfacilmente conquistadas, como se vira durante a tentativa independentista doprior do C rato, que, a despeito do apoio naval francês e inglês, n ão puderaresistir às armas de Filipe II. Quanto à índia, embora contando com umaextensão continental, tinha o ônus da navegação demorada e perigosa. O

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Brasil é que possuía todos os requisitos. Sua navegação era fácil, segura erápida, de modo que "com muita facilidade podem [os portugueses] cá vir etornar quando quiserem ou ficar-se de morada". Suas dimensões permitiriamabrigar toda a população do reino, com o que o tema do Brasil refúgioentroncava-se com o da construção do "grande império". O que frei Vicentenão podia prever é que, decorrido pou co mais de um d ecênio da redação da

sua obra, a restauração portuguesa, isolando internacionalmente Portugal,recolocaria na ordem do dia a velha idéia do reinado de d. João III. P ois averdade é que o projeto de transmigração d a família real para o B rasil, finalmente realizado no século X IX , teve sua pré-história no reinado de d. JoãoIV e depois na regência da sua viúva, d. Luísa de Gusmão.

Quando da sua segunda missão a Paris (1646-1649 ), o marquês de Nizafoi instruído a negociar o casamento d o herdeiro d o trono, o príncipe d. Teodósio,co m a prima de Luís XIV, a Grande M ademoiselle. M as a reação francesa foinegativa, mesmo quando d. João IV propôs abdicar em favor d o filho, em cujamenoridade a regência seria exercida pelo almejado sogro, o duque d e Orléans,ao passo que o monarca ficaria com o domínio dos Açores e do estado do

Maranhão e Grão-Pará, a ser constituídos em reino autônomo. Do segundoprojeto de retirada da fam ília real para o B rasil no decurso da guerra da restauração, sabe-se por uma carta do padre A ntônio Vieira que a nomeaç ão de jFrancisco de Brito Freire para o governo de P ernambuco (1661-1663 ) resultará da preocupação d a rainha regente de "prevenir a seus filhos [inclusive d.Afonso X I , n a menoridade] uma retirada segura, no ca so em q ue algum sucesso adverso [isto é, a reconquista de Portugal pela Espanha], que então muitose temia, necessitasse deste último remédio". Vieira, que então se encontravamissionando no Maranhão, recebeu a ordem de seguir para Pernambuco, oque só não fez devido à revolta dos colonos paraenses, que o retiveram emBelém . A inda segundo o jesuíta, d. João IV recomendara o projeto n um papel

encontrado após seu falecimento "em su a gaveta secreta, rubricado de su a realmão com três cruzes". A idéia só foi definitivamente descartada graças à assinatura do tratado de aliança luso-britânico de 1661, pelo qual Carlos II prometeu apoiar militarmente Portugal.

Esse papel messiânico do Brasil er a visto igualmente em termos de promoção econômica e social da população do reino. O tópico já se encontraem Gândavo, cujo tratado destinava-se a propagandear "a fertilidade e abundância" d a nova terra junto às "muitas pessoas que nestes R einos vivem compobreza e não duvidem escolhê-la para seu remédio", pois graças a sua

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fartura ela era especialmente acolhedora. Tanto assim que os colonos semostravam m ais largos que os hab itantes do reino no comer e no vestir, alémde mais generosos nas doações pias. De Pernambuco, frisava Gabriel Soares de Sousa, haviam voltado ricos a Portugal muitos qu e ali haviam aportadosem eira nem beira nem ramo de figueira. É conhecida a estória narrada porfrei Vicente a respeito de certo homem de Leiria, punido pelo seu bispo com

a sentença irônica de que "vá degredado por três anos para o Brasil, dondetornará rico e honrado". O indivíduo em questão fora mandado para o R ioGrande do Norte, onde, a despeito de ser "a pior [terra] do Brasil", granjeouco m a mulher dois mil ou três mil cruzados, tornando-se compadres do capi-tão-mor, em cuja companhia retornaram ao reino, e, signo da promoçãosocial do casal, "comendo todos a uma mesa, passeando ele ombro comombro com o capitão, assentando-se a mulher no mesmo estrado que afidalga, como eu as vi em Pernambuco, onde foram tomar navio para seembarcarem". O "brasileiro" das novelas de C amilo Castelo B ranco é a derradeira encarnação do mito da terra da árvore das patacas.

N inguém mais autorizado para formular o tópico do que G aspar Dias

Ferreira, lisboeta que chegara pobre a Pernambuco e aí se tornara homemrico e honrado, senhor de dois engenhos, conselheiro do conde de Nassau eprotegido do vice-rei da Bahia, conde d e M ontalvão. No seu parecer sobrea compra do Nordeste aos holandeses, Gaspar escrevia:

Eu o [Brasil] chamo o jardim do Reino e a albergaria dos seus súditos. Outroradeliberou-se em P ortugal, como consta de sua história, elevar o Brasil a Reino, indopara lá o R ei, tão grande é a capacidade daquele país. Portugal não tem outra regiãomais fértil, mais próxima nem m ais freqüentada, nem também o s seus vassalos melhore mais seguro refúgio do que o B rasil. O português a quem acontece decair de fortuna,é para lá que se dirige. 8

A inda outro tema já presente nes ses p rimeiros textos da história brasileira é o da superioridade da ação do E stado sobre a atividade privada.Para Diogo de C ampos M oreno, "tudo o que neste Estado [do Brasil] nãofor de Sua Majestade crescerá devagar e durará muito pouco", contrastando o florescimento das capitanias que "o braço real tomou mais à suaconta" com o atraso a que estariam relegadas as terras donatariais. O cro-

8 "Papéis concernentes a Gaspar Dias Ferreira", em Revista do Instituto Histórico, Arqueológicoe Geográphico da Paraíba, vol. 32, p. 78, 1887.

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nista invocava o exemplo da Bahia, do Rio de Janeiro, da Paraíba e do RioGrande do Norte, "todas hoje de Sua Majestade, nas quais porque o sãoaumentam-se cada dia as povoações e crescem as fazendas". Mesmo aexceção conspícua que era a prosperidade de Pernambuco, ele a explicava pelo au xílio que lhe dispensara a coroa sob a forma de "capitais, presídios e fortificações". A falta de ação donatarial estaria ligada à incapacidade

dos seus agentes, de vez que nestas capitanias "nunca se encontra pessoa )respeitável no governo", ao passo que, nas capitanias regias, as autoridades tinham todo interesse em promover o crescimento local, na expectativade promoção no serviço público. Daí que Campos Moreno advogasse aestatização das capitanias donatariais. Na realidade, ele silencia ou nãopercebe algo essencial, ou seja, que o superávit obtido no rendimento dosdízimos do açúcar, que constituíam a fonte de recursos com que a coroafinanciava suas despesas de gestão e defesa da América portuguesa, eraexclusivamente gerado pela capitania donatarial de P ernambuco, pois, de scontada essa contribuição, as contas do Estado do Brasil apenas se equilibrariam. M algrado a riqueza da principal capitania regia, a Bahia, a receita

dos seus dízimos era insuficiente para cobrir as despesas com o aparatoburocrático que o governo central aí instalara.

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Bi b li o g raf i a s e le c i o n ad a

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O I

"Gente d a terra braziliense da

nasção". Pensando o Brasil:

a construção de u m povo

S t u a r t B . S c h w a r t z

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-L /e s d e os primórdios de sua existência, o Brasil tem sido tanto uma Iidéia quanto um lugar. Significou coisas diferentes para pessoas diferentes e lo próprio termo tem sido redefinido e reinterpretado para refletir as diferenças e discrepâncias entre pessoas de variadas extrações e posições sociais.O B rasil, enquanto idéia, foi freqüentemente mais um projeto do que uma |realidade, às vezes geográfica, às vezes nacional ou até social. A definição |do "verdadeiro Brasil", em oposição ao Brasil do momento, se tornou ummétodo de estratégia argumentativa e discursiva, assim com o uma projeção

para o futuro. Essa d efinição dependia, em alguma medida, de quem eram os"verdadeiros" brasileiros. De alguma forma, sempre houve uma variedadede B rasis que se disputavam, projetos diferentes para o que o B rasil deveriaser ou representar. Essas concepções diferentes dependiam, em especial,das divisões sociais, das identidades e das expectativas da população colo nial. An tes que pudessem existir os brasileiros, um povo que se via enquanto ]comunidade política, essas diferentes concepçõe s de Brasil tiveram de ser Ireconciliadas de alguma forma, embora a realização desse objetivo numa Isociedade multirracial e escravista tenha sido um processo extremamente Icomplexo. Neste breve estudo examinarei as dificuldades de se criar umconceito de povo dentro das malhas de uma sociedade escravista, e tentarei

sugerir que o próprio conce ito de p ovo passou por diversas transformaçõeshistóricas n o início da história moderna do Brasil.

Para os historiadores, a habilidade em recapturar os co nceitos variantes de Brasil sempre tem sido limitada pelo fato de que aquilo que conh ecemo s a respeito da mentalidade dos habitantes do Brasil colonial freqüentementetem sido extraído dos escritos de um pequeno contingente da elite alfabetizada, quase sempre homens, a grande maioria deles educados em Portugal,onde, inclusive, publicam seus trabalhos, quando não o fazem em outros

* Tradução de Adriana Lopez.

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países da Europa. Devido à ausência de uma universidade ou mesmo daimprensa na colônia, esses autores publicavam seus trabalhos na metrópole epara um púb lico metropolitano, sob o olhar vigilante da Igreja e do E stado.Assim, seus escritos não podem ser considerados como representativos dodesenvolvimento de uma consciência d e s u a própria classe e muito menos damassa dos habitantes iletrados da colônia, especialmente aqueles de origem

africana, indígena ou mestiça. Essas pe ssoas eram menos apegadas a Portugal do que os letrados e os clérigos, quase que exclusivamente brancos daclasse superior, mas a reevocação de suas idéias apresenta dificuldades, jáque eles encontraram poucos m eios para expressá-las, especialmente n o quediz respeito a formas que possam s er recapturadas pelos historiadores, a nã oser, é claro, no caso de estudarmos suas açõe s, e não suas palavras.1 Se asdiferenciações entre a elite e o "povo" são tratadas enquanto pertencentes àclasse ou à cultura, elas não obstante enriquecem e com plicam a questão doque o Brasil significava para seus habitantes, na medida em que procuravamdefinir tanto o território como a própria relação que mantinham com este.

A questão da definição do território e de seus habitantes surgiu durante

o século XVI, ao adotar-se o nome de Brasil para a nova conquista. Adesignação original, e pia, com a qual Cabral batizara o n ovo litoral, Terra deSanta Cruz, disputou a primazia durante um breve período com o termodescritivo de "terra dos papagaios" e com a designação dada pelos marinheiros, a "terra dos lençóis", em reconhecimento aos longos trechos depraias de areia que, do convés dos nav ios, pareciam a distância como lençóis. A etimologia do termo Brasil também pode ser questionada, dado oprecedente medieval da mitológica ilha Brasyl e da associação do nome àbrasa e, portanto, sua relação com a madeira tintorial vermelha (pau-brasil).Tamp ouco podem os afirmar se a madeira recebeu o nome devido à terra ouse a terra adotou o nome da madeira.2

Considerações de ordem econômica também desempenharam um papel na designação dos habitantes da terra. Docum entos do sé culo X V I algumas vez es se referem aos habitantes indígenas com o "os brasis", ou "gentebrasília" e, ocasionalmente n o século X VI I, o termo "brasileiro" era a eles

1 Já discuti esse problema em detalhe em Stuart B. Schwartz, "The Formation of a ColonialIdentity in Brazil", em N. Canny & A. Pagden (orgs.), Colonial ldentity in the Atlantic World,1500-1800 (Princeton: Princeton University Press, 1989), pp. 15-50.

2 A questão da adoção do nome B rasil e sua preferência sobre o de Terra de Santa Cruz é discutidapor Pero de Magalhães Gândavo, História da província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (Lisboa: Biblioteca Nacional, 1576).

" G e n t e d o t e r r a b r a z i l i e n s e d a n a s ç ã o " . P e n s a n d o o B r a s i l : a c o n s t r u ç ã o d e u m p o v o 1 0 7

aplicado, mas as referências ao status econômico e jurídico desses erammuito m ais populares. A ssim, os termos "negro da terra" e "índios" eramutilizados com mais freqüência do que qualquer outro para designar os indígenas enquanto verdadeiros habitantes da terra.

Uma v ez que o nom e da terra se consolidou devido ao uso contínuo, aquestão que surgia, aqui como no caso de outras novas "descobertas", nãoera como a terra e seus habitantes nativos deveriam ser chamados, m as oque deveria significar o u representar. No caso do Brasil, o significado foi, emgrande m edida, prático e raramente ed ênico. 3 A s expectativas de encontrarriquezas em forma d e metais preciosos, manifestadas nas primeiras crônicas,como nos Diálogos das grandezas do Brasil (1618), e da possível vinculaçãodo estabelecimento do governo geral na colônia em 1549 com a descobertadas minas de Potosí pelos espanhóis (1545), logo foram ultrapassadas poroutras realidades econ ômicas. Tome de S ousa, o primeiro governador-geraldo B rasil, havia manifestado expectativas de que o B rasil pudesse tornar-se" um outro Peru". De fato, no início do século X VI I, realizou-se uma tentativapara alcançar esse objetivo. Em 1608, p or insistência d o ex-governador Fran

cisco de Sousa, as capitanias do Sul foram desmembradas visando a formação de uma colônia distinta. Francisco de Sousa havia de fato tentadoconvencer a coroa de que minas semelhantes às peruanas poderiam serestabelecidas n o B rasil, utilizando, inclusive, "carneiros de carga" (llamas)para transportar a prata extraída. M as a sua visã o do B rasil enquanto u mPeru não era compartilhada por todos. O governador-geral na B ahia, Dio gode M eneses , contrariado pela diminuição de autoridade que o desmem bramento do Sul representava, escreveu à coroa: "crea-me V. M g. que asverdadeiras minas do Brasil são açúcar e pau-brasil de que V . M g. tem tantoproveito sem lhe custar de sua fazenda um só vintém".4

As declarações de Meneses colocam em relevo uma realidade. Apesarde comentários ocasionais que davam a entender que a proximidade entre oBrasil e o Peru prometia acesso à riqueza dos metais e apesar dos recorrentes rumores e expectativas, no final do século X V I, o açúcar dava à colônia

3 Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso (Rio de Janeiro: José Olympio, 1959), deixa claroque ao contrário do Peru, que gerou fantasias utópicas de riqueza, as primeiras avaliações arespeito do B rasil estavam relativamente livres dessas definições.

4 Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil (São Paulo: Melhoramentos, 1952),v o l . II, p. 146.

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um traço característico, e as exigências desse cultivo haviam estabelecidou m a base econô mica e social diferente para a colônia. A importação de africanos em massa, do s quais a produção de açúcar dependia, eventualmentemoldou a composição e a estrutura da sociedade, e o volume do comérciode açúcar deu ao Brasil a sua raison d'être. O açúcar também transformouo Brasil n a principal fonte de riqueza do Im pério português. Em 1624, quando a notícia da conquista de Salvador pelos holandeses chegou a Lisboa, ogovernador de Portugal, o conde de Basto, escreveu ao rei em Madri arespeito da s implicações calamitosas q u e adviriam da poss ível perda d o Brasil:

[...] porque o Brazil leva todo este reino trás de s i , a s rendas reais, porque sem Brazil,n ã o h á Angola, nem cabo Verde, n e m o p a u q u e dali se traz, nem alfândegas, nemconsulado, nem portos secos, nem situação e m q u e s e paguem os tribunais, e ministros e seus salários, nem meio d e q u e possam viver, e da r vida a outros, a nobreza, asreligiões, misericórdias e hospitais, qu e tinham nas alfândegas situados os seus jurose suas tenças. E assim foi este golpe o mais universal que podia padecer o rei, opúblico e os particulares [...]5

Esse reconhecimento do Brasil enquanto base econômica do sistemaimperial português e seu caráter essencial, enquanto fonte de riqueza, datado início do século XVII e persiste até o final daquele século, quando ocomércio de açúcar se torna menos lucrativo. Foi, é claro, uma visão queressuscitou quando da descoberta do ouro. Ao chegarmos ao século XVIII,quando a riqueza da colônia brasileira havia se tornado a pedra-de-toque doimpério português, frei A ntônio do Rosário escreveu que o B rasil se tornaraa "verdadeira índia e M ina de P ortugal", porque a "índia já não he índia".6

Na Europa de então, uma vez que o Brasil havia adquirido seu statusenquanto lugar de riqueza, real ou potencial, também com eçou a servir delugar de fuga ou sede alternativa de império para os monarcas europeus degrandes amb ições ou esperanças limitadas. Parece nítido que durante a lutapela sucessão ao trono de Portugal, que se seguiu à morte de d. Sebastião,em 1578, d. Antônio, o Prior do Crato, chega a considerar a idéia de seestabelecer como rei no Brasil e esperava utilizar a colônia como base desuas futuras pretensões. A s cortes d a Europa que lhe ofereceram ajuda - o u,

5 ACA, cx. 117, ff. 293-293v.6 Frei Antônio do Rosário, Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia consagrada à

Santíssima Senhora do Rosário (Lisboa: Oficina de A ntônio Pedrozo Garlam, 1702), citado emSérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso, cit., p. 79.

" G e n t e d a t e r r a b r a z i l i e n s e d a n a s ç õ o " . P e n s a n d o o B r a s i l : a c o n s t r u ç ã o d e u m p o v o 109

mais precisam ente, que queriam interferir n a aquisição do Império portuguêspretendida po r Filipe II - também consideravam o Brasil com o u m a presa devalor. A po ssibilidade am bicionada pela França de ter uma base no Brasilquase certamente motivou o au xílio concedido por Catarina de Médicis ad. Antônio na década de 1580. Em Madri, rumores de que os holandeses

estabeleceriam um descendente de d. Antônio para justificar a invasão dePernambuco persistiram até a década de 1620. A sugestão de se transferir acorte de L isboa para o B rasil, surgida durante o século X VI II, era reiteradaocasionalmente por membros da corte e conselheiros políticos. A chegadada corte em 1 808 foi, portanto, não apenas u m expediente imediatista, m as arealização de um projeto acalentado desde longa data e uma atitude quereconhecia o que o Brasil havia pa ssado a significar para a corte portuguesa . 7 M esm o em m eio a tais considerações po líticas, a questão do caráterdos habitantes do Brasil começa a emergir. Não bastava ser o soberano deu m a terra opulenta, a verdadeira grandeza exigia igualmente u m grande povo,e nesse aspecto o Brasil era considerado deficiente. No início do séculoXVIII, d. Luís da Cunha, conselheiro de d. João V , tentou superar o preconceito contra os habitantes da colônia, mas até a sua defesa revelava o despeito com que eram tratados os nativos do B rasil:

[...] pois nã o sabe como possa vir à cabeça de hum homem, qu e conserva toda a s uarazão, propor que hum Rey de P ortugal trocasse a sua residência da Europa pelaAmérica, cujos povos, sem falar da diferença do s climas, apenas t e m o s sentimentosde homens; ao qu e respondo, que a s cidades do Brasil não são povoadas desta mizeravelgente, m a s d e muitos e bons portugueses qu e delia se servem, como em Lisboa nosservimos de negros [...]8

Ess e problema, o da terra sem um pov o digno de sua riqueza, prevale

c e u , durante o século XVIII, na concepção de Brasil que povoava a mentedaqueles que governavam a colônia.Apesar do reconhecimento do potencial econômico do Brasil, este era

visto pela maioria dos portugueses como um lugar de exílio e perigo; umlugar para enriquecer o u progredir n a carreira, mas um lugar a ser evitado aqualquer custo. O irmão jesuíta Inácio B randão escreveu para seus irmãos

7 As sugestões feitas por d. Luís da Cunha no sentido de se transferir a corte de Portugal para oBrasil estão em Visconde de Carnaxide, D. João V e o Brasil (Lisboa: Serviços Culturais daCâmara Municipal, 1952), pp. 53-5.

8 "Instruções inéditas" de d. Luís da Cunha a Marco Antônio de Azevedo (Lisboa, 1929), p. 217.

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110 S t u a i t B . S d i w o r t z

de ordem em P ortugal, "he certo que quem conhece Portugal e esperementao B rasil com fundamentos pode dizer que deceu do ceu ao inferno e se Deu sdestas terras o levar a com tas, me parece será inferno perpetuo [...]".' Funcionários régios ficavam frustrados e exasperados pela a usência de respeitoàs leis por parte de seus habitantes. Dom ingos Álvares T eles Brandão escreveu de M inas Gerais, em 1736, que:

[...] se possível for pondo em cada pau huma forca e em cada légua hum ministroporque so assim se sugeitarão de todo e se não obedientes porque de outra forma nãohe possível porque canalha semelhante não ha no mundo tod o, sendo a maior galhardia dos donos das fazendas proteger ladrões e matadores de que utilizão em seuserviço, quizas porque elles forão e são da mesm a molde [...]10

O marquês de Lavradio notou que os ministros reais vinham ao B rasilcom a única esperança de concluir o m andato para retornar e "gozar o d escanso de suas pátrias". Lavradio é, talvez, um caso que merece destaque.Nenhu m outro funcionário da coroa na colônia foi mais eficaz e men os apai

xonado do que ele. L avradio achava a colônia quente, suja, rude e povoadapor um excesso de negros. Num a carta ao conde de Prado, escrita em 1 768,comentava: "Este país o achei com pouco m ais adiantamento que aquele quelhe estabeleceu Pedro Álvares Cabral quando fez a descoberta desta conquista".

Os habitantes da colônia e o meio físico desafiavam as concepçõeseuropéias. Que tipo de comun idade podia existir onde tantos de seus habitantes eram culturalmente diferentes, pagãos e escravos? N os cá lculos colo niais, e para os funcionários coloniais, o Brasil tinha u m a população mas nãotinha um "povo". Inicialmente, nenhuma instituição representativa ou corteera permitida n a colônia, e o B rasil, por sua vez, não env iava representantes

às cortes que eram convocadas em Portugal.

11

Devido a uma variedade demo tivos, as tradições medieva is portuguesas de representação dos artesãosno governo m unicipal (o juiz do povo e a casa d e 24) nunca foram plenamente instituídas na colônia. Mes mo dep ois da Restauração, em 1640, quandod. João IV autorizou a representação popular na Câmara da Ba hia, esta não

9 ANTT, Cartório dos Jesuítas, maço 70, n. 119.10 ANTT, Manuscritos do Brasil, 10, f. 12 lv.1 ' Para um excelente estudo recente, ver Pedro Cardim, Cortes e cultura política no Portugal do

antigo regime (Lisboa, 1998).

" G e n t e da t e r r a b r o z i l i e n s e d a n a s ç ã o " . P e n s a n d o o B r a s i l : a c o n s t r u ç ã o d e u m p o v o 111

funcionou muito bem nem chegou a durar muito tempo. R epresentantes dopovo foram proibidos de presenciar algumas discussões dos vereadores eforam por eles acusados de provocar a agitação popular durante os protestos da "Maneta", em 17 11. Em 1713, a posição d e juiz do pov o foi extinta e"ficava a Cidade Capital d o Estado d o Brasil igual amais humilde villa delle".12

O conceito de "povo" enqu anto terceiro estado na sociedade de ordens e nabase de toda sociedade não chegou a se estabelecer na colônia. As referências mais antigas falam de "pessoas de menor condição", "moradores" e"povoadores", mas a idéia de um "povo", orgânica e constitucionalmentevinculado ao corpo da política e ao rei estava, em larga medida, ausente.13

Esse era o problema central; as pessoas que poderiam ser chamadas depopulação indígena o u nativa d a colônia, aqu ele que poderia se r chamado deo povo brasileiro er a formado, essencialmente, pelas pessoas de origem m ista , e não se confiava muito nelas nem na sua capacidade. Em 1602, quandomembros da Ordem de São Bento propuseram admitir nov iços pertencentes à"gente da terra braziliense d e nasção", a iniciativa foi sumariamente rejeitada.14

O que interessa neste episódio é, em primeiro lugar, a desconfiança dos

beneditinos nas habilidades dessa "gente", mas também o fato de que essaspessoas de origem m ista eram definidas pelo lugar e m q u e haviam nascido, nocaso, o Brasil, e que esse lugar estava sendo utilizado como critério para definir sua etnicidade.15 Este é o primeiro momento, tanto quanto me é dado aentender, em que se considera o fato de se te r nascido no Brasil como elem ento que define a identidade e como elemento precursor d a nacionalidade.

No próprio Brasil, desenvolveram-se percepções alternadas. O surgimento d o nativismo na colônia tem sido detectado por vários autores.16 O smembros pertencentes à nobreza da terra se consideravam leais vassalos e

12 Toda a questão da representação dos artesãos no Brasil ainda merece investigação. Ver Maria

Helena Flexor, Oficiais mecânicos na cidade do Salvador (Salvador: PMS, 1974); HarryBernstein, The Lord Mayor ofLisbon. T he Portuguese Tribune ofthe People and his 24 Guilds(Nova York: University Press of America, 1989).

13 Ver a discussão em Evaldo Cabral de Mello, Rubro veio. O imaginário da Restauraçãopernambucana (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986), pp. 158-9; Stuart B. Schwartz, Segredosinternos (São Paulo: Companhia das Letras, 1988), pp. 209-23.

14 "Leis acresentadas da Junta do Pombeiro" (20 agosto 1603), MSSB, pasta 28.15 Aqui, falo em etnicidade em vez de nacionalidade, porque no século XVII, o termo "nação" ainda

era utilizado enquanto denominador de um certo grupo, tal como a "nação cristão no vo" ou "denação Angola".

16 Evaldo Cabral de Mello, Rubro veio. O imaginário da Restauração pernambucana, cit.; StuartB. Schwartz, "The Formation of a Colonial Identity in Brazil", em N. Canny & A. Padgen(orgs.), Colonial Identity in the Atlantic World, 1500-1800, cit., pp. 15-50.

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112 S t u a r f B . S c h w o r t z

também pensavam constituir a verdadeira população. M as o Brasil sempreteve significados diferentes em momentos diferentes para pessoas diferentes.Isto é um a maneira de dizer q u e as divisões sociais e culturais que caracterizaram a sociedade brasileira tinham influência profunda em co mo o s brasileiros se percebiam e como eles começaram a pensar a respeito de seu país

dentro do contexto colonial. E ssa divisão social das formas de percepção fazcom que o método tradicional de abordagem desse tópico, o exame dosescritos de um grupo limitado de intelectuais, seja um processo falho. L igados às elites colon iais brancas e vinculados po r laços fam iliares e de interessea Portugal, esses intelectuais eram os menos aptos a desenvolver uma noçãoda diferença. E sses sentimentos provavelmente se alastraram m ais rapidamente entre os mestiços, os mamelucos e os pardos, que se sentiam poucoligados a Portugal e os quais, no final do período colonial, constituíam cercade 4 0 % da população da colônia. Infelizmente, dado que esse segmento dapopula ção era, em grande parte, analfabeto, é difícil recapturar a percepçãoque tinham de si mesm os e do B rasil que viviam.

É preciso considerar, também, a dimensão geográfica desse p rocesso.O Brasil não era, em realidade, apenas um, mas era constituído por umasérie de colônias. Os ingleses tinham razão quando falavam, nos séculos XV IIe XVIII, dos "Brasis", pois havia de fato mais de uma colônia. Na costaentre Pernambuco e Rio de Janeiro, onde haviam sido criadas colônias deexportação, o estabelecimento de colono s europeus era intenso, as instituições reais e o governo local estavam presentes, e uma imensa massa depopulação servil importada constituía a principal força de trabalho. Nessasáreas, os m odelos culturais e os estilos europeus predominavam. Em m eados do século XVII, essas áreas pretendiam ser uma réplica da Europa.Co nventos se estabeleceram, corpos de administradores, eclesiásticos e ju

diciais, operavam regularmente, e uma grande porcentagem das elites locaisainda er a nascida na Europa o u estava estreitamente vinculada, po r interessee experiência, a Portugal. A promoção desses vínculos fazia parte da políticacolonial portuguesa, que visava limitar o poder do governador-geral e dosvice-reis, incentivava a correspondência entre cada capitania e a metrópole,proibia o estabelecimento de um a universidade na colônia e geralmente agiapara coibir o desenvolvimento da unidade colonial.

N o interior e nas periferias da colônia, a com posição da sociedade e aestrutura de governo eram diferentes, ou, pelo menos, a cronologia separavaessas regiões do resto do Brasil. O estado do M aranhão era, essencialmen-

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te , uma colônia independente (162 1-17 77) com seu governador e seu bisporeportando diretamente a Lisboa, em vez de Salvador. Em meados do século XVIII, sob Francisco Xavier Mendonça Furtado, o meio-irmão do marquês de Pom bal, se tornou um vice-reinado virtualmente separado; isolado,distante do resto do Brasil e mais próximo de Lisboa d e navio do que do Rio

de Janeiro. Ali, a população era rarefeita, o número de europeus fora deBelém ou São Luís muito pequeno, e a maioria de seus habitantes era depessoas indígenas ou cabo clas, de origem mista.

As capitanias do Sul também haviam sido tratadas como uma regiãoseparada e, embora as tentativas formais de se criar um governo à parte, doRio de Janeiro para o sul, tivessem fracassado (1573-1578,1608-1612), osgovernadores residentes na Bahia tinham pouco controle sobre o Sul. SãoPaulo permaneceu uma área rústica até bem avançado o século X VI II. A téessa época, tal como o estado do Maranhão, a população de origem européia era pequena, havia pou cos escravos africanos, grande quantidade deíndios e uma grande proporção de pessoas de origem mista, mamelucos e

mestiços. Embora nas duas regiões a adoção da cultura e da língua dosíndios fosse comum, a exploração destes enquanto fonte de mão-de-obraera intensa, apesar do fato de que nessas fronteiras a presença de missionários se dava numa escala que já havia desaparecido nas zonas de exportação.Essa s periferias desenvolveram uma reputação de obstinada independênciae eram chamadas, às vezes, de as "L a Rochelle" do Brasil.

A organização social variava, então, conforme a época e o lugar, assimcom o variava o núm ero relativo de europeus, africanos e pessoa s indígenasde origens diversas. Isso tinha um efeito particular na posição social daspessoas de origem m ista. A mudança n o status do s mestiços e dos mam elucosocorreu devido à mudança n o relacionamento entre portugueses e índios, e

devido às transformações ocorridas dentro da própria sociedade colonial.Na medida em que a ameaça dos índios diminuiu, a importância do papeldesempenhado pelos m estiços, enquanto mediadores e tradutores, tambémdiminuiu nas áreas mais povoa das das capitanias do litoral. N estas, o statusdos mestiços declinou. Nos lugares onde uma economia vibrante, baseadano açúcar, na mineração e no cultivo do algodão se desenvolveu, e onde ofluxo constante de imigrantes europeus, a grande corrente de imigrantes forçados africanos, e o eventual desenvolvimento de instituições européias civise religiosas, assim com o a reprodução de hierarquias sociais baseadas empadrões europeus se consolidou, o papel desempenhado pelos mes tiços tendia

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114 S t u o r t B . S c h w a r t z

a permanecer cada vez m ais reduzido. Na medida em que continuavam a serreconhecidos co mo diferentes dos escravos africanos ou dos negros, havia,não obstante, uma tendência a outorgar um status comum a todas as pessoas de origem mista. Além disso, os m estiços passaram a ser, cada vez mais,separados e diferenciados da sociedade branca. Essa mudança constituiu

um segundo estágio no processo de integração dos mestiços à sociedadecolonial.O p rocesso de mudança torna-se evidente a partir das avaliações feitas

sobre o caráter destes. E mbora seja fácil detectar comentários negativos arespeito dos índios durante o século XVI, esse tipo de atitude não era comum quando se tratava dos mest iços. Essa situação começou a mudar. Nasregulamentações emitidas pelo Mosteiro de São Bento na Bahia, a Ordemdecidiu "que não se tome e recebão para Religiosos pessoa que tenha raçade mestiço nem outros que não forem de gente nobre ou de que se esperapoder resultar sua entrada em proveito".17 No século XVIII, esse tipo deavaliação negativa se tornou comum. Um funcionário colonial escreveu no

Ceará, em 1724, que "os mamelucos são a pior casta de gente de todo oBrasil". O processo de transição na avaliação se tornou mais nítido graças àsações do Senado da Câmara de Natal, no Rio Grande do Norte, em 1723.A câmara tentou proibir os m estiços de ocuparem o cargo de vereador, talcomo haviam feito no passado, porque "o número de brancos aumentou,tornando esse serviço, da parte de gente pouco confiável, desnecessário,posto que a experiência tem mostrado que eles são menos capazes d evido àinferioridade de suas pessoas e a sua natural inclinação à perturbação e su-blevação da república".18 O precon ceito contra as pessoas de origem mistase tornou cada vez mais agudo durante o século X VI II. Quando se sugeriu àCâmara de Salvador que se formassem com panhias de índios, cabras e ne

gros no sertão, com a finalidade de coibir o contrabando, a câmara respondeu que pessoas desse tipo "abandonariam o com boio em troca de um barrilde aguardente". Quem quer que tenha sugerido uma idéia desse tipo "noconhece a calidade d essa gente em quem por natureza se unio a inconstânciae o interesse".19

17 Mosteiro de São Bento (Salvador), "Leis acresentadas da Junta do Pombeiro" (1602), pasta 28.18 AHU, Rio Grande do Norte, papel avulso, caixa 3 (24 março 1724).19 ACMS, Correspondência, 124.7, f. 90v.

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Em M inas G erais, Pernambuco e outras partes do Brasil, as pessoas deorigem m ista, e até as pessoas brancas casadas com elas, eram excluídas dogoverno m unicipal, das irmandades leigas, do clero, de certos comércios eprofissões. A leve suspeita de antecedentes dessa natureza era suficientepara garantir a desqualificação. A eleição de um certo homem para a Câmara de Cachoeira, na Bahia, foi contestada em 1748 porque "ele era um homem cuja qualidade de sangue ainda er a desconhecida", e isso a despeito dofato de que tinha diploma universitário.20 Freqüentemente, a força primáriapor trás dessas medidas era dirigida contra os m ulatos, mais do que contraos mestiços, mas ao entrar o século XVIII, todas as pessoas de cor eramcada vez mais identificadas com o iguais, em termos de suas característicasnegativas. O conde de Sabugosa, governador de Minas Gerais, reclamava,em 1720, dos crimes cometidos constantemente pelos "bastardos (mestiç o s ) , carijós (índios), m ulatos e negros", dessa forma transformando todasessas categorias em p essoas igualmente repreensíveis.21

No início do século XVIII, o caráter da população brasileira havia setornado nítido. U m terço da população era formado por escravos, a m aiorparte dos qu ais haviam nascido na África. E stes não eram considerados enquanto parte da república, de qualquer maneira, mas eram vistos co mo umaforça de trabalho necessária, inimigos internos e uma am eaça em p otencial.Talvez 40% da população, as pessoas comuns, fosse formada por pessoasde origem mista, a quem se depreciava e das quais se desconfiava, e até poraqueles brancos que não tinham acesso ao status de elite e caíam na categoria dos mecânicos. Estes últimos eram considerados brancos apenas porpadrões ditos brasileiros. Lavradio escreveu em 1768, "foi-me grandíssimotrabalho o descobrir algum branco, isto é, que verdadeiramente o fosse, porque os [que] lá chamam branco, passam entre nós com muito favor pormulatos".22 Embora já por essa época tivessem começado a emergir umdiscurso e um sentimento nativista entre as elites coloniais, a nobreza da

20 A C C , 1-1-36, ff. 82-3 ("Licenciado Antônio Pereira Porto por ser indigno de semelhanteemprego porque [...] he um homem cuya qualidade de sangre ainda se não sabia por não haverconhecimento delle, e alem desto he de exercício mecânico porque vive de curar feridas").

21 APB, Ordens regias 27, n. 27 (24 fev. 1730).22 Marquês de Lavradio, Cartas da Bahia, 1768-1769 (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1972), p.

34 , citado em Maria Beatriz Nizza da Silva (org.), O Império luso-brasileiro, 1750-1822 (Lisboa: Estamp a, 1986), p. 224; J. Serrão e A . H. Oliveira Marques (orgs.) v. viii, Nova história daexpansão portuguesa (Lisboa: Estampa, 1986), 3 volumes publicados até a presente data.

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terra, a vasta maioria da população era considerada por essa elite e peloregime colonial como desmerecedora de seu status enquanto povo da colônia.

No início do século XVIII, o Brasil havia-se tomado a jóia d a coroa doimpério português, fato reconhecido pela criação do título de "Príncipe doBrasil" dado ao herdeiro do trono. Havia motivos de sobra que obrigavam acoroa a se preocupar com sua colônia. Sua riqueza, a distância "d a cabeça edo coração da monarquia", e a "pouca sujeição e obediência" de seus habitantes eram todos motivos de preocupação, mas além disso havia uma profunda desconfiança para com a maioria d a população.23

J á e r a suficientemente ruim q u e um grande contingente de escravos minasse a estabilidade da colônia, m as o número crescente de pesso as de antecedentes mistos também ocupava a atenção dos administradores coloniais.M enciono aqui apenas um único incidente, que merece mais atenção do queaqui lhe podemo s dedicar, mas representativo da reação nervosa do governo colonial face à instabilidade potencial d a população brasileira.

Em 1733, o conde de S abugosa, governador da Bahia, relatou à coroaque, em Alagoas, u m estranho jovem que se autodenominava "o SereníssimoPríncipe do B rasil", havia causado tumulto no interior. M uitas pessoas haviam aderido à sua causa:

[...] que muitos o Reconhecião e veneravão pelo império e soberania com que setratava passando a s u a barbaridade e locura ao excesso de fazerem com elle grossasdespezas, n ã o s ó p o r aquella rezão, senão também pelas mercês qu e fez a muitos otitulo de Condes e M arquezes [...]24

Po r trás desse jovem aventureiro havia um padre de intenções duvidos a s , um certo Eusébio Dias Lassos, conhecido como o homem que havia

reduzido os índios orizes à autoridade colonial, mas que também ganharafama indisputável de arruaceiro.25

23 Consulta de Conselho Ultramarino (1716 ), citado em José Antônio Gonsalves de Mello, "Nob rese mascates na Câmara do Recife, 1713-1738", em Revista do Instituto Arqueológico, Históricoe Geográfico Pernambucano, Recife, n. 53, p. 141.

24 Conde de Sabugosa ao rei (Bahia, 5 d e julho de 1733), APB, ordens regias 29,141.25 [José Freire de Montarroio Mascarenhas], Os Orizes conquistados ou noticia da conversam do s

indomnitos Orizes Procazes (Lisboa, 1716). Diziam que Dias L assos havia outorgado uma falsapatente de coronel da Capitania de Sergipe a seu tio Manuel Curvelho.

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Havia já notícia de que esse "Príncipe do Brasil" criara distúrbios similares na Paraíba, e o governo estava ficando p reocupado com iss o:

com tais quimeras e demonstrações que consiguio da barbaridade e cegueira de muytosmoradores delia ser reconhecido e servido, e tratado com tal grande discomodo desuas pessoas e prejuizo da sua fazenda ambisiosos das honras e mercês com que lhes

prometia Remunerar aquelle obséquio a seu tempo [...]26

Inicialmente, o governo se sentiu mais chocado do que ameaçado peloincidente. Mas, quando se tornou aparente que um número significativo depessoas poderosas e bem relacionadas o haviam apoiado, uma preocupaçãopolítica com eçou a se delinear. A coroa desejava descobrir se o jovem aventureiro e ra português, de onde ele e r a , se havia estado em algum "reino estrangeiro", e quem o havia convencido a ir para o B rasil. E m outubro de 1733, apreocupação com o incidente era tamanha que o conde de Sabugosa haviaescrito para os governadores do Rio de Janeiro, São P aulo e M inas Gerais,alertando-os da possível chegada desse príncipe, e que o governador de

Pernambuco havia tomado providências para prendê-lo.A partir desse ponto, o "Príncipe do Brasil" passou para a história, mas

o que ele representou para aqueles que o seguiram e que alternativa para oBrasil ele projetava eram motivo de preocupação para as autoridades daépoca e provocam nosso interesse no presente. Quando ele passou pelaregião de Garanhuns, no sul de Pernambuco, ampliou seu elenco de seguidor e s , entre os quais havia "muitos negros, mulatos, mamalucos, e outros vadi-os criminozos e os índios das Aldeaas do Palmar". Era este um movimentono sertão do sul de P ernambuco que havia unido os ricos e poderosos, criado conde s e m arqueses, assim com o a "plebe", em clara oposição à soberania do rei de Portugal. Conhecemos pouco a respeito do programa, mas a

criação de alternativas políticas e sociais, especialmente do tipo que poderiam unir classes nitidamente op ostas, era considerada um perigo verdadeiro.O conde d e Sab ugosa havia ordenado: "o siga ate com effeito o prender emoutra qualquer parte porque convém m uito ao sossego deste estado que seja

26 Conde de Sabugosa ao ouvidor de Alagoas, João Gomes Ayala (Bahia, 10 de agosto de 1734),A P B , Ordens regias 153, ff. 11-2. O governador de Pernambuco, Duarte S odré Pereira, emitiu aordem de prisão em A lagoas de "um peralvilho que dava a entender ser príncipe"; AUC , coleçãoConde de Arcos, códice 3 2, ff. 47 8v-479. Agradeço a Evaldo C abral de Mello por esta referência.

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rigorosamente castigado o atrevimento deste aventureiro e de todos os quebarbara e imprudentemente o seguem [,..]". 27

O caso do "Príncipe do Brasil" revela uma crescente desconfiança arespeito da gente comum na cabeça dos administradores coloniais. Vemoscom o negros, mulatos, mamelucos e vadios haviam se tornado termos equi

valentes para falar de uma população problemática. O s habitantes do Brasilhaviam adquirido a reputação de viverem sob liberdade descontrolada, comexcessiva mobilidade, qualidades potenciais para causar problemas, além dedemonstrarem relutância no serviço ao rei.28 Tentativas para controlar essapopulação tiveram escasso sucesso. Por exemplo, nas décadas de 1750 e1760 o esforço dos governos para obrigar os ciganos, vadios e outros elementos instáveis das populações do sertão a fixar residência não obteve oresultado esperado.29 O s administradores coloniais tampouco podiam c onta r co m a população para prestar o serviço militar voluntariamente. O rei sequeixava, em 1726: "é incrível a repugnância que tem o s filhos d o Brasil aocupação e exercício de soldados, sem nenhua outra cousa mais q ue adeverem

quartada a grande liberdade com que vivem" .

30

Reclamações semelhantesforam feitas durante todo o século pelos governadores, que viam os habitantes do Brasil como crianças desobedientes e irresponsáveis.31

O que talvez causasse mais irritação às autoridades metropolitanas eraa insubordinação das pessoas de con dição mais baixa. Vários observadoresnotaram essa atitude, mas a visão mais enfática a esse respeito talvez tenhasido a do inglês Thomas Lindely, conforme atestou em 1805:

É chocante ver quão pouca subordinação à hierarquia é conhecida neste país: a França,no auge d e su a revolução e estado de cidadania jamais chegou a esse ponto, nesseaspecto. Aqui pode-se ve r o criado branco conversando c om se u senhor de igual paraigual e , d e forma amigável, discutir suas ordens, e tergiversar no cumprimento delas,

27 Conde de S abugosa ao rei (Bahia, 2 de outubro de 1733), A P B , ordens regias 29 , n. 148 .0 jovemfoi preso e enviado a Portugal. O padre Dias Lassos escapou.

28 Sobre a questão de se considerar a vadiagem equivalente aos mulatos e outras pessoas de cor emMinas Gerais, ver Laura de Mello e Souza, O s desclassificados do ouro, cit.

29 Sobre "sítios volantes", ver o rei ao conde de Azambuja (junho de 1766), BNRJ, 33,25,32. Sobreos ciganos, ver APB , Ordens regias 59, ff. 122-123; Cartas do S enado 132 (5 de julho de 1755).

30 O rei a Vasco Fernandes César de Meneses (18 de março de 1726), A P B , Ordens regias 30, n. 37.3 ' Governador da Bahia Manuel da Cunha Meneses a Martinho de Melo e Castro (16 de outubro de

1775) em ABNRJ, 32 (1910), 319. Cf. governador da Bahia ao Conselho Ultramarino (25 desetembro de 1761), IHGB, Arquivo 1.1.19.

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se forem contrárias à sua opinião - o qu e é bem aceito pelo senhor, que freqüentementeconsente. O sistema não fica nisso; mas essa atitude se estende aos m ulatos e até aosnegros [...]32

Pou co se esperava dessa popu lação tão insubordinada, e essa descon fiança se refletia na transformação do terceiro estado, que de "povo" passa a

ser "plebe" no discurso da época. Se durante o século X VI , a representaçãodo "povo" era freqüentemente positiva e a posição política do terceiro estado era codificada por m eio de sua participação nas cortes e reconhecida emexpressões tais como a "câmara e povo", no século XVIII o termo "plebe"come çou a aparecer cada vez mais enquanto d escrição pejorativa da população brasileira. Em bora o termo "plebeu" tivesse raízes clás sicas, raramentehavia sido utilizado no século X V I. A utores como Fernão Lopes preferiamfalar do "comum povo livre e não sujeito" ou, quando se tratava dos m aismiseráveis, da "arraia-miúda". No século XVIII, entretanto, o termo "plebe"começou a ser utilizado com mais freqüência, geralmente de forma pejorativa .33

O conceito de "plebe", com as conotações negativas que tinha para osportugueses e brasileiros das classes superiores, foi exacerbado no contextocolonial, on de a m aioria da população era não apenas pobre, mas formadapor negros, mulatos e mes tiços. Es ses eram, precisamente, os termos utilizados pelo governador da Bahia para descrever as cond ições que ele tentavacontrolar em 1765, ao limitar os festejos de rua da Irmandade do EspíritoSanto. Durante os preparativos para a festa do Espírito Santo, os membrosda irmandade costumavam sair às ruas fantasiados, cantando e pedindo d inheiro sob a direção de um "imperador".34 O governador tentou limitar asatividades da irmandade aos dom ingos e dias santos " p o r não andarem tanta

32 Thomas Lindley, Narrative of a Voyage to Brazil (Lisboa: J. Johnson, 1805), pp. 68-69. Oviajante francês Froger fez uma observação semelhante em 1698, quando afirmou que "a gentecomum é insolente ao extremo"; cf. A Relation ofa Voyage Made in the Years 1 6 9 5 , 1696,1697on the coasts of África (Londres: M. Gillyflower, 1698). Comparem-se esses comentários comaqueles de 1798, citados por Affonso Ruy: "As filhas do país têm um timbre tal que a filha dohomem mais pobre, do mais abjecto, a mais desamparada mulatinha forra, com mais facilidadeirão para o patíbulo de que servir ainda um a Duquesa, se na terra houvesse". Ver Affonso R u y , Aprimeira revolução social brasileira, 1798 (Salvador, 1951), p. 43.

33 O autor deseja agradecer à m edievalista Rita Gomes pelas suas sugestões a este respeito.34 Officio do governo interino para o conde de Oeiras (1765), AB NR J, 32 (1910), 97. Isto também

pode ser visto em IHGB, Arquivo 1.1.19, ff. 169v-174.

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gente com o vadia a semana inteira". Mas o governo estava mais preocupadocom o fato de que apenas um quarto da população da cidade era branca, eque a "mais baixa plebe da Bahia é composta por mulatos insolentes e negros brutos" que, sob os efeitos do vinho e sob a direção de seu "Imperador", causavam desordens contínuas. E le lembrou ao ministro colonial emLisboa que "a plebe é formada pelos hom ens brancos criados no temor e no

respeito às leis e à cristandade", mas na Bahia esse não era o caso. Aquivemos claramente a maneira com o a raça havia exacerbado as d istinções declasse.

Essa interseção entre raça e posição social pode ser vista com maisnitidez ainda nos trabalhos de um dos autores mais curiosos do século X VI II.O frade carmelita Domingos de Loreto Couto enviou, em 1757, ao entãoconde de O eiras (posteriormente marquês de Pom bal), o manuscrito de umtrabalho extraordinário chamado Desagrados do Brasil e glórias dePernambuco?5 Esse trabalho de "nacionalismo crioulo" é essen cialmenteuma defesa do caráter, das virtudes e contribuições dos pernambucanos,enquanto súditos leais da coroa. Embora o autor compartilhasse dos pre

conceitos e das pressuposições raciais de sua classe, o que chama a atençãoé o fato de que Loreto Couto elogia não apenas os membros da elite colonialmas também índios, negros, pardos e até mulheres.

Na discussão a respeito da "plebe", vemos como as concepções clássicas sobre a gente comu m são alteradas devido à situação colonial. Tomando com o referência Platão, Cipião e Catão, Loreto Couto percebe as pessoascomuns como o "corpo" da república, enquanto a nobreza é sua alma, eadverte que a plebe era, por natureza, imóvel, m as capaz de ser mobilizadapelos ventos, assim com o num rebanho de ovelhas, na carneirada, o animalsozinho não obedece a nenhuma delas, mas juntas, seguem o pastor. Depois,ele se debruça sobre o problema colon ial:

Não é fácil determinar nestas Províncias quaes sejão os homens da P lebe; porque todoaquelle que he branco na cor, entende estar fora da esfera vulgar. Na sua opinião omesmo he ser alvo, que ser nobre, nem porque exercitam officios mecânicos perdemesta presumpção [...] O vulgo da cor parda, com o immoderado desejo das honras deque o priva não tanto o accidente, como a substancia, mal se accomoda com as

3 5 Domingos Loreto Couto, Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, José Antônio Gonsalvesde Mello, ed. (Recife: Fundação de Cultura Cidade do R ecife, 1981). Ver também José A ntônioGonsalves de Mello, Estudos pernambucanos: crítica e problemas de algumas ontes da história

de Pernambuco (Recife: Fundarpe, Diretoria de Assuntos Culturais, 1986), pp. 195-224.

" G e n t e da t e r r a b r a z i l i e n s e d a n a s ç ã o " . P e n s a n d o o B r a s i l : a c o n s t r u ç ã o d e u m p o v o 121

diferenças. O da cor preta tanto que se vê com a liberdade, cuida que nada mais lhefalta para ser como os b rancos.36

Embora Loreto Couto reconheça que os pardos e os pretos poderiamrealizar contribuições positivas ao corpo social da colônia, sua visão da gente comum é uma daquelas em que as divisões de raça e, por implicação, de

escravidão comp licam a definição do que constituiria o vulgo ou a plebe.E sse tipo de percepção encontra expressão em termos muito mais ne

gativos no final do século, conforme atestam as afirmações de Luís dos S antos Vilhena em suas Notícias soteropolitanas (1798).37 Português denascimento, m as vivendo há muito na colônia, sua visão de Brasil combinaum certo orgulho e expectativa de grandeza, levando em consideração opotencial geográfico do país, e de desespero e frustração com sua situaçãosocial. Apesar da infertilidade de boa parte dos solos, o potencial para sesustentar uma grande população era imenso. Santos argumenta:

se Portugal com a falta de população que todos lhe conhecem, inclui em si três

milhões, setecentos mil e tantos habitantes; o B rasil descoberto sem aqueles obstácul o s , olhando propo rcionalmente, ficaria com quarenta milhões de habitantes tão povoado como Portugal se acha com os que de presente tem.38

Aqu i estava um país de terras extensas, rios grandiosos, "imensas mat a s " e riquezas m inerais, o potencial para estabelecer "um poderoso e ricoimpério" e, segundo S antos Vilhena, "uma colônia que possa competir comas melhores que se conheçam em qualquer parte do mundo". Como era,então, se perguntava Santos Vilhena, que "um país extensíssimo, fecundopor natureza, e riquíssimo, é habitado por colonos, poucos em número, amaior parte pobres, e muitos deles famintos?". Faltava ao Brasil um "povo",e a explicação para esse estado de coisas era a escravidão e seus efeitos.

Excetuando os senhores de engenh o, alguns poucos comerciantes e lavrador e s , o resto da população era "ignorante e semibárbara". Era "uma congre-

36 Loreto Couto, Desagravos..., cit., pp. 226-227.37 Utilizei a edição de Braz do Amaral, A Bahia no século XVIII, 3 vols. (Salvador: Itapuã, 1969).

Sobre Santos Vilhena ver, também, Leopoldo Jobim, Ideologia e colonialismo (Rio de Janeiro:Forense Universitária, 1985); Carlos Guilherme Mota, Atitudes de inovação no Brasil, 1789-1801 (Lisboa: Livros Horizonte, 1967). /^\~ &Q^

38 Santos Vilhena, "Carta 24", em A Bahia..., cit. , p . 910. / ^ ** £

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122 S t u a r t B . S c h w a r t z

gação de pobres", que havia se convencido de que a agricultura era "trabalho de negr os" e que se negava a cultivar a terra ou praticar outros ofícios.Na formulação clássica, Santos Vilhena acreditava que a solução para oproblema estava na terra. "Quem gera o cidadão é a propriedade." Muitoantes do que Marx, ele escreveu:

A sociedade política compõem -se de proprietários, e dos que não o são; aqueles sãoinfinitamente m enos em núm ero, do que estes; o que é sabido. Pretende o proprietáriocomprar pelo menor preço possível, o único do não proprietário, ou jornaleiro, comoé seu trabalho; êle porém se esforça pelo vender pelo mais que pode, e neste litígiosucumbe de ordinário o contendor mais débil, apesar de maior em núm ero.39

N o Brasil , as grandes extensões de terra subutil izadas, os morgados, earranjos similares haviam criado uma população sem terra e coibiam osurgimento de famílias co m base econôm ica sólida, o que inibia o crescimento da população. "É axioma inegável, que sem homens não há sociedade, esem meios de subsistência não pode haver homens [...]" Mas, enquanto naEuropa o trabalhador se dispunha a trabalhar em troca de seu sustento, em

"as nossas colônias do Brasil", isso não acontecia, e até a distribuição deterras não resolveria o problema en quanto existisse a escravidão. Só a eliminação, de uma vez por todas, dos escravos da população convenceria agente comum do erro de acreditarem que "cavar e lavar é só da repartiçãodaqueles miseráveis [escravos]". Santos Vilhena se opunha à escravidão nãopelo que t inha feito com os escravos, mas por causa do que havia feito como "povo", e ele expressava pouca simpatia por aqueles descendentes deescravos que hav iam se juntad o às fileiras da população livre. Co mo o utrosde sua classe, ele detestava os mulatos e crioulos qu e se recusavam a respeitar o s brancos, e os mu latos ricos que desejavam ser fidalgos.40 Santos Vilhena,no seu papel de brilhante colonialista, imaginava um Brasil de grandes

potencialidades, ao qual o legado da escravidão havia privado de um po vo elhe legara uma plebe.

Como então o Brasil finalmente chegou a ter um "povo"? A perguntaainda merece ser estudada, mas parece ter sido uma questão de autocriaçãoe autodefinição, em grande m edida. As l ições e o vocabulário da Ilustração e

39 Santos Vilhena, A Bahia, cit., p. 919. Ver também Carlos Guilherme Mota, op. cit.40 Santos Vilhena, A Bahia, cit., vol. 1, pp. 46, 53.

" G e n t e d a t e r r a b r a z i l i e n s e d a n a s ç ã o " . P e n s a n d o o B r a s i l : a c o n s t r u ç ã o d e u m p o v o 123

da Revolução Francesa não desapareceram entre alguns setores da população colonial. Vários membr os da sociedade colonial começaram a reivindicar o lugar de "filhos da terra" e a constituir o "povo " do Brasil , mas agorasob a influência da Revolução Francesa, com u m novo significado inclus iveNesse aspecto, os autos da devassa do fracassado movimento de 1794 noRio de Janeiro são instrutivos. Tomemos por exemplo o depoimento do j o

vem carioca Mariano José P ereira, um bacharel de Coim bra que alegava tersido preso exclusivamente devido à animosidade de um certo frei R aimundo"porquan to este era inimigo dos brasileiros; de sorte que constava haver ditoao atual vice-rei deste estado que se não receasse dos franceses, mais simdos fi lhos do Brasil [...]".4! Os jovens que participaram desse movimentocomeçav am a se considerar brasileiros e a conceber um Brasil de outro t ipo.A s discussões de Silva Alvareng a e outros ampliaram o foco das atenções arespeito da forma repub licana de governo e a rejeição dos ditames da Igrejae do Estado, para o bem do povo. O artesão Inácio do Amaral havia dito:"que matar aos reis não era pecado, pois que eles recebiam o poder dospovos e que o rei que era t irano devia padecer na forca assim como outro

qualquer malfeitor, porque enquanto príncipes, o que desejavam era pôr ascarapuas na cabeça e , depois de reis, flagelavam e atropelavam o povo [...]".42

Essas idéias produziram um esquema utópico que, no ano de 2440, resultaria na formação de duas grandes repúblicas americanas, uma no Norte eoutra no S ul, nas quais os direitos dos homens seriam respeitados. Isso eramsonhos, diziam os procuradores reais, que se baseavam na "quimérica igualdade dos homens", e representavam "o ódio da nobreza do estado mona-cal".43 Alguns dos envolvidos também foram capazes de pensar um Brasilsem escravos. Manuel José Novais de Almeida havia escrito pedindo quelibertassem seus escravos n o Brasil, "e servi-vos com gente forra e livre, tereimenos inimigos; porque entre cristãos, não parece bem aos olhos da boa

filosofia, que haja cristãos cativos".M a s , enquanto os conspiradores do Rio de Janeiro pertenciam, na sua

maioria, às eli tes coloniais, quatro anos depois, na Bahia, uma conspiração

41 Autos da devassa -prisão dos letrados do Rio de Janeiro, 1794 (Niterói: Arquivo Público doEstado do Rio de Janeiro, 1994), p . 1 5 7 . Outros depoimentos revelaram que a animosidade de freiRaimundo se baseava em sua crença de que os brasileiros eram ultramontanos e apoiavam aautoridade do Papa sobre a da coroa; ibid., pp. 160-1.

42 Ibid., p. 53.43 Ibid, pp. 117-9, 183. Auto de perguntas feitas ao preso Jacinto José da Silva.

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124 S t u a r t B. S c h w a r t z

de artesãos e escravos, brancos, pardos e negros também formulou idéiassemelhantes. Também eles podiam imaginar um Brasil diferente; um no qual aescravidão seria abolida, os portos abertos, as distinções de cor eliminadas,e a igualdade de hierarquia e de oportunidade estabelecida. C omo afirmavaum de seus pasquins: "Animai-vos Povo bahinense que está para chegar otempo feliz da nossa Liberdade: o tempo em que todos seremos irmãos; o

tempo em que todos seremos iguais".44

Essas declarações foram feitas emnome do Po vo B ahinense Republicano. Para eles, e para muitos brasileirosdo início do século X IX , não havia dúvida de que o Brasil tinha um povo. Opapel que este desempenharia na formação da nova nação e co mo superariao fardo da escravidão e das definições raciais são questões que ainda merecem ser determinadas.

Abreviaturas

AC A - Arquivo da Casa de Alba (Madri)AC C - Arquivo da Câmara de Cachoeira (Bahia)

AC MS - Arquivo da Câmara Municipa l de Sa lvadorAH U - Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)AN RJ - Arquivo Nacional (Rio de Jane iro)AN TT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa)AP B - A rquivo Públ ico do Estado da BahiaAU C - Arquivo da Universidade de CoimbraBN RJ - Bibl io teca Nacional do Rio de Jane iroIHG B - In stituto Histórico e Geográfico B rasileiroMS SB - Moste iro de São Bento (Sa lvador)

44 Os relatos clássicos estão em Affonso Ruy, A primeira revolução social brasileira, 1798, cit.;Katia M. de Queirós Mattoso, Presença francesa no movimento democrático baiano de 1798(Salvador: Itapuã, 1969); Luís Henrique Dias Tavares, História da sedição intentada na Bahiaem 1798: a conspiração dos alfaiates (São Paulo: P ioneira, 1975); e, mais recentemente, IstvánJancsó, Na Bahia, contra o império: história do ensaio de sedição de 1798 (São Paulo/Bahia:Hucitec/EDUFBA, 1996).

" G e n t e d a t e r ra b r a z i l ie n s e d a n a s ç ã o " . P e n s a n d o o B r a s i l : a c o n s tr u ç ã o d e u m p o v o 1 2 5

Bibliogra f ia selecion ada

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Peças d e u m mosaico(o u apontamentos para o estudoda em ergência da identidade

nacional brasileira)

I s t v á n J a n c s ó

J o ã o P a u l o G . P i m e n t a

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novembro de 1822, o Correio Braziliense publicou dois manifestos de deputados de províncias brasileiras às Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da N ação Portuguesa, tornando públicas as razões queos levaram a abandonar L isboa de mo do irregular1 e buscar refugio na Inglaterra. Am bos foram redigidos em Falmouth; um datado de 20 de outubro, ooutro de 22 do mesmo mês de 1822. O primeiro trazia as assinaturas deAntônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva e José Ricardo daCosta Aguiar e Andrada, representantes da Província de São Paulo; o ou

tro, as de Cipriano José Barata de Almeida, Francisco Agostinho Gomes eJosé Lino Coutinho, deputados pela Bahia, e de Antônio Manuel da SilvaBueno e Diogo Antônio Feijó, eleitos por São Paulo. Nos dois casos ossubscritores ofereciam ao público os motivos que os levaram a dar por encerrada sua participação na elaboração da Constituição que daria forma aonovo pacto político destinado, na perspectiva original do vintismo, a reger osdestinos da nação portuguesa.2

1 Os sete embarcaram sem a devida autorização das cortes, e desprovidos dos necessários passaportes, o que não ocorreu sem bons m otivos. A 2 de outubro, Antônio C arlos solicitou autorizaçãopara que lhe fosse permitido retirar-se de Portugal, mas não obteve resposta, assim como outrosjá o haviam feito antes. Em 6 de outubro divulgava-se em Lisboa a fuga dos sete deputados paraFalmouth, utilizando-se de um barco inglês. No dia 12 do mesmo mês, a Intendência Geral dePolícia informou que nenhum deles havia solicitado passaporte (cf. M árcia R. Berbel, A naçãocomo artefato: deputados do Brasil nas Cortes portuguesas, 1821-1822 (São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1999), p. 193.

2 Sobre o vintismo, ver Valentim Alexandre, Os sentidos do Império: questão nacional e questãocolonial na crise do Antigo Regime português (Porto: Afrontamento, 1993) e Fernando P.Santos, Geografia e economia da Revolução de 1820 (Lisboa: Europa-América, 1980). Sobre aparticipação dos deputados brasileiros, ver M árcia R. B erbel, op. cit.; F. Tomaz, "Brasileiros nasCortes Constituintes de 1821-1822", em Carlos G. Mota (org.), 1822: dimensões (São Paulo:Perspectiva, 1972).

-E/m

130 I s t v ó n J a n c s ó e J o ã o P a u l o G . P i m e n t a P e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d a i d e n t i d a d e n a d o n a l b r a s i l e i r a ) 1 3 1

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Ainda q u e diferentes em extensão e detalhado de seu arrazoado, o teordas expos ições tem m uitos pontos em com um, dentre os quais o de atribuiraos eleitos por Portugal a responsabilidade p elo rompimento da unidade danação portuguesa. Antônio C arlos e Costa A guiar são enfáticos quanto a terse empenhado "quanto neles esteve por arredar a nação portuguesa" dorumo que lhes parecia ser da desonra, lamentando que, ao final e ao cabo,

quisesse " o mau destino de Portugal que vencessem os facciosos",3

os mesmos deputados portugueses que apontavam como os responsáveis pela desunião. Cipriano Barata e seus companheiros das províncias da Bahia e deSão P aulo também cuidavam de esclarecer que "desde que tomaram assento no Con gresso de Portugal [fizeram-no para lutar] pelos interesses de suaPátria, do Brasil e d a Na ção em geral", mas como seus esforços malograrame chegaram a ser tomados por "atentados contra a mesma Nação", decidiram, "para prevenir qualquer suspeita alheia de verdade que possa ocasionarsua inesperada retirada de Lisboa", declarar "à Nação Portuguesa, e aomundo inteiro, os motivo s que os obrigaram a assim obrar".4

Em meio à emocionada ex posição d o que era descrito como inevitável

desastre político, os dois texto s contêm várias idéias-chave, dentre as quaisganham relevância as de pátria, país e nação. Na "Declaração" assinadapor Cipriano Barata, pátria é o lugar de origem, o da comunidade que oselegeu para representá-la nas cortes. É a ela que fariam, quando para aíregressassem, "expo sição circunstanciada [...] dos diferentes acontecimentos [hav idos] durante o tempo de sua missão", e a ela caberia julgar o "merecimento de sua conduta".5 Para eles, pátria não se confunde com país.Este é inequivocam ente o B rasil ao qual os eleitos por Portugal querem impor u m a "Constituição onde se encontram tantos artigos humilhantes e injurio-s o s " . A nação, por seu turno, desloca -se para outra esfera, já que pátria epaís não encontram equivalência na abrangência q u e lhe corresponda. B ahia

e São Paulo são suas pátrias, o Brasil é o seu país, mas a nação à qualpertencem é a portuguesa. Essa mesma percepção perpassa o documentodos dois representantes de São Paulo, ainda que estes não recorram ao

3 "Protesto dos deputados de São Paulo, abaixo assignados", em Correio Braziliense ou Armazém

Literário (CB), vol. XXIX, n. 174, nov. 1822.4 "Declaração de alguns deputados do Brasil, nas Cortes de Portugal, que de Lisboa se passaram à

Inglaterra", em Correio Braziliense, vol. XXIX, n. 174, nov. 1822.5 lbid.

termo pátria, servindo-se, quando se referem ao corpo político formadopor seus representados, como a sua Província, expressão ajustada ao novocontexto vivido pelo império em fase acelerada de dissolução e, portanto,dotada de m aior atualidade política.

É grande a tentação de atribuir a aparente dissonância dos conceitos -em esp ecial naqu ilo que toca à identificação da nação à qual se sentiam to

dos pertencentes como sendo a portuguesa - à distância que separava esseshomens do cenário político americano, onde desde o começo de outubroestavam em curso os preparativos para a coroação de d. Pedro como monarca do im pério brasileiro, dando forma ao rompimento p olítico com o reino europeu.6 M as log o se percebe que se trata de algo mais entranhado, jáque no próprio epicentro americano da ruptura política a mesma dissonânciaperpassa as expressõe s de identidade política coletiva. O Revérbero Constitucional Fluminense publica, em seu número de 24 de setembro, umacarta cujo autor vê na iniciativa d a convocação de uma C onstituinte no B rasil"o único modo de salvar a N ação de um e outro hemisfério", reconhecendonesta iniciativa o "único modo de vincular a Nação em laços mais estáveis e

duradouros".7

A nação à qual ele se refere é a portuguesa, e os que naAmérica aclamam o imperador são "portugueses do Brasil", 8 mesmo quenem todos pensem da mesma forma. Os redatores do Revérbero anunciamque, dada a proclamação da independência, suspendiam a publicação doperiódico já que o país "é nação, e N ação livre",9 com o que têm por encerrada sua missão. A mesm a fórmula é usada pelo Correio Braziliense, para oqual as cortes de Portugal estimularam os cidadãos do outro lado do Atlântico, "apesar dos desejos de união daqueles povo s, a declararem a sua totalindependência, e con stituírem-se em na ção separada de Portugal".10

A análise atenta da documentação revela que a instauração do E stadobrasileiro se d á em meio à coexistência, no interior d o que fora anteriormente

6 Iara L. C. Souza, Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo (São Paulo: Ed. daUnesp, 1999), pp. 256 e ss.

7 "Carta d o desembargador Bernardo José d a Gama de 19 jun. 1822", em Revérbero ConstitucionalFluminense (RCF) n. 18, 24 set. 1822.

8 "Descrição dos festejos no R io de Janeiro por conta da aclamação de D . Pedro I", em Correio doRio de Janeiro (CRJ), n. 157, 19 out. 1822.

9 Correio do Rio de Janeiro, n. 153, 15 out. 1822.10 Correio Braziliense, vol. XXIX, n. 175, dez. 1822.

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a América portuguesa, de múltiplas identidades políticas,11 cada qual expressando trajetórias coletiva s q ue, reconhecend o-se particulares, balizamalternativas de seu futuro. Essas identidades políticas coletivas sintetizavam,cada qual à sua maneira, o passado, o presente e o futuro das com unidadeshumanas em cujo interior eram engendradas, cujas organicidades expressavam e cu jos futuros projetavam. Ne sse sen tido, cada qual referia-se a algu

ma realidade e a algum projeto de tipo nacional. Se atentarmos para asmanifestações dos contemporâneos expressando sentimentos de perten-cimento a uma nação, veremos que o resultado de uma hipotética consultarealizada dentro das fronteiras do nascente império brasileiro no s termossugeridos por Renan - para quem a nação é um plebiscito diário 12 - levaforçosamente à reabertura da discussão de q uestões de fundo no tocante àformação d a nação brasileira.

Afirmar que a formação d o Estado brasileiro foi um p rocesso de grande complexidade não apresenta nenhuma novidade, e a historiografia recente tem revelado razoável consenso quanto a evitar o equívoco de reduzi-lo àruptura unilateral do pacto p olítico que integrava as partes da A mérica n o

império português.13

Hoje é assente que não se deve tomar a declaração da

1 ' Os conceitos aqui utilizados têm muito a ver com os utilizados por José Carlos C hiaramonte em"Formas de identidad política en ei Rio de Ia Plata luego de 1810", em Boletín dei Instituto deHistoria Argentina y Americana " D r . Emilio Ravignani", 3a série, n. 1, Buenos Aires, 1989, eretomados em outros de seus estudos referidos a seguir.

12 Ernest Renan, iQué es una nación? (Madri: CEC, 1982), p. 38 (conferência pronunciada naSorbonne em 1882).

13 A ênfase na multiplicidade de possibilidades inscritas na transição da colônia para o impériodeve-se a C aio Prado Jr., para quem "o final da cena, ou antes, o primeiro grande acontecimentode conjunto que vamos presenciar será, não há dúvida, a independência política da colônia. Maseste final não existe antes dela, nem está 'imanente' no passado; ele será apenas a resultante deum concurso ocasional de forças que estão longe, todas elas, de tenderem, cada qual só por si , paraaquele fim", {Formação do Brasil contemporâneo: colônia (São Paulo: Brasiliense, 1942).

Posteriormente, Sérgio B uarque de Holanda, "A herança colonial - sua desagregação", em História geral da civilização brasileira, tomo II, O Brasil monárquico (São Paulo: Difel, 1960),aboliu definitivamente a dicotomia "brasileiros" versus "portugueses" como fundamento doprocesso de emancipação. Esboço tentativo de uma síntese dessas proposições está em MariaOdila da Silva Dias, "A interiorização da metrópole (1808-1853)", em Carlos G. Mota (org.),1 8 2 2 : dimensões, cit., p p . 160-84. Ainda que numa perspectiva diferente, Raymundo Faoro, comseu Os donos d o poder: formação d o patronato político brasileiro (Porto A legre: G lobo, 1958),e Emília Viotti da Costa, com "Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil", emCarlos G. Mota (org.), Brasil em perspectiva (São Paulo: Difel, 1968), p p . 64-125, enriquecerama percepção da complexidade do processo em pauta. O enquadramento macro-histórico daquestão recebeu impulso renovado com Fernando A. Novais, "As dimensões da independência",em Carlos Guilherme Mota (org.), 1 8 2 2 : dimensões, cit., pp. 15-26. Mais recentemente, estudos

vontade de emancipação política com o equivalente d a constituição d o Estado nacional brasileiro,14 assim como o é o reconhecimento de que o nexoentre a emergência desse Estado com a d a nação em cujo nom e ele foi instituído é uma das q uestões m ais controversas da nossa historiografia.15

valiosos têm dado continuidade ao debate, já desdobrando questões postas, já buscando novosenfoques. Apenas para pontuar algumas de maior impacto, cabe lembrar as obras de limarRohloff de M attos, O tempo saquarema. A formação do Estado imperial (São Paulo: Hucitec,1987); de José Murilo de Carvalho, A construção da ordem. A elite política imperial (Rio deJaneiro/Brasília: Campus/Ed. da U n B , 1980) e Teatro d e sombras. A política imperial ( S ã o Paulo/Rio de Janeiro: Vértice/Iuperj, 1988); de Roderick J. Barman, Brazil: The Forging ofa Nation(1798-1852) (Stanford: Stanford Univ. Press, 1988); de W ilma Peres Costa, "A economiamercantil escravista nacional e o processo de construção do Estado do Brasil (1808-1850)", emTamás Szmrecsányi & José Roberto do Amaral Lapa (orgs.), História econômica da Independência e do Império (São Paulo: Hucitec, 1996), pp. 147-59.

/ u Nos anos que se seguiram à independência, e durante todo o século XIX, uma construçãohistoriográfica foi adquirindo consistência. Seu objetivo: conferir ao Estado imperial que seconsolidava em meio a resistências um a base de sustentação no constituído de tradições e de um avisão organizada do que seria o seu passado. R esultou disso atribuir-se ao rompimento do Brasilcom Portugal um sentido de "fundação" tanto do Estado como também da nação brasileiros.Nessa tarefa, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838, e, em seu rastro, a

obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, contribuíram de maneira decisiva para a longevidadedessa visão de história. Sobre essas questões, ver Arno W ehling (coord.), Origens do InstitutoHistórico e Geográfico Brasileiro: idéias filosóficas e sociais e estruturas d e poder n o SegundoReinado (Rio de Janeiro: IHGB, 1989); e Lilia M . Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas,instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930 (São Paulo: Cia. das Letras, 1993).

> }5 Essa questão tem dois divisores de águas. O primeiro centra-se na idéia d e crise do Antigo Regime

e, em seu interior, do Antigo Sistema Colonial. O segundo organiza-se em torno do que se podechamar de arqueologia da nação. Relativamente à primeira questão, deve-se a Fernando A.Novais a percepção e a demonstração da importância interpretativa do conceito de crise, comseu fundamental Portugal e Brasil n a crise do Antigo Sistema Colonial, 1777-1808 (São Paulo:Hucitec, 1979), obra que permanece no centro do debate. Este tem como protagonistas historiadores do porte de Valentim Alexandre (cf. O s sentidos do Império: questão nacional e questãocolonial na crise do Antigo Regime português, cit.), que rejeita a análise de N ovais (e de toda alinhagem que remonta a Caio Prado Jr.) com base em ampla pesquisa documental, mas numaanálise relativa à história então em curso na América tem pontos frágeis que desequilibram a

arquitetura da obra, caso particular do capítulo dedicado às "I nconfidências" do final do séculoXVIII, e do conceito de crise que adota (cf. I. Jancsó, "O fim do Império", em Jornal deResenhas, n. 12, 8 mar. 1996). No Brasil, João Luís Ribeiro Fragoso e Manolo Florentino têm-se destacado na crítica às propo sições de N ovais e, para além dele, da tradição historiográfica naqual este se situa. Isso está nitidamente explicitado em Homens de grossa ventura: acumulaçãoe hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830 (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992), de Fragoso, e perpassa menos enfaticamente O arcaísmo como projeto. Mercadoatlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Diadorim,1993), dele em co-autoria com Florentino. Os estudos desses historiadores, enriquecidos com apublicação de E m costas negras. U m a história do tráfico atlântico de escravos entre África e R i ode Janeiro, séculos XVIII e XIX (São Paulo: Cia. das Letras, 1997), de Florentino, representamum avanço importante no conhecimento do período mas, paradoxalmente, a verticalização do

134 I s tv ó n J a n c s ó e J o ã o P o u l o G . P i m e n t a P e j a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d o i d e n t i d a d e n a d o n a l b r a s i l e i ro ) 1 3 5

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São agudas as divergências de interpretação quanto à interface dessasduas dimensõ es da realidade: Estado e nação. Os estudos têm privilegiadoa formação do Estado,16 reconhecido como brasileiro e, a partir daí (em

conhecimento da complexidade da formação social e dos mecanismos econômicos que lhescorrespondem acaba por corroborar as teses que são objeto de sua crítica. Quanto à arqueologiada nação, questão que ganha densidade no interior do debate historiográfico, desenha-se umatendência que visa a romper com a idéia de já ter existido, nos séculos que antecederam aemancipação política, uma identidade "brasileira" ou mesmo uma "consciência nacional" doscolonos. Profundamente enraizado tanto na memória coletiva quanto na historiografia que lheserve d e paradigma erudito, esse mito assume formas diversas. Uma de suas vertentes é aquela quese serve da idéia de nativismo, de longa tradição e nenhuma precisão conceituai, conformerevelado por estudos recentes como os de Rogério Forastieri da Silva, Colônia e nativismo: ahistória como "biografia da nação" (São Paulo: Hucitec, 1997); de Demétrio Magnoli, O corpoda pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil, 1808-1912 (São Paulo: Edunesp,1997); além de João Paulo G. Pimenta, Estado e nação na crise dos impérios ibéricos no Prata,1808-1828 (São Pa ulo, USP, 1998), dissert. mestrado, que analisa a questão em comparação comas historiografias argentina e uruguaia, onde merecem indiscutível destaque os estudos de JoséCarlos Chiaramonte, "El mito d e los orígenes en Ia historiografia latinoamericana", em Cuadernosdei Instituto Ravignani, n. 2, Buenos Aires, s.d.; e de Carlos Real de Azúa, Los orígenes de Ianacionalidad uruguaya (Montevidéu: Arca, 1991). Mas é preciso lembrar que nativismo temquase tantos significados quantos são os historiadores que d ele lançam m ã o , pelo que não se deve

confundir o uso que dele faz Evaldo C abral de Mello, autor que dele lança m ão como instrumentode expressão de uma especificidade histórica pernambucana; cf. Olinda restaurada (Rio deJaneiro/São Paulo: Forense-Universitária/Edusp, 1975); Afronda dos mazombos. Nobres contramascates. Pernambuco 1666-1715 (São Paulo: C ia. das Letras, 1995), com o que dele faz, entreoutros, Francisco Iglésias, para quem o mesmo nativismo pernambucano seria um esboço de uma"consciência nacional brasileira", cf. Trajetória política do Brasil, 1500-1964 (São Paulo: Cia.das Letras, 1993). A dificuldade em lidar com a intersecção de fenômenos com abrangênciasdistintas (dentre os quais os de caráter nacional e regional numa perspectiva teleológica) perpassa obras de historiadores de inegável importância, caso de A. J. Russel-W ood, que, em textorecente, vê, nos ajustes de relações entre centros e periferias ocorridas no século XVIII dentro doimpério português, a formação de um "senso de brasilidade" que teria obrigado a metrópole a"considerar o Brasil sob uma perspectiva mais brasileira do que portuguesa"; cf "Centros eperiferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808", em Revista Brasileira de História, vol. 18, n.36 , 1998, p p . 187-249. Numa outra vertente, estão estudos visando a desvendar as dimensões -e os limites - d e identidades políticas coletivas engendradas em condições coloniais, tais como o

de Carlos G. Mota, Atitudes de inovação no Brasil, 1789-1801 (Lisboa: Horizonte, s.d.); deIstván Jancsó, Na Bahia, contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798 (São Paulo:Hucitec, 1996); ou de Luciano de A. Figueiredo, Revoltas, fiscalidade e identidade colonial naAmérica portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e M inas Gerais, 1640-1761 (São Paulo: USP, 1996),tese de doutorado.

16 Estudos recentes sobre os mecanismos de funcionamento do aparato estatal imperial, em especialna esfera americana, têm revelado dimensões até então pouco conhecidas: Graça S algado (coord.),Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial (Rio de Janeiro: N ova Fronteira, 1990);Maria Fernanda B. Bicalho, A cidade e o Império: o Rio de Janeiro na dinâmica colonialportuguesa. Séculos XVII e XVIII (São Paulo, FFLCH-USP, 1997), tese de doutorado; Maria deFátima S. Gouvêa, "Redes de poder na América Portuguesa: o caso dos homens bons do Rio deJaneiro, 1790-1822", em Revista Brasileira de História, vol. 18, n. 36, 1998, pp. 297-330.

geral por inferência), admitido com o nacional. C omo a inferência tem eficácia investigativa sabidamente reduzida, vale a pena dedicar mais atenção aooutro termo dessa equação - a nação - para, a partir daí, avançar no entendimento da complexa relação entre ambos. Mas convém, antes de fazê-lo,apontar para duas preliminares.

Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que não é obra do acaso a

tradicional preferência dos estudiosos pelo Estado e os fatos a ele imediatamente conexo s. S em dúvida parece mais fácil lidar com variáveis nitidamenteobjetivadas (com o o são, por exemplo, as normas que configuram o E stado,incluindo-se aí, em situações-limite, o s projetos de sua radical subversão),do que fazê-lo com d imensões da realidade confinadas (desdenhosamente)ao universo da subjetividade, do sentimento e da emoção (em algum graupartilhadas pelo próprio historiador),17 casos da idéia de nação ou de identidade nacional. E ludir essa questão, entretanto, não resolve o problema posto pela evidente objetivação dessas expressões da subjetividade mediantepráticas políticas com poderosa interferência na definição dos ob jetivos queos homens se propõem a alcançar, pelo que é preciso reconhecê-las como

variáveis importantes d a inteligibilidade dos fenôm enos d e ordem política.18

Em segundo lugar, deve-se ter clara consciência da extraordináriaprovisoriedade das formas e significados que caracterizam as situações decrise, pois é dessa ordem o período d a emergência dos novos Estados nacionais latino-americanos, o que se estende tanto à noção de Estado quanto àde nação.19 Para os homens que viveram a dissolução d o império português

O avanço que já se faz notar nesse profícuo campo de estudos poderá contribuir para umposicionamento cada vez mais correto dos interesses políticos, econômicos e sociais dos colonosdentro do conjunto do império.

17 Para ilustrar o intrincado dessa questão, vale a pena recorrer à análise/testemunho de LucienFebvre, no recém-editado Honra e pátria (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998).

18 A esse respeito, ve r Pierre Vilar, "Reflexiones sobre lo s fundamentos d e I a s estructuras nacionales",em Hidalgos, amotinados y guerrilleros. Pueblo y poderes en Ia historia de Espaha (Barcelona:Crítica, 1982), pp. 279-306; José Ramón R ecalde, La construcción de Ia s naciones (Madri: SigloXX I, 1982); Eraest Gellner, Nações e nacionalismo (Lisboa: Gradiva, 1983); Benedict Anderson,Nação e consciência nacional (São Paulo: Ática, 1989); Eric J. Hobsbawm, Nações e naciona-lismos desde 1780: programa, mito, realidade (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990); AnthonySmith, Las teorias dei nacionalismo (Barcelona: Península, 1976).

19 Fernando A. Novais, "Condições da privacidade na colônia", e István Jancsó, "A sedução daliberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVII", ambos em História da vidaprivada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa (São Paulo: Cia. das Letras,1997). Ver também uma abordagem da questão para as primeiras décadas do século XIX emconjunto com a América espanhola, João Paulo G. Pimenta, Estado e nação na crise dos

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na América, a percepção da crise não se deu de modo uniforme, com o quedas diferentes percepções resultaram múltiplos projetos políticos, cada qualexpondo, com maior ou menor nitidez, o esboço da comunidade humanacujo futuro projetavam. Vem daí que aos projetos de futuro contrapostoscorresponderam outras tantas definições de Estado, cidadania, condiçõesde inclusão e exclusão, padrões de lealdade e critérios de adesão, cada qual

descrevendo elementos do pacto tido como adequado para transformarcomunidades em nação* Dessa forma, nunca se deve esquecer que aprovisoriedade característica do período traduziu-se na coexistência nãoapenas de idéias relativas ao Estado, mas também à nação e às correspondentes identidades políticas coletivas, eventualmente reveladoras de tendências à harmonização entre si ou , quando não, expressando irredutibilidadesportadoras de alto potencial de c onf lito ./

A conquista e colonização da Am érica em cada um de seus quadrantesdesdobrou-se, em algum momento, numa viragem: aquela mediante a qual oconquistador/colonizador tornou-se colono. I sso se deu, no caso da A mérica portuguesa, quando este se percebe não somente c omo agente da expan

são dos domínios do rei de Portugal (e por esta via, da cristandade), mastambém, e ao mesmo tempo, como agente da reiteração ampliada de umaformação societária particular informadora dos objetivos de sua ação, jáagora desdobramento de uma trajetória coletiva instituidora de sua legitimidade e ancestralidade. Essa foi a matriz da s novas identidades coletivas emergentes no universo colonial, sempre conformadas pela confrontação d e cadaqual com outras de similar conteúdo, já que não se deve esquecer que asidentidades coletivas são sempre reflexas.

A ssim é que os colon os de São P aulo reconheceram-se como paulistas,m a s , por aqueles outros dos domínios do rei de Espanha com quem se defrontavam, eram percebidos, antes de tudo, com o portugueses, e era assim

que se sabiam diante dos espanh óis. Portanto, ser paulista, pernambucanoou baiense significava ser português, ainda que se tratasse de uma formadiferenciada d e sê-lo. O que interessa ressaltar, aqui, é a concomitante emergência d e três diferenças. A primeira é aquela q u e distinguia u m português da

impérios ibéricos no Prata, 1808-1828, cit. A questão da provisoriedade com o característica dascolonizações portuguesa e espanhola já tinha sido anteriormente destacada por S érgio Buarque deHolanda em seu clássico Raízes do Brasil (Rio de Janeiro: José Olympio, 1936).

América (por exemplo, um baiense) de todos que não fossem portugueses(holandeses, franceses, espanhóis). A segunda, simultânea com a anterior, éa q u e lhe permitia distinguir-se, ao baiense, de outros portugueses ( p o r exemp l o , do reinol, d o paulista).20 Finalmente, uma terceira diferença é a que distingue, entre os portugueses, aqueles que são americanos dos que nãopartilham essa condição.

Essa con comitância de formas de expressar a diversidade er a perfeitamente compatível com os padrões do Antigo R egime português, ainda que aorganização política do absolutismo em colônia resultasse em práticas, estruturas operacionais e tramitações que, com sua implementação, se distin-guiam dos modelos metropolitanos, tal qual o senhor de engenho de Antonilnão se confundia com os fidalgos do reino.21 Como a questão está agoracentrada na dimensão p olítica (uma dentre outras) desse processo de emergência de identidades coletivas,22 convém verificar de que m aneira os problemas da vida vivida encontravam os meios de seu ordenamento e, a partirdaí, de sua representação.

É evidente que todos os caminhos do universo colonial centravam-se

em L isboa, correndo em paralelo na conformidade d os trâmites do ordenamento formal d o Estado. I sso era válido tanto para o todo do império lusoquanto para cada uma das suas dependências americanas. Mas quanto aestas, também há especificidades. N a Am érica portuguesa, à incorporaçãode no vos territórios ao controle efetivo da coroa (a jurisdição, com o regrageral, preexistindo à ocupação efetiva), e ao conseqüente m anejo econôm ico e político destes, correspondia o fortalecimento de centros de convergência com feição d e pólos articuladores d os múltiplos espaços sociais criados- sempre um a grande cidade, conform e o padrão estrutural proposto poryBraudel.23 A leitura dos autores contemporâneos é altamente elucidativa aesse respeito. No que se refere a Salvador, percebe-se desde os tempos de

20 A esse respeito, ver F. A. Novais, "Condições de privacidade na colônia", cit., pp. 23 e ss.21 J. A. Andreoni (André João Antonil), Cultura e opulência do Brasil (São Paulo: Nacional,

1967).22 A esse respeito, para o u niverso platino, com grande importância para as condições coloniais do

período, ver J. C. Chiaramonte, "Formas de identidad política en ei Rio de Ia Plata luego de1810", cit.

23 Fernand Braudel, Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVII: o jogo dastrocas (São Paulo: Martins Fontes, 1995).

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Gregório de M atos24 e Antonil25 , passando por Rocha Pita,26 por Caldas,27

em parte po r José da Silva Lisboa28 ou por Vilhena,29 que cada qual destacava a existência, convergindo para esta cidade, de rotas que integravam espaços hierarquicamente ordenados (o Recôncavo e suas cidades, os diversossertões e suas vilas), distintos mas complementares, pontos nodais de umatrama que con figurava a Capitania d a Bahia, uma dentre outras com as quais

agia, mas com as quais não se confundia.Essa construção de territórios (e da sua conseqüente representação),

/ dotados de tessituras sociais próprias pressup ondo precisa territorialidade,/ estabeleceu marcos das identidades coletivas no universo luso-americano,\ tanto definindo (recorrendo à expressão de Anderson) as rotas de peregri-\ nação, quanto os confrontantes nos quais essas identidades se espelhavam.

Essa trama, em permanente expansão, denota a complexidade crescente dosistema e do seu manejo político, o que se expressa em disputas entre governadores, rotas de contrabando interno, prioridades contrastantes na aloca çãode recursos escassos, seja de moeda para pagamentos devidos, de farinhada qual endemicamente se carecia, ou de soldados para fazer face a proble

mas que os requeriam, e muitas outras manifestações de estranhamento.30

Eé d e notar que o suces so de cada situação particular (regional) dos q uais senutria o projeto colonizador luso em seu conjunto estabelecia, no tocante àsidentidades coletivas tendencialmente politizadas, as condições para a emergência de sua múltipla negatividade. Pen se-se, por exemplo, na reação dospaulistas despojados do que tinham por seu bom direito com o advento docontrole político sobre a região das M inas Gerais com o conde de A ssumar,31

24 Ver Alfredo Bosi, A dialética da colonização (São Paulo: Cia. das Letras, 1992).23 J. A. Andreoni, op. cit.26 Sebastião da Rocha Pita, História da América portuguesa (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/

Edusp, 1976).27 J. A. Caldas, Notícia geral de toda esta Capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o

presente ano de 1769 (Salvador: Tip. Beneditina, 1951), edição fac-similar.28 José da Silva Lisboa, "Carta a Domingos Vandelli (18 out. 1781)", em Anais da Biblioteca

Nacional,vol. 42, Rio de Janeiro, 1958.29 Luís dos S antos Vilhena,Notícias soteropolitanas e brasílicas, 2 vols. (Salvador: Imprensa O fici

al do Estado, 1922).30 Uma crítica às proposições de Anderson em relação à América está em J. C. Chiaramonte, "El

mito de los orígenes en Ia historiografia latinoamericana", em Cuadernos dei Instituto Ravignani,n. 2, Buenos Aires, UBA, s.d.

3 ' Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1 7 2 0 , edição deLaura de Mello e Souza (Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994).

in

P e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d a i d e n t i d a d e n a d o n a l b r a s i l e ir a )

tornada com o correr do tempo referência de uma ancestralidade contraposta à portuguesa e, no limite, negadora daquela. É esse o significado do sentimento de familiares de Inácio da Silva A lvarenga, conspirador nas M inasem 1789, ao proclamarem q ue sua família era, " p o r antigüidade do s paulistas",das primeiras da terra, ao que corresponderiam vantagens quando "essecontinente viess e a ser governado por nacionais, sem sujeição à Europa".32

Lendo a tentamente os Autos da devassa da Inconfidência Mineira,o que encontramos? O s envolvidos são "filhos de Minas", "naturais de M in a s " . A terra era o "País de Minas", percebido com o "continente" ou com ocapitania. O s "filhos de M inas" viam-se, também, é preciso lembrar, como"filhos da América". Das cerca de 7 4 ocorrências da palavra "Am érica" n osAutos, em pouco menos da metade dos casos esta designava o todo daAm érica portuguesa. Mas em outros momen tos, "América" referia-se à C apitania de M inas, sendo possível notar esse seu u so pelo contexto do discurso em q u e a s frases estão inseridas.33 Eis as identidades políticas coletivas: amineira (expressão do específico regional),34 a americana (expressão da relação de alteridade com os m etropolitanos, os europeus) e, evidentemente, a

portuguesa.35

32 Autos da devassa da Inconfidência Mineira (ADIM), vol. I, p. 124. Obviamente a expressão"nacionais" designa, aí, apenas naturalidade. Para a importância dos cuidados no trato do vocabulário político para evitarem-se anacronismos, ver, além de Chiaramonte, P ierre Vilar, Hidalgos,amotinados y guerrilleros. Pueblo y poderes en Ia historia de Espana, cit., e Sylvianne Rémi-Giraud & Pierre Retat (dir.), Les mots de Ia nation (Lion: PUL, 1996). Para a inconfidênciamineira: Kenneth Maxwell, A devassa da devassa. A inconfidência mineira: Brasil e Portugal,1750-1808 (2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978); Francisco C. Falcon, "O imagináriorepublicano do século XVI II e Tiradentes", em Seminário Tiradentes Hoje: imaginário e políticana república brasileira (Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994), pp. 25-76, ondeademais encontra-se também Maria L úcia Montes, "1789: a idéia republicana e o imaginário dasLuzes", ibid., pp. 101-38.

33

Os dados e quantificações estão em As identidades políticas coletivas na Capitania de MinasGerais no final do Século XVIII, de Roberta Giannubilo Stumpf, inédito.34 É conveniente lembrar que em documentação da época "mineiro" significa estritamente o

envolvido na atividade mineradora.35 As considerações têm-se centrado no colono, mas nunca se deve esquecer que este coexistia com

o colonizador. Em março de 1763, vereadores da Câmara de Vila Rica solicitaram ao trono que"filhos de Po rtugal" (era o seu caso) tivessem preferência sobre os "naturais da terra" no acessoaos cargos. A seu favor, traziam com o argumento serem eles e seus iguais os verdadeiros artíficesda grandeza e prosperidade dos domínios do monarca, aqueles que os têm povoado, e "comerciado todas as fazendas do R io de Janeiro para as Minas, penetrando as entradas da terra para aextração do ouro para o Real Quinto e [o] bem comum, estabelecendo fazendas, ideando engenhos de minerar, e ocupando imensas e copiosas fábricas na agricultura e lavoura do ouro. [ S ã o d ePortugal], enfim, os arrematadores dos muitos contratos [...] nestas Minas, e não os naturais

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Para designar o todo da A mérica portuguesa, o termo que se segue, emnúmero de ocorrências, é Brasil. Mas atenção: naturais da terra inquiridos,excluíd os os que integravam o aparato administrativo metropolitano, não utilizam o vocábulo Brasil para designar a territorialidade subjacente à identidade política coletiva que querem designar. Nada de brasileiros? 6 nenhumaidentidade política coletiva ultrapassando o regional. Na verdade, isso não é

de surpreender. A força coesiva d o conjunto luso-americano era indiscutivelmente a Metrópole, e o continente do Brasil representava, para os coloniais, pouco mais que uma abstração, enquanto para a M etrópole se tratava

^ de algo muito concreto, a unidade cujo manejo impunha esta percepção.37 Épor isso que é correto afirmar que a "apreensão de conjunto das partes a qu e'genericamente' se chamou de Brasil" estava " no interior d a burocracia es ta

ta l portuguesa".38

O reconhecimento da diversidade das identidades coletivas no universo colonial a partir do desdobramento d as trajetórias da s formações societáriasenvolvidas somente pode ajudar na compreensão da politização dessas identidades se consideradas as características básicas dessas sociedades, e de

suas estratégias particulares de reiteração. E isso implica reconhecer no^scravismo uma das variáveis ordenadoras do sistema, tanto no que lhe é

geral, quanto no respeitante a cada um de seus desdobramentos particulares.Ainda que passando ao largo dos múltiplos problemas que merecem

atenção, mas para pontuar a importância do escravismo, deve-se lembrar

dela". E não deixavam de lembrar que durante o tempo em que se "compôs a câmara de filhos dePortugal, mineiros e sujeitos estabelecidos na terra" os interesses do real erário foramcriteriosamente observados, o que deixou de ocorrer quando outros, escudados tão-somente "nanaturalidade da terra", passaram a empolgar as posições disputadas. Eis o colonizador, aquele que"tem dilatado este Império de Vossa Magestade", confrontado com o colono que não apenasdisputava primazias com base em direitos advindos de uma ancestralidade específica con traposta

à genérica portuguesa, mas que atribuía a esta uma qualidade tal que lhe autorizava ver "a todos osde Portugal [como] homens comuns, com outros mais opróbros". A carta está no ArquivoHistórico Ultramarino (cx. 81, doe. 16) e foi localizada por Roberta G. Stumpf, a quem osautores agradecem. É de notar, ainda, que essa coexistência de colono e colonizador enquantoexpressões de referências conflitantes, o mais freqüentemente é encontrá-la no m esmo personagem que oscila entre um e outro.

36 Ou de "brasilienses" ou "brasilianos" que poderiam eventualmente ser tomados por eq uivalentes.De resto Tomás Antônio Gonzaga é o único a utilizar a expressão "povos do Brasil", cf. R. G.Stumpf, op. cit.

37 Ibid.

38 Afonso M. dos Santos, No rascunho da nação: inconfidência no Rio de Janeiro (Rio de Janeiro:Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 1992), p. 141.

que, para os colon os, o ordenamento estamental da sociedade erigia-se com ofundamento d a boa ordem baseada n a natural e necessária desigualdade entre os hom ens. O corre, e isto é de absoluta relevância, que a generalizaçãodo escravismo resultava na erosão do sistema estamental, posto que oescravismo inviabilizava a participação do portador desta condição n a complexa tessitura de liberdades desiguais cuja trama tinha por pressuposto oexercício de algum direito. A s sociedades escravistas coloniais repousavam ^sobre a exclusão de um segmen to fundamental - os escravos - das relaçõesque em seu interior eram pactadas, e que definiam a sua feição.39 Mas essasrelações pactadas se efetivavam na concomitante prática de outras relaçõesmuito concretas, já agora envolvend o a totalidade dos m embros dessas so ciedades - inclusive os escravos - e que eram vitais para a sua existência: asrelações de trabalho. Nã o é difícil perceber que os homens de então se viamdiante de uma fratura entre a realidade objetiva da vida social e a sua representação. Essa fratura de grande poder dissolvente do paradigma original(peninsular) das sociabilidades é poderosamente ilustrada pela indignaçãode Vilhena diante do pouco apreço dos naturais da Bahia pelo respeito àscondiçõe s distintivas típicas da sociedade do A ntigo R egime, quer se tratede escravos,40 quer dos poderosos da terra,41 ainda que estes fossem extremamente z elosos na ostentação das exterioridades de sua condição, conforme o registro mordaz de Silva Lisboa. 42 E é evidente que tudo isso tempoderoso impacto sobre a configuração das identidades coletivas e, maisainda, sobre suas con dições de politização n um contexto no qual a clivagemracial como linha d e demarcação da s exterioridades que permitiam distinguirhomens livres de escravos tendia à diluição. O caráter cumulativo do resultado das mú ltiplas m odalidades de obtenção da alforria resultou no aumentodo número de hom ens livres com origem africana, fossem negros ou pardos,

39 O escravismo subvertia o modelo, no qual não cabia boa parcela dos homens livres que tinhamnesta condição a origem de sua linhagem. Ver, para tanto, Florestan Fernandes, Circuito fechado : quatro ensaios sobre o "poder institucional" (São Paulo: Hucitec, 1976). Quanto a essaquestão, é de notar que os estudos de S tuart Schwartz e João José Reis sugerem a hipótese de queas aspirações de padrão estamental (busca da diferenciação formal das condições individuais)tinham largo curso entre a população escrava, configurando poderoso instrumento de acomodação de tensões; cf. J. J. Reis (org .), Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negrono Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1988).

40 L. dos S. Vilhena, op. cit., vol. 1, p. 108.41 Ibid., p. 136.42 J. da S. Lisboa, op . cit.

142 I s t v ó n J a n c s ó e J o ã o P a u l o G . P i m e n t a P e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d a i d e n t i d a d e n a c i o n a l b r a s i l e i r a ) 1 4 3

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o que tendia a reforçar o apego da elite (ou dos aspirantes a pertencer a ela)à identidade portuguesa, condição da necessária "pureza de sangue" paraquem almejasse galgar a escada social do Antigo Regime. 43

D e resto, apolitização dessas identidades coletivas que então em ergeme definem seus contornos se dá num contexto no qual a crescente complexidade d a vida econôm ica instaura novas abrangências que ex igem atenção. A

primeira destas é a da Am érica portuguesa, vale dizer, deste continente doBrasil como era chamado, esboçando novas conexões na esteira das rotasdas mercadorias, das quais o fluxo conectava m ercados regionais crescentemente dinâmicos,44 a diversidade gerando a possibilidade de integração. Asegunda abrangência a ser considerada é aquela d o locus de realização dasmercadorias coloniais: o mercado europeu ou, tornando o processo aindamais com plexo, o mercado africano (tanto de escravos quanto de produtos

43 Mas essa diluição da concomitância de predicado racial e estatuto jurídico de seu portador tinha

como contrapartida fazer com que homens livres de baixa condição econômica e escravosacabassem por se amalgamar num conjunto q u e , nas grandes cidades principalmente, partilhavampadrões de sociabilidade semelhantes, fossem esses de caráter religioso, econômico, de parentesc o , construindo redes de lealdade que poderiam transbordar para a esfera política. D. FernandoJosé de Portugal percebia o potencial explosivo desse fenômeno ao informar a corte de quepouco havia a temer quanto às simpatias de membros d a elite baiana por idéias subversivas, já quea sua lealdade ao trono decorria, entre o utros fatores, do risco de uma insurreição de escravos quetinham por inimigos os seus senhores, dando forma ao temor de que, sob formas m utantes, seriaconstitutivo d a s relações raciais, sociais e políticas do período subseqüente. A carta d e d . Fernandoestá em Inácio Accioli de C. e Silva, Memórias históricas e políticas da Província da Bahia(Salvador: Imprensa Oficial do E stado, 1931), vol. III, p . 1 3 4 . Sobre essas relações horizontais naesfera dos estratos inferiores das sociedades coloniais, ver, de Laura de Mello e S ouza, Desclassificados do ouro (Rio de Janeiro: Graal, 1982), e também Norma e conflito: aspectos d a históriade Minas no século XVIII (Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999), sobre coartação, especificamente, pp. 151-74; L eila Mezan Algranti, O feitor ausente. Estudo sobre a escravidão urbanano Rio de Janeiro (Petrópolis: Vozes, 1988); Mary C. Karasch, Slave Life in Rio de Janeiro,1808-1850 (Princeton: Princeton Univ. Press, 1987); Maria Inês Cortes de Oliveira, O liberto:o seu mundo e os outros, 1790-1890 (Salvador/Brasília: Corrupio/CNPq, 1988); Kátia de Q.Mattoso, Ser escravo no Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1982).

44 Para o estudo desse fenômeno na área de influência do Rio de Janeiro, ver Alcir Lenharo,As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil, 1808-1842(2 . ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1992); Cecília Helena de Salles Oliveira,A astúcia liberal. Relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro, 1820-1824(Bragança Paulista: Edusf/ícone, 1999); J. L. R. Fragoso, Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia n a praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830 (Rio de Janeiro: ArquivoNacional, 1992); e do mesmo autor e M. Florentino, O arcaísmo como projeto: m ercadoatlântico, sociedade agrária e elite mercantil n o R i o de Janeiro C.1790-C.1840 (Rio de Janeiro:Diadorim, 1993).

americanos).45 E ao fazê-lo, não há como ignorar que esses m ercados atravessavam uma conjuntura de profundas transformações, m esmo porque, riofinal do século XVIII, a desordem revolucionária penetrava em todos osseus poros. E também não há como deixar de reconhecer que é dessas transformações que a s negatividades inscritas nas identidades coletivas derivadasdo sucess o do empreendimento colonizador se alimentavam. Esse foi, e nem

poderia deixar de ser dessa maneira, u m processo errático, inscrito nas mentes e nas práticas dos homens que em seu interior se defrontavam na buscade alternativas para uma situação que não lh es parecia conveniente preservaro u , então, que percebiam como ameaçada e forcejavam em manter. Estaafirmação, que beira a obviedade, remete a outra, já menos evidente: a crisenão aparece à consciência dos hom ens como m odelo em via de esgotament o , mas como percepção da perda de operacionalidade das formas consagradas de reiteração da vida social. Em outras palavras, é na generalizaçãod a busca d e alternativas que a crise se m anifesta.46

N uma situação de crise, a urgência de sua superação desdobra-se noreordenamento das referências, já que os homens buscam, para além da

reiteração das condições sociais de existência, a instauração de formas previsíveis de vida social. Todo projeto de mudança supõe, ao fim e ao cabo, ainstauração da ordem no lugar do que é percebido como desordem. E todoprojeto de uma nova ordem implica o esboço mais ou menos preciso dacomunidade que partilhará, e de como deverá fazê-lo, a trajetória comu mque levará à nova, aquela "boa ordem que para este fim se tem pensado",47

nos termos de um dos pasquins remanescentes dentre os afixados na Bahiaem 12 de agosto de 1798. Para os seus autores, o contorno da comunidadeque partilhará dessa no va ordem é definido com clareza. Trata-se do "PovoBaiense",48 para o qual "está para chegar o tempo feliz da [...] Liberdade".49

Essa futura nova ordem, instauradora da "liberdade, igualdade e fraterni

dade",50 impõe, n o presente, que se faça uma revolução "nesta cidade e seu

45 LuísF. de Alencastro,Lecommercedesvivants: traited'esclaveset "paxlusitana"dansVAtlantiqueSud, Paris, 1985, tese de doutorado.

4 6 1 . Jancsó, Na Bahia contra o Império. História do ensaio de sedição de 1798 (São Paulo:Hucitec, 1996), p. 203.

47 Cf. K. de Q. Mattoso, Presença francesa n o movimento democrático baiano de 1 7 9 8 (Salvador:Itapuã, 1969), p. 152.

48 Md., p. 150.49 Ibid., p. 148.50 lbid., p. 157.

144 I s t v á n J o n c s ó e J o ã o P a u l o G . P i m e n t a ' P e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d a i d e n t i d a d e n a c i o n a l b r a s i l e i r a ) 1 4 5

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termo",51 para que finde "para sempre o pé ssimo jug o ruinável da Europa".52

E tudo isso se fará para que "qualquer comissário, mercador, mascates, lavradores de mandioca, fabricantes de açúcar, tabacos, hajam de ter o direitosobre as suas fazendas".53

N os termos dos pasquins o povo é o baiense, pelo que é inútil procuraro brasileiro. Este é o povo que configura a comunidade imaginada, a nação

pensável, opondo-se ou aliando-se a outras nações de acordo com os seusinteresses. E ainda q u e os pasquins nã o mencionem expressamente a extinçãodo exclu sivo colonial como objetivo central do "povo baiense republicano",esse d eixar de fazê-lo vem de que era por demais evidente que a supressãodos víncu los coloniais, centro do projeto político da revolução mediante aqual tornar-se-ia possível adotar "a total Liberdade Nacional", 54 dá cabalconta da questão, bastando, portanto, esclarecer de público que "aqui virãotodos os estrangeiros tendo porto aberto". 55 Afinal, sendo o exclusivo mecanismo (um dentre outros) da dominação metropolitana, nos termos do A ntigo Regime e do sistema colonial, que em seu interior o capitalismo mercantilengendrou, suprimida a condição de sua vigência (a da dominação metropo

litana), suprime-se ipsofacto seu instrumento (o exc lusivo).Tu do isso o bviamente não é linear ou transparente, afinal a nova ordem

desejada estava sendo esboçada com base em interesses individuais e coletivos muito reais, palpáveis e sobretudo díspares, além d e (retornando aoterreno da obviedade), dada a natureza da crise, conflitantes entre si. A urgência na instauração da ordem encerra grande potencial gerador de conflit o s , mas estes, ainda q u e envolvam indivíduos ou grupos sociais que tenhampor base os m esmos interesses objetivos, podem resultar em projetos referidos a temporalidades diversas, o que tem inegável importância operativa.Indivíduos e grupos com os m esmos interesses objetivos podem ver na restauração da ordem perdida o u , pelo contrário, na destruição final das sobre-

vivências daquela, o melhor caminho para a superação da desordem. O ra, atemporalidade diversa a referir os projetos (passado ou futuro) não suprimea contemporaneidade das práticas, dos interesses, dos conflitos e, ao fim e

51 Ibid., p. 151.52 Ibid., p. 155.53 Ibid., p. 152.54 Ibid., p. 155.55 lbidem.

ao cabo, das diversas identidades políticas coletivas, inclusive as de tiponacional.

" N a Bahia do final do século XV III coexistiam diferentes projetos defuturo, assim como várias identidades políticas coletivas. Para d. FernandoJosé de Portugal, governador d a capitania e integrante d a elite política reformista cujo expoente maior era o conde de Linhares, a nação era una e

indivisível[na^e^ttema diversidade de suas partes; a nação portuguesa. A tendendo a solicitação da Secretaria de Estado (o ano é de 1798) para queopinasse sobre a conveniência d e se modificarem normas referentes ao transporte de escravos, reconhecidamente exigindo reformas, d. Fernando étaxativo quanto à conveniênc ia de alterá-las, mesm o porque, para além da"Nação portuguesa que procurou remediar estes males, outras Nações comoa Grã-Bretanha têm também dado providência para [...] evitar" 56 a condenável e irracional desumanidade das condições deste transporte. A nação é aportuguesa, mas a referência é o E stado, conforme se pode ver pelo termode comparação, ond e a G rã-Bretanha é tomada por nação.51 Isso não devesurpreender, na medida em que essa concepção está em estrita conformida

de com o que pensa, entre outros, o próprio d. Rodrigo de S ousa Coutinho,para quem "o português nascido nas quatro partes do mundo" o é porqueparticipa de um Estado "cujo sacrossanto princípio da unidade [é] a Monar-\rquia [...] a que tem a fortuna de pertencer".58 Para esses hom ens a única >identidade nacional era aquela que remetia ao Estado e, por essa via, à monarquia, pelo que portugueses eram os fiéis vassalos dos Braganças. Nãoque passassem ao largo da diversidade, afinal viam com clareza a nação

56 Arquivo Nacional-Fundo Marquês de Aguiar, of. n. 121, de 4 jul. 1800, no qual "responde-selargamente a carta regia de 22 ago. 1799 que trata do regimento das Arquiações (de 1684) daobrigação de tocarem as embarcações destinadas ao comércio da escravatura nas ilhas de SãoThomé e Príncipe, e sobre capelão", f. 2.

57 Compare-se esta idéia de nação com outra vigente no século anterior. Para frei Simão deVasconcelos, S J, "a nação portuguesa se tem diversa da castelhana, esta da biscainha, a biscainhada francesa, da holandesa, e t c . porque tem diversas línguas umas das outras; e tanto mais diversassão as nações, quanto são mais diversas as línguas. Diversas regiões são as de Roma, e da S icília;contudo porque os homens delas falam um a só língua, é uma só nação. Diverso príncipe é o dosromanos, que é o Papa, e o dos sicilianos, que é o r e i de Espanha: contudo essa diversidade nã o fazdiversa a nação R omana, e S iciliana"; cf. fr. Simão de Vasconcelos, Crônica da Companhia deJesus (Petrópolis/Brasília: Vozes/INL, vol. 1, 1977), pp.110 e ss. (I a edição de 1663).

5 8 "Memória sobre o melhoramento dos domínios da América", em M . C . d e Mendonça, O intendente

Câmara (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1933), p. 270.

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146 I s t v ó n J a n c s ó e J o ã o P a u l o G . P i m e n t a

constituindo "um só todo com posto de partes tão diferentes".59 Apenas quea cultura política do absolutismo ilustrado recusava o reconhecimento dapolitização dessa d iversidade, tida po r incompatível com o racional manejopolítico do império, cujas partes "jamais poderão ser [...] felizes" a não ser"na reunião de um só todo"60 amalgamado p ela monarquia, mas à qual era

preciso reformar p or exigência da s Luzes. A assimilação dessas na esfera dopoder, sempre atendendo à lógica da preservação do sistema imperial e deseus fundamentos so ciais e políticos, passa por desdobramentos que acelera m o rompimento dos limites definidos de antemão, o que, na prática, erodea legitimidade do poder absoluto do soberano,61 cuja cabeça rolou na Franç a , e todos o sabiam. Dess e mod o, é no espaço da colônia, local da máximaopressão, que são criadas as condições para que sejam ultrapassados oslimites que para a metrópole eram su a própria salvaguarda: som ente n a colôn ia poder-se-ia vislumbrar a alternativa da rupturapolítica,62 o que, de resto,não é uma particularidade do A ntigo R egime português.63 Convém lembrarqu e a maior radicalidade social da violência revolucionária francesa deu -seem S ão Dom ingos, situação colonial e periférica, do que os contemporâneosbem sabiam e bem temiam.

O que ocorreu na Bahia de 1 798, ao contrário das outras situações decontestação política na América portuguesa, é que o projeto que lhe erasubjacente não tocou somente na condição (a dominação política), ou noinstrumento (o exclusivo ), da integração subordinada da s colônias no império luso. Dessa feita, ao contrário do que se deu nas M inas Gerais (17 89), asedição avançou sobre a sua decorrência: o escravismo. Não porque suaabolição fizesse parte do projeto revolucionário explicitado no s pasquins,mas porque o ingresso na sociedade política de homens egressos dessa con dição, fossem livres ou escravos, ultrapassou os limites do que poderia serassimilado pelas classes dominantes no interior da s formações sociais resultantes da colonização portuguesa na Am érica. A exigência programática de

59 Ibidem.60 Ibidem.61 Débora Pupo, Cultura política e identidades coletivas na Bahia de 1798, São Paulo, 1998,

inédito.62 F. A. Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, cit., cap. 3.63 Essas manifestações de crise em áreas periféricas de E stados absolutistas do final do século XV III

estão apontadas em I. Jancsó, Na Bahia contra o Império, cit., pp. 163 e ss.

P e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d a i d e n t id a d e n a d o n a l b r a s i l e ir a ) 147

um a nova ordem na qual os "homens pardos e pretos [...] todos serão iguais"64

não politizou apenas a questão social mas também a questão racial, com oque o discurso se radicalizou, apontando para uma contradição inerente àcultura política à qual se referia, e cuja base repousava sobre a igualdadejurídica dos cidadãos e no respeito integral ao direito de propriedade. Sendo

o escrav o propriedade, a sua simp les existência criava um impa sse para asoldagem dos interesses dos diversos estratos contra os inimigos do povo.Este era o baiense, mas para que viesse a constituir-se em nação seria preciso q u e , mediante u m pacto político instituísse o Estado q u e lhe desse forma.É por isso que a idéia de nação presente nos pasquins apenas aparentementesegue o modelo ilustrado de d. Fernando (nação = Estado), afastando-sedeste radicalmente pois se fundamenta na vontade dos po vos e não n o papelcoesivo do trono. O nacional dos autores dos panfletos sediciosos distingue-se daquele da ilustração quanto ao fundamento que lhe é subjacente, e ocaminho de sua instauração é a revolução, condição necessária do novopacto político instituidor d o Estado e da nação. Vem daí q ue é inútil procurar

alguma ideologia nacionalista entre os sediciosos baianos de 1798. A novaordem q u e propugnavam nã o buscava su a legitimidade em direitos históricosou em ancestral trajetória comum, típicos dos nacionalismos europeus emergentes no século XV III. O confronto delineado em 1798 n a Bahia colocavafrente a frente a m onarquia absoluta e uma comu nidade que afirmava terconfiguração específica; o povo baiense instituidor potencial de um novoEstado que viria a ser nacional mediante um pacto de cidadãos, aqueles"baianos [que quando] longe de si lançarem mil desp óticos tiranos, felizes esoberanos nas suas terras serão".65 O inimigo do povo não tinha uma configuração nacional, a opressão não era percebida como a de uma nação estrangeira. Não era assim que a dominação era reconhecida, pois a privaçãoda liberdade d o povo baiense não advinha da sujeição à nação portuguesa, -mas a o trono. Este era reconhecido com o o supressor da liberdade por viado Estado que lhe servia de suporte e com o qual se identificava. Nuncadevemos esquecer que o universo mental dos que, na Bahia de então, propuseram o rompimento com o trono era o dos homens do século XVIII,fortemente marcado pela condição colonial. E no que diz respeito à questão

64 K. de Q. Mattoso, op. cit., p. 157.65 Anais do Arquivo Público da Bahia (AAPB) (Salvador, Imprensa Oficial da Bahia, 1959), vol.

3 5 , p. 223.

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1 4 8 I s tv ó n J a n c s ó e J o ã o P a u l o G . P i m e n t a

nacional, é bom lembrar que, mesmo no centro revolucionado do AntigoReg ime europeu, o nacional mal começava a assumir nítido contorno polític o , e men os ainda traduzir-se em ideo logia política. E se L ucien Febvre temrazão ao afirmar que a nação é " u m a realidade psicológica profunda [...] quemodela rigorosamente todos os indivíduos no interior do seu quadro [...],

detentora de um patrimônio cultural do qual participam todos o s seus mem bros",66 o que se percebe nessa B ahia de final do século não se aproxima dasua proposição. A q ue comunidade politicamente instituída os baianos expressavam seu pertencimento? Tem os aí pelo men os duas variantes, agoracontrapostas. Por um lado, estão os qu e se têm por portugueses, no estritosentido de fiéis vassalos de sua majestade. Por outro, estão os que se têmp o r baienses, eventualmente republicanos, conforme já se viu. E m am bos oscasos se trata dos que têm por pátria a Bahia, uma pátria que ainda nãoengendrou u m patriotismo político a ela referido, e em cujo interior identidades políticas distintas coexistiam e se confrontavam n a gestação histórica dealternativas de futuro cujas formas apenas se esb oçavam .

A instalação da corte bragantina no R io de Janeiro produziu enorm eimpacto sobre a percepção que os homens da época tinham da adequaçãodo Estado português ao novo equilíbrio entre as suas diferentes partes. OCorreio Braziliense, atento a essa situação, alertou para o problema aoponderar que

um M onarca, que possui tão extensos domínios, como é o Soberano de Portugal, nãodeve fazer distinção entre província, e província de seus Estados, resida a corte ond eresidir. A Beira, o Algarve, o Brasil, a índia devem todos ser considerados comopartes integrantes do Império, devem evitar-se as odiosas diferenças de nome, deCapitanias e Províncias, e ainda mais se devem evitar as perniciosas conseqüênciasque desses errados nomes se seguem. 67

N ão s e tratava, entretanto, e autor e leitores sabiam disso, de questõesde forma ou precedência, por maior relevância que essas dimensões da vidapolítica assumissem na época. Tornou-se patente, insistindo em saber sabid o , que as partes da América, liberadas dos constrangimentos d o exc lusivocolonial, viviam o encerramento de u m a modalidade multissecular d e dependência, protagonistas de um a ruptura histórica que reconheciam com o pro-

66 L. Febvre, op. cit., p. 230.67

Correio Braziliense, vol. IV, n. 23, abr. 1810; J. P. G. P imenta, op. cit., 2a parte, cap. 2.

P e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d a i d e n t i d a d e n a c i o n a l b r a s i le i r a ) 149

funda e cujos desdobramentos eram imprevisíveis. Que tudo isso se tenhadado mediante a combinação de elementos de permanência e mudança équase redundante em se tratando de acontecimentos que não estavam inscritos na ló gica da trajetória precedente do império,68 mas a os quais era imperativo, n a situação advinda, conferir u m a inteligibilidade q u e acomodasse não

apenas as experiências políticas já acumuladas, mas também o s projetos defuturo que delas derivavam.

N o plano da vida política convém , antes de tudo, chamar a atençãopara a alteração na configuração da sociedade que a ela tinha acesso, processo magnificado no Rio de Janeiro, mas com repercussões nos grandescentros de convergência dos dom ínios luso-americanos, aqueles que constituíam os po ntos nodais da estrutura imperial. A instalação do aparelho central de poder incrustou n a América u m a elite política cujos mem bros, em suamaioria, eram adventícios nesse quadrante e sentiam-se vivendo sob o signod a provisoriedade, constrangidos a isso por obra das circunstâncias d a grande política européia. Não eram colonizadores ou delegado s da coroa, eram

exilados ainda que em do mínios de seu rei, cabendo-lhes, paradoxalmente,assegurar a perfeita continuidade das ações de governo nas novas condições. N ão é n ecessário insistir no fato de que a realidade prevaleceu sobreas intenções, imprimindo-lhes sua marca, com o que a ilusão da perfeitacontinuidade traduziu-se numa série de acomodações cuja história é a dacrise do An tigo R egime português. O qu e é de destacar é que na nova situação am pliou-se grandemente o número de personagens que formavam a so ciedade po lítica69 n a Am érica portuguesa, se confrontado o quadro emergentedo 1808 com aquele prevalecente anteriormente a essa data.

68 O estudo de Maria de Lourdes Viana Lyra, A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil:

bastidores d a política, 1798-1822, traça o nexo histórico da peculiar lógica da instalação da sededa monarquia no Brasil. Ainda q u e a arqueologia dessa alternativa afinal prevalecente seja sugestiva, não há como deixar de reconhecer que ela derivou da imposição de circunstâncias quetornaram-na a única alternativa tida então por exeqüível para a sobrevivência da dinastia, o queeqüivalia dizer, da soberania do estado português. Para o simultâneo processo em curso naAm érica espanhola, ver François-Xavier Guerra, "A nação na América espanhola: a questão dasorigens", publicado originalmente em La Pensée Politique, n. 3, número temático "La Nation"(Paris: Gallimard/Le Seuil, 1995), traduzido para o português pelo professor d r. Marco Morei.

69 O conceito de "sociedade política" aqui adotado remete a Antônio Gramsci, Maquiavel, apolítica e o Estado moderno, com o que afastamo-nos da idéia de "elite política" tal qualutilizada por J. M. de Carvalho, o p . cit., especialmente p p . 16,48, e por K . de Q . Mattoso, Bahia,século XIX. Uma Província no Império (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992), especialmenteo c a p . XVI.

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150 I s t v ó n J a n c s ó e J o ã o P a u l o G. P i m e n t a

E m primeiro lugar, a sociedade política foi grandemente alargada com ainstalação d a corte e da nata da administração imperial (e sua clientela), pessoas que desconheciam na maior parte os padrões de sociabilidade vigentesna América, e viam no domínio dos  ritos peninsulares (sociais, econômicos,culturais ou políticos) instrumento de afirmação de sua diferenciação (quan

do não , de sua superioridade) em relação aos da terra. A instalaçãoda

corteno R io de Janeiro em m eio aos esforços para dotar a cidade das características compatíveis com a sua nova condição, isto é, dar-lhe feição européia,dava suporte à ilusão dos reinóis de que os padrões de sociabilidade assimilados em Portugal poderiam ter plena vigência n a s partes do B rasil. M as nãoeram somente as gentes da corte os novos atores políticos que buscavamfazer valer seus interesses, conforme revela um a devassa que teve lugar em1810 no Rio de Janeiro.70

E ssa devassa é uma peça rara. As autoridades foram levadas a abri-lapor temor de preparação de um a ação subversiva, no limite revolucionária.Detiveram como suspeitos a Francisco Xavier de Noronha T orrezão, oficialda Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarin o s , e Manuel Luís da Veiga, hom em de cabedias radicado em Pernambuco,ambos peninsulares, mantendo-os presos por algo como cinco meses. Como correr dos interrogatórios abandonou-se a busca de eventuais nexos dasuposta trama subversiva, pois revelou-se impossível esclarecer a quem erajusto atribuir intenções de teor sedicioso, aquelas mesmas cuja notíciadeflagrou o pro cesso. A o final, as autoridades acabaram por admitir a hipótese de que tudo não passava de condenáveis excessos verbais, o que, deresto, bastava para justificar tanto a sua ação quanto o constrangimento a oqual foram submetidos os en volvidos.

Ainda que o projeto subversivo seja por tudo inverossímil, a curiosaconcordância dos envolvidos quanto a ter sido proferidas expressõesindicativas de desapreço ao poder acaba por revelar, se não a existência dealguma trama revolucionária em curso, o fato de que a eventualidade dedesordens políticas envolvendo a plebe urbana era cogitada, avaliada e tida

70 Devassa de 1810 - A uto de perguntas feitas a Manuel Luís da Veiga e a Francisco Xavier deNoronha Torrezão, oficial da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos. Arquivo Nacional (AN), Coleção Devassas, caixa 2.754. Este documento foi analisadopor Andréa Slemian, "Uma análise da sociabilidade política no Império português: uma Devassaem 1810 no Rio de Janeiro", paper apresentado no XIV Encontro Regional de História - Sujeitona História: práticas e representações, São Paulo, PUC, 1998.

P e ç a s d e u m m o s a i c o (o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o da e m e r g ê n c i a da i d e n t i d a d e n a c i o n a l b r a s i l e ir a ) 1 5 1

com o instrumento de pressão política objetivando a revisão de medidas específicas (no caso em pauta: o Tratado com a Inglaterra) ou, no limite, doordenamento político da sociedade, isto é, a tão temida revolução. T rata-sede idéias constantes dos autos, e seu curso em meio a conversações contemplando assuntos de interesse dos en volvidos (para Veiga, privilégios relativa

mente ao mercado do s produtos de sua manufatura; para Torrezão, acesso acargos de maior importância na administração), é revelador de uma variantede cultura política que se espraiava pela corte, corpo doutrinário informe etendente a fissuras e à diversificação, versão ampliada do q u e já estava emcurso durante o fim do período colonial. 71 Com tudo isso, essa Devassa de1810 expõe, sob a feição de uma aparente comédia de erros, os meandrosda relação entre cultura política e interes ses práticos no interior da sociedadepolítica na América. Percebe-se, poucos anos tendo se passado desde oinquérito promovido pelo Senado da Câmara da cidade de Salvador porsolicitação do conde da Ponte, em 1807, quando um punhado de letradosdebruçou-se sobre o estado vigente e as perspectivas de futuro da economiada Bahia,72 que os termos do debate se alteraram radicalmente no Brasil.Naquele quadrante, as normas do pacto colonial eram apontadas como ogrande obstáculo para a expansão das atividades econômicas, com o quepleiteava-se a sua revisão, cond ição da liberação dos proprietários para fazer o melhor uso de seus capitais. Com a supressão do exclusivo abriu-seuma nova conjuntura impondo outros parâmetros para o debate político,que passou desde então a incorporar ingredientes que antes eram tipicamente peninsulares.

M anuel Luís da Veiga surge como um homem dos novos tempos - oempreendedor moderno - pondo em prática o que Rodrigues de Brito eseus companh eiros na Bahia desejavam. E le propõe-se a implantar uma fábrica de cordas valendo-se de técnica desconhecida nos domínios lusos,ainda que já praticada na índia inglesa. Move-lhe, à parte o natural desejo delucro, o conhecim ento d os mercados, tanto daquele comprador (tem contatos nas praças de Salvador, Ilhéus e R io de Janeiro, além da de Pernambuco,

7 ' Ver I. Jancsó, "A sedução da liberdade", cit.72 Os pareceres elaborados por João Rodrigues de Brito, Manuel Ferreira da Câmara, José Diogo

Ferrão Castelo Branco e Joaquim Inácio de Cerqueira Bulcão foram editados por F. M. de G.Calmon, A economia brasileira no alvorecer do século XIX (Salvador: Progresso, 1923), 1*edição publicada em Lisboa, 1821.

152 I s t v ó n J a n c s ó e J o ã o P a u l o G . P i m e n t aP e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d a i d e n t i d a d e n a c i o n a l b r a s i l e i r a ) 1 5 3

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onde pretendia instalar a empresa), quanto do mercado fornecedor de matéria-prima (a fibra de coc o), abundante no litoral. Tem con sciência d a importância do empreendimento, cuja escala não era irrelevante. A companhia àcuja testa está (e que reúne sócios ingleses) dispunha de fundos da ordem de120 contos de réis (o valor de um bom engenho de açúcar em operaçãoorçado, então, por volta de 80 contos de réis), 73 e Veiga estimava em 400contos de réis o valor da matéria-prima a ser beneficiada. Dotado de m eiosmateriais para o empreendimento, o qu e veio buscar no R io de Janeiro? Aresposta é clara: obter privilégios extensivos ao império,74 e não apenas àCapitania de Pernambuco como lhe ha via sido concedido. Quem obstaculizavasuas pretensões? A Junta de Comércio. A quem supunha estar por trás desuas dificuldades? José da Silva Lisboa75 e, por esta via, o livre comércioque, n a forma com o estava regulamentado, transformava os produtos ingleses em adversários formidáveis das manufaturas nacionais.

A devassa expõe, portanto, o deslocamento, comparativamente aoperíodo pré-joanino, de um dos eixos do debate político. Este não se polariza mais entre defensores do exclusivo e os do livre comércio, centrando-s e , agora, no confronto entre partidários do livre comércio e os doprotecionismo agora nos termos da nova ordem,76 revelando a urgência naredefinição do papel do E stado no tocante à vida econôm ica, ou mais clara-

73 É este o valor estimado do engenho constante do inventário dos bens de João de Saldanha daGama Melo Torres Guedes de B rito, o conde da Ponte, riquíssimo senhor de escravos e de terrasfalecido em maio de 1809 ("Cópia do inventário do conde da Ponte", em Anais do Arquivo daBahia (Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1945), p. 41-75. Já João José Reis estima valorsemelhante para a média do total de riqueza de um senhor de engenho de S alvador entre 1800 e1 8 5 0 : 82 contos e 980 mil-réis (A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasildo século XIX (São Paulo: Cia. das Letras, 1991), p. 38.

74 A esse respeito ver Nícia V . Luz, A luta pela industrialização no Brasil (2 . ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1975), p. 21.

75

Sobre José da Silva Lisboa, ver Antônio Penalves Rocha, A economia política na sociedadeescravista (São Paulo: Dep. História-USP /Hucitec, 1996). Quanto à polêmica entre Veiga e Joséda Silva Lisboa, esta insere-se numa mais am pla q u e , então, envolvia figura do porte de HipólitoJosé da Costa, e foi analisada por Slemian, op. cit.; J. P. G. Pimenta, "A prática da contestaçãono Correio Braziliense"', e I. Jancsó, "A percepção da mudança", todos papers apresentados noXIV Encontro Regional de História - Sujeito na história: práticas e representações, São Paulo,P U C , 1998.

76 Partindo das análises de Antônio Penalves Rocha, A economia política na sociedade escravista,cit, da historiografia contemplando o significado de José da Silva Lisboa, não é descabida ahipótese de que a devassa e documentação conexa informam sobre um momento do confrontoentre os interesses d a grande lavoura e o s da emergente burguesia manufatureira na A mérica, como que estamos diante do confronto de um "industrialista" típico da época, caso de Veiga, colidindo com José da Silva Lisboa, o defensor do livre comércio à outrance.

mente, apontando para alguns dos impasses criados pela abertura dos portos e a concomitante supremacia inglesa.

M as o episódio mostra também q u e esse E stado chamado a redefinir seupapel continua operando mediante o s ritos tradicionais do A ntigo Regim e, e éconforme as prescrições deste que se organizam os contatos entre Veiga eTorrezão - o empreendedor capitalista e o funcionário graduado, ambos bus

cando a satisfação de interesses particulares junto a ele. P ouco importa, demomento, lembrar que se trata, nos dois casos, de projetos radicados emtemporalidades distintas, com Torrezão enredado num diálogo do presentecom o passado, e Veiga, num do presente com o futuro. O q u e é notável é queos do is projetos fundem-se em práticas de idêntica natureza quando adentrama esfera do E stado e, diante d a recusa, expressam a insatisfação recorrendo aexpressões que remetem a u m a cultura p olítica q u e , no limite, é incompatívelcom o s fundamentos e a natureza absolutistas desse m esmo E stado. Ao fim eao cabo, as desventuras de V eiga e T orrezão iluminam a própria crise do A ntigo Regime português, crise já instaurada como a s u a natureza.

Sobre a s elites das partes americanas do imp ério, por seu turno, o im

pacto da instalação da corte na América foi tão profundo - se bem com osinal invertido - quanto aquele que afetava os recém-chega dos. Diante dosentimento de perda dos peninsulares, a nova situação despertou grandes epositivas ex pectativas entre as elites das diversas partes do Brasil, o que setraduziu, de imediato, na adesão dessas, em sua maioria, às iniciativas queconferiam visibilidade à liquidação d a condição colonial. Para muito além dacessão de moradias e outras facilitações para a instalação dos recém-cheg ados (fenômeno fundamentalmente centrado no Rio de Janeiro), a adesãoentusiasmada à nova ordem deu-se por toda parte, caso da Bahia onde aação do conde dos Arcos valeu-se desse estado de ânimo, do que resultouter recebido o apoio às suas iniciativas adm inistrativas de pessoas com larga

tradição de crítica ao absolutismo luso. Havia a percepção, entre as eliteslocais, de que na nov a situação am pliar-se-ia a sua participação na gestão dacoisa pública com a maior proximidade do centro do poder, o que, no p lanodas identidades coletivas, traduziu-se no reforço de sua adesão aportugues a, engendrando um surto daquilo que François-Xavier G uerra designa, analisando o processo então em curso n a Am érica espanhola, com o patriotismoimperial.77 Essas expectativas, entretanto, esbarraram na alteração substan-

F. X. Guerra, op . cit.

I s t v á n J a n c s ó e J o ã o P a u l o G . P i m e n t a P e ç a s d e um m o s a i c o (o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a do i d e n t i d a d e n a c i o n a l b r a s i l e ir a ) 1 5 5

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ciai do tradicional equilíbrio entre as partes do continente do Bra sil, fenôm eno carregado de grande potencial de c onflito.

O tradicional equilíbrio político entre as capitanias o u , mais exatamente , entre os grandes centros de convergência do espaço luso-americano, 78

cada qual ligado a Lisboa, onde se realizava a unidade do todo por elesformado, foi bruscamente substituído por outro que instaurava uma hierar

quia entre espaços sociaisq u e

anteriormente relacionavam-se horizontalmente,alteração que, subordinando as outras regiões ao R io de Janeiro, tinha imediato sentido prático.79

Em meio a esse jogo de "perde e ganha" envo lvendo regiões e setoresdas elites, a elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal eA lgarve, a que "o vulgo con siderou de insignificante formalidade"80, comolembrou mais tarde Silvestre Pinheiro Ferreira, inovou na definição dosreferenciais políticos. A condição americana, que n o período anterior expressava apenas u m predicado genérico que distinguia portugueses da Bahiaou de S ão Paulo dos d e Portugal, encontrou no recém-criado R eino do Brasil a referência palpável da sua politização. O nov o reino transformara, ainda

que apenas no plano simbólico,

81

um conglomerado de capitanias atadaspela subordinação ao poder de um m esmo príncipe numa entidade p olíticadotada de precisa territorialidade e de um centro de gravidade que, além desê-lo do n ovo reino, era-o também de todo o império. Portanto, mesm o queno tocante à trajetória das identidades políticas no universo americano as

78 Esses centros de convergência poderiam articular mais de um a capitania dado seu peso mercantil,cultural ou político. As capitanias de S ergipe e Paraíba, por exemplo, eram de tal forma ligadasàs da Bahia e Pernam buco, respectivamente, que estas - em especial suas capitais - constituíam-se em centros de convergência para aquelas... Uma tentativa de síntese panorâmica dessesprocessos no interior do império português a partir de outros referenciais teóricos (a relaçãocentro-periferia) foi recentemente empreendida por Russel-W ood, "Centros e periferias no

mundo luso-brasileiro, 1500-1808", cit.; ver também Paulo Pedro Perides, "A organizaçãopolítico-administrativa e o processo de regionalização do território colonial brasileiro", emRevista do Departamento de G eografia (São Paulo: FFLCH-USP, 1995), vol. 9, p.77-91.

79 A resistência de províncias que relutavam em enviar ao novo centro recursos financeiros, emespecial os provenientes de tarifas de exportação, é apontada por W ilma Peres Costa, op . cit., p.1 5 6 .

80 Silvestre Pinheiro Ferreira, "Memórias e cartas biográphicas, carta XXII", em Annaes daBibliotheca Nacional do Rio de Janeiro (ABN) , 1877-1878, vol. 3, p. 184.

8 ' Em termos práticos as implicações da mudança foram irrelevantes, a ponto de Oliveira Lima nãodedicar uma única linha a questões dessa ordem no capítulo de seu D . João VI no Brasil (3 . ed. Riode Janeiro: Topbooks, 1996), circunscrevendo a importância da elevação do Brasil à condição deReino Unido ao universo da alta diplomacia.

variantes anteriormente apontadas tenham se mantido, seus significados tornaram-se passíveis de alteração substantiva. A partir de então a anterioridentidade   \uso-americana   poderia tornar-se brasileira e como tal seautonomizar, somando-se ao elenco de identidades políticas que já entãocoex istiam - a portugue sa e as outras ancoradas em trajetórias instauradaspela colonização, cada qual expressando uma possibilidade de projeto de

nação incompatível, no limite, com aquelas que as outras encerravam.

82

Apartir daí, a nação brasileira tornava-se pensável se referida ao Estado — oRe ino do Brasil - que definia seus contornos como uma comunidade politicamente im aginável, retornando novamente ao s termos d e Benedict A nderson.

Tudo is so, entretanto, não se deu de modo linear e uniforme. A alteração na direção das tradicionais rotas de peregrinação no interior do impérioportuguês se fez sentir d e modo d esigual n a vida dos homens que dele faziamparte. Desd e o s primórdios da colonização, as práticas administrativas, osfluxos de comunicação, as referências de vassalagem que informavam asrelações entre colônias e metrópole tinham em Lisboa o ponto natural de suaconvergência. A inda que isso se desse mediante a trama de outras "redes"que interligavam as regiões colon iais entre si, er a esse o m ovimento predominante que organizava o conjunto e lhe conferia inteligibilidade. E ra po r dirigirem-se para a mesma metrópole que as múltiplas administrações africanas,asiáticas e americanas identificavam-se como partes de um m esmo conjunto.Da mesma forma, todos os súditos do monarca português, onde quer queresidissem, prestavam lealdade a u m mesmo monarca, o que identificava-oscom o portugueses, ou seja, integrantes de uma mesma nação, palavra carregada de significados esp ecíficos, conforme já se viu, quando integrada novocabulário político do Antigo R egime. N a nova situação criada com a instalação da corte no R io de Janeiro esse quadro foi radicalmente subvertido,não som ente porque o centro do poder tenha-se transferido para a Am érica,

82 Trata-se da variante brasileira do processo que para a região platina foi descrito com profundidade por T. Halperin-Donghi, op . cit., e por J. C. Ch iaramonte, "Formas de identidad política en eiRio de ia Plata luego de 1810", cit., e J. P. G. Pimenta, Estado e nação na crise dos impériosibéricos no Prata, 1808-1828, cit., numa perspectiva envolvendo América hispânica e portuguesa (estes dois mais diretamente centrados na compreensão da conformação das identidadespolíticas coletivas). Todos eles revelam que os processos em curso têm pontos em comum já quea crise geral que afetava o s impérios ibéricos tinha a mesma m atriz. Mas revelam também, cadaqual à sua maneira, que os processos têm marcada especificidade derivada d as condições particulares que eram diferentes nos dois casos.

1 5 6 I s tv ó n J a n c s ó e J o ã o P a u l o G . P i m e n t o P e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o da e m e r g ê n c i a d a i d e n t i d a d e n a d o n a l b r a s i l e i r a ) 1 5 7

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mas porque o próprio conceito de metrópole foi esvaziado de qualquer sentido com o colapso do antigo sistema colonial. Os reinais de antes (comtoda a conotação hierárquica envolvida neste recurso classificatório qu e sésabia repousar sobre formas de subordinação muito precisas) não eram maismetropolitanos, eram desde então apenas europeus, com o qu e se suprimiao con teúdo hierarquizante da diferenciação entre portugueses de um ou deoutro lado do A tlântico.83

Foi nessa direção que a alteração do estatuto do Brasil, agora reinoequiparado ao de Portugal, veio da r forma a uma nova diferenciação internaà identidade portuguesa, reduzindo a eficácia da velha fórmula usada pelogovernador Caetano P into de M iranda M ontenegro ao tentar apaziguar osânimos exaltados no Recife pré-revolucionário em 1817. Conclamando "osnascidos em Portugal" e "os nascidos no Brasil" à harmonia com o argumento de serem, os da cidade, "todos portugueses, todos vassalos do mesmosoberano, todos concidadãos do mesmo reino unido",84 o governador mostrava, ainda que repudiando-a, a existência de uma n ova linha de corte (apalavra-chave n este caso é "concidadão") em torno do qual se organizava apolarização d a política local.

O antigo nexo estava em acelerado processo de erosão, e o movimento revolucionário de Pernambuco de 1817, que instaurou por breve tempoum governo republicano no Nordeste do Brasil, conferiu inquestionável visibilidade à instabilidade dos novos tem pos.85 Isso foi de pronto reconhecidopela argúcia do Correio Brazüiense, que apontou para o fato de ser "acomoç ão no Brasil [...] motivada por um descontentamento geral, e não por

83 Convém lembrar que o acesso a títulos, dignidades e honrarias tornou-se amplamente acessívelao s portugueses d o Brasil. Armitage nos informa que "achando-se as finanças em estado de apuro,recorreu [D. João] a uma profusa distribuição de títulos honoríficos" de modo que "durante operíodo da sua administração concedeu maior número de insígnias, do que haviam conjuntamenteconcedido todos os Monarcas da casa de Bragança seus predecessores". Conclui o cronista quecom isso, "não podia deixar de ser grande o entusiasmo suscitado por esta distribuição de honras,entre um povo que ainda reverenciava as suas antigas instituições" (João Armitage, História doBrasil (São Paulo: Martins, 1972), p. 9). Por outro lado, o recurso cada vez mais freqüente aoconceito de império no vocabulário político dessa época revela a necessidade de uma fórmula queexpressasse a nova configuração do E stado bragantino cuja sede do poder deixava d e ser equivalente à condição d e metrópole, subordinadora de um vasto leque de colônias díspares na Am érica.

84 Cf. Francisco M. Tavares, História da revolução de Pernambuco de 1817 (Recife: Governo doEstado, 1969), pp. 112 e ss. (a I a edição é de 1840).

85 Ver C. G. Mota, Nordeste 1817: estruturas e argumentos (São Paulo: Perspectiva, 1972).

maquinações de alguns indivíduos",86 expondo, portanto, problemas que diziam respeito à nação. Essa visão d os acontecimentos estava em flagranteoposição com a interpretação oficial veiculada pela Gazeta do Rio de Janeiro, segundo a qual o movim ento em curso era pontual desvio de norma,apenas uma "m ancha" nas "páginas da História Portuguesa, tão distinta pelostestemunhos de amor, e respeito, que os vas salos desta nação consagram ao

seu S oberano", de um "desacato à lealdade Portuguesa" no qual "não teveparte a maioridade de seu s habitantes".87

Mas a nitidez na apreensão do significado dos eventos revelada porHipólito José da C osta, em L ondres, era mais difícil de ser alcançada pelosenvolv idos pe la vertigem revolucionária desatada n o Nordeste brasileiro. P araestes, a ancestral identidade p ortuguesa tendia a colidir com a pernambucana,revelando o crescente desconforto de uma concomitância de cuja vigênciademonstravam enorme dificuldade em se desvencilhar, no que nada há desurpreendente.

Senão, vejamos. Numa proclamação de apoio ao Governo Patrióticoque se assenhoreou do poder no Recife, o bispado local definiu o perfil dos

que poderiam reivindicar legitimamente a condição de pernambucanos. A osseus olhos , estes eram as "fiéis ovelhas P ernambucanas do Governo E spiritual deste Bispado", pertencentes "à espécie branca [que] é toda européia,ou descendente dos europeus", destacando em especial serem estes últimos"brasileiros [qu e] têm mu ito amor, aferro e respeito aos seu s progenitores".88

A ênfase na circunscrição da linhagem legitimadora dos agentes da rupturapolítica, ancorada numa linha de continuidade radicalmente excludente e mtermos raciais (o que eqüivalia a dizer sociais), mostra qual era o cerne dadificuldade. Sem dizê-lo, os prelados revelavam ser inerente ao abrir m ã o daidentidade portuguesa o grave risco da indiferenciação da elite branca comos h omens negros e pardos que compunham a maior parcela dos habitantes

do país, o que trazia em si a temida perspectiva de uma situação na qual"pretos comandam brancos, e brancos pretos",89 o que veio depois a ocor-

86Correio Brazüiense, vol. XIX, n. 1 1 0 , jul. 1817; J. P. G. Pimenta, op. cit., pp.152 e ss.

87 Gazeta do Rio de Janeiro, n. 39, de 14 maio 1817; J. P. G. Pimenta, op. cit. j88 Documentos históricos (DH), Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional/Divisão de Obras Raras e

Publicações, vol. 101, p. 9.89 Apud C. G. Mota, Nordeste 1817: estruturas e argumentos, cit., p. 148. Sobre a questão do

escravismo, pp. 142-62.

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rer. Era este o alcance da questão subjacente aos cuidadosos termos daproclamação quando insistia na imperativa necessidade da união d os branc o s , e na urgência da superação da "fatal indisposição entre europeus e brasileiros",90 expondo um dos limites que tolhiam a clara identificação dosatributos que deveriam abrir as portas da inclusão de seu portador na "comunidade política imaginada", na nação (ainda que virtual no caso do 1817

pernambucano), agora nã o mais pensada nos termos do Antigo R egime português, mas nos de outra matriz cuja origem está na revolução burguesa. E ébom lembrar que essa dificuldade não pode ser debitada à prudência deprelados, já q u e o discurso d o próprio governo revolucionário vinha pautadopelo m esmo diapasão. Apelando aos "habitantes de Pernambuco", para qu ese unissem à causa da "Pátria [que é] nossa mãe comum", os homens dogoverno dirigiram-se a eles com o argumento de serem todos "seus filhos[...] descendentes dos valorosos lusos, pois portugueses, sois americanos,sois brasileiros, sois pernambucanos".91

O confronto dos dizeres da Gazeta do R io de Janeiro com os termosdos proclamas do bispado e do governo revolucionário revela uma clara

concordância quanto à natureza da trajetória coletiva comum que ambosassumiam como sua, independentemente do partido que tenham tomadodurante os conflitos. Nos dois casos os protagonistas dos eventos de 1817reconheciam-se como galhos de um mesmo tronco, não se diferenciandoquanto a isso a não ser na medida em que um galho diferia de outro. Adistinção deslocou-se para outro patamar, aquele da natureza dos pactossocial e político que fundamentavam a unidade da nação portuguesa reconhecida com o comum a todos. Enquanto os revolucionários eram m ovidospela perspectiva de nova ordem social e política que emergiria (pela via darevolução) da vontade popular, os defensores do status quo mobilizaram-seem d efesa dos pactos que se m aterializavam na monarquia absoluta.

O s três mese s de vida da República Pernambucana - "revestida dasoberania pelo P ovo, em quem ela só reside"-92 foram curtos para que oEstado emergente da revolução assumisse uma conformação estável e dotada do necessário conjunto de referências que pudessem autonomizar identi-

90 Documentos históricos, vol. Cl, p. 9.9lIbid.,p. 1592 "Decreto do Governo Provisório da República de Pernambuco regulamentando a Constituição",

em Documentos históricos, vol. CIV, p. 16.

dades políticas coletivas de tipo nacional a elas referidas. Pelo fato de omovimento de 1817 ter sido contido nos limites de uma ação de recortepartidário e, co mo tal, aberto à adesão de todos que aceitassem, individualou coletivamente, seu programa, viesse de onde viesse (em termos espaciais) essa adesão,93 a revolução não chegou a liberar as forças que poderiam transformar a tendência centrífuga latente nas diversas partes do sistemaimperial na Am érica (neste caso, em P ernambuco e sua área de influência)em alternativa política de tipo nacional, alternativa sempre referida a u m território (real ou virtual) e a um conjunto de norm as, valores, instituições esímbolos (de vigência efetiva o u virtual) que lhe confeririam visibilidade.

É preciso ter em mente que nas primeiras décadas do século XIX oconceito de nação, ainda que carregado de enorme fluidez, espalhava-serapidamente pelo universo atlântico, deslocando-se para o centro dos ideáriospolíticos. 94 Ainda que comportando grandes variações de conteúdo, essaidéia sempre contemplava duas variáveis definidoras da comunidade cujanatureza pretendia expressar: uma herança (memória e história) e um território, ambos comuns aos m embros da nação. N o discurso da R evolução de1817 constata-se uma enorme ambigüidade quanto a esses pontos. Os revolucionários n ão recorrem à valorização de um passado que lhes é es pecífico (e como tal distintivo de outros) ao justificar suas ações, o que tornaperfeitamente com preensível a ausência quase absoluta do termo nação doseu vocabulário político. O s rebeldes, com o já ocorrera em 1798 na Bahia,falam cm povo (fonte e sustentáculo do poder nos termos da nova ordem),em pátria (nos termos que já se viu ser os dos deputados que escreveram o smanifestos de Falmouth), tudo isso fundindo-se em patriota, fórmula queexpressava a "perfeita igualdade de cada [um] a respeito dos outros", 95 eque acabou tornando-se, para o bem e para o mal, a marca distintiva de seudiscurso. Por outro lado, o recurso à idéia de nação reforça-se co mo parte

93 Os revolucionários aceitavam a adesão tanto de indivíduos quanto de organizações coletivas(corporações militares, ordens religiosas, câmaras municipais), fossem da Capitania d e Pernambuco,fossem de outras capitanias do Nordeste. Com isso, a abrangência espacial do movimento chegoua atingir praticamente toda a região desde a Bahia até o Ceará. Cf. C. G. Mota, Nordeste 1817:estruturas e argumentos, cit.

94 Jacques Godechot, La Grande Nation. Vexpansion révolutionnaire de Ia France dons le mondede 1 7 8 9 a 1799 (2 . ed. Paris: A ubier, 1983); Pierre Vilar, op. cit.; e F. X. Guerra, Modernidadeindependências. Ensayos sobre Ias revoluciones hispânicas (México: FCE, 1993).

95 Documenos históricos, vol. Cl, p. 34.

1 6 0 I s tv ó n J a n c só e J o ã o P a u l o 6 . P i m e n t a P e ç a s d e u m m o s a i co ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n d a d a i d e n t i d a d e n a d o n a l b r a s i l e ir a ) 1 6 1

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orgânica da fala do poder, sempre carregada de referências ao passado,com seu uso revelando, entrementes, que este poder vacilava diante dasimposições do novo tempo.

E sses com ponentes da cultura política que se adensava no continenteamericano -pátria (fosse ela Pernambuco, Paraíba ou qualquer outra), povo(como fonte e agente do pacto político) e, finalmente, nação (entendida como

depositária de uma herança comum a ser preservada) -, ainda que alimentando alternativas diferentes para o Antigo R egime português na América,radicalmente contrapostas em 1817, nã o eram, entretanto, antagônicos nemexcludentes, ainda que a sua síntese não se tivesse completado no 1817nordestino. Pelo contrário, esses conceitos já despontavam como portadores parciais, cada qual à sua maneira, dos elementos constitutivos de umaterceira alternativa para o enfrentamento de uma crise cuja superação crescia em urgência.

É sabido que foi na porção européia do império que irromperam emrevolução as tensões geradas pelas contradições acumuladas em seu interior,desencadeando uma sucessão de eventos que destroçaram seu formato

longamente maturado. A revolução liberal de 1820, iniciada no P orto e rapidamente espalhada pelo império, tem m erecido renovado interesse dos historiadore s; interesse traduzido em estudos pontuais contemplando a diversidadede seus desdobramentos nos dois hemisférios e revelando o turbilhão deforças centrífugas que então foi ativado no espaço a mericano.96

Os contemporâneos reconheceram imediatamente a intensidade dasmudanças em curso e, quanto ao núcleo central do poder imperial, foi em

96 Para seu impacto na Província do Rio de Janeiro, Cecília Helena de S. Oliveira, op . cit., e LúciaMaria B. P ereira das N eves, Corcundas, constitucionais e pés de chumbo: a cultura política da

independência, 1820-1822 (São Paulo: FFLCH-USP, 1992), teses de doutorado. Para a Bahia, aquestão é trabalhada por Luís H enrique Dias Tavares, A independência d o Brasil n a Bahia (2 . ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982), e por Thomas W isiak, Tendências políticas naBahia na crise do Império português (inédito); para o caso de Pernambuco, Marcus J. M. deCarvalho, "Cavalcantis e Cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco, 1817-1824", em Revista Brasileira de História, vol. 18, n. 36, 1998, pp. 331-65, além dos trabalhosde Dênis de Antônio de Mendonça Bernardes, como por exemplo, "O processo de independência, a formação do Estado nacional e a questão regional no Brasil - o caso do Nordeste (1808-1824), trabalho apresentado no VII Congresso da AHILA, Florença, 1985; para o Pará, GeraldoMártires Coelho, Anarquistas, demagogos e dissidentes. A imprensa liberal no Pará de 1822(Belém: Cejup, 1993); para São Paulo, Carlos H. Oberacker Jr., O m ovimento autonomista noBrasil. A província de São Paulo de 1819 a 1823 (Lisboa: Cosmos, 1977).

meio ao torvelinho que este se deu conta de que a diversidade constitutiva doimpério, e deste na A mérica, até então um dos fundamentos de seu poder,tornara-se, com a vitória dos liberais no reino europeu, condição da suaimpotência. D e fato, na nova situação advinda, as Cortes Constituintes emLisboa assumiram o papel de centro de poder e de articulação política doimpério, e foram assim reconhecidas.

O q ue ocorreu na Bah ia é exemplar quanto a esse ponto, não somenteporque, pouco antes (em 1817), esta província desempenhara importantepapel estratégico n a liquidação do movimento revolucionário pernambucano,mas porque, no seu caso, tratava-se, juntamente com o conjunto articuladoem torno da corte (Rio de Janeiro, São Paulo e M inas G erais), da mais ricadas partes do Reino do Brasil.

Assim que chegou a notícia da nova ordem instaurada em Lisboa, aadesão da Bahia à revolução liberal foi, ainda que carregada de tensões,quase imediata e, vista a distância, aparentemente consensual,97 o que resultou em fundados temores dos ministros, vacilantes quanto aos rumos a seguirdiante dos a contecimentos. Silvestre P inheiro Ferreira, que desde antes já

vira com grande preocupação o potencial disruptivo da diversidade englobada no novo Reino Unido, chegou a vaticinar que "decidiu-se a sorte doBrasil: quebrou-se o nexo que unia suas províncias ao centro comum: e coma dissolução do Brasil se consumou a dissolução d a M onarquia [...]. A B ahiaacaba de desligar-se da obediência de Sua Magestade com o pretexto deaderir ao sistema das Cortes de Lisboa", com o que, acrescentou o ministrode d. João VI, "provavelmente a esta hora tem feito outro tanto Pará,M aranhão e Pernambuco", send o de esperar que "as outras províncias se-gui-las-hão de perto".98

97 A fragilidade desse consenso é expressa na R esolução do conselho militar de 10 fev. 1821: "oscomandantes e oficiais das tropas de linha da guarnição da cidade da Bahia em presença dogovernador e capitão-geral conde de Palma, quiseram de comum acordo impedir efusão desangue, que infelizmente podia resultar em motins, originados do receio do povo de que sejamfrustrados os desejos que tem manifestado de aderir aos votos de seus irmãos de Portugal, a quemdesejam estar perpetuamente unidos, e participar com eles dos benefícios da constituição liberalque ora se faz em L isboa, resolveram o seguinte (...) Que o dia de hoje seja de reconciliação geralentre os habitantes desta província, que por qualquer diferença de opinião política estejamdiscordes até agora" (apud Affonso Ruy, História política e administrativa da cidade do Salvado r (Salvador. Tip. Beneditina, 1949), p. 371).

98 Anais da Biblioteca Nacional (ABN), vol. 3, 1877-1878, carta IV, p. 260.

162 I s t v á n J a n c s ó e J o ã o P a u l o G. P i m e n t a P e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d a i d e n t i d a d e n o d o n a l b r a s i l e i r a ) 1 6 3

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Os fatos confirmaram esses temores. As diversas províncias do reinoamericano tornaram-se cenários de intensa atividade política abertamentecontraposta às regras até então vigentes, com grupos, partidos, classes, ordens, corporações e personalidades (com suas clientelas), antes contidos naesfera d a política local, disputando pos ições que lhes permitissem influir nodesenho da nova ordem que viria a emergir com a re-fundação, exaltada

como regeneração, do Estado português com o qual se identificavam comrenovado entusiasmo na nova conjuntura.99 E sse processo, que vinha carregado de a ntagonismos de vários tipos, traduziu-se em acentuada aceleraçãodos ritmos da vida política, aceleração magnificada com a decretação daliberdade de imprensa pelas cortes.100 Essa medida, pela acolhida que teve,pulverizou o contorno até então imposto à sociedade política, alargando-atanto no tocante aos interesses objetivos que em seu interior se confrontavam, quanto ao que se refere às culturas políticas e forma ções de tipo partidário que os expressavam .

A complexidade do quadro político baiano emergente da adesão daprovíncia às Cortes Co nstituintes revela que um quarto de século de expe

riência política acumulada n o enfrentamento d a crise do An tigo Regim e português, até então represada, estava profundamente enraizada na m ente doshomens qu e aí viviam. E ssa experiência, eventualmente de conteúdo revolucionário,101 e que foi até então contida fora dos limites do espaço públicoquando derivava de práticas contrapostas ao absolutismo, pa ssou a constituir-se, p or obra da revolução liberal, num d os instrumentais ao qual recorre-

99 Caio Prado Jr. já notava que nas províncias do Nordeste a revolução teve um impacto diversocom relação às do Centro-Sul, a começar devido às diferentes formas com que essas regiõesperceberam a presença da corte no Brasil desde 1808 ("O tamoio e a política dos Andradas naindependência do Brasil", em Evolução política do Brasil e outros estudos (10. ed. São Paulo:Brasiliense, 1977), p. 180). Tratando-se do caso da Bahia, Luís H. D. Tavares lembrou das

cartas do então governador das armas coronel Luís Inácio Madeira de Melo, em que se fazemreferências a grupos constitucionais, independentistas e independentistas republicanos disputando o controle da província ( o p . cit., p. 27). Outra testemunha da época, Francisco de S ierray Mariscai, identificou três "partidos": "Europeu", "Democrata" e "Aristocrata", cada qualapontando para diferentes projetos de organização política q u e iam desde a subordinação incondicional ao governo português até a ruptura com plena autonomia provincial ("Idéias geraissobre a revolução no Brasil", cmABN, vol. 43, 1920, parte 1, cap. 6).

100 Decreto de 4 jul. 1821. Para uma análise de seus desdobramentos em Portugal, ver JoséTengarrínha, Da liberdade mitificada à liberdade subvertida. Uma exploração no interior darepressão à imprensa periódica de 1820 a 1828 (Lisboa: Colibri, 1993), pp. 40-52.

101 Ver I. Jancsó, Na Bahia, contra o império, cit., especialmente cap. V, "Teoria e prática dacontestação na colônia".

ra m as elites da Bahia para conformarem a nova ordem, disputando no planomental a hegem onia com as outras que remontavam a diversa tradição: a doreformismo ilustrado.

N ão se pode perder de vista, sob risco de passar ao largo das proporções dessa dimensão da conflagração política em curso tendo por cenárioprincipal (mas não exc lusivo) o universo das classes dominantes, que essas

elites baianas viam-se diante de uma situação totalmente nova, com o espaçoda coisa pública alargada em tal escala e profundidade, que o temor daperda do controle do processo político e da conseqüente desordem sociallevou-as a lançar mão do s mecanism os políticos que lhes eram familiares, eem cuja eficácia confiavam . A constituição da primeira Junta de G overno,formalizando a ad esão da Ba hia à nova ordem liberal, refletiu es se reflexoconservador, com cada um do s grupos funcionais (cuja natureza era corporativa) detentores de reconhecido p oder indicando seu representante.102 Essaopção por um critério arcaizante para a sua composição obstava que osrecortes políticos de tipo partidário viessem a servir de base para arepresentatividade da Junta. E com essa opção uma longa tradição oposi

cionista, de cujos portadores o traço comu m er a bem mais político-ideológi-co do que sociológico (fato novo emergindo naqueles momentos dedesmantelamento da velha ordem), viu-se afastada dos centros de decisão,o que prov ocou reações v iolentas. Passando ao largo de matizes importantes em se tratando de um quadro de extrema fluidez po lítica, e ignorando arapidez com q ue alianças eram feitas e desfeitas no acelerado aprendizadodo fazer política num contexto no qual as velhas normas haviam perdidovigência e as novas ainda não haviam sido estabelecidas, pode-se apontarpara a emergência de três vertentes básicas quanto à futura forma de org anização do Estado no âmbito da província.

O procedimento para a constituição da Junta Provisional seguiu o modelo já antes adotado naAmérica espanhola no período que se abriu em 1810, de aclamação por cabildo abierto.Proclamando lealdade ao soberano e dizendo agir em seu nome para evitar "o derramamento desangue de seus fiéis vassalos", foram propostos, pelo clero, o deão José Fernandes da SilvaFreire; pela milícia, os tenentes-coronéis Francisco de Paula O liveira e Francisco José Pereira;pelo comércio, Francisco A ntônio Filgueiras e José Antônio R odrigues Viana; pela agricultura,Paulo José de M elo de Azevedo e Brito; e pela cidade, o desembargador Luís Manuel de MouraCabral. Para secretários foram aclamados o desembargador José Caetano de Paiva e o bacharelJosé Lino dos Santos Coutinho, assim como o foi o tenente-coronel Manuel Pedro de FreitasGuimarães para o Governo de Armas. Ata da Câmara Municipal de Salvador de 10 fev. 1821,apud Inácio A. de C. e Silva, op. cit., p. 272.

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A primeira delas, herdeira da tradição republicana q ue emergiu em 1798e permeou a solidariedade de baianos aos presos políticos que, após a derr

rota da revolução pernambucana, aí amargavam o cativeiro,103 orientava-sepela ruptura total com Portugal, independentemente da ordem política aliprevalecente, se absolutista ou constitucional.104 A segunda vertente, desdobrada em variantes marcadas por referenciais ideológicos conflitantes, via na

adesão ao sistema constitucional o caminho para a afirmação da autonom iada província, corpo político dotado de feição própria a ser integrado noimpério português em igualdade de condições como todas as suas outraspartes, fossem européias ou americanas.105 A terceira vertente, enfim, via narestauração d a combalida unidade do imp ério, agora pela via constitucional,o caminho para o enfrentamento das dificuldades geradas pela crescentepreponderância estrangeira, am eaçando tanto interesses mercantis ancorados na velha ordem, assim como fazê-lo quanto às condições de reiteraçãoampliada da ordem social escravista que esta havia engendrado e dá qual sealimentava. 106 Tudo isso, já se vê, vinha explodindo em iniciativas isoladas,

Sabe-se que esses presos receberam liberdade no dia da adesão da Bahia à revolução portuguesae que entre eles encontrava-se o paulista Antônio Carlos de Andrada. Este recebia visitas e atémudas de roupa de João Ladislau de Figueiredo e Melo, um dos responsáveis pelo início dolevante baiano e colega de Cipriano Barata, que também prestava solidariedade aos presos ecomandava reuniões que precederam o dia 10 de fevereiro de 1821 (Evaristo Ladislau e Silva,Recordações biográficas do coronel João Ladislau de Figueiredo e Mello (Salvador: Tip.Cam illo de Lellis Masson & C , 1866), especialmente p. 13 ; e Inácio A. de C. e Silva, op . cit.,p . 267).Não são poucas as referências acerca das intenções do marechal Felisberto Gomes CaldeiraBrant e seu subordinado major Hermógenes de A guilar Pantoja na resistência à adesão da Bahiaà revolução do Porto. Para Pereira Rebouças, testemunha do movimento, este último era"homem aferradamente inimigo de Portugal e de Portugueses" ("Recordações patrióticas.1821-22", em Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, n. 48, 1923, p. 456). Parao periódico baiano Idade d'Ouro do Brasil, o marechal Brant "deu repetidas mos tras de que não

queria comunicação com Portugal" (n. 17, 19 fev. 1821).Expressavam essa tendência, entre outros, indivíduos também oriundos daquela tradição emergente em 1798, mas que naqueles anos de 1820 inclinavam-se a apoiar uma proposta monar-quista constitucional. É o caso do s já referidos Cipriano Barata e João Ladislau e Melo, ambosafastados da organização do governo provisional. Dada a sua trajetória radical, Barata chegou aser identificado, ainda em 1 8 2 1 , como um sans-culotte por Francisco de Sierra y Mariscai (op.cit.) e Ladislau, em carta de 17 jan. 1 8 2 2 , defendia-se d os rótulos de "francês" e "pedreiro livre"que se lhe atribuíram nas cortes de Lisboa (João Ladislau de Figueiredo e Melo, Carta aoilustríssimo e excelentíssimo S r. Vicente Antônio da Silva Corrêa [assinada na Bahia, em 17 jan.1822] (Salvador: Tip. da Viúva Serva e Carvalho, 1822).Condições tanto m ais ameaçadas na medida em que crescia a pressão inglesa contra a manutenção do tráfico. L. F. de Alencastro, op. cit., cap. VIII.

num cenário formado por efêmeros clubs, boticas, residências particulares,lojas maçônicas, adros de igrejas, praças e ruas, onde se urdiam aliançasesboçando convergências de maior abrangência política tendo em vista aseleições que vieram a polarizar o debate político e, a seguir, para fazer face àradicalização política em contexto de confrontação armada quando da guerra da independência na Bahia.

Esse quadro movediço gerou um vocabulário político com ingredientesnov os, refletindo a terminologia em vog a entre os liberais europeus, para osquais não havia contradição entre nação, povo e pátria. Para os vintistasportugueses, a sua revolução , ao derrotar o despo tismo, abria as portas parao reencontro da nação consigo m esma, e o debate político na América faziaeco às suas palavras. Mas neste hemisfério os significados eram nuança-damente diferentes, assim como o era a natureza do reencontro de seus presumidos herdeiros com o passado.

Com tudo isso, na Bahia a diversidade política, entretanto, subsistia,alimentando o antagonismo entre trajetórias coletivas contrapostas - e dasidentidades políticas coletivas que as sintetizavam - , cada qual encerrando

projetos de Estado e de nação que se contrapunham umas a outras. Isso éperceptível na a ção dos independentistas, cuja precipitação alijou-os da lutapolítica efetiva, m as o é também em m eio à adesão ao vintismo e à identidade nacional portuguesa que este representava, na fala dos que estavam em penhados em da r forma ao projeto constitucional.

É isso que está presente nas manifestações dos deputados que a província elegeu para representá-la nas Cortes Constituintes de Lisboa. 107 Abancada eleita contava com personalidades de considerável peso intelectuale era portadora de múltiplas referências políticas. Dela faziam parte representantes da melhor tradição agrária baiana com experiência nas coisas doEstado na esfera local, caso de Ferrão Castelo Branco e Pedro Rodrigues

Seguindo-se as instruções do decreto de 18 abr. 1 8 2 1 , as eleições provinciais no Brasil ocorreram ao longo d o segundo semestre daquele a n o . Os deputados (na proporção de um para cada 30mil moradores) eram escolhidos por via indireta: compromissários escolhidos em suas freguesias indicavam o s eleitores paroquiais que elegeriam os eleitoresde ato, ou seja, aqueles a quemcaberia a escolha dos deputados representantes da província. Mesmo assim, tratou-se de umaexperiência ímpar na América portuguesa, na medida em que foi o seu primeiro processoeleitoral supra-municipal (Thomas W isiak, A nação partida ao meio: tendências políticas naBahia na crise do Império português, inédito; Márcia R. Berbel, A nação como artefato:deputados do Brasil nas Cortes portuguesas, 1821-1822, cit.).

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Bandeira; liberais de feição cosmopolita com profundo conhecimento docenário político europeu, como Domingos Borges de Barros; depositáriosda tradição revolucionária antiabsolutista que remonta a 1798 e reafirmadaem 1817, casos de Agostinho Gomes e Cipriano Barata. Ao lado destesestavam Luís Paulino de O liveira Pinto da França, militar devotad o à casa deBragança com destacado papel na vitória das forças legalistas sobre os re

volucionários pernambucanos de 1817, o padre Marcos Antônio de Sousa,membro proeminente do clero local, e José Lino C outinho, jovem político dediscurso radicalizante, cujo prestígio já se notou com sua indicação parasecretário da Junta Provisional de G overno que deu uma primeira forma ànova ordem política em fevereiro de 1821.108 Tinham em comum sólida formação intelectual, o fato de serem naturais da província e de contarem coma confiança de segm entos importantes do eleitorado.

Refletindo o sentimento dos que os elegeram, sabiam ter por tarefa"fazer uma Con stituição para a nação portuguesa, esta que se acha espalhad a mais que outra alguma em todo o universo",109 levando às cortes a vontade dos po vos de um a das partes de um Brasil entendido, nos termos de Lu ís

Paulino, como "verdadeiramente uma continuação de Portugal".110

M as o que era isso de Brasil para esses homens? A leitura de suas falasdurante os trabalhos d a Con stituinte permite afirmar q u e viam no Brasil umaconstrução política recente, um a criação q u e , nas palavras de Lino Coutinho,"liberalmente foi concebido pelo imortal D. João VI",111 sem tradição particularmente valorizada a diferenciá-la n o interior do E stado português. T ratava-se de uma entidade po lítica emergente que ainda não era depositária deadesão emocional, de algum tipo de patriotismo a ele referido. Na verdade,o Brasil era tido por um conjunto disperso, um agregado de "Províncias

108 Para elementos biográficos dos representantes baianos, ver Thomas W isiak, op . cit.; I. Jancsó,

Na Bahia, contra o Império, cit.; Caio Prado Jr., Evolução política do Brasil e outros estudos,cit. Sobre Agostinho Gomes, ver Luís Henrique D. Tavares, História da sedição intentada naBahia em 1798 . A "conspiração dos alfaiates" (São Paulo: Pioneira, 1975); sobre CiprianoBarata, Luís Henrique D . Tavares, Cipriano Barata de Almeida, em Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 347, Rio de Janeiro, 1985; e Marco Morei, Cipriano Barata.O panfletário da independência (São Paulo: Brasiliense, 1986); sobre Luís Paulino da França,ver Antônio d'01iveira P. da França, Cartas baianas, 1821-1824. Subsídios para o estudo dosproblemas da opção na independência brasileira (São Paulo/Rio de Janeiro: Nacional/Ed.daUerj, 1980).

109 Palavras de Domingos Borges de Barros na sessão de 25 jul. 1822; cf. T. W isiak, op. cit.1, 0 Em sessão de 1 « j u l . 1822; cf. T. W isiak, op. cit.1 u Em sessão de 3 j u l . 1822.

[que] são outros tantos reinos que não têm ligação uns c om o s outros, nãoconhe cem n ecessidades gerais, cada uma [governando-se] por leis particulares de m unicipalidade".112

Es ses deputados, e os mais que representavam províncias americanas,eram em geral designados com o brasileiros em Lisboa, fosse pela imprensalocal ou por seus pares europeus nas cortes, e assim se reconheciam, mas

essa identidade atribuída e assumida não os vinculava ao R eino do B rasil,indicando tão-somente terem sido eleitos no além-mar. Mais do que tudo,eles sabiam-se representantes de suas províncias de origem, suas pátriasconforme já se mostrou anteriormente. Mas sua percepção quanto a esseponto sofreu m utações com o correr do tempo. C onforme os trabalhos dascortes confrontassem em termos práticos as especiflcidades americana eeuropéia n a busca de claras definições constitucionais (com a evidente referência aos concomitantes sucessos políticos no além-mar), o localismo deorigem cedia lugar à ampliação de horizontes, o que tendeu a conferir maiorconcreção à idéia de Brasil. Os deputados baianos (e não somente estes)deram-se conta de que os ob jetivos que tinham por seus impunham o esta

belecimen to de alianças com representantes de outras províncias am erican a s , mais próximos de si que os europeus.

Isso se deu por etapas. Quando de sua chegada a Lisboa, os baianosanteviam na reorganização do Estado português um a oportunidade para aliquidação da supremacia política do S udeste no espaço político americano,entendendo por isso "nivelar a antiga Corte do R io de Janeiro com todas asmais províncias do Brasil",113 revelando o desconforto de uma elite ciosa desua riqueza e poder diante de uma subordinação que jamais foi aceita debom grado desde a transferência da sede dos vice-reis em 1763. As crescentes dificuldades na harmonização dos interesses representados pelas delegações européias e americanas, entretanto, tenderam a deslocar o eixo dos

posicionamentos da bancada, sem suprimir a s diferenças políticas entre seusmembros, d a perspec tiva provincial para outro patamar: o br asileiro.

Esse deslocamento acelerou-se com a chegada da bancada de SãoPaulo. O s paulistas vinham m unidos de uma proposta política cujos termoscontemplavam o geral desejo de união d a nação portuguesa (sentimento partilhado por todos), subordinando entretanto essa união ao respeito à

1, 2 Palavras de Lino Coutinho na sessão de 6 mar. 1822, cf. Berbel, op. cit., p. 131.113 Palavras de Lino Coutinho na sessão de 29 dez. 1821.

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especificidade das condições reais de existência das elites americanas. Aleitura das "Lembranças e apontamentos do Governo Provisório para ossenhores deputados da Província de São Paulo" 114 revela com perfeita nitidez que seu s autores reconheciam no escravismo o núcleo forte das diferenças entre americanos e peninsulares, e tinham nesta a questão em relação àqual não havia o que transigir em Lisboa. De fato, caberia aos deputados

paulistas evitar que "a diversidade de costumes [...] e das circunstâncias estatísticas"115 fosse ignorada quando das definições constitucionais respeitantesà igualdade dos direitos civis e políticos; eufemismo desfeito com meridianaprecisão com a afirmação d e que esta "diversidade de circunstâncias" advinhade ser "composta [a população] no Brasil de classes de diversas cores, epessoas umas livres e outras escravas".116 Que essa circunstância colidissecom os princípios em nome dos quais a regenedora revolução da naçãoportuguesa se fazia, aflorou pela via da crítica retórica aos excessos daspráticas escravistas, sem tornar-se impedimento para a reivindicação de paridade nos órgãos decisórios que regeriam os destinos da nação,117 em evidente contradição com o princípio de cidadania em nome do qual as cortes

agiam. O argumento esgrimido para sustentar a legitimidade da reivindicaçãoera familiar a todos: o risco da ruptura da ordem social. De fato, a Junta deSão Paulo eliminava qualquer hipótese de alteração no status quo escravistaao localizar n a eventualidade de uma precipitada extensão de atributos civisaos "m iseráveis escravos" a perspectiva de virem estes a reclamar "direitoscom tumultos e insurreições, que podem trazer cenas de sangue e de horrores".118

1 '4 V er Edgard de Cerqueira Falcão (org.), Obras científicas, políticas e sociais d e José Bonifácio deAndrada e Silva (Santos, 1963), vol. II, pp. 93-102.

1. 5 Ibid., p. 961. 6 Ibid., p. 981. 7 Estimativas demográficas para o ano de 1819 apontam que não obstante a população total do

Brasil (em torno de 3.596.132, excetuando-se índios) ser superior à de Portugal (em torno de3.026.450 para o ano de 1 8 2 1 , excetuando-se as ilhas atlânticas), aquele possuía a alta porcentagem de 3 0 % (ou seja, 1.107.389) de escravos. Os dados para o Brasil são fornecidos por MariaLuiza Marcílio, "A população do Brasil colonial", em Leslie Bethell (org.), História d a América Latina, "América Latina colonial" (São Paulo/Brasília: Edusp/Funag, 1999), vol. II, p. 338;os de Portugal por Rui Cascão, "Demografia e sociedade", em José Mattoso (dir.), História dePortugal, "O liberalismo, 1807-1890", (Lisboa: Estampa, s.d.), vol. V, p. 425.

118 Cf. Edgard de Cerqueira Falcão (org.), o p . cit., p. 98 A esse respeito é útil a leitura de AntônioP. Rocha, op. cit.

O escravismo não chegou a tornar-se objeto de deliberação substantiva das cortes, mas o documento dos paulistas deslocou-o para a centro daproposta de organização do Estado português que traziam, já que fundamentava o p rincípio da diversidade que este Estado deveria abrigar. Não setratava, segun do os autores do d ocumento, de buscar a reorganização política de partes iguais (as várias províncias representadas), mas sim de buscar

a unidade entre duas formações sociais distintas na sua base, com o queestabeleciam o poderoso nexo que conferia unidade ao Reino do Brasil,diferenciando-o nos seus fundamentos sociais se confrontado com o Reino

de P ortugal.Não estava, entretanto, no simples trato do escravismo a inovação que

veio de São P aulo. Também na Bahia, como de resto por toda a Am érica, odebate político e ra inevitavelmente permeado p o r esta variável fundamental darealidade, tanto n o q u e significava e m si mesma (relações escravistas), quantono que remetia para a dela derivada diversidade racial da população. Antesmesm o da adesão d a província à nova ordem, em fins de 1820 o comandanted a guarnição d a capitania, marechal Felisberto C aldeira Brant Pontes, temen

do as indecisõesd a

corte do R io de Janeiro, sugeriu que aí se tomassem iniciativas n o rumo de necessárias mudanças pois "qualquer favor concedido antesda revolução será recebido com entusiasmo, e todos os bons se deitarão nosbraços de Sua M ajestade, mas depois d a revolução tudo parece necessidade,e sabe Deus que caráter desenvolverá ela em um país de tantos negros emulatos!".119 Com o avançar dos acontecimentos, em março de 1821 a Juntade Governo qualificou " a escravidão doméstica d o s naturais d a África" como"cancro",120 e o Idade d'Ouro do Brasil sinalizava nela reconhecer previsívelfator de discórdia ou, no limite, de ameaça à boa ordem, argüindo professarem alguns n a província a idéia d e qu e "a raça africana torna perigosa a Constituição", ainda que relativizando a importância política do problema aoremetê-lo à pauta d a s definições normativas, o que certamente se faria já que,perguntou-se o articulista, "os Deputados das Cortes são porventura néciospara n ã o terem em vista providên cias que tal artigo exige?". 121

1 " Carta de Felisberto Caldeira Brant ao conde de Palmela (2 1 dez. 1820), apud Hendrik Kraay, Apolítica rac ial nas forças armadas, 1823-1838, comunicação apresentada no IV Congresso deHistória da Bahia, Salvador, 27 set. a 1° out. 1999.

120 O termo encontra-se na "Reclamação da Junta da Bahia aos Habitantes da Província", emInácio A . de C. e Silva, op. cit., pp. 284-5.

12 > Número 4 7 de 2 3 m a r . 1 8 2 1 . Para melhor visão dessa questão, v e r , d e João José Reis, "O jogo durodo Dois de Julho: o 'Partido N egro' na independência da Bahia", em J. J. Reis e Eduardo Silva

170I s t v ó n J an c s ó e J o ã o P a u l o 6 . P i m e n t a P e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d a i d e n t i d a d e n a d o n a l b r a s i l e i r a) 1 7 1

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A novidade que veio n a bagagem da bancada paulista foi a clara expo sição de que a forma de organização do Estado português deveria subordinar-se diretamente às condições de reiteração do sistema escravista naAmérica o u , mais claramente, que a forma d e organização d o Estado deveriarefletir, na prática, as exigências dessa reiteração. A percepção dessa dimensão do problema alterou a prioridade que a bancada baiana atribuía àsrelações de sua província com o centro articulador do espaço p olítico brasileiro (o Rio de Janeiro), e cuja supremacia, quando de sua chegada a Lisboa,desejara suprimir. Coube ao próprio Lino Coutinho, que em dezembro doano anterior forcejava pela supressão da função centralizadora da sede dacorte, proclamar, sete meses mais tarde, que " o Brasil é um reino bem com oPortugal; ele é indivisível, e desgraçados daqueles que tentarem contra a suacategoria e grandeza, desmembrando suas províncias para [aniquilá-lo]", 122

revelando admitir que o reino am ericano era dotado de um centro de gravidade próprio. É evidente que o correr dos acontecimentos políticos no além-mar, do que mantinham-se informados,123 alimentava poderosamente a suacrescente antagonização com os representantes do reino peninsular, levando-os a reforçar alianças com todos que, independentemente de sua origem,

viam na união da s províncias americanas a alternativa q ue se d everia priorizar.Vem daí que, com crescente intensidade, a paridade das representa

ções do Brasil e de Portugal nos organismos diretivos do Estado passou asubordinar todos os outros objetivos dos deputados da Bahia, malgrado adesproporção entre o núm ero de cidadãos do reino am ericano que nas C ortes C onstituintes se faziam representar, em  flagrante contradição com os princípios liberais que referiam a feitura da constituição. Ainda q ue isso não fossedito, os deputados baianos estavam enredados pelo caráter escravista daelite que representavam, e sabiam que esta condição projetava sua sombrasobre a identidade da comunidade imaginada à qual pertenciam, fato gerador de desconforto para alguns, dentre os quais Lino Coutinho, constrangido

a proclamar, quando das sessões das cortes dedicadas ao debate da extensão dos direitos de cidadania aos libertos, ser "preciso que eu faça um mani-

(orgs.), Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista (São Paulo: Cia. dasLetras, 1989).

122 Sessão de 3 j u l . 1822. A esse respeito, ver M. Berbel, op . cit., pp. 174 e ss.123 É o que atestam as "Instruções" do governo baiano datadas de março de 1822 recebidas pelos

deputados, publicadas em L uís H . D. Tavares, A independência do Brasil na Bahia, cit., pp.74-5.

festo neste Congresso, e vem a ser, que sempre tive horror à escravidão,apesar de ser Brasileiro".124

Os b aianos tinham atada à sua imagem a condição escravocrata, e sabiam perfeitamente disso.12 5 Mas na construção de sua auto-imagem (deliberais) isso era subsumido como conseqü ência d e "circunstância" derivada

124 Sessão de 17 abr. 1822.125 Sabiam-no perfeitamente porque assim eram vistos, como de resto todos os portugueses da

América e, numa escala mais ampla, os portugueses em geral, por aqueles que, portadores deoutra identidade de tipo nacional, construíam-na pelo reflexo diferenciado da que tinham porsua naquela que atribuíam aos portugueses. A análise do periodismo da região da Banda Orientaldo Uruguai, à época integrada como Província Cisplatina ao Reino do Brasil, é poderosamenteilustrativa desse jogo de espelhos; cf. o Pacífico Oriental de Montevideo (POM), periódico deMontevidéu que veio à luz em dezembro de 1821 com a tarefa principal de defender as vantagens proporcionadas pela proteção oferecida pelo império português (liberdade política e segurança na atividade com ercial que encontrava-se debilitada na região desde 1810: a desejada boaordem) em nenhum momento equipara os "orientais" a "portugueses americanos" ou "brasileir o s " (estes sim, sinônimos), tampouco inclui-os na "pátria" ou "nação portuguesa", que sãosempre referidas a terceiros (os habitantes do B rasil, os habitantes de suas províncias). Assim,é significativo que ao tratar da questão da escravidão africana, o Pacífico exponha esta diferen

ciação adquirindo contornos de incompatibilidade e de ameaça ao sucesso da incorporação daCisplatina com o Brasil. Em um comentário sobre os inconvenientes "que nos resultam deperpetuar o vergonhoso tráfico de nossos irmãos os africanos", o editor lembra o exemplo"sangrento" de Santo Domingo (Haiti) como demonstração dos perigos de se adotar tal tipo demão-de-obra, associada com governos "despóticos" e "arbitrários" contrários às idéias de"liberdade" (traduzidos do POM, n. 16, 5 abr. 1822, e n. 25,7 j u n . 1822; esta análise encontra-se em João Paulo G. Pimenta, Estado e nação na crise dos impérios ibéricos no Prata, cit.). Osreceios do Pacífico tinham fundamento. Pesquisas recentes mostram que entre os anos 1810 e1 8 2 3 , a população de Montevidéu contou com um contingente de escravos africanos quebeirava a cifra de 30 % que, ainda que correspondesse à média do Brasil (cf. nota 117), é a maisalta de toda a história da cidade (Ernesto M. Campagna Caballero, A população de Montevidéu,sua demografia histórica urbana, 1726-1852, São Paulo, Departamento de História/USP,1 9 8 7 , tese de doutorado). As críticas orientais à escravidão africana no Brasil testemunham, "àsavessas", esta situação, posto que colocavam sua extinção como garantia da ordem social. Porúltimo, vale destacar que o representante escolhido pela Cisplatina para atuar junto às Cortes da

Nação Portuguesa foi Lucas José Obes, advogado que pouco tempo depois se encarregaria dadefesa de duas escravas responsáveis pela morte de sua proprietária, uma rica senhoramontevideana. N esta ocasião, Obes redigiu a defesa em forma de um verdadeiro manifesto pelaabolição do tráfico (o episódio foi trazido à tona por Anibal Bardos Pinto, "Historias privadasde Ia esclavitud: un proceso criminal en tiempo de Ia Cisplatina", em José Pedro Barrán/GerardoCaetano/Teresa Porzecanski (orgs.), Historias de Ia vida privada en ei Uruguay. Entre Iahonra y ei desorden, 1780-1870 (Montevidéu: Taurus, 1996), pp. 172-95. Assim, os mesmossetores da sociedade oriental que apoiavam a incorporação da região ao Brasil como "P rovínciaCisplatina" estavam entre os mais ardorosos defensores do fim da escravidão africana no Prata,colocada não apenas com o fator limitador da incorporação, mas principalmente como diferencial a forjar identidades p olíticas distintas e incompatíveis entre si, dentro do império português(João Paulo G. Pimenta, op. cit., pp. 245-6).

172I s t v é n J o n c s ó e J o õ o P a u l o G . P i m e n t a P e ç a s d e u m m o s a i c o (o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o da e m e r g ê n c i a d a i d e n t i d a d e n a d o n a l b r a s i l e i r a ) 173

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do que era aceito como inevitável ordem das coisas. Soam quase patéticasas manifestações, porventura sinceras em alguns casos individuais, de repúdio às distinções raciais a qualificar homens livres. Cipriano Barata, tido porradical sanscolote126 (sic), oferece o elenco da diversidade cromática dasociedade americana formada p or "mulatos [...], cabras, e crioulos; os índios,mam elucos, e m estiços", afirmando reconhecer em tod os, indistintamente,"gente todas nossas [que] são portugueses e cidadãos muito honrados evalorosos". Na su a opinião, caberia à Constituição reconhecê-los como iguais,fossem eles "filhos de portugueses, ou de brasileiros, ainda q u e ilegítimos, dequalquer cor ou qualidade, nascidos no reino do Brasil; e mesmo todos oscrioulos e libertos".127 E eis que do discurso libertário emerge, n o que tangeàs identidades políticas coletivas, a profundidade do enraizamento, na mentede Barata e malgrado sua intenção expressa, da diferença entre os originários da África e os que ele tem por brasileiros. Seu colega de bancada, LuísPaulino Pinto da França, senhor d e engenho e de muitos escravos com quem,por motivo de áspera divergência e para escândalo e escárnio da assembléia,12 8 Barata chegou a atracar-se fisicamente, também man ifestou-se naocasião. E le não estava "pelo que disse um ilustre Deputado, que n ão sabefazer distinção de cores; eu sei fazer essas d istinções; o que não se i fazer édistinção do merecimento quando ele está no branco, no negro ou no pard o " . Poder-se-iam multiplicar os exemplos, e todos eles revelariam aonipresença do escravism o com o variável a determinar o horizonte m entaldesses h omens, igualando-os quanto a esse ponto, para além das diferençasde visão de futuro e da cultura política que professassem. Tod os, sem exceç ã o , eludiram esta questão, desqualificando o problema do escravismo com ovariável política a ser contemplada pelas cortes, fazendo-o mediante o artifício de tê-lo presente pelo seu contrário: a questão da cidadania. E com oescravismo subsumido pelo seu inverso, pôde fluir com plena desenvoltura aretórica liberal dos representantes das elites baianas e das de todas as outras

partes do Reino do Brasil.

Por fim, não se deve esquecer q u e os manifestos de Falmouth, além doque revelam sobre o significado de pátria, país e nação na construção da

126 Segundo Francisco de Sierra y Menescal, op . cit., p. 57.127 Sessão de 13 ago. 1822.128 Manuel Emílio Gomes de Carvalho, Os deputados brasileiros nas Cortes de Lisboa (Brasília:

Senado Federal, 1979), p. 181.

identidade política de seus autores e, por extensão, das audiências às quaiseram dirigidas, documentam sentimentos de frustração e perda que, de resto , perpassam muitas das manifestações políticas da época. Da leitura dejornais, panfletos, proclamações oficiais ou cartas privadas desenha-se umquadro de amarga perplexidade diante do fracasso das cortes na sua tarefade consolidar a união da nação portuguesa. N o extremo norte, O Paraense,usando argumentos que já se viu serem os do Revérbero ConstitucionalFluminense ou do Correio do Rio de Janeiro, proclamava, coincidentemente no dia 7 de setembro de 1822, que "no meio me smo d o Labirinto deopiniões de Províncias inteiras e Povos, ainda não apareceu uma que encaminhasse a quebrar a indivisibilidade da união da M onarquia, entre os doisReinos Irmãos",129 perseverando na defesa de uma possibilidade q ue já estava perdida.

N ão era simples para as elites luso-americanas despirem-se de algo tãoprofundamente arraigado como a identidade portuguesa, expressão sintéticade sua diferença e superioridade diante dos muitos para quem essa condiçãoestava fora do alcance. Saberem-se portugueses constituía o cerne da memória que esclarecia a natureza das relações que mantinham com o restantedo corpo social nas suas pátrias particulares, aquela massa de gente deoutras origens co m a qual, sobre a qual, ou contra a qual caberia organizar onovo corpo político. Com a independência do Brasil viam-se, de repente,diante de uma tarefa cuja complexidade foi enunciada com desalentada precisão de metalurgista por José Bonifácio de Andrada e Silva:

É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos poisdesde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e emamalgamar tantos metais diversos, para que saia um Todo homogêneo e compacto,que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política.130

129 O Paraense, n. 32, 7 set. 1822, publicado por Geraldo M ártires Coelho, Anarquistas, demagogos e dissidentes. A imprensa liberal no Pará de 1822, cit, pp. 311-4.

130 "Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre aescravatura", em E. de Cerqueira Falcão (org.), Obras científicas, políticas e sociais de José jBonifácio de Andrada e Silva, cit., vol. II, p. 126, onde, ademais, a escravidão é tratadanovamente por "cancro" (grifos originais). Para uma abordagem atualizada do pensamentopolítico do A ndrada, ver o estudo introdutório em M iriam Dolhnikoff (org.), José Bonifácio deAndrada e Silva. Projetos para o Brasil (São Paulo: Cia. das Letras, 1998).

174I s t vá n J a n c s ó e J o ã o P a u l o G . P i m e n t a P e ç a s d e u m m o s a i c o ( o u a p o n t a m e n t o s p a r a o e s t u d o d a e m e r g ê n c i a d a i d e n t id a d e n a c i o n a l b r a s i l e ir a ) 1 7 5

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O s termos enunciados pelo A ndrada revelam que este, e sua geração,debatiam-se com o mesmo paradoxo que paralisara os revolucionários de1817, e antes disso já se anunciara no 1798 baiano: a impossível eq uivalência entre corpo social e nação em contexto escravista. Acresce que, rompida a "indivisibilidade da união da Monarquia", alteraram-se os significadosde pátria e país, conceitos distintos mas reciprocamente referidos.

Quanto a pátrias, o texto d'O Paraense é claro: estas são as províncias, locais de reiteração de trajetórias particulares engendradoras dos "Povos" e de suas identidades coletivas. O plural do periodista tanto remete aum linguajar ancien regime, quanto demarca a multiplicidade dos âm bitosreais, concretos, da difícil "amalgamação" das diferenças, tanto aquelas àsquais se referia José Bonifácio, quanto das que distinguiam o Pará dePernambuco ou Minas Gerais da Cisplatina, e fazia os maranhenses sabe-rem-se diferentes dos baianos. O Brasil, por seu turno, é o país, enormemosaico de diferenças, cujas peças mal se acomodavam no império emergente do rompimento com Portugal, a partir de então "pátria mãe" e nãomais "reino irmão", mudança de significado que estabeleceu a precisaalteridade na qual pôde se refletir a identidade nacional brasileira. E nessequadro de contradições, algumas diretamente derivadas da crise que tudopenetrava, outras resultantes das respostas que os homens produziam para asua superação, não parece ser irrelevante destacar que a identidade nacionalbrasileira em ergiu para expressar a adesão a uma nação que deliberadamenterejeitava identificar-se com todo o corpo social do país, e dotou-se paratanto de um E stado para manter sob controle o inimigo interno.131

131 Segundo Bonifácio, na mesma "Representação" (op. cit.,\ol. II, p. 156-7), "multiplicando cadavez mais o número de nossos inimigos domésticos, desses vis escravos, que nada têm que perder,antes tudo que esperar de alguma revolução como a de S. Domingos". Sobre o antiescravismo doAndrada, ver, de Antônio Penalves Rocha, "Idéias antiescravistas na sociedade escravistabrasileira dos princípios do século XIX", paper apresentado no X Congresso Internacionalsobre a Ilustração, Dublin, 1999.

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j

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ILi

Por que o Brasil foi diferente?

0 contexto da independência

Kenneth Maxwell

I

I

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a *

-L ^1 a última metade do século X X , publicaram-se, surpreendentemente,poucos trabalhos acadêmicos a respeito da independência do B rasil. M enosatenção ainda tem sido devotada ao estudo sobre o impacto que a descolonização do vasto império português na América do Sul teve sobre a própria metrópole.

Historiadores portugueses ainda por vezes escrevem como se o B rasilnunca tivesse sido uma colônia de Portugal, e historiadores brasileirosfreqüentemente ignoram a importante dimensão transatlântica dos conflitospolíticos internos e das limitações econômicas do B rasil. A história do período que transcorre das Guerras Napo leônicas - quando, no fim de 1807, ainvasão de Portugal pelo general Junot obriga a corte portuguesa a buscarrefugio no B rasil - até 1825 , quando Portugal e as grandes potências européias reconhecem a independência do B rasil se ressente da falta de um esboço interpretativo, ainda que rudimentar. Apesar disso, os eventos que sedesenrolaram nos dois lados do Atlântico estavam intimamente vinculados enão podem ser explicados sem se compreender o que os conectava. Defato, entre 1 81 5e l8 2 1, Portugal e Brasil faziam parte formal e institucionalde um "R eino Unido". A interpretação dos problemas políticos e econ ômicos do Brasil e de Portugal foi extensa, e assim continuou até pelo menosmeados do século XIX.

M eu objetivo é, de forma preliminar, dar uma nova visão do movimentode independência do Brasil no contexto com parativo atlântico. Em primeirolugar, examinarei alguns problemas teóricos e práticos a respeito do estudoda independência do Brasil; em segundo lugar, o processo de "descolonização"; em terceiro, delinearei alguns aspectos-chave do contexto internacional no qual se desenrolou a independência. Para finalizar, analisarei a h istória

* Tradução de Adriana Lopez.

180 K e n n e t h M a x w e l l P o r q u e o B r a s i l f o i d i f e r e n t e ? 0 c o n t e x t o d a i n d e p e n d ê n c i a 1 8 1

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social e econômica da independência do Brasil, vista a partir das grandescontinuidades entre os períodos colonial e nacional reivindicados pela atualliteratura que diz respeito ao Brasil, e das grandes descontinuidades que dizem respeito a Portugal.

iIniciaremos o estudo do estabelecimento de novas nações a partir de

velhos impérios com uma certa expectativa e algumas pressuposições. P reliminarmente, estamos pensando na emancipação política do status de colônia; também se pressupõe que ocorreu uma certa democratização da políticainterna ou, ao meno s, a sua liberalização; desta forma, esperamos ver a derrota do despotismo e a emergência de algum tipo de fórmula institucional queexpresse a vontade popular, essencial para garantir a legitimidade de qualquer Estado novo . A legitimidade, entretanto, não depende apenas de fatores internos: o reconhecimento do no vo status de nação pelas outras nações

é essencial; assim como o é, eventualmente, a reconciliação (ou pelo menosuma aceitação formal do p edido de separação), que geralmente significa aassinatura de um tratado internacional com a ex-metrópole. Questõesgeopolíticas surgem, portanto, como inevitáveis, assim como questões queenvo lvem a política das grandes potências. A co nstelação das forças externas, a disposição d estas em intervir ou não, conforme a situação, talvez sejamais importante nesse m omento do que em qualquer outra época da históriade umanação. A nova nação também deve cumprir com o brigações no planointernacional: contrair empréstimos, realizar e financiar transações comerciais; organizar a vida econômica e financeira; eventua lmente pagar indenizações ou assumir o compromisso de quitar débitos coloniais.

Da mesma forma do que em outros momentos na vida da história deum a nação, decisões fundamentais de natureza fundadora se fazem necessárias no momento da independência. Essas decisões podem envolver questões profundas que dizem respeito a vários aspectos da vida nacional: aorganização das esferas social e econôm ica, questões institucionais a respeito das estruturas constitucionais, questõ es de o rganização, com o criar bancos e com o impor tarifas ou negociar tratados comerciais e com o criar umamoeda factível. É claro que a natureza explícita da multiplicidade de problemas e decisõ es a serem tomadas transforma tais mom entos em temas fasci-

nantes para a investigação histórica; desta vez, não estamo s especulando arespeito das conexões entre percepções, idéias e ações, mas assistindo àtransformação dessa s idéias em estratagemas institucionais e sociais, e e mmarcos constitucionais.

Temos a tendência de pressupor que todas essas mudanças ocorrempara o melhor. Mencion o isto apenas para indicar o quanto nossa visão so

bre a independência e a descolonizaçã o po de ser subjetiva. Raramente, porexemplo, consideramos um movimento de independência como uma "coisaruim", como uma regressão, um triunfo do "despotismo" sobre a "liberdade", da "escravidão" sobre a "liberdade", de um regime "imposto" sobre umregime "representativo", da oligarquia sobre a democracia, da reação sobreo liberalismo. A pesar disso, no caso da independência do Brasil, todas essasacusações po dem ser imputadas ao novo regime, assim com o de fato foramfeitas na época. ^

O Brasil, evidentemente, não estava só ao enfrentar esse dilema. Se"" considerarmos que as na ções independentes da A mérica Latina emergiram

após três séculos de dominação ibérica, a persistência da herança colonial se

tornou uma questão premente. O Brasil tinha, porexemplo, no momento desua independência de Portugal, 322 anos de existência; e, vale notar, no ano2000 sua experiência enquanto nação independente da dominação formaleuropéia ainda será mais curta do que o período em que esteve sob dom inação colonial. A pesar disso, a "persistência colonial" das nações da A mérica \Latina era diferente daquela herdada pelos Estados pós-coloniais que emergiram dos impérios europeus na Ásia e na África a partir de meados doséculo X X . O impacto provocado pela Espanha e Portugal nas Américas vhavia sido m uito mais profundo e, portanto, mais permanente do que foi oimpacto dos europeus que se impuseram, temporariamente, sobre outrassociedades m ais antigas do Oriente Méd io até a China, onde as populações,

as religiões, as estruturas sociais e os padrões de comportamento nunca foram desenraizados ou destruídos da maneira catastrófica com o foram nasantigas civilizações da Am érica pré-colombiana. Depois da Segunda GuerraM undial, particularmente onde não ha via uma grande população de c olonosbrancos para complicar a transição, africanos e asiáticos alcançaram a independência formal negociando a retirada ou tomando em armas e expulsandoum punhado de soldados, capatazes e administradores brancos. Na Améri-yca Latina foram precisamente os soldados, capatazes e adm inistradores europeus que expulsaram o s representantes das coroas de Espanha e P ortugal

182 K e n n e t h M a x w e l l P o r q u e o B r a s i l f o i d i f e r e n t e ? 0 c o nt e x t o do i n d e p e n d ê n c i a 183

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e a uma só vez usurparam a soberania de uma grande massa de populaçãoindígena e de escravos africanos. A Am érica Latina não pode s er compreendida em sua totalidade se enxergada apenas pela ótica do contexto das nações do 'Terceiro Mundo" que passaram a existir a partir do colapso dosimpérios coloniais francês, britânico e holandês entre 1945 e 1965. Nessesentido, o Brasil era, de fato, um "Novo Mundo nos trópicos", como disse

uma vez Gilberto Freire, uma sociedade de colonos que se implantou noNo vo M undo e onde a população - fosse ela européia, africana ou nativa -tornou-se de tal maneira miscigenada q ue não pôde ser outra vez segregadafacilmente. A profundidade extraordinária d o impacto d a colonização espanhola e portuguesa no hemisfério ocidental foi de tal ordem que o processo

Yde construção nacional se tornou um assunto intrinsecamente incestuo so.

li

N a década de 1820, com efeito, o B rasil negociava seu relacionamento

com o mundo externo dentro das pesadas limitações impostas pela história,pela geografia e por su a experiência colonial. A té recentemente, a interpretação desse período crítico tem sido fortemente influenciada pela teoria dadependência. Mas a teoria da dependência tende a homogeneizar a experiência da América Latina nu m mod elo explicativo mundial. Sob forte influência dos movim entos de descolonização da África e da Ásia do século XX ,essa abordagem freqüentemente tem negado autonom ia às forças sociais eeconômicas em jogo nas chamadas regiões "periféricas". Acima de tudo,desincentivava a investigação do processo, as causas e a dinâmica da mudança. Tal quadro criou uma enorme empecilho no caso da Am érica Latinacolonial, cujo controle havia sido desde o com eço dos tem pos modernos um

componente essencial na construção de uma ordem de dominação mundialeuropéia. A teoria da dependência sublimava qualquer investigação a respeito de como a preeminência européia havia sido alcançada e limitava a s explicações sobre as grandes mudanças de sistemas (o fim do feudalismo, osurgimento do capitalismo e assim po r diante) à dinâmica interna das so ciedades européias.

Estudiosos brasileiros estavam, é claro, bastante enamorados dessaconstrução teórica e desempenharam um papel importante em su a evolução.Tanto a professora Em flia V iotti da Costa como Fernando Novais, po r exem-

p i o , situavam a emergên cia do B rasil enquanto nação independente dentrodo contexto da passagem do capitalismo mercantil para o capitalismo industrial na Europa, e as conseqüentes mudanças que essa passagem ocasionouno sistema eco nôm ico internacional. A pesar disso, os interesses britânicosem P ortugal e no Brasil não eram, de fato, monolíticos; dois lobbies ou grupos de interesses distintos mantinham relações econôm icas com Portugal no

século que antecede a independência do B rasil: os com erciantes importadores de vinho s e o s exportadores de produtos têxteis de lã tinham forte interesse em manter o velho regime de tarifas que os favoreciam e tendiam aprivilegiar seus direitos extraterritoriais em Portugal, q ue beneficiavam seusempreendimentos desde meados do século XV II. Por outro lado, em francaexpansão, os agressivos manufatureiros de tecidos de algodão de Lancashire,que se desenvolveram a partir do final do século XV III, tinham interesse nolivre comércio. Até 1818, esse grupo recebia do Nordeste do Brasil umagrande porcentagem da m atéria-prima utilizada em suas manufaturas. E lesnão tinham nenhum interesse em perpetuar a dominação política e econômica de Portugal sobre o B rasil.

É importante, portanto, não sobrevalorizar o poder das forças puramente econôm icas ou estimar em demasia a inevitabilidade dessas mudançasmais amplas. O s interesses da indústria têxtil de algodã o na G rã Bretanha eseus apologistas certamente acreditavam q u e suas vantagens relativas permitiriam q u e seus produtos rompessem a s barreiras tarifárias mercantilistas dospaíses ibéricos, mas também pressionaram para que essas barreiras fossemremovidas por meio da intervenção governamental. A abertura dos portos

\do Brasil, em 1808, foi a primeira ação adotada pela recém-chegada corteportuguesa, depois da fuga de Lisboa. Embora essa ação tivesse como basemotivações ideológicas, foi essencialmente pragmática e se tornou inevitávela partir do m omento e m que a França m ostrou determinação em incorporar

os portos de P ortugal ao bloqueio continental contra a Grã Bretanha. N oque diz respeito aos interesses dos comerciantes britânicos no B rasil, m uitoscompetidores europeus, entre os quais os próprios franceses, ficaram temporariamente fora da jogada. Em tais circunstâncias favoráveis, o s comerciantes britânicos rapidamente saturaram o s mercados consumidores d o Brasil,onde a maioria da população era formada por escravos e não por consum idores livres.

Do is ano s depois da abertura dos portos, não é de surpreender que osbritânicos reivindicassem privilégios especiais. O Tratado A nglo-Brasileiro

184 K e n n e t h M a x w e l l P o r q u e o B r a s i l f o i d i f e re n t e ? 0 c o n t e x t o d a i n d e p e n d ê n c i a 1 8 5

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de 1810 impunha, no Brasil, tarifas mais altas aos portugueses do que aospróprios britânicos, uma imposição que discriminava a "mãe pátria" e repre-.sentava um severo golpe às já frágeis chan ces de reconciliar Portugal com oBrasil e seu novo status enquanto sede da monarquia. É irônico notar que aprimeira e a segunda edição da Riqueza das nações, de Adam Smith, \publicadas no Brasil, apareceram em 1811 e 1812 no Rio de Janeiro e na

Bahia, respectivamente, como que para recordar aos britânicos (e pararelembrar aos brasileiros, com certeza) que as potências h egemô nicas nemsempre praticam aquilo que apregoam. De fato, assim como em meados doséculo X VI I, Portugal e, mais tarde, o B rasil, se viram obrigados a equilibrara necessidade de autonomia e a necessidade de apoio político e militar, especialmente no que diz respeito ao relacionamento com a Grã Bretanha, apotência naval e econô mica dominante, e assim sacrificar suas perspectivaseconômicas, sucumbindo a u m relacionamento neocolonial com a maior p o

tência industrial da época. O preço pelo reconhecimen to da independênciaem 1825 foi esse.

< A pressão comercial britânica foi também algumas vezes contraproducente no que concerne aos interesses políticos de mais longo alcance, namedida em que estes se cho cavam d e frente com interesses fortemente con solidados no B rasil. Es se foi o caso da questão do tráfico de escravos. A pesar dos compromissos assumidos em tratados firmados entre o Brasil e aG rã Bretanha para abolir o tráfico, datados de 1810, a influência dos proprietários de terras e os interesses dos traficantes no Bra sil eram suficientem ente fortes para resistir, na primeira metade do século X IX , durante mais dequarenta anos, à diplomacia da Armada britânica. Aqui, mais uma vez, opeso da economia britânica se opunha freqüentemente aos propósitos dasiniciativas p olíticas, diplomáticas e filantrópicasda Grã B retanha. Sidney M inz

tem argumentado que a revolução industrial na Inglaterra, e nos estados donordeste da América do Norte ajudou a reavivar o escravismo nas Améric a s , ao criar um vasto mercado consumidor urbano para produtos tais com oo café e o açúcar, e ao criar, ao mesmo tempo, uma enorme demanda desuprimentos de algodão cru para abastecer os teares da velha e da novaInglaterra. E não eram apenas os com erciantes do R io de Janeiro e da B ahiaque financiavam o tráfico ilegal de escravos ou o com ércio legal de algodão,café e açúcar, que dependiam do trabalho escravo. Foram também os comerciantes de Nova York, Londres e Liverpool.

^Ironicamente, a resistência aos argumentos antiescravistas no Brasil foiprovavelmente mais fraca durante o período da independência do que emqualquer outro momento, antes ou depois. No Sul do país, especialmenteem São P aulo, u m a região crítica em termos de oposição política organizadacontra Lisbo a na década de 182 0, a produção de café em larga escala só sedesenvolveu depois que a independência foi alcançada. Na década de 182 1-

3 0 , as exportações de café totalizavam apenas 19 % do total exportado peloBrasil, ma s nas duas décadas seguintes, essa participação chegou a 6 3 % dototal. A expansão do mercado consumidor de café na Europa e na Am éricado Norte teve como conseqüência uma retomada intensiva do tráfico deescravos para o R io de Janeiro e a expansão do trabalho escravo no Vale doParaíba e em São Paulo. Nathaniel Leff argumenta que o motivo principaldas baixas taxas de crescimento econômico do Brasil durante o século XIXera o setor agrícola, onde as baixas rendas e a demanda inelástica, intrínsecas ao trabalho escravo, restringiam o ritmo do crescimento no resto daeconomia. Isso foi, precisamente, o que José Bonifácio de Andrada e Silvahavia antevisto, quando advertia seus contemporâneos, logo no início da

independência nacional, sobre os efeitos negativos de longo prazo que ofracasso em lidar com a questão da escravidão e da reforma agrária trariapara o futuro do Brasil, o que o levou a fazer um apelo corajoso, mas emv ã o , aos brasileiros em seu manifesto a favor da abolição d a escravidão e desuas propostas de reforma agrária em 1822: "A experiência e a razão demonstram què a riqueza reina onde há liberdade e justiça e não onde hácativos e corrupção", argumentava José Bonifácio, completando: "Se estemal persiste, não cresceremos".1

I I I

O quadro político e institucional d a independência do Brasil não é menos conturbado e contraditório do que foi a transição econôm ica, e a ambigüidade da passagem do B rasil de colônia para nação independente é melhorexemplificada na enigmática pessoa de d. Pedro e dos abortados planos de

1 José Bonifácio de Andrada e Silva. Obras científicas, políticas e sociais. 3 vols., coligidos ereproduzidos por Edgard de Cerqueira Falcão (Santos, 1965), pp. 115-58.

186K e n n e t h M a x w e l l P o r q u e o B r a s i l f o i d if e r e n t e ? 0 c o n t e x t o d a i n d e p e n d e n d o 1 8 7

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reforma propostos por José Bon ifácio. D . Pedro era, a uma só vez, o heróique havia emancipado o B rasil de Portugal e o governante temporário que.no prazo de uma década voltou para Portugal para lutar n a guerra civil contraseu irmão, assegurando assim que sua filha se tornasse a rainha de Portugal.

\> Ele era um rei demasiado "liberal" para os padrões da Santa Aliança naEuropa, mas muito " despótico" para muitos brasileiros, sobretudo para osrepublicanos de Pernambuco que se insurgiram em duas ocasiões para

repudiá-lo. Seu papel, conforme o perfil traçado pela historiografia portuguesa, é o de um defensor d o "constitucionalismo", uma imagem totalmenteincomp atível co m aqu ela traçada pela historiografia brasileira, onde ele foi ogovernante que rejeitou a constituição e demitiu José Bonifácio e seus irmãos, líderes da pequena minoria de brasileiros que queriam reformas fundamentais.

É vital reconhecer, portanto, que no 7 de setembro de 1822, nas margens do Ipiranga, nos arredores de São P aulo, quando Dom Pedro, herdeirodo trono português, gritou "Independência ou morte", estava exagerando. Aquestão, em setembro de 1822, não era certamente a "morte" e, apenasindiretamente, a "independência". O B rasil havia sido independente, para

Xtodas as intenções e propósitos, desde 1808; desde 16 de dezembro de18 15 o B rasil fazia parte de um reino unido, em pé de igualdade com Portugal. O que estava em jog o no início da década de 1820 era mais uma questão de monarquia, estabilidade, continuidade e integridade territorial do que

xde revolução colonial.

Evitar a revolução no Brasil era, também, uma grande preocupação naEuropa. Henry C hamberlain, o ministro britânico no R io de Janeiro em 1 824,preocupava-se constantemente que as agitações sob a superfície, no B rasil,mais evidentes nas ruas e na Asse mbléia C onstituinte no Rio, poderiam

acender [...] uma chama [...] que não será possível controlar, e que pode acabar,

talvez, c o m a destruição do governo imperial e a divisão do país numa variedade depequenos estados republicanos independentes, deploráveis em si e causadores damiséria de seus vizinhos, tal como temos testemunhado nas colônias da Américaespanhola em nossa vizinhança.2

2 Charles K. W ebster (org.). Britain a n d t h e Independence ofLatin America, 1812-1830: SelectDocuments from th e Foreign Office Archives, 2 vols. (Londres/Nova York: Oxford UniversityPress, 1938), vol. I, pp. 240-1.

O s grandes aliados europeus de Portugal - tanto a Grã Bretanha com oos memb ros da Santa Aliança - tinham idéias claras a esse respeito, conforme G eorge C anning, o secretário de Assu ntos E strangeiros britânico escreveu sucintamente em 1823:

A única questão é s e o Brasil, independente d e Portugal, será u m a monarquia ou umarepública [...]. A preservação d a monarquia numa parte d a América é objetivo de vitalimportância para o Velho Mundo.3X

Desde o estabelecimento da corte portuguesa no Rio de Janeiro em1 8 0 8 , o governo d e Londres sempre havia, de fato, feito uma clara distinção xentre as circunstâncias do Brasil e aquelas da América espanhola. C anningenfatiza o contraste entre essas situações, quando escreve para Sir C harlesS t u a r t e m l 8 2 5 :

Não podemos deixar de lembrar que a diferença entre a relação de Portugal com oBrasil e aquela d a Espanha co m suas Américas nada mais é d o q u e esta - que todas ascolônias espanholas progrediram apesar da mãe pátria, mas que o Brasil tem sido

elevado ao estatuto de reino irmão, ao invés de dependência colonial, pelos atospolíticos do soberano comum d e Portugal e Brasil. Até o momento da emigração daFamília Real para o Brasil, o Brasil era estritamente uma colônia, como o eram oMéxico, ou o Peru ou Buenos A ires. A partir daquele momento, primeiro começouuma série de relaxamentos e, depois, a concessão de privilégios, que gradualmenteexaltaram a condição do Brasil e quase inverteram suas relações com Portugal paratransformar, durante a residência d e S u a Mais Fiel Majestade no Brasil, a m ã e pátrianuma Dependência de fato.4

A questão importante a respeito do Brasil é, portanto, que ele se tornou V

econômica e politicamente independente entre 1808 e 1820, enquanto desempenhava o papel de centro do Império Luso-B rasileiro. Tornou-se "in

dependente" em 1822 apenas depois do fracasso da experiência de "centroimperial", ao qual os súditos da monarquia portuguesa na Europa, África eÁsia voltavam o olhar em busca de liderança. Essa circunstância pouco c omum ex plica por que em 1820 foi Portugal que declarou sua "independência" do Brasil, e só depois, em 1822, o B rasil declarou sua "independência"

j

3 Ibid., p. 236.4 Ibid., pp. 265-6

1 8 8 K e n n et h M a x w e l lP o r q u e o B r a s i l fo i d i f e r e n t e ? 0 c o n t e x t o d a i n d e p e n d ê n c i a 1 8 9

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de Portugal. O "Manifesto da Nação Portuguesa aos soberanos e povos daEuropa", que foi promulgado pelos rebeldes do Porto em 1820, soava comomuitas outras declarações de independência dos estados coloniais e continhamuitas das mesm as queixas; a única diferença era que esse manifesto forapromulgado por rebeldes de um a cidade na Europa, e não por rebeldes dealgum porto colonial da América. O manifesto do P orto declarava:

O s portugueses começam a perder as esperanças para c o m o único recurso e meiode salvação qu e lhes foi deixado em meio à ruína qu e quase consumiu su a queridaterra natal. A idéia do status de colônia ao qual Portugal te m sido c o m efeitoreduzido, aflige profundamente todos aqueles cidadãos que ainda conservam osentimento de dignidade nacional. A justiça é administrada a partir do Brasil para ospovos leais da Europa, o q u e implica numa distância de duzentas léguas e excessivocusto e demora [...]5

IV

Mas se a revolução "anticolonial" ocorreu no Porto e não no Rio deJaneiro, as perguntas interessantes, n a perspectiva do Brasil, são as seguint e s : o desejo de independência no Brasil era suficientemente forte para q u e odesenlace resultasse na independência se as Cortes não tivessem obrigado orei a voltar para a Europa; o sentimento antimonarquista no Brasil era suficientemente forte para provocar um movim ento republicano, como os quehaviam ocorrido na América do N orte e em boa parte da Am érica espanhola , e que haviam rejeitado tanto a monarquia com o a dom inação européia?Essas perguntas não são apenas teóricas - é preciso recordar que orepublicanismo havia sido a principal corrente ideológica entre os conspira-dores de Minas Gerais em 1788-89, dos alfaiates baianos em 1789, e em1817 em P ernambuco, assim como durante a década de 1820. O problema,tratando-se do caso do Brasil, é que todos esses movimentos republicanosforam, ou ao menos poderiam ser, interpretados como revoltas regionais

^contra a autoridade centralizada e uma ameaça à integridade territorial da

Sr^r^rrzrSouvera,ns -aux **" *'— * • * » »

Am érica portuguesa. O sistema d a monarquia centralizada havia estabelecido uma forte presença institucional desde 1808; e esse fator foi crítico paradeterminar o sucesso de d. Pedro na proteção de seu novo império aosdesafios im postos pelos republicanos. Portanto, a resposta à s perguntas acima formuladas é, provavelmente, "não". Em outras palavras, a base so cial^predisposta a enfrentar mudanças radicais era mais forte em Portugal, na

década de 1820, do que no Brasil, e o motivo disso é que o movimento afavor da continuidade era mais forte no Brasil do que em P ortugal que, em1 8 0 8 , havia perdido não só a monarquia, com o também se sujeitara a invasões, à guerra e a um protetorado britânico de fato.

Enquanto isso, no Brasil, as ameaças à ordem social depois de 1790ficaram estreitamente associadas ao republicanismo, e tenderam a produziruma m aior coalizão dentro da elite, especialmente entre a dos proprietáriosde terras. Aqui, o medo do contágio da revolta de escravos do Haiti estavasempre presente nas mentes, e a "liberdade", se também chegasse a implicarem "igualdade", certamente levantaria problemas fundamentais numa sociedade hierarquizada em termos raciais e sociais.

Mais uma vez, o Brasil apresenta ambigüidades, já que uma das reações à ameaça vinda de baixo foi a de se propor a eliminação do trabalhoescravo e a substituição deste por trabalhadores livres. Mas no Brasil, adespeito da eclos ão de um a série de revoltas de escravos na B ahia duranteesse período, o temor de uma revolução social não foi argumento suficientepara obrigar os pod erosos a desafiar seus interesses materiais mais imediatos e a embarcar no caminho da reforma do sistema de produção baseadono trabalho escravo.

Até os britânicos, que apesar d e muito falarem, n ão aboliram o trabalhoescravo em suas próprias colônias até meados da década de 1830 , reconheciam, em particular, a força dos interesses dos proprietários de escravos.

Henry C hamberlain assim disse a George C anning:

N ã o h á de z pessoas em todo o Império qu e considerem o tráfico um crime, o u q u eo enxerguem sob qualquer outro ponto de vista a n ã o ser aquele do lucro ou doprejuízo, um a mera especulação mercantil qu e deve ter prosseguimento enquantofor vantajosa.6

6 Charles K. Webster, o p . c i t . , vol. I , p . 233.

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O p r ó p r i o J o s é B o n i f á c i o d e s c r e v e u a s i t u a ç ã o t a l c o m o a v i u , c o m

g r a n d e r e a l i s m o , a o e n v i a d o b r i t â n i c o H e n r y C h a m b e r l a i n e m a b r i l d e 1 8 2 3 :

Estamos totalmente convencidos da inadequação do tráfico de escravos [...] m as devofrisar candidamente que a abolição não pode ser imediata, e eu explicarei as duasprincipais considerações q u e n o s levam a essa determinação. U m a é d e ordem econômica, a outra de ordem política.

A primeira se baseia na absoluta necessidade de tomarmos medidas para garantir umaumento da população branca antes d a abolição, para q u e a s lavouras do país possamcontinuar produzindo, caso contrário, com o fim do suprimento de negros, a lavouradiminuirá, causando grandes transtornos [...] esperamos adotar medidas para atrairimigrantes europeus para cá sem perda de tempo. Assim que estes começarem aproduzir esse efeito, a necessidade do fornecimento de braços africanos diminuirágradativamente, e eu espero q u e e m alguns poucos anos se coloque um ponto inal notráfico para sempre [...]

A segunda consideração d iz respeito à conveniência política, n a medida e m q u e afetaa popularidade e, talvez a t é , a estabilidade do governo. Poderíamos enfrentar a crisee a oposição daqueles que se dedicam ao tráfico, mas não podemos, s e m u m grau derisco que nenhum homem em sã consciência possa pensar em correr, tentar no momento presente propor uma medida que iria indispor a totalidade da população do

interior [...] A quase totalidade de nossa agricultura é feita por negros e escravos. Osbrancos, infelizmente, pouco trabalho fazem, e se os proprietários rurais tivessemseu suprimento de trabalhadores repentinamente cortado, deixo q ue vossa mercê façajulgamento do efeito que isso teria sobre essa classe de gente desinformada e poucoilustrada. S e a abolição viesse para eles antes q ue estivessem preparados, todo o paísentraria em convulsão, de uma ponta até a outra, e não há como calcular as conseqüências para o governo ou para o próprio país.

Sabemos q u e , enquanto isso persistir e o estado de escravidão tiver continuidade nopaís, a verdadeira e sólida indústria nã o pode se enraizar, a prosperidade vigorosa nã opode existir, e nossa população não será significativa e, portanto, estamos tão profundamente convencidos destas verdades que, se possível fosse, aboliríamos a ambos.7

E s t a s o b j e ç õ e s à e s c r a v i d ã o , c o n t u d o , n ã o e r a m t a n t o o r e s u l t a d o d es e n t i m e n t o s d e o r d e m " h u m a n i t á r i a " o u " f i l a n t r ó p i c o s " , m a s u m a r e s p o s t a

a o s p r o b l e m a s p o s t o s p o r u m a s o c i e d a d e e m q u e a s p r i n c i p a i s l i d e r a n ç a si n t e l e c t u a i s a c r e d i t a v a m q u e o e q u i l í b r i o r a ci a l d a p o p u l a ç ã o e r a p e r i g o s a m e n t e i n s t á v e l . A q u e l e s p o u c o s q u e p r e g a v a m a e v e n t u a l e m a n c i p a ç ã o d o s

7 Ibid., pp. 222-3.

e s c r a v o s , t a l c o m o J o s é B o n i f á c i o , o f a z i a m n ã o p o r c a u s a d a h u m a n i d a d ed o s e s c r a v o s , m a s p o r q u e d e s e j a v a m e l i m i n a r o s n e g r o s .

O s i d e ó l o g o s d o " l i v r e c o m é r c i o " n o B r a s i l t a m b é m a d o t a r a m e s s a

postur a e sse nc ia lm e nte r a c is ta . José da S i lva L isboa , que ha via c la m a do pe laa b e r t u r a d o s p o r t o s a o p r í n c i p e r e g e n t e e m 1 8 0 8 , a r g u m e n t a v a , e m 1 8 1 8 ,q u e o p r o g r e s s o d e S ã o P a u l o s e d e v i a " à e x t r a o r d i n á r i a p r e p o n d e r â n c i a [ l á]

d a r a ç a b r a n c a " . O R i o G r a n d e d o S u l , o c e l e i ro d o B r a s i l , h a v i a s i d o , i g u a l m e n t e , c o l o n i z a d o " p e l a r a ç a p o r t u g u e s a , e n ã o p e l a p o p u l a ç ã o d a E t i ó p i a " .T o m a n d o c o m o e x e m p l o a I l h a d a M a d e i r a , e l e g a r a n t i a q u e " a e x p e r i ê n c i at e m m o s t r a d o q u e u m a v e z q u e s e e s t a n c a o s u p r i m e n t o d e a f r i c a n o s, a r a ç a

nã o d im inui e de c l ina , m a s se tor na m e lhor e m a is br a nc a [ . . . ] " E le de se ja vav e r o c â n c e r d a e s c r a v i d ã o e l i m i n a d o d e s d e o r io d a P r a t a a t é o A m a z o n a s ." A m e l h o r á r e a d a A m é r i c a s e r á p o v o a d a p o r r e b e n t o s d a Á f r i c a o u d a

E u r o p a ? " , q u e s t i o n a v a . P a r a e v i t a r " o h o r r í v e l e s p e t á c u l o d a c at á s t r o fe q u er e d u z i u a r a i n h a d a s A n t i l h a s a u m a M a d a g a s c a r " , o B r a s i l d e v e e v i t a r s et o r n a r u m a " N e g r o l â n d i a " . 8

A q u e s t ã o d a e s c r a v i d ã o l e v a n t a v a a s s i m p r o b l e m a s f u n d a m e n t a i s s o b r e q u a l s e r i a o c a m i n h o d e s e j á v e l p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o d o B r a s i l , p r o b le m a s que e r a m f unda m e nta is pa r a se e s ta be le c e r o t ipo de soc ie da de , E s ta do ,

s is te m a le ga l e gove r no que o B r a s i l , e nqua nto e s ta do inde pe nde nte , i r ia a dot a r . E r a u m a q u e s t ã o q u e d i v i d i a o s h o m e n s " e s c l a r e c i d o s " . A q u e l e s q u ee r a m o s m a i s a r d o r o s o s d e f e n s o r e s d o laissezfaire, q u a n d o i s s o s i g n i f i c av a

a r e m o ç ã o d a s f u n ç õ e s r e g u l a d o r a s d o E s t a d o , q u a s e s e m p r e e r a m a q u e l e sq u e e s t a v a m m a i s c o m p r o m e t i d o s c o m o t r á f ic o d e e s c r a v o s e a e s c ra v i d ã o .Aque le s que a poia va m a in te r f e r ê nc ia do gove r no , pa r t ic u la r m e nte no toc a n

t e a o c o n t r o l e d e p r e ç o s e à g a r a n t i a d o a b a s t e c i m e n t o d e p r o d u t o s d e s u b s i s t ê n c i a p a r a a p o p u l a ç ã o , e r a m t a m b é m o s q u e m a i s s e o p u n h a m a o t r áf i c od e e s c r a v o s e à e s c r a v i d ã o . U n s v i a m a p o p u l a ç ã o e s c r a v a c o m o o i n i m i g oin te r no e , ta l c om o José da Si lva L isboa e José B onif á c io , a c r e di ta va m que o

B r a s i l nã o se de se nvolve r ia se m a c r ia ç ã o de um a f or ç a de t r a ba lho l ivr e e dae u r o p e i z a ç ã o o u d o b r a n q u e a m e n t o d a p o p u l a ç ã o . O u t r o s c o n s i d e r a v a m ae s c r a v i d ã o c o m o e s s e n c i a l à p r o s p e r i d a d e d o B r a s i l . A q u e l e s q u e a t a c a v a m

o laissezfaire q u a n d o e s t e e x i g i a a r e m o ç ã o d a q u i l o q u e c o n s i d e r a v a m c o n t r o l e s g o v e r n a m e n t a i s a j u i z a d o s , e r a m o s m a i s f a v o r á v e i s a o l i v re c o m é r c i o

8 José da Silva Lisboa, Memória d o s benefíciospolíticos d o governo d e el-rey nosso senhor d . JoãoV I. Rio de Janeiro, na impressão regia, 1818.

192 Kenneth Maxwell

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internacional, porque o livre comércio prometia estimular a imigração de europeus e oferecia a possibilidade de uma aliança com a Grã Bretanha contrao tráfico de escravos.

Intelectuais, traficantes e patriotas brasileiros, em suma, longe de concordarem a respeito deste tema central, estavam am argamente divididos quando se tratava de abolir ou não a escravidão. Podiam abraçar o liberalismo,

mas seu zelo "revolucionário" ficava estritamente limitado a um desejo deacesso aos mercados, à proteção da propriedade e a garantias de que asdívidas seriam pagas. Nesse quadro, o centralismo, a monarquia e a continuidade eram fundamentais. Os "patriotas" do Brasil eram realistas e nãopodiam ir além da sua base de apoio social. Aqueles que assim fizeram,como José B onifácio, foram logo descartados. A escravidão e o capitalismoindustrial provaram ser compatíveis, de fato, nos quadros do sistema atlântico do século XIX - o capitalismo industrial vicejou graças ao algodão e aocafé produzidos por escravos tanto quanto o capitalismo comercial haviavicejado com o açúcar produzido por escravos . Nesse contexto, JoséBonifácio de Andrada e S i lva, o "patr iarca" do movimento da independência, e um dos mais ardorosos defensores de mudanças estruturais - inclusive

da abolição da escravidão e do tráfico de escravos - foi uma dupla vítima.Não foi apenas o próprio sistema econômico, tanto o interno quanto o dedimensão atlântica, que criou condições hostis às suas propostas; ele também foi vítima das políticas adotadas pela Grã Bretanha, cuja excessivapressão ajudou a minar a única administração que tinha um verdadeirocompro misso com o fim da escravidão e do tráfico de escravos. De fato, emconversas secretas mantidas com Henry Chamberlain, em abril de 1823,José Bonifácio alertou os britânicos a não pressionarem d emais ou andaremrápido demais:

Você sabe o quanto eu, sinceramente, detesto o tráfico de escravos, o quanto acredito

ser ele prejudicial ao país, o quanto desejo a sua total cessação, embora isso não p ossaser feito imediatamente. As pessoas não estão preparadas para isso, e até que sejafeito, colocaria em risco a existência do governo, se tentarmos fazê-lo repentinamente. A própria abolição é uma das principais medidas que desejo apresentar à Assembléia sem falta, mas isso deve ser bem administrado e não podemos ter pressa [...]

Com relação às Colônias ou à Costa da África, nada queremo s lá ou em qualquer outraparte. O Brasil é suficientemente grande e produtivo para nós, e estamos satisfeitoscom o que a P rovidência nos deu.

Desejaria que seus navios de patrulha tomassem todos os navios negreiros que encontrassem no mar. Não quero mais vê-los, eles são a gangrena de nossa prosperidade. A

TRAÇO DE UMA DAS MUITAS CVILIZAÇÕESQUE ANTECEDERAM A PRESENÇAEUROPÉ.A NA AMÉRICATROPI-

CAL. PINTURARUPESTRE. SÃO RA MUNDO NONAT O, PlAUÍ. (Caus C. MeyerAyba)

P I N T U R A R U P E S TR E . P A R Q U E N A C I O N A L S E R R A DA

Museu do Homem Americano - FUMDHAM)

C A P I V A R A . SÃ O R A I M U N D O N O N A T O , P I A U Í . (Fundação

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ESTALEIRO DA

RIBEIRA DAS NAUS.

(Iconographia)

PORTO DE LISBOA E AFROTA

DAS ÍNDIAS. TALHO-DOCE

POR LAFITAU. PARIS, 1733.

(Biblioteca Mário deAndrade,

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DUARTE PACHECO PEREIRA,

OÍ RANDE CAPITÃO GENE

RAL DA ARMADADE CALE- \cvr. VICEREÍEGOUERNADOR.

30MALAÜARNAJNDIA.J£LLOJ5EU5 RELEUANTEf;

tf RUI <pS QUE FESNAQUElLl'

.ONTINENTEALCANÇÓU NO

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REITO DEBAIXORO PALIO

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PARA ESTE FIM D£ ,

ME S. DOMINGOSDEV A Q U A L P U B LIC O U

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icosoBrsPom

^ ^ ^ ^ ^ ^de

" O FINO BRASIL"

DUARTE PACHECO PEREIRA (1480-1533), NOBRE

PORTUGUÊS, NAVEGADOR EAUTOR DE ESMERALDO DE SLTU

ORBIS (ESCRITO DE 1505 A 1508) , ESPECIALISTA EM

Q U E S T Õ E S DEG E O G R A F I A EC O S M O G R A F I A . ( I c o n o g r a p h i a )

O H I S T O R I A D O R P O R T U G U Ê S J O A Q U I M B A R R A D A S DE

CARVALHO LEVANTOU, NOS ANOS SETENTA DO SÉCULO XX,

AHIPÓTESE DE DUARTE PACHECO SER O VERDADEIRO

"DESCOBRIDOR" DO BRASIL JÁEM 1498, DOIS ANOS ANTES

DA EXPEDIÇÃO DE PEDRO ÁLVARES CABRAL.

(Arquivo C G. Mota)

I

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COS T UM ES DOS Í NDI OS .

GRAVURA DO LI VRO UNE FÊTEBRÉS1L1ENNE CÉLÉBRÉE À ROUEN EN

1550. (Iconographia)

" E s t o u c h e g a n d o e u , v o s s a c o m i d a . "

H a n s S t a d e n

H A N S S T A D E N . I L U S T R A Ç ÃO D O

LI VRO DUAS VIAGENS AO BRASIL,

D E S U A A U T O R I A . M A R B U R G ,

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H O L A N D E S E S E Í N D IO S A L I A D OS . P O R M E N O R D A P R A N C HA " P A R A H Y B A E R I O G R A N D E " , D E F R A N SPOST. G. BARLEUS, 1647. (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro)

O ÍNDIO CAÇADOR. TAPEÇARIA GoBELIN, C. 1692.

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I CEG O GUI ADO P OR UM P RET O. AQUARELA S OBRE P AP EL. M I GUEL

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" M o s t r e - s e a o B r a s i l q u e n ã o o q u e r e m o s a v a s s a l a r c o m o o s a n t i g o s d é s p o t a s ; p o r é m c o n t r a o s f a c c i o s o s

r e b e l d e s , m o s t r e - s e q u e a i n d a t e m o s u m c ã o d e f i l a , o u l e ã o t a l q u e , s e o s o l t a r m o s , h á - d e t r a z ê - l o s a

o b e d e c e r à s C o r t e s , a o R e i e à s a u t o r i d a d e s c o n s t i t u í d a s n o B r a s i l . "

B o r g e s C a r n e i r o , 22 d e m a i o d e 1 8 2 2

C I P R I A N O B A R A T A DEALM EI DA, REVOLUCI ONÁRI O BAI ANO E

\ DEPUTADO Às CORT ES DE LI S BOA, CI RURGI ÃO FORM ADO P ELA

V UNVERSIDADE DE COIMBRA (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro)

" S E S S Ã O DAS C O R T E S DEL I S B O A " , DEO S C A R P E R E I R A DA S I L V A . A N T Ô N I O C A R L O S

DISCURSA À DIREITA VERGUEIRO CONVERSA COM F E I J Ó . ATRÁS, C PRIANO BARATA

(Museu Paulista, São Paulo)

" 0 B r a s i l a g o r a é f e i t o p a r a a d e m o c r a c i a , o u p a r a o d e s p o t i s

m o - e r r e i e m q u e r e r d a r - l h e u m a m o n a r q u i a c o n s t i t u c i o

n a l . O n d e e s t á u m a a r i s t o c r a c i a r i c a e i n s t r u í d a ? O n d e

e s t á u m c o r p o d e m a g i s t r a t u ra h o n r a d o e i n d e p e n d e n

te ? E q u e p o d e u m c l e r o i m o r a l e i g n o r a n t e , s e m

c r é d i t o e s e m r i q u e z a ? Q u e r e s t a p o i s ? "

J o s é Bo n i f ác i o , A v u l s o s ,

em P r o j e t o s p o r á o B r a s i l

J O S É B O N I F Á C I O PO R D E B R E T

(Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo)

S ES S ÃO DO CONS ELHO DE

2 DE SETEMBRO DE 182 2 .

N E S S A R E U N I Ã O - COM

_ P ART I CI P AÇÃO DA P RI NCE

SA L E O P O L D I N A , J O S É B O N I F Á C I O , J O S É C L E M E N T E P E R E I R A , M A R T I M F R A N C I S C O , G O N Ç A L V E S L E D O ,

C A E T A N O M I R A N D A M O N T E N E G R O , M A N U E L A N T Ô N I O F A R I N H A E L U Í S P E R E I R A N Ó B R E G A - SÃO

T OM ADAS AS P RI M EI RAS M EDI DAS P ARA A P ROCLAM AÇÃO DA I NDEP ENDÊNCI A. ÓLEO DE G E O R G I N A DE

ALBUQUERQUE (Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)

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" E E v a r i s t o a p o d e r o u - s e d a r e v o l u ç ã o

n o m e s m o d i a e m q u e e l a t r i u n f o u

[ 7 d e a b r i l d e 1 8 3 1 ] , f ru s t r a n d o o s p r o

p ó s i t o s d o s q u e a q u e r i a m l e v a r à s ú l t i

m a s c o n s e q ü ê n c i a s . "

O t á v i o T a r q ü í n i o d e S o u s a ,

E v o r i s t o d a V e i g a

EVARISTO DA VEÍGA. LITOGRAFIA DE

SlSSON C 185 9. (Biblioteca Mário de

Andrade, São Paulo)

" D e 1 8 5 2 a t é ho je [ 1 8 5 5 ] , a r r e fe

c i m e n t o d a s p a i x õ e s , q u i e t aç á o n o p r e

s e n t e , a n s i e d a d e d o f u t u r o , p e r í o d o d e

t r a n s a ç ã o . "

J u s t i n i a n o J o s é d a R o c h a ,

A ç õ o , r e a ç ã o e t r a n s a ç ã o

J USTINIANO J OSÉ DA ROCHA, PROFESSOR E

J ORNALISTA. LITOGRAFIA DEM A R I N

LAVIGNE (Biblioteca Nacional, Rio de

Janeiro)

PERNAMBUCO, C 18 40 . LITOGRAFIA KlDDER, 1 86 6. (Biblioteca Nacional, Rio de Janei

FESTA DOS COROADOS (DETALHE). LITOGRAFIA. SPIX & M A R T I U S , 1823-1831.

(Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo)

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VI S T A DES A L V A D O R , B A H I A . L I T O G R A F I A . J E A N F E R D I N A N D D E N I S , 18 38 . (Biblioteca Nacional,

Rio de Janeiro)

" N E G R O S QUE VÃO LEVAR A ÇOI T ES " . I

L I T O GR A F I A D E L U D W I G & B R I G G S .

(Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro)

&S»

mmmm

" N ã o s e r i a j u s t o q u e n o s d e s s e m t ã o b e m a

l i b e r d a d e ? "

0 e s c ra v o c r i o u l o F ra n c i s c o

NEGRO COM FACÃO. LI T OGRAFI A DE

G E O R G E H. L Ô W E N S T E R N , C. 1827.

(Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro)

" M i n h a a s c e n d ê n c ia p o r l in h a m a t e r n a p r o

c e d e d e n e g r o s h a u s s á s , e s c r a v o s a f r i c a n o s

t r a z i d o s d o S u d ã o e a f a m a d o s n a h i s t ó r i a

d a s s u b l e v a ç õ e s b a i a n a s c o n t r a o s e s c r a

v i s t a s . "

C a r l o s M a r i g h e l l a ,

P o r q u e r e s i s t i à p r i s ã o

M A R I A R I T A M A R I G H E L L A ,

DESCENDENTE DE HAUSSÁS (Iconographia)

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C H I C O D I A B Oatravessando com uma lança o monstro mais bárbaro 6 hediondo, que tem visto o mundo—o execrandoFrancisco Solano Lopcz, destruidor de sua própria pátria!...

SEMANA ILUSTRADA, N 485 , 27 MAR. 1 87 0. (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro)

' ' P Á T R I A " . Ó L E O DE PEDRO

BRUNO. (Museu da República.

Rio de Janeiro)

SERTANEJ AS DO ARRAIAL DE

CANUDOS PRESAS PELO

E X É R C I T O , dconographia

Por que o Brasi foi diferente? 0 contexto da independência 19 3

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" N ã o h o u v e r u p t u ra d o r e g i m e c o l o n i a l,

q u e s o b r e v i v e u c o m o a b s o l u t i s m o d o

r e g i m e i m p e r i a l , c o m a l e g i s l a ç ã o a r

c a i c a , c o m a r e l a t i v a i m o b i l i d a d e a d

m i n i s t r a t i v a , com a a l i e n a ç ã o da s

e l i t e s , c o m a f r a g i l i d a d e d a c o n j u n t u r a

e a e s t a b i l i d a d e d a e s t r u t u r a , i m u t á v e l

e i n c a p a z d e a t e n d e r à s n e c e s s i d a d e s

n a c i o n a i s . O p e r í o d o c o l o n i a l e s u a s o

b r e v iv ê n c i a d e t e r m i n a m t o d o o s u b d e

s e n v o l v i m e n t o p o s t e r i o r . "

José Honório Rodrigues, 1970

JOS É H O N Ó R I O R O D R Í G U E S T OM A P O S S E N A A C A D E M I A B R A S I L E I

R A D E L E T R A S , 1 9 6 9 . À D I R E I T A , F R A N C I S C O IG L É S I A S . (Arqui

C. G. Mota)

população que queremos é branca, e espero ver chegar logo da Europa os pobres, osdesditosos, os industriosos; aqui eles terão fartura, com um clima bom; aqui eles serãofelizes; eles são os colonos que queremos. 9

Para alimentar esse sistema atlântico e para manter a organização econômica da produção, entretanto, uma coisa era evidente: o Brasil não preci-\sava de Portugal. Os ressentimentos e as dificuldades financeiras e econômicasque levaram à convocação das Cortes em Lisboa, em 1820, e à formulaçãoda constituição l iberal, surgiram, em grande p arte, devido à perda dos privilégios e monopólios de Po rtugal no comércio colonial; e, uma vez reunidosos constituintes, as medidas das Cortes logo refletiram esses imperativos. AsCortes não só obrigaram d. João VI a retornar para Lisboa, como ainda sepuseram a legislar para colocar um fim aos pod eres que ele havia cedido aseu fi lho m ais velho, d. Pedro, que havia sido deixado no Rio na condição deregente. Os brasileiros viram que as medidas das Cortes de Lisboa, com

apoio total dos odiados comerciantes e imigrantes portugueses no Brasil ,eram uma tentativa de "recolonização" que faria o tempo voltar atrás nostreze anos em que o Rio havia sido a sede do governo. Co m esses acontecimentos como pano de fundo, d. Pedro desafiou as instruções das Cortespara que retornasse à Euro pa. Primeiro aceitou o t í tulo de "Defensor P erpétuo do Brasil" dado pelo C onselho Mun icipal do Rio de Janeiro no início de1822 e, depois, em 7 de setembro de 1822, emitiu sua declaração de "ind ependência" nas cercanias de São Paulo.

A emancipação polít ica do Brasil é, portanto, um longo e cumulativoprocesso, que manteve sua continuidade ao longo do caminho; 1808, 1816,1822 e até 1831 são todos momentos importantes na afirmação dessa gra

dual separação e na definição da nacionalidade. O caminho teve mom entosárduos, com certeza. O reconh ecimento internacional só veio em 1825, depois de longas neg ociações e da promessa de que o Brasil pagaria a Portugaluma grande indenização. A guerra eclodiu com renovado vigor no Sul, nafronteira d a Band a Oriental, e só chegou ao fim uma década depois, com o

9 C h a r le s K . W e b s te r , op. cit., vol. I , pp. 222- 3.

1 9 4 K e n n e t h M a x w e l l P o r q u e o B r a s i l fo i d i f e r e n t e ? 0 c o n t e x t o da i n d e p e n d ê n c i a 195

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estabelecimento, sob o auspício britânico, do Estado-tampão independentedo Uruguai, delineando no S ul uma  fronteira menos ambiciosa d o que aquelaque havia sido pleiteada durante a colônia ou o reino unido. ABahia e oextremo norte aderiram depois de bastante atividade militar, em terra e nomar. Pernambuco tentou se emancipar mais uma vez em 1824 . Do ponto devista adm inistrativo, o país n ã o foi "nacionalizado" a té o fim  d o curto reinado

de d. Pedro, em 1831. E foi apenas na década de 1840 que as ações doduque de Ca xias (um ho mem que, ironicamente, era sobrinho, por casament o , do rico empresário que denunciou a conspiração de M inas às autoridades reais em 1789) colocaram um ponto final nas revoltas separatistasregionais.

N essas circunstâncias, não é de surpreender que qualquer tentativa dealterar a organização econô mica d o trabalho tenha falhado. O mo delo alternativo para o desenvolvimento do Brasil, no qual os imigrantes europeus e o strabalhadores livres substituiriam os escra vos, n ão cheg ou a se realizar e,com o conseqü ência, o tráfico de escravos perdurou até a metade do séculoe a escravidão até a década de 18 80/E também não é de surpreender que

quando a escravidão ruiu, a monarquia ruiu junto com e la . y ^

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k

Idéias de Brasil: formação

e problemas (1817-1850)

Carlos Guilherme Mota

D e v e o B r a s i l o lh a r p a r a t r á s , p a r a e n c h e r o v a z i o , qu e t e m d e s d e o p o n t o

d e q u e s a i u , a té o p o n t o a t u a l d e o u t r a s n a ç õ e s , p re e n c h e n d o a s é r i e

i n t e r m é d i a c o m b r e v i d a d e , m a s c o m p r u d ê n c i a .

J o s é B o n i f á c i o

E m c a d a p a í s p e r m a n e c e u m a m a t r iz d a H i s t ó r ia , e e ss a m a t r iz d o m i n a n t e

m a r c a

ac o n s c i ê n c ia c o l e t i v a d e c a d a s o c i e d a d e .

A A a r c F e r r o

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I

N. primeira metade do século XI X, plasmam-se novas idéias deBrasil no mundo luso-afro-brasileiro, na Europa, nas Américas do Norte edo S ul. Sem un idade constitucional ou cultural consolidada, sem ter resolvido , ou sequer equacionado, alguns de seus problemas básicos, posto quenão era uma nação, o Brasil emerge em 1822-1823 com o entidade polít icano cenário internacional.

Sufocado pelo clima político-ideológico da R estauração antibonapartista,mas já no compasso das revoluções l iberais que varreriam o mund o a partirde 1820, o processo de descolonização no B rasil ganha alento até 1848, namaré montante da revolução ocidental, com foco na república dos EstadosUnidos e em algumas capitais européias. Desenredando-se das malhas daSanta Aliança, tem início, naqueles anos decisivos, a longa caminhada donovo e malformado país-continente na busca, marcada po r avanços e recuos,de uma identidade propriamente nacional.1

Carregando um passado de três séculos de escravidão e pesada tradição clerical de base jesuítica, os desafios da co ntemporaneidade se impunham às suas l ideranças, primeiro i lustradas, dentre elas José Bonifácio eirmãos, e depois revolucionárias l iberais, como E varisto da Veiga e Bernardo

Pereira de Vasconcelos.Idéias de "Brazil" se adensaram naquele período decisivo compreendi

do aproximadam ente entre 1817 e 1850, quando se consolidaram estruturasde dominação da sociedade estamental-escravista e se adaptaram teoriassociais e culturais que embasariam o n ascente modelo autocrático-burguês.

1 Para a discussão do conceito de nação e nacionalismo, ver E ric J. Hobsbawm, Nações e nacionalismo desde 1780. Programa, mito e realidade (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990), espe- «icialmente o capítulo "A nação como novidade: da revolução ao liberalismo".

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M odelo que definiria o padrão civilizatório consolidado ao longo do processo de formação econômico-social e político-cultural que marcaria os doisséculos seguintes.2

Delinearam-se então, mais nitidamente, formas de sociabilidade, desensibilidade e dominação, de auto-explicação histórico-geográfico-cultural,assim como ideo logias e modos de pensar q u e caracterizariam o perfil d essa

entidade político-institucional abstrata denominada "B rasil". Naçã o à qualdeveria corresponder, à semelhança d e outros Estados nacionais, uma "sociedade" mais ou menos homogênea, a sociedade "brasileira". No processo,pontilhado de conflitos, insurreições, golpes e acomodações, forjou-se a " n a

cionalidade" co mo categoria histórica e, não meno s importante, como ideo logia p olítica e cultural.

A denominada Revolução d a Independência foi o ponto de partida para

a construção de um sistema ideológ ico consistente, tendo como pilar a idéiade nação, alimentada pela elaboração contínua de um a História nacional e,portanto, de u m a historiografia que a cu ltivasse. Historiografia q u e se definiria e se adensaria n a vertente que vem de Abreu e Lima, C onstâncio, Olivei

ra Lima, Capistrano, Caio Prado Júnior (sobretudo em suas obrasEvolução política do Brasil e Formaçã o do Brasil contemporâneo), atéo manual História do Brasil, de Otávio Tarqüínio de Sousa em co-autoriacom Sérgio Buarque de Holanda, alcançando o estudo de Nelson WerneckSodré, As razões da Independência. E se desdobrando, mais recentemente , na obra de José Honório Rodrigues, Revolução e contra-revolução daIndependência. 3

2 Para uma compreensão desse processo, ver, de Florestan Fernandes, A revolução burguesa noBrasil (Rio de Janeiro: Zahar, 1975) e Circuito fechado (São Paulo: Hucitec, 1976), especialmente o capítulo 1, "A sociedade escravista n o Brasil". Ver também de Barbara e Stanley J. Stein,Colonial Heritage in Latin America (Nova York: Oxford University Press, 1970), especialmente o capítulo V (edição brasileira, pela Paz e Terra). Sobre essas "outras" idéias de Brasil, o

historiador João José Reis vem oferecendo interpretações inovadoras desde 1982, sobretudo apartir de seu estudo Rebelião escrava no Brasil. Ver também a importante coletânea, J. J. Reis(org.), Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil (São Paulo:Brasiliense/CNPq, 1988).

3 A meu ver, a obra que representa a culminância dessa linhagem, sintetizando a referida teoria daHistória do Brasil que tem origem na Independência, é de Manuel de Oliveira Lima, Formaçãohistórica da nacionalidade brasileira (Rio de Janeiro: Leitura, 1944), com prefácios de G ilbertoFreire, M. Martinenche e José Veríssimo. Em José Honório Rodrigues, Independência: revolução e contra-revolução (Rio de Janeiro: Francisco A lves, 1975), 5 vols., o leitor poderá encontrar uma vasta gama d e informações. V e r , do mesmo autor, na coletânea Ensaios livres, publicadapostumamente por Leda Boechat Rodrigues (São Paulo: Imaginário, 1 9 9 1 , prefácio de Carlos G.Mota), o estudo "O parlamentarismo no Brasil e seu retorno".

Naq uele contexto preciso, tinha início a História d o Brasil. A puram-se,então, algumas matrizes e formas de pensamento, modos de ser e tipos decomportamento social e po lítico que passariam a se r progressivamente identificados com o "nacionais". O u seja, d e produções "naturais" e identificadorasda nação emergente, com seu s modo s de pensar, estilos de comportamento,apropriação e usos d o espaço qu e tipificariam o sistema social específico

que se implantou naqueles anos decisivos de formação do Brasil contemporâneo.

A vaga revolucionária liberal de 1 820 é o pano de fundo da Independência política de 182 2-18 23, que se desdobraria, completando-se, no bo jode outra vaga revolucionária internacional, também liberal e nacional, a da srevoluções de 1830. Com efeito, o 7 de abril de 1831, quando Pedro I éforçado a abdicar, torna-se uma data revolucionária nessa periodização, a oassinalar também um a m udança d e mentalidade. Da consciência amarga, individual, do "viver em colônias", descrito n a Bahia pelo professor Luís dosSantos Vilhena em 1 8 0 1 , o autor de Recopilação de notícias soteropolitanase brasüicas, ao sentimento coletivo de "viver em nação independente", após

1 8 2 2 , e sobretudo após 1831, passou-se nessas partes da América do Sulpor experiência histórica de grande profundidade, suas reverberações chegando aos nossos dias.

De fato, as manifestações envolviam coletividades maiores, com atuação da imprensa e surgimento de partidos ou facções. Quando o movimentoliberal-nacional d e 1831 eclodiu no R io de Janeiro, mobilizaram-se cerca de600 cidadãos armados em 30 de março. A data da insurreição da tropa(comandada pelos irmãos Lima e S ilva) e d a manifestação popular n o Campo de Santana contra o monarca fora marcada para o dia 6 de abril e, navéspera da abdicação, "entre meio-dia e três horas da tarde tinham afluídoao Campo de Santana cerca de duas mil pessoas. Às cinco esse número

dobrara".4Na quela encruzilhada histórica, emergiram com vigor as temáticas da

independência/dependência, das formas de inserção do Brasil no sistemainternacional, do mode lo político ideal, da construção da sociedade civil -particularmente no tocante à questão dos escravo s, dos índios, do contrato

4 Ver a descrição desses acontecimentos em Otávio Tarqüínio de Sousa, Evaristo da Veiga (BeloHorizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988), pp. 94-5 (Coleção História dos Fundadores doImpério do Brasil).

202C a r l o s G u i lh e r m e M o t o

de trabalho e da propriedade - , do sistema educacional e, enfim, da identi

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dade cultural. A lguns p rincípios que deveriam reger a sociedade nacional ase r construída surgiam explícitos nas mentes das principais lideranças reformistas ou revolucionárias, a começar p elo monarquista-constitucional JoséBon ifácio, crítico do escravismo:

A sociedade civil tem por base primeira a justiça, e por fim principal a felicidade dos

homens. Mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, eo que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos?5

Entretanto, naquela conjuntura, o q ue se con solidou foi um certo tipode imaginário e de consciência propriamente nacional - bem com o uma determinada idéia de Brasil - marcadamente conservadores, que o própriopatriarca já c riticava: " O despotismo de certo país que conheço é açucaradoe m ole; mas por isso m esmo perigoso, por tirar todo nervo aos espíritos, eabastardar corações".6

A revolução e a contra-revolução da Independência, se consideradasem seu resultado geral, confluíram num processo reformista, de acomoda

ção entre as províncias e elites de variada extração, os estamentos senhoriaise as classes com erciais, num processo que desembocaria na Conciliação demeados do sécu lo, garantidora da inviável "paz" do Segundo Império e daordem escravista. Se José Bonifácio julgava que, "sem muito sangue, a democracia brasileira que se possa estabelecer, nunca se estabelecerá sen ãoquando passar à aristocracia republicana, ou governos dos sábios e honrad o s " , seu antagonista o jornalista Evaristo d a Veiga, outra figura dominanteno cenário político e cultural da primeira metade do sé culo X IX , definiria oponto "ideal" desse p rocesso:

Nada de jacobinismo de qualquer cor q u e seja. Nada de excessos. A linha está traçada

- é a da Constituição. Tornar prática a Constituição que existe sobre o papel deve ser

5 "A propriedade foi sancionada para o bem de todos", advertia mais adiante o deputado JoséBonifácio d e Andrada e Silva, em sua "Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativado Império do Brasil sobre a escravatura", em Projetos para o Brasil, organização de MiriamDolhnikoff ( S ã o Paulo: Companhia das L etras, 1998), p. 60. Sobre a questão social, ver a síntesede seu pensamento em nosso estudo, incluído em Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução aoBrasil. Um banquete no trópico (São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1999). Ver também assínteses dos pensamentos de Nabuco, Euclides, Capistrano, Freire, Buarque, Caio, Faoro, Antônio Cândido, José Honório e Florestan, citados no presente capítulo.

6 Ibid., p. 250, "Avulsos".

o esforço dos liberais [...] do dia 7 de abril de 1831 começou a nossa existêncianacional; o B rasil será dos Brasileiros, e livre [...] os homens sejam colocados dentrodo quadro das doutrinas; sejam exemplos da regra e não a regra deles mesmo s; é entãoque seremos livres e dignos de rivalizar com os nossos conterrâneos e prim ogênitosda liberdade americana- os cidadãos dos Estados Unidos. 7

Em meio a intensa internacionalização, conflitos, negociações, aquare

las e son etos, tratados descritivos e traçados urbanísticos, além de en saios,faturas de pagamentos, exílios e sensibilidades desencontradas, desenharam-se variadas idéias de Brasil, que iriam caracterizar as formas de pensamento do que comumen te, nos embates políticos sobretudo, se denominava"nação".

C om a descolonização e a Independência, o Brasil integrava-se no concerto das nações. A s três vagas revolucionárias européias de 1820, de 1830("o sol de julho") e d e 1848 ("a primavera d os povos") mudariam a fisionomiado mundo. N a vaga liberal de 182 0, a primeira sublevação eclodiu na Alemanha, sobretudo nos meios universitários, teve caráter constitucionalista efoi prontamente reprimida por M etternich. N a Espanha, m ilitares de C ádiz,

organizados para combater os colonos revolucionários da América espanhola, sublevam-se em janeiro de 1820 sob o comando do tenente-coronelR iego, obrigando o rei Fernando VI I a restabelecer a Constituição de 1812.Em N ápoles, em julho de 1820, os "carbonários", sob o comando de Pepe,obrigaram o rei Ferdinando I a submeter-se a uma C onstituição; em 182 1,no P iemonte, o m ovimento carbonário impõe u m a constituição, log o reprimidos todos pelas forças austríacas, restabelecendo-se o poder absoluto. NaFrança, em fevereiro de 1820, o duque de Berry, sobrinho do rei, é assassinado, e o movimento da "Charbonnerie" se estende a Saumur, Belfort,Thouars e Colmar. Também na Rússia, com a morte do czar Alexandre I,houve tentativa fracassada de se implantar um regime constitucional (insur

reição decabrista, 1825).A Europa absolutista do Ancien Regime, representada por Metterniche o czar, atemorizada com e sses m ovimentos liberais, aos quais se somam as

José Bonifácio, "Todo governo em revolução só faz descontentes", em Projetos para o Brasil,cit., pp. 208-209. As citações de Evaristo acham-se na Aurora Fluminense, n. 276, de 9 dedezembro de 1 8 2 9 ; n. 470, de 11 de abril de 1 8 3 1 ; n. 477, de 27 de abril de 1 8 3 1 , respectivamente . Ver Otávio Tarqüínio de S ousa, capítulos III, IV e V , em Evaristo da Veiga, cit. Como se sabe,de 1823 a 1841 ocorreram várias deportações.

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revoltas nacionais na Grécia e nas co lônias ibéricas na Am érica, crê assistir a

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um "comp lô jacobino", com foco em P ari s .8

Ne sses embates entre revolução e restauração, o Brasil nasce alinhadocom os m ovimentos contemporâneos. A problemát ica de "nossa ident idad e " , de "nossa nacionalidade" encontra sua raiz nessa determinada conjuntura histórica internacional e num contexto sociocultural específico. Nãoprocuramos aqui "enunciar uma verdade histórica válida para todos e que

seria tão absurda quanto imaginária", como adverte Marc Ferro. Quandomuito, esboça-se um esforço para reconstruir algumas das determinaçõesdesse passado tal como foi vivido e percebido por essa sociedade que começava a se pensar "brasileira". Não por acaso o mais fecundo historiadorbrasileiro do século XX , Caio Prado Júnior, denominou esse período decisivo como sendo de "Revolução da Independência", conceituação dialetizadae aprofundada por outro importante estudioso do período, José HonórioRo drigues, que definiu essa fase crucial de nossa história como de revoluçãoe também de contra-revolução.

Reside aí o nó histórico em que se enreda nossa ambígua contempo-raneidade, ou melhor, a dessa formação histórico-cultural abarcada pela idéia

de "Brasil". Idéia fundadora l igada à de nacionalidade que remanesce nodiscurso historiográfico-cultural n ascente, e persiste em temáticas e visõesora exóticas e pitorescas, ora rebrotando em análises que consideram talformação "tardia" e desatualizada, ora alimentando projetos polít ico-econômicos em que "n ossa cultura" surge como notavelmente promissora, e assimpor diante. Naq uele contexto, enraízam-se os discursos reformista i lustrado,depois l iberal, em seguida l iberal-nacional, que irão desembocar na " Que stão nacional" a partir da segunda metade do século XIX, já com registrojacobin o no último quartel do século. Discurso que se realimenta de temposem tempos, perpassando os quase dois séculos de nossa independência polí t ica. Tal nó aperta quan do se constata que a idéia de "Brasil co ntempo râ

n e o " (ou, na interpretação de Florestan Fernandes, a "Idade Moderna doBrasil") cristalizara-se já encravada no sistema mundial de dep endências daépoca, com uma elite que se educara no fino trato com os interesses europeus aqui implantados. No ápice desse processo, já na segunda metade doséculo, afirmar-se-iam algumas das melhores cabeças do país, desde Joa-

8 Cf. J.-B. Duroselle, UEurope de 1815 à nos jours (Paris: PUF, 1964), pp. 96-7. Ver tambémRené Rémond, O século XIX (1815-1914) (São Paulo: Cultrix, 1976), pp. 34-6; Sérgio Corrêa daCosta, Pedro I e Metternich (Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1952).

quim N abuco, Rui B arbosa e o senador Sousa Dantas , os dois úl t imos conhecidos como "os nossos ingleses".

Em conclusão, entende-se por que "esse processo histórico-social quevinculou o destino da nação emergente ao neocolonialismo provocou co nseqüências de enorme monta para a estruturação e a evolução do capitalismodentro do país", segundo Florestan Fernandes. A essa "estrutura neocolonialde predizíveis e inevitáveis conseqüências sociais", segundo expressão deStanley e Barbara Stein, corresponderia um conjunto de formulações quepoderiam ser enfeixadas sob o rótulo de pensam ento "liberal". Nos quadro sdesse novo colon ialismo criado pelo imperialismo, essa ideologia por assimdizer l iberal cumpriria papel imp ortante ao abrandar as relações de dom inação do Ancien Regime geradas no período colonial. O liberalismo, nessaperspectiva, não seria uma idéia fora do lugar; ao contrário, consolidou-secomo eficiente "disfarce para ocultar a metamorfose dos laços de dependência, para racionalizar a persistência da escravidão e d as formas correlatas dedominação patrimonialista".9

Numa visão de conjunto, importa notar que, nessa sociedade em quese reforçou o senhoriato escravista e se entranhou a ideologia cultural do

escravismo, criaram-se mecanismos e mores que definiriam e encaminhariam no plano propriamen te polít ico a longa história de confli tos, sobretudoos do Período Regencial (1831-1840), com desdobramentos, conciliaçõese reformas qu e se prolongariam por todo o século, com a vitória permanenteda contra-revolução preventiva e fortalecimento do Estado.

No plano ideológico, a formação dessa idéia de Brasil teve desdobramentos mais complexos, com a vitória do pensamento conservador. Os estudos clássicos do historiador Jacques Go dechot permitem comp reender que,no plano ideológ ico, o resultado foi, nessa perspectiva, o enraizamento histórico-social da doutrina e da ação conservadora da contra-revolução francesa ao longo do século XIX - ou, quando menos, de suas vertentes

ideológicas mais brandas, de Siéyès a Chateaubriand e Madame de Staôl,ou, quando mais "avançadas" , de B enjamin Constant . Daí entender-se porque um liberal como E varisto - defensor da l iberdade constitucional, do sistema representativo e da l iberdade de imprensa - proclama va no seu jornal

9 Florestan Fernandes, Sociedade de classes e subdesenvolvimento (Rio de Janeiro: Zahar, 196 8),p p . 1 0 - 4 ; Stanley e Barbara Stein, A herança colonial da América Latina (Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1970), p. 114.

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Aurora Fluminense: "Faça-se tudo quanto é preciso, mas evite-se a revolu

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nova era nos estudos históricos, por sintetizar todo o século X IX . A pesar de

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ç ã o " .

A força dessa ideologia mobilizadora da improvável "paz do Segu ndoImpério" foi suavizada, além das boas maneiras do imperador-sábio P edron, pela ideologia regressista de liberais como Bernardo de Vasconcelos ("Fuiliberal"), que seria combatida depois pela melhor tradição historiográfíca porassim dizer radical, de Capistrano de Abreu a Florestan Fernandes. Linha

gens de pensamento assemelhadas às que em Cuba desaguariam nas posições de José Marti e, no Peru, em José Carlos Mariátegui, ou ainda, nosprojetos dos teóricos e educadores da Revolução Mexicana de 1910. Eessa temática torna-se atual nesta passagem de século, de vez que aquelavisão conservadora, travestida em teoria da História, sob no va linguagem,volta a enternecer a nova historiografia p ós-moderna, esquecida talvez dasduras recomendações político-sociais que o pitoresco Bragança escreveupara sua sucessora, a princesa Isabel, esposa do conde francês D'Eu, ovencedor da guerra contra o Paraguai.

Tal idéia conservadora de Brasil, fundadora do quadro político-ideoló-gico que seria dominante entre 1824 e 1889, instalou-se no Instituto Históri

co e Geográfico Brasileiro, abrigou-se nas teorias de Varnhagen e alimentouo substrato ideológico d a contra-revolução vencedora. Fixava-se, nessa vertente e desse modo, o conceito de nação. No plano político-institucional, àcontra-revolução vencedora correspondeu a metodologia da conciliação apartir de meados do século XIX, somente alterada com o movimentorepublicanista. A lterada, mas n ão apagada completamente, pois na históriadas formas de pensamento, de tudo fica um pouco; em áreas de passadocolonial, fica muito.

Com a guerra contra o P araguai, a retomada do m ovimento republicanista, a abolição da escravatura, a Proclamação da R epública e a repressão a Canudos encerra-se uma certa visão de Brasil: assiste-se ao tournant

decisivo, com a descoberta de um outro Brasil pelo republicanista radicalEuclides da Cunha (1866-1909). Os sertões, obra publicada em 1902, aorevelar indiretamente as mazelas da república, também procedia a o julgamento da monarquia e do legado colonial, abrindo um novo período de crí

tica para a construção da nova História das Mentalidades no Brasil. Emnossa perspectiva, entretanto, o estudo insuplantado de E uclides, "Da In dependência à Repú blica (esboço político)", publicado em 1900 e incluído emseu livro À margem da História, pode ser considerado o sinalizador de uma

seu tempero comtiano ("o mais robusto pensador do século"), a teoria daHistória do Brasil - com sua correspondente periodização - condensadanessa síntese antológica constitui a matriz d a qual partiriam os estudos po steriores de Caio, M anuel Bonfim, José Honório Rodrigues, Florestan e mesmoRaymundo Faoro (para citarmos alguns clássico s do pensamento radical noBrasil): "Som os o ún ico caso histórico de uma nacionalidade feita por umateoria política [...]".10

Em síntese, uma consistente idéia de Brasil se consolidara por voltados anos 1840-50. A partir de fora, porém com viva elaboração interna,plasmou-se, desde 1831 até 1850, uma certa ideologia do "caráter nacion a l " brasileiro. E também de um certo modo de se contar nossa história, poisnesse mom ento despontaram historiadores como Solano C onstando e Abreue Lima, em cujos compêndios se fabricava, se instituía e se estabilizava, comsinais diferentes, uma outra visão "nacional" da História do B rasil, menosconservadora, europeizante e colonialista que a d e M artius ou Varnhagen.11

O país tomava forma sob a preeminência inglesa. Inserido naquele contexto econômico-cultural, a obra de John Armitage, não por acaso inglês,numa visão atualizada e crítica, indicava em 1836 o nascimento d e uma naç ã o , tendo por balizas cronológicas 1808 e 1831. Como escrevia ele naintrodução de seu livro: " É possível que a história contemporânea possa, emalguns caso s, ser escrita com mais acerto por um estrangeiro".

Cu rioso tal comentário, quando se observa q u e aquela p o r muitos considerada a primeira história "nacional" tenha sido escrita justamente p o r ele,

1 ° Lia-se, nas principais cidades do B rasil. N o Rio de Janeiro, sede da monarquia tropical, em 1 821,o Diário do Rio de Janeiro anunciava venda de livros em oito lojas. Havia intensa atividade deleiloeiros (em geral, ingleses), o principal dos quais era Jorge Dodsworth, correspondente comercial de Hipólito José da Co sta, com escritório na rua da Alfândega, que anunciava a chegada denúmeros do Correio Braziliense em navios que vinham de Liverpool. Após 1822 e a Constituinte , o número de leitores aumentou. Em 1 8 2 3 , Evaristo vendia em sua loja de livros, por exemplo,o Cours de politique constitutionelle, em 8 volumes, de Constant, e várias obras de Bentham.Evaristo (pseudônimo arcádico, de poeta aliás medíocre: Alcino) era leitor, além de Constant eBentham, d e Ricardo, S a y , Sismondi, F o y , Blackstone. Em 1 8 2 7 , e l e vendia obras de S a y , Sismondi,Ganilh, Broussais, Racine e Voltaire, e livros sobre o s Estados Unidos e sobre o México. Para umavisão mais ampla do tema, ver Mansa Lajolo e Regina Zilberman, A formação da leitura noBrasil (São Paulo: Ática, 1996).

1 ' O estudo mais recente e crítico sobre essa visão é o de Karen M . Lisboa, A Nova Atlântida d e Spixe Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820) (São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1997). Uma nova edição de À m argem da História, prefaciada por Miguel Reale, foipublicada pela Livraria Martins Fontes em 1999 (Coleção Temas Brasileiros).

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um inglês; e o m étodo de se escrever "nossa" história, definido por um ale

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A Inglaterra exercia assim um dup lo papel: era inovadora no tocante a

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m ã o , von M artius, em seu imperativo e categórico "Como se deve escrevera história d o Brasil".12

Nessa altura, também no mundo jurídico, dando novo contorno aoEstado e normas à sociedad e nacional, come çavam a avultar as figuras deCairu, de Antônio Carlos de Andrada, José Clemente Pereira, Alves Branc o , Carneiro de Campos e, sobretudo, de Bernardo Pereira de Vasconcel o s , o principal autor do C ódigo C riminal de 18 30.13

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A nova imagem d e Brasil toma vulto e se adensa na confluência d e doisprocessos d istintos. O primeiro, de internacionalização abrupta do mundoluso-brasileiro, ocorrido a partir de 1807-1808, quando se deu a famosainversão colonial. A metrópole portuguesa, invadida p o r tropas de NapoleãoBonaparte, assistira à transmigração d a família real, da corte portuguesa e denumeroso contingente de altos e médios funcionários para o R io de Janeiro,escoltados pela armada inglesa. Foi um impacto tremendo, estancando-se olento processo de emancipação que se delineara desde o ú ltimo quartel dosécu lo anterior.

A tutela da Inglaterra, potência em fase de acelerada revolução industrial, de afirmação na política européia e mundial e de construção de seuimpério informal garantiria, não somente a preeminência de seus interessesao longo do período da formação nacional como, após 1815,ejáno contexto da R estauração, a monitoração e auditoria da vigilante e conservadoraSanta Aliança nos negócios brasileiros.14

12 John Armitage, História do Brasil (São Paulo/Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1981). Com notade Eugênio Egas, em que discute a autoria da obra, da tradução, e comenta a vida de Arm itage. Oconhecido texto de Carl Friedrich Phillip von Martius foi publicado na RHIGB, Rio de Janeiro,janeiro de 1845, n. 24.

13 Cf. Pedro Dutra, Literatura jurídica no Império (Rio de Janeiro: Topbooks, 1992), prefácio deMiguel R eale; ver especialmente capítulo V, "Dos cursos jurídicos ao Código C omercial, 1827-1850".

14 Para a compreensão do período, ver Immanuel W allerstein, The modem world-system III. Thesecondera ofgreat expansion ofthe capitalistworld-economy, 1730-1840s (Nova York: AcademicPress, 1989). E também Alan Manchester, British Pre-eminence in Brazil (Nova York: Octagon

relações de produção (contra o tráfico e o regime escravista) mas, ao mes mo tempo, funcionava como peça-chave desse braço diplomático da contra-revolução européia. T ais ambigüidades estarão na base da formação deuma certa linhagem d e intelectuais prestigiosos e anglicizados, a u m só tempoantiescravistas e conservadores, dentre eles Machado e Nabuco, com reverberações na obra de Gilberto Freire. "Nabuquismo", aliás, seria umdesignativo desse tipo de comportamento ideológico e político-cultural, umacerta maneira esteticizada de olhar o mundo social brasileiro, a partir davaranda.

A ssim co locado entre dois fogos, o B rasil, onde já vinham se m anifestando sentimentos e propostas de autonomização desde o século anterior,mudou abruptamente de status, se internacionalizando e ocupando lugar dedestaque no A tlântico Sul. A pesar das controvérsias sobre o ritmo do process o de em ancipação em curso, sobretudo no tocante à abolição da escravatura, a chegada dos B raganças e sua corte trouxe novo s elemen tos para adiscussão dos projetos de emancipação. A presença de viajantes, comerciantes, cientistas (ou naturalistas, na expressão d a época), espiões, aventureiros e artistas estrangeiros - com freqüência exercendo combinadamentemais de um desses p apéis - d á conta dessa internacionalização que agrava oteor pré-revolucionário de vida e acelera os acontecimentos que abrem afase brilhante de fundação d a História propriamente nacional.

N o transcorrer desse pro cesso de internacionalização é que se adensao sentido e se define o momentum de nossa fundação. Entretanto, nestacaracterização de uma identidade propriamente nacional, quando se forjamas matrizes de pensamento referidas por Marc Ferro, torna-se imperiosonão se confundirem as diferentes temporalidades, tempo do mito e tempo dahistória, "notadamente quando se trata do problema das origens". 15

Books, 1964); tradução em português, José Almada, A Aliança inglesa. Subsídios para seuestudo, 2 volumes (Lisboa: Imprensa Nacional, 1947); Carlos Guilherme Mota (org.) 1822:Dimensões (São P aulo: Perspectiva, 1972), em especial os estudos de Jacques Godechot sobre arevolução do Ocidente; de Frédéric Mauro, sobre a conjuntura atlântica e a Independência; deFernando Tomaz sobre os brasileiros nas Cortes Constituintes de Lisboa; de Emília Viotti daCosta sobre José Bonifácio; de Maria Odila S. Dias sobre a interiorização da metrópole; e deCarlos Guilherme Mota sobre os europeus no B rasil às vésperas da Independência.

15 Marc Ferro, A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação (São Paulo:Ibrasa, 1983), pp. 13, 290 e 292.

210 C a r l o s G u i lh e r m e M o t a

O segundo processo, menos conjuntural, é o de descolonização em

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que se enredara o Império português, processo aprofundado a partir da insurreição nordestina de 1817. Nessa perspectiva, a chamada RevoluçãoPernambucana d e 6 d e março constitui, diversamente d o peso q u e comumentese atribui às conjurações do século anterior, o ponto de não-retorno e deaceleração do processo de descolonização que conduziu à Independência eà abdicação de Pedro I em 1831, quando se consolidou o Estado nacional.N esse pro cesso, com o s desdobramentos no período regencial, forjaram-sea s matrizes histórico-institucionais e culturais do Brasil contemporâneo.16

Examinado na longa duração, tal processo já se vislumbrava na criseabrangente do antigo sistema colonial, iniciada na última quadra do séculoanterior. Crise perceptível, como se sabe, em vários níveis e dimensões, eque atingiu o m undo luso-brasileiro quando n ele ainda tentavam suas elitesilustradas superar o descompasso histórico detectado anteriormente pelomarquês de Pombal, atraso nunca recuperado. Não por acaso trechos daobra do abade Raynal (1713-1796), a Histoire philosoph ique et politiquedes établissements et du commerce des européens dons les deux Indes,publicados em 1770, eram sabidos de cor em M inas Gerais por inconfident e s . O abade Raynal indicava a desproporção nas relações entre metrópolee colônia, em favor desta, apontando caminhos para que "os portuguesesque moram no Brasil ousem libertar-se de sua tirania":

Talvez os próprios preconceitos do s quais estão imbuídos, por uma educação viciosae monástica, sejam muito antigos em seus espíritos para serem arrancados. A luzparece estar reservada às gerações seguintes. Pode-se apressar esta revolução determinando os grandes proprietários a educar seus filhos na Europa, reformando eaperfeiçoando a instituição pública em Portugal [...] É possível acostumar os jovensa estimar su a razão ou a desprezá-la, fazer us o dela ou negligenciá-la [...] A históriadessa colônia nã o será mais sua sátira.17

16 A primeira análise crítica desse processo foi efetuada por Caio Prado Júnior, em 1933, em seuclássico Evolução política do Brasil e outros estudos.

17 O livro nono, denominado O estabelecimento dos portugueses no Brasil, foi publicado emportuguês, no Rio de Janeiro, Arquivo Nacional/UnB, 1998. V e r p p . 144-155. A s vicissitudes e acrise do sistema colonial foram analisadas por Charles R. B oxer em Relações raciais no impériocolonial português 1415-1825 (Porto: Afrontamento, 1988) (1. ed., em 1963, pela OxfordUniversity Press) e O império marítimo português (1415-1825) (Lisboa: Edições 70, s.d.) (ooriginal, em inglês, é de 1969); Fernando A. Novais, "O Brasil nos quadros do antigo sistemacolonial", em C. G. Mota (org.), Brasil em Perspectiva (São Paulo: Difel, 1968), e Portugal e

A descolonização, processo no qual se afirmaram novas liderançasnativistas, ocorreria entretanto no sentido da integração do com plexo luso-brasileiro ao novo sistema mundial de dep endências: ensaiou-se primeiramente o equilíbrio paritário sob a fórmula de R eino Unido de Portugal, como Brasil e o Algarve (1815), logo abalado pelos eventos de 1817 na ex-colônia e na metrópole e já engolfado n a crise mundial que conduziu à vaga

Revolução de 1820.Da turbulência desse período, e seus rebatimentos no mundo luso-brasileiro, nos d á conta u m viajante-comerciante como o francês L . F . Tollenare,que aqui esteve naqueles anos, descrevendo esse contexto específico comriqueza de detalhes. Suas apreensões conservadoras, banhadas na ideologiada Restauração, aumentavam quando vislumbrava o perigo de uma eclos ãorevolucionária de vulto no B rasil ("mais um pouco e teríamos visto aqui ossans-culottes"). A o ressaltar a acirrada competição por mercado nos portos brasileiros, travada entre comerciantes franceses e inglese s, deixava eleentrever por que estes ú ltimos quase sempre levavam vantagem ao oferecerprodutos industrializados e serviços a preço menor, pontas de lança q u e eram

d a Revolução Industrial. Como se nota, vivia-se, também no Brasil, o dealbarde uma disputa de potências européias por mercados mun diais e "zonas deinfluência" em partilhas que iriam se estender até as primeiras décadas doséculo XX .

Em 1817, o sistema luso-brasileiro trepida nos dois lados do A tlântico.Com efeito, o levante nacionalista de G omes Freire de Andrade em Portugalnaquele ano, bem com o a grande insurreição do Nordeste brasileiro, suge rem a profundidade da crise que antecede e anuncia a revolução liberal de1820 em Portugal e a independência nacional do B rasil em 1 8 2 2 . Indícios deencontros em L ondres de G omes Freire e do líder brasileiro Dom ingos JoséM artins (além do venezuelano M iranda, ex-combatente n a Revo lução Fran

cesa) s ã o eloqüentes o bastante para sinalizar as articulações atlânticas naquelaconjuntura pré-revolucionária. Articulações que terão aliás desdobramentossignificativos, pois alguns revolucionários derrotados e feitos prisioneiros em

Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808) (2. ed., São Paulo: Hucitec, 1983). Parao estudo de algumas raízes históricas do nativismo, veja-se Evaldo Cabral de Mello, Rubro veio:o imaginário da revolução pernambucana (2 . ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: Topboòks,1997), sobretudo os capítulos "Inventário da memória" e "A cultura histórica do nativismo".

212 C a r lo s G u i l h e r m e M o t a

1817, gente co m ótim o currículo e proveniente de diferentes regiões da ex-

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colônia, três anos depois sairão diretamente do cárcere baiano (o célebre"Ateneu", de onde acompanhavam os acontecimentos do mundo e estudavam) já eleitos deputados para representar o Brasil nas Cortes Constituintesem Lisboa. O "Ateneu", remanescência de 1817, terá sido o primeiro embrião de uma esco la de pensamento propriamente nacional de altíssima qua

lidade, tendo os revolucionários presos chegado a discutir até mesmo oconceito de classe soriai,T)ara analisarem o momento vivido.18

A os deputados brasileiros^as C ortes Liberais Constituintes de Lisboaterá sido d e 'extrema valia a passagem pela " escola" revolucionária de 1817,completada, após a derroiajiias aulas informais no cárcere d^ Salvador. Foiuma experiência pré-nacionfcl. Ao reunir, presos, âlgtrnsrepresentantes deprovíncias distintas, propiciou-lhes o primeiro desafio de uma po ssível un idade, e o sentido inédito de ruptura. Do mesmo modo, não poderão sercompreendidas as trajetórias de personagens que avultarão na história doImpério, como Antônio Carlos ou Muniz Tavares, sem a análise daqueleponto d e partida.

No decorrer da Revolução de 1820, no calor dos debates das CortesConstituintes em Lisboa - momento decisivo na definição de nossa vaga"nacionalidade" e demarcação de diferenças - , vários de nossos deputadossairiam fugidos, sob vaias e até pedradas, sendo obrigados a se exilar,rechaçados ao defender os interesses d a ex-colônia. A í se localiza a primeiraruptura séria, em q ue se explicitaram as con tradições efetivas entre metrópole e colônia, mascaradas pela solução de compromisso d o Reino Un ido.

Esse episódio se insere no rastilho internacional do "despertar das nacionalidades", nos dois lados do Atlântico. Na Constituinte portuguesa sediscutiam a representação, a cidadania, o fim do sistema colon ial, esclare-cendo-se a ambígua consciência nacional nascente, quando se constatou,

que, definitivamente, não éramos portugueses.

18 Tal discussão aparece em "Um episódio da história da Revolução de 1817 na Província dePernambuco, passado entre os prezos d'Estado na cadea da Bahia", que analisamos em "Novosusos de velhas palavras: a noção de classe", no capítulo "As formas de pensamento revolucionárias", em Nordeste 1 8 1 7 . Estruturas e argumentos (São Paulo: Perspectiva, 1972). Ver tambémde István Jancsó, Na Bahia, contra o Império. História do ensaio de sedição de 1798 (SãoPaulo: Hucitec/Edufba, 1996); e Carlos Guilherme Mota, Atitudes d e inovação n o Brasil (Lisboa:Horizonte, 1970), prefácio de Vitorino Magalhães Godinho.

cimento acelera a viragem mental que já se vinha p rocessando: transita-seentão, no B rasil, de formas de consciência nativista, difusas e vincadas porlocalismos, para uma consciência mais ampla, de país independente.19 O upara um novo "amálgama", para usarmos um termo-chave, caro ao minera-logista José Bonifácio.

"Nação", "pátria", "patriota", Constituição, independência passam ater um valor, para além de sim bólico, prático, nunca antes experimentadonestas partes.20 Naq uele contexto, possuía um significado muito específico,aliás percebido por M azzini, o defensor da unidade italiana, ao definir essa"hora do advento das nações", entidades imaginárias em que se "amalgama-v a m " valores, símbolos, sensibilidades, usos e costum es próprios, que comporiam o que se denominava civilização.

Nos principais centros urbanos brasileiros, aprofundava-se a sensaçãode abertura para o mundo, de transformação histórica. Afinal, estávamoscompaginad os, alinhados com a G récia, a Itália e a Bé lgica, num m omentoem qu e também a Polônia, a Hungria e a Irlanda buscavam afirmar-se en-

19 Vários estudos vêm aprofundando o conhecimento desse período. A lém dos livros clássicos deFernando Piteira Santos, Geografia e economia da Revolução de 1820 (Lisboa: Europa/Améri-ca,1961); de José Honório Rodrigues, A Assembléia Constituinte de 1823 (Petrópolis: Vozes,1974); de Vicente Barretto, A ideologia liberal no processo da Independência do Brasil, 1789-1824 (Brasília: Câmara dos Deputados, 1973); de José Murilo de Carvalho, A construção daordem (Rio de Janeiro: Campus, 1980); de Manuel Correia de Andrade (org.), Confederação doEquador (Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, 1988); e de A. Russell-W ood (ed.),From Colony to Nation. Essays on the Independence of Brazil (Baltimore: J. Hopkins Univ.Press, 1973); citem-se, dentre outros, Fernando A. No vais e Carlos Guilherme Mota, A independência política do Brasil (São Paulo: Hucitec, 1996); José Honório Rodrigues, Independência:revolução e contra-revolução, vol. 4, sobre "A liderança nacional" (Rio de Janeiro: LivrariaFrancisco Alves, 1975-1976); Maria de Lourdes Viana Lyra, A utopia d o poderoso império (Rio

de Janeiro: Sette Letras, 1994); Demétrio Magnoli, O corpo da pátria. Imaginação geográficae política externa do Brasil 1808-1912 (São Paulo: Moderna/Unesp, 1997); Márcia ReginaBerbel, A nação como artefato. Deputados do Brasil nas Cortes portuguesas, 1821-22 (SãoPaulo: Hucitec, 1999); Cecília Helena d e Salles Oliveira, A astúcia liberal, relações d e mercadose projetos políticos no Rio de Janeiro , 1820-18 24 (Bragança Paulista: Edusp/ícone Editora,1999); Iara L. C. Souza, Pátria coroada. O Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831(São Paulo: Unesp, 1999); e Richard Granam, Clientelismo e política no Brasil do século XIX(Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997).

20 Ver, a propósito, a importante análise de Roderick J. Barman, Brazil. The Forging ofa Nation1798-1852 (Stanford: Stanford University Press, 1988), em que examina as "matrizes da nação"e a formal configuração da N ação-Estado. A curva do processo é estudada passo a passo, desde acrise do sistema colonial até meados do século.

214 C a r l os G u i l h e r m e M o t a

quanto nações. Demais, as rotas comerciais mantinham contatos, fora do

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As proclamações do governo provisório [de Pernambuco] não contêm senão repeti

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mundo luso-brasileiro, com portos como Barcelona, Baltimore, Bordeaux,M arselha, Liverpool.

A noção revolucionária de "pátria" soava com timbre mais radical epersistente nas ex-colônias, o patriotismo passava a se nutrir da pesquisa,reflexão e da reconstrução do passado cultural, histórico e lingüístico. Daí

não surpreender que os libertadores - expressão que adquiriu significadopróprio, a partir sobretudo da ação de B olívar, na América espanhola -fossem, em larga medida, intelectuais de sólida formação, como JoséBonifácio, Cipriano Barata ou Frei Caneca ou, na América do Norte, osfoundingfathers Benjamin Franklin, Thomas Jefferson e A dams se alinhassem co m a intelectualidade m ais culta d e seu tempo. A época é de reconstrução histórica, de pesquisa: o próprio Patriarca é unrestuoídso de Camões,cultor d a língua nacional e tradutor (inclusive de escritos de Humboldt). Nesse contexto é que se "descobre" a própria Carta de Pero Vaz de Caminha(1817), em que se dá conta do achamento de Cabral em 1500: busca-se edefine-se uma "origem" para xB rasiLNasi&jirna "história".

Àqu ela altura, n u m contexto de mndaçjovirações d a elite colonial acreditam na possibilidade TJêsêTpoder acertar o passo da nascente História doBrasil com a História das Nações. Em contrapartida, se adquiria a certeza deque o mundo acompanhava a s transformações operadas no Brasil e n a A m é rica do Sul, e vice-versa. Frei Caneca, em seu pequeno jornal TifisPernambucano, acompanhava os acontecimentos do M éxico e do Peru.Na Inglaterra, o Correio BrazMense, de Hipólito José da Costa, examinavapasso a passo a vida brasileira, e d a França e dos Estados Unidos chegavamrepercussões das ações emancipadoras. Como estudou Jacques Godechot,em Paris, noticiavam os acontecimentos do Brasil o Journal des Débats, oJournal du Commerce, dentre outros, e, na província, o Journal deToulouse, que publicou durante quatro meses notícias do Brasil em quasetodos os seus números. Já na edição de l fl de junho de 1817, domingo, oórgão parisiense dos "ultras", La Quotidienne, a primeira página inteira édedicada ao B rasil: enxergou na insurreição, "com m uita propriedade, a seqüência americana d a revolução que havia transformado a Europa, e portanto colocava franceses e brasileiros em guarda contra seus progressos". A 5de junho, compara-se 1817 a 1793, o momento em que a Revolução Francesa se aprofundou:

ções do estilo de 1793 a respeito do "monstro infernal da realeza". Os chefes dotumulto são todos hom ens desprezíveis, verdadeiros anarquistas; o mais conhecidodeles é Martinez [Dom ingos José Martins], falido fraudulento. E le não tem o talentonem a reputação necessária para desempenhar o papel de um chefe de governo.21

O desafio mais complexo, do ponto de vista metodológico, reside to

davia na definição de matrizes de pensamento. Como detectar uma novaforma de pensamento, uma reflexão ou um texto que revele não a "influênc i a " estrangeira imediata, mas uma certa continuidade de tradições mentaisconsolidadas? O u detectar aquelas formas que não são portuguesas, o que émais difícil, visto q u e muitas formas d e pensamento revolucionárias no Brasiltambém ocorreram durante a Revolução de 1820. Nesse ângulo, notam-seem vários autores formulações que parecem genuínas e inovadoras, inclusiveem lideranças como Vergueiro, Feijó e José Bonifácio, em que pese o fatode ter, este último, permanecido p reso à ideologia da Ilustração.22

Ap esar de muitas importações de idéias e teorias, havia algo originalnas falas e teorizações d os "nacionais", em que se vislumbram vertentes de

pensamento que se afirmariam ao longo d a nascente " História do Brasil", ouseja, de uma nova maneira de abordar o mundo. Um conjunto de grandescríticos e grandes personagens surgiram naquele momento, expressão danova configuração social mais urbana e d a nova mentalidade reformista, quesofrerá avanços e "regressos" nos anos 30 e 40.

Sabem os historiadores que nem tudo, no mundo das palavras, dasrepresentações visuais, das ações pod e ser reduzido a determinações sociológicas de classe social. Naquele período, como em qualquer outro, nãohouve m ovimentos "puros" de classe, ou "puras" linguagens de classe, adverte o historiador James Epstein, acompanhando a posição de EricHobsbawm. Vale notar q u e M arx, também historiador, dispensava particular

atenção a esses períodos de transição em que, apesar da aceleração dosacontecimentos, "coexistiram e se combinaram historicamente estamentospretéritos e classes futuras". Ao analisar o período que nos interessa, numa

2 ' Jacques Godechot, "A independência d o Brasil e a revolução do Ocidente", em Carlos GuilhermeMota (org.), 1822: Dimensões, cit., pp. 33-4.

22 As trajetórias desses personagens, de Cipriano Barata, Lino Coutinho e outros estão sendoanalisadas em nosso livro Idéia de Brasil. Sociedade, educação, cultura e mentalidades (1817-1850) (em preparo).

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ria ganha novo impulso nesses primeiros momentos do neocolonialismo. O

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Inglaterra também convulsionada, o professor Epstein indica como as noções de E stado, cidadania, revolução, república, internacionalismo, história,e t c . eram utilizadas, revelando nessa abordagem u m a "outra" Inglaterra. Fica-se sabendo, por exemp lo, que setores do mundo do trabalho inglês, em eb ulição desde o início da Revolução Industrial, acompanhavam a Américameridional em seu mov imento de libertação com d iscursos, vivas e brindes

em tavernas e portos... Com efeito, e m 1822 , havia na Inglaterra mais atenção ao que acontecia nessas partes do Atlântico Sul, onde se articulava oimpério "informal", do que o leitor seria levado a imaginar. Afinal, idéias deBrasil fervilhavam não somente no gabinete-biblioteca de Robert Southey, ogrande historiador e expert nesta terra, em que aliás nunca aportou.23

N essa perspectiva, a história da expansão européia adquire novo sentido à luz da história d a s mentalidades. O capitalismo comercial vive n o Atlântico redefinições significativas, encontrando -se nessas plagas antenas teóricasnativas, receptoras do Liberalismo. Um d os agentes mais visív eis e citadosfoi José Maria Lisboa, o futuro visconde de Cairu, que também escreveuuma história do período: ele, dentre outros intelectuais, comerciantes, ho

mens de Estado amoldariam, a seu modo, as novas idéias ao lugar. Mas a"civilização ocidental não se espraiou", notava Florestan Fernandes, "comoas águas de um rio que transborda". Ao saltar de seu leito, ela "se corromp e u , se transformou e p o r vezes se enriqueceu, convertendo-se numa variante do que d everia ser à luz dos modelos originais".24

I I I

Naqueles anos de aceleração histórica, se intensificou a dinâmica davida cotidiana, adquirindo nova dimensão a desprezada "história dos costu

m e s " . A cidade passa a contar: ao sul do equador, não só a nova capital doImpério pulsa e chama a atenção do mundo, como os antigos centros, Salvador e Recife, ganham nova respiração.

A história do meio am biente se am plia com u m a plêiade d e naturalistaseuropeus ligados a m useus e centros de pesquisa, e a tradição da geo-histó -

23 Cf. estudo de James A. Epstein, Radical Expression. Political Language, Ritual, and Symbol inEngland, 1790-1850 (Oxford: Oxford University Press, 1994).

24 Florestan Fernandes, Sociedade de classes e subdesenvolvimento, cit., p. 14.

tempo co mo que encurta, tornando-se noção m ais precisa e palpável, com oaprimoramento das técnicas náuticas e das informações, depois com o vapor. Sobressaem-se nesse panorama os eficientes, meticulosos almirantesingleses da South American Station, em conexão direta com os principaispolíticos do parlamento inglês, chegando a constituir uma "escola" de exc elente formação, com métod os, normas, ritos, projetos, tendo produzido documentação fundamental para o conhecimento do Atlântico e do Pacíficonaquele período.25

Ao contrário da noção de tempo, a de espaço se expande, adquirindooutras dimen sões nas mentes das pessoa s. A geog rafia torna-se mais precis a , mais científica, nessa ép oca em que o gov erno central queria conhecer,mapear, controlar o nov o território americano. A s denominad as Corvgrafias,em particular, inauguram uma tradição de estudos geo-históricos, que se afirmam co m A ires do Casal e Daniel Pedro Müller, indo desembocar no fim doséculo e se prolongando no século XX, em interpretações como as de SílvioRomero, Euclides, Gilberto Freire, Manuel Diegues Júnior. Linhagem da qualo citado Caio Prado Júnior, Manuel Correia de Andrade e Aziz Ab'Saberfazem parte, atualizadora d e u m a compreen são de B rasil que deita suas raízesno período da Independência. Do m esmo mod o, não estaria indissociada doprojeto que José Bon ifácio elaborou para a Constituinte de 182 3 a criaçãodo Serviço de Proteção ao índio (1910) pelo coronel Cândido Rondon. Naperspectiva da História das Mentalidades, e, portanto, da longa duração,refaz-se assim o diálog o plurissecular entre o presente e o passado, a História e a Historiografia, a G eografia e a História.

23 Sobre a potência hegemônica nos mares, a Inglaterra, uma série de estudos tomam b oa parte denossa atenção. Há livros mais antigos, como os de Robert Southey, Th e British Admirais (Lon-

dres,1833-48) e de Esther Meynell, Letters ofthe English Seamen, 1587-1808 (Londres, 1910).E um a série de estudos mais recentes, inclusive relativos à citada South American S tation, comoo de Antony Preston, T h e History ofthe Royal Navy (1983), Peter Kemp, History ofRoyal Navy(Nova York, 1969), Geoffrey Green, The Royal Navy and Anglo-Jewry 1740-1820 (Londres,1989), W illiam W ard, The Royal Navy and the Slavers (Nova York, 1969), Raymond Howell,The Royal Navy and the Slave Trade (Londres, 1987), Christopher Lloyd, The Navy and theSlave Trade (Londres, 1968), Michael A. Lewis, The Navy in Transition 1814-1864 (Londres, J1965), Brian Lavery, Nelson's Navy (1989), Geoffrey M arcus, T he Age of Nelson 1793-1815 eThe Royal Navy (Nova York, 1971). Para uma reflexão mais atual sobre produção literária eimperialismo, ver o excelente livro de Mary Louise Pratt, Imperial Eyes, de 1992, de Stanford,publicado em português em 1999.

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"Redescobrem-se" temas relacionados com o peso da natureza nesse

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modo de adquirir, possuir e transmitir a propriedade. Não há pois interesses, e

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novo imaginário. Imaginário em trans-formação, já agora "brasileiro". B oaparcela das lideranças que fizeram a independência e arquitetaram a naçãotinha formação ligada às ciências naturais e aplicadas, conheceram outrasterras e centros de pesquisa. M as não foi somente nesse segmento que ocorreram atitudes de inovação. O novo imaginário se alimenta do impacto datransferência da corte e do prolongado ch oque cultural provocado por centenas de reinóis que jamais haviam pisado em território americano. Ao "descobrir" o Novo Mundo sem fronteiras, deslocaram posições de mando,provocaram desconfortos, reacenderam antagonism os, "politizaram" o debate.

A natureza, a temperatura, os sabores, os cheiros mostravam-se diferentes, agrestes, adocicados. Outros, enfim. Descobria-se que a decantada"adaptação aos trópicos" não se daria assim tão facilmente. Com a escravid ã o , aprofundara-se o "teor violento da vida", para usarmos a expre ssão deJohan Huizinga. Sem passado nem futuro, distante da Europa desarranjadapelas revoluções e por Napoleão, esses reinóis vivem num mundo colonialconvulsionado e atravessado pela insegurança. Mundo precário, tenso, dramático, cheio de moléstias desconhecidas, marcado p or violências ancestraisque a fuga d a corte apenas agudizava. Alé m d a vergonha nacional configuradapela fuga dos Braganças - vergonha que transborda dramaticamente em diversas memórias e cartas dramáticas -, impôs-se outra, a da tutela inglesa,pouco edificante em termos d e brio nacional do "pod eroso império".

N os trópicos, bem consideradas as coisas, h á muito tempo b oa parcelad a elite ilustrada e liberal já não e ra portuguesa. Tal fato fora sentido na pelepelo próprio José Bonifácio, uma das personalidades mais prestigiosas domundo português, ao não ser convidado a vir participar do ministério deJoão VI no Brasil, pelo simples argumento, nunca explicitado, de que era"brasileiro". Com o ele terá notado - de acordo com seu principal biógrafo,Otávio Tarquínio de S ousa - q u e , a o retornar tardiamente ao Brasil em 1819,seus hábitos, valores e sotaque lusitanos ("sou português castiço") logo teriam de se adaptar aos modos e modas da ex-colônia tropical. Sua reconversão à terra natal se processou muito rapidamente, e com raiva, de talforma que chegaria a escrever com ironia extremada:

O Brasil é u m a terra de igualdade. Igualdade no exercício do s direitos, igualdade naspretensões legais, igualdade perante a justiça, igualdade no s impostos, igualdade no

privilégios de indivíduos e de classes [...J

Em verdade, o pacto consensual B rasil-Portugal já vinha se rompendo,e a questão social atenazava a consciência das elites nativas esclarecidas.Quando José Bonifácio retornara ao Brasil, a terra já entrara no "perigosorodamoinho que ameaça levar o P aís ao vórtice d a Revolução", como temia

o comerciante inglês John Luccok, em suas Notas sobre o Rio de Janeiro epartes meridionais do Brasil.21

C omo se enfatizou, o movimento de 1817 fora a primeira e mais radicalrevolução anticolonialista no mundo luso-afro-brasileiro. Liderada p or setores da burguesia comercial nativa, porém internacionalizada, do clero e daadministração, essas novas elites dirigentes emergiam n a cena política tendocomo expoentes o radical Frei Caneca e o inquieto irmão de José B onifácio,o ad vogado A ntônio C arlos. A revolução trouxe um forte sentido de rupturae fundação republicanista, verdadeira antecâmara do m ovimento de Independência de 2 2, abrindo o ciclo de movim entos liberais-constitucionais enacionais. Movimentos que teriam desdobramentos e seqüência em Recife

em 1821-22, depois na Confederação do Equador (1824), na expulsão dePedro I em 1831 e na Revolução Praieira (1848). Sempre evocada, a Revolução de 1817, republicanista, movimento em que se colocou a questão daemanc ipação dos escravos, perm aneceria referencial e paradigmática n o processo mais amplo de formação do Estado nacional. Processo marcado pormovimentos insurrecionais que ocupariam toda a primeira metade do séculoXIX , desde a s revoltas escravas de 1826 e, a mais notável, dos M ales (Bahia,1835) , a Sabinada (Bahia, 1837-38), a Cabanagem (Pará, 1835-4 0), aBalaiada (Maranhão, 1838-41), até a Liberal (São Paulo-Minas, 1842), aR evolução Farroupilha (Rio G rande do Sul, 1835-45) e a Revolução Praieira (1848). Interessa aqui frisar q u e , direta ou indiretamente, muitas lideran

ças ou ideólogos do Império participaram ou tiveram ancestrais com um péem 1817, a exemplo de Abreu e Lima (o autor de O socialismo, 1855), deJosé de Alencar, da família Andrada e Silva. Na revolução nordestina de

26 Cf. Projetos para o Brasil, cit., p. 189.27 Cf. "Prefácio", Notas sobre o Rio d e Janeiro e partes meridionais do Brasil (2. ed., São Paulo:

Martins, 1951).

220 C a r l os G u i l h e r m e M o t a

1817 prefiguram-se também as dificuldades que o Brasil viria a ter, poucos

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duramente antiescravista bastante avançada (vale sublinhar), porém reagente

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anos depois, em relação à metrópole portuguesa após a Revolução de 1820,liberal e ao mes mo tempo recolonizadora.

Aq ui, entretanto, revela-se o busílis. Quando com eça essa História, aHistória do Brasil? N uma abordagem m ais ampla, a historiografia mais recente vem cultivando a interpretação do processo de desco lonização desdesuas origens na Inconfidência Mineira (1789, ou talvez mesmo na Inconfi

dência de Cu rvelo, em 177 7), até a expulsão do imperador Pedro I (183 1),quando o país já dera passos decisivos na consolidação de uma custosaemancipação p olítica. Prefere-se todavia uma outra perspectiva, acomp anhando a formação dessa ideo logia - vale dizer, de projetos - centrada naconstrução da nação independente após a grande insurreição nordestina.Ideologia nacional nascente que deixa para trás o desenho da "NovaLusitânia", depois os sonhos nativistas-localistas dos inconfidentes e, em seguida, as utopias do "p oderoso império", sonhado, entre outros, pelo con dede Linhares, d. Rodrigo de Sousa Coutinho.

Império sonhado também pelo próprio José Bonifácio que, em 1813,seis anos antes de voltar ao Brasil, manifestava ao conde de Fu nchal, Domingos Antônio, irmão do conde de Linhares (seu protetor até falecer em1812), e que seria indicado para substituí-lo no ministério joanino, não desejar morrer como mero desembargador, mas ter no Brasil um "governilho"pequeno e bem organizado para cuidar:

Jáestou velho e mal-acostumado para ser sabujo e galopim de ante-salas; mas se mequisessemdar algum governilho subalterno, folgarei muito ir morrer na pátria e vivero resto de meus dias debaixo do meu natural Senhor [D. João VI], pois sou portuguêscastiço. P oderia nele, se me dessem e me deixassem de mãos livres, ir plantar as artese agricultura européia; pôr em administração regular os bosques; criar pescarias esalgações e experimentar o meu projeto de civilizar a cristãos e índios. Peço um

governilho; porque detesto o serdesembargador de presente e de futuro. Um pequenopaís que me convinha era Santa Catarina, ajuntando-se-lhe os campos vizinhos deCuritiba, para novos estabelecimentos de manteigas, queijos, trigos e farinhas.

Revela-se, nessa permanência da velha idéia de Brasil como "NovaLusitânia", a combinação de uma ponta de utopismo arcaico com a visãomoderna e ilustrada dos males do mundo colonial. Pensamento brumoso,mas não revolucionário, que amargurava alguns expoentes do reformismoilustrado no mu ndo luso-brasileiro, tendo co mo resultado uma teoria social

às vanguardas mais liberais e republicanistas daquele tempo:

Se já agora pudesse tomar a liberdade de lhe enviar por escrito idéias que me têmocorrido sobre novas leis regulativas da escravatura inimiga política e amoral maiscruel que tem essa Nova China, se com o tempo e jeito não se procurar curar essecancro, adeus um dia do Brasil.

Criticando a "Nova China", a "Nova Guiné do Rio de Janeiro", Bonifáciopropõe "que se rem ovam os obstáculos à indústria, que a razão e a ciênciaganhem pés diariamente". E que não se impeçam "os vôos espontâneos daatividade particular".28

Co mo se sabe, o P atriarca, em seu amplo projeto civilizatório, defendeu em diversas ocasiões a educação física e científica, o ensino da agricultura ("deve ser ambulatório") e a ginástica. M ais ainda, a instrução para as"diversas classes da nação [...] na razão inversa desde a nobreza até a plebe". Tudo p orém dentro de certos limites, "para evitar revoluções". P ois asfronteiras de sua ideologia eram, com o a de muitos de seus contemporâneos,

as do reformismo ilustrado.

29

IV

Quando, n essa óptica, o B rasil se descobre B rasil? Vale refletir a propósito da imagem aparentemente "estabilizada" e harmoniosa de "nossa"História, criada a partir de relatos e projetos, d e literatura panfletária e v iagens, depois con solidada em grandes interpretações e, em seguida, nas simplificações para manuais de História do Brasil.

O s modos p elos quais se consolidaram essas idéias de "Brasil" na pri

meira metade do século X IX , difusas porém impregnadas de valores do sistema ideológico configurado naquele período decisivo, ser e não ser nonascente imaginário social nacional (desde a poesia, o ensaio histórico e po-

28 "Carta ao conde de Funchal", 1813, em Projetos para o Brasil, cit., pp. 163-72.29 A passagem da ideologia reformista ilustrada para a liberal pode ser acompanhada em persona

gens como o advogado Aragão e Vasconcelos, ou o revolucionário Muniz T avares; cf. CarlosGuilherme Mota, "As formas de pensamento reformistas", em Nordeste 1817, cit.

222 C a r l os G u i l h e r m e M o t a

lítico e a literatura em geral, até a m úsica, o teatro), permanecem tema es

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coletiva(s), e impõe ou informa negociações. Negociações como as que se

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sencial para o historiador das mentalidades.Aprofundemos a questão, perguntando: quando os Brasis se tornam

Brasil! Se n os estudos geo-h istóricos, nos trabalhos sobre fronteiras e m apas a sinalização é clara, quase consensual e aparentemente neutra, no planodas formas de pensamento nem tudo é pacífico. Na curva do processo,observa-se com o a identidade coletiva foi se desenhando, tomando forma e

adquirindo sentido em oposição à metrópole, nessa lentíssima, e logo depois acelerada, dialética da colonização. P rimeiro, observa-se que a repressão à Inconfidência M ineira, demorada, altamente burocratizada e ritualizada,deu-se contra os brancos insurretos ou suspeitos, send o punido com a morte o mais modesto deles, o quase-branco Tiradentes. Já na repressão aos"pardos alfaiates" baianos, o poder metropolitano contra-revolucionário foiexercido de modo rápido, brutal e exemplar, orientada pelo mesmo ilustradoRodrigo de Sousa Coutinho: foram prontamente liquidados quatro modestosartesãos e muito mais gente perseguida. Em Pernambuco, velha e sofisticadapraça internacional onde o milieu cultural, econômico e político adensavaidéias de revolução, a conspiração dos Suassunas (1801) foi abafada em

face da importância e prestígio social dos en volvidos, tendo seqüência nasinsurreições de 1817 - ramificadas por todo o Nordeste - e na República de1 8 2 4 , desdobrando-se pelos anos 30 e 40. Ao longo desse processo, sedestacariam agentes de um a vanguarda já nacional-radical, co mo os c onhecidos revolucionários pernambucanos Antônio P edro de Figueiredo (o mulato "Cousin Fusco", tradutor da História da filosofia, de Victor Cousin,e ra editor d a revista O Progresso) e A breu e Lima (o "general das massas"),dentre muitos outros.

A datação do início do processo de independência pode não ser nítid a , dependendo d a vertente historiográfica adotada. Toda periodização pressupõe entretanto uma teoria geral d a História. N o caso da História do Brasilem formação, ou mais propriamente, no processo de definição de sua própria existência (visto que antes do P rimeiro R einado tal história e ra um não-s e r ) , a periodização de uma história que se autodenomine nacional só podeter início em 1817, quando se inicia a ruptura. A revolução foi regional, eduramente esmagada, é verdade; mas deu o sinal para uma série de outrasmobilizações regionais - aliás aguardadas - e entrou nas argumentações próe contra independência, tanto n a história concreta d as lutas sociais quanto nahistoriografia. Historiografia que, como se sabe, constitui outro plano nãomenos importante das lutas sociais, pois mob iliza e desmobiliza m emória(s)

processaram nas cortes de L isboa e que terminaram com a ruptura, como seconstatou nas intervenções do prestigioso deputado português Borges C arneiro, em 22 de maio de 1822:

Mostre-se ao Brasil que o não queremos avassalar como os antigos déspotas; porémcontra os facciosos rebeldes, mostre-se que ainda temos um cão de fila, ou leão tal

q u e , se o soltarmos, há-de trazê-los a obedecer às Cortes, ao Rei e às autoridadesconstituídas no Brasil por aquelas e por este.30

Mas o 7 de abril de 1831 constitui acontecimento decisivo e nítido: f~sublinha o fim do p rocesso de ruptura e se consolida a independência política nacional. A perda do poder pelo representante da Casa de Bragançanascido em Portugal e a ascensão de seu filho, já brasileiro e controlado por /regente s que participaram das cortes de Lisboa - imperador que será também exilado m eio século dep ois -, sugere que as forças nacionais, apesar desuas diferenças e antagonismos, já possuíam con sistência para manter o E stado e a sociedade dentro de regras por elas criadas.

A ex-colônia - primeiro, parte do Reino Unido e, após 1822, naçãoprecariamente independente - define aos poucos sua fisionomia a partir do sconflitos com interesses monopolistas da ex-metrópole, depois nos em batescom grupos que, no Brasil, representam o setor mais arcaico do AncienRegime (nomeadamente, os n egreiros, que vencerão José Bonifácio, provocando seu ex ílio em B ordeaux), em seguida nas dificuldades para sua inserção no cenário internacional (monitorado pela Inglaterra) e, finalmente, naharmonização, sempre precária, das disparidades internas. Nessa perspectiv a , 1831 representa o ponto de inflexão: marginalizado o poder central, aconstrução da nova ordem não pode deixar de traduzir a participação dasdiferentes regiões e interesses em jogo. A partir dos confrontos e nego cia

ções de projetos entre suas lideranças ilustradas, liberais e conservadoras, oBrasil vai conso lidar sua identidade propriamente nacional.Ab andonado finalmente o paradigma d as Ordenações Filipinas em 1830,

a nação em ergente precisará acionar u m novo sistema jurídico-político, aliásjá esboçado na intolerada Constituinte de 1823 e definido, de cima para

30 Diário das Cortes, t. 6, p. 2 2 1 ; citado por Zília Osório de Castro, em Cultura e política. ManuelBorges Carneiro e o Vintismo (Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro deHistória da Cultura da Universidade N ova de Lisboa, 1990).

224 C a r l o s G u i lh e r m e M o t o

baixo, com a outorga da Constituição de 1824, e depois no A to A dicional

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esses redescobridores do Brasil das primeiras décadas do século XX bus

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de 1834 . Para colocá -lo em prática, seria necessário eliminar ou neutralizaras dissidências, exilando Ledo e sua facção, depois José Bonifácio e seugrupo, prender prolongadamente Cipriano B arata e muitos outros, reprimirmanifestações separatistas (como a avançada e republicanista Confederação do Equador, 1 824, pró-americana) e apaziguar os interesses envo lvidosna região do Prata. Coroando o processo , e não men os importante, tornou-

se imperioso agenciar u m custoso reconhecimento diplomático internacional,articulado por José Bon ifácio e mal administrado pelos sucessores, sobretudo em face da manutenção do regime escravista, abominado pelo Andrada.

Da Constituinte de 1823, de caráter muito avançado para o tempo, epor essa razão abortada, à consolidaçã o d o reinado, as forças progressistas,exiladas ou anuladas paulatinamente, acabaram por ser chamadas de vo lta.O contexto social, político e m esmo cultural, porém, já se alterara substancialmente, no sentido de se criarem condições para uma visão de mundomais urbana e internacionalizada. Lideranças das camadas médias urbanas jáatuam no cenário, educadas nesse universo de sobrados e mucambos quedariam o tom à vida nacional no século X IX e parte do X X .

Visto o Brasil em conjunto na primeira metade do Dezenove, chama aatenção do observador a disparidade entre o colorido, vivacidade e a qualidade das informações da grande maioria de viajantes, naturalistas e artistasque aportaram à ex-colônia, o que se comprova nos registros, desenhos,memórias que deixaram, e a opacidade das narrativas já dos meados doséculo XI X , que traduziam a mediocrização d a vida comum. Com efeito, nosanos 20 e 30 daquela centúria difundia-se pelas elites a sensaçã o de participarem de um momento fundador e de descobertas. Não só as crônicas deviajantes e panfletos, o periodismo, mas o próprio Pedro I, exilado, revelariaalgum brilho em suas viagens, recepçõ es e desfiles em Londres e Paris, cuidando, defensor do constitucionalismo, de organizar a reação a seu irmão

absolutista Miguel, garantindo-se um lugar liberal no panteão português.Não terá sido por acaso que, exatamente um século depois, após a

Semana de 2 2, a crise de 29 e a R evolução de 1930, quando a nacionalidade é revista, um grupo-geração de intelectuais brilhantes, netos dessas elitesoligarquizadas ao longo do século X IX , irão procurar novas interpretaçõesdo B rasil, remapeando, reeditando, traduzindo, revirando bibliotecas européias em busca de originais e do riquíssimo material deixado por aquelespersonagens que certificaram o nascimento de uma nação. Não por acaso

caram, para a feitura de suas obras, tornadas "clássicas", a informação principal naquele período decisivo. Ou seja, buscando "nossas raízes", "nossaformação", reelaboravam, com o registro do novo temp o, a problemática da"nacionalidade".

V

O r a , o s e x t r e m o s s e t o c a m , e e s t e s , t o c a n d o - s e , f e c h a v a m o c í r c u lo d e n t r o

d o q u a l s e p a s s a v a m o s t e r r í v e i s c o m b a t e s d a s c i t a ç õ e s , p r o v a r á s , r a z õ e s

p r i n c i p a i s e f i n a i s , e t o d o s e s s e s t r e j e i t o s j u d i c i a i s q u e s e c h a m a v a o

p r o c e s s o .

M a n u e l A n t ô n i o d e A l m e i d a

M e m ó r io s d e u m s o f g e n t o d e m i l k i o s , 1 8 5 2

Em meados d o século X IX , uma certa imagem do "tipo brasileiro" já

estava consolidada, como se constata em obras como A moreninha (1844),de Joaquim Manuel de Macedo, ou nas Memórias de um sargento de milícias (1852 ), de M anuel Antônio de Almeida. M uitos estrangeiros, novosviajantes como os norte-americanos missionários protestantes Kidder eFletcher, autores de Brazil and the Brazilians (1857), também fixariam ostraços da sociedade que se formava nestas partes da América do Sul.

Antes, porém, já em 1836, Gonçalves de Magalhães escrevera seufamoso Discurso sobre a história da literatura brasileira, indicando umamaneira de se pensar, no Brasil, o Brasil. É fato consabido que nada maisdefinitivo h á d o q u e a produção literária para sublinhar u m a identidade, quantomais em se tratando de uma reflexão histórica sobre essa literatura. Vale

relembrar que, naquele m esmo ano de 1836, um olhar externo também assinalava a construção de uma identidade brasileira, pois, com o vim os, surgiaem L ondres a famosa History of Brazil, d o já citado amigo de Evaristo daVeiga, John A rmitage. A quele texto, considerado a primeira obra que davaconta do B rasil contemporâneo, não por acaso fora escrita p o r u m inglês: tãogrande era a proximidade entre os do is que se acreditou, durante muito tem p o , ter sido ela elaborada pelo próprio Evaristo, ou seja, marcada por umolhar nacional...

226 C a r l os G u i l h e r m e M o t a

N a primeira metade do século X IX , o movimen to geral das idéias vin

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Como nã o estudamos a história s ó c o m o único fito de conhecer o passado, m as s im

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culava-se à formação dos n ovos E stados-nação e da expansão imperialista.No plano do saber institucionalizado, firmam-se os estudos históricos elingüísticos, depois a sociologia, a biologia e a antropologia. As re voluçõesburguesas de 182 0,18 30 e 1848, mais os impulsos do capitalismo industrialnascente, m obilizaram contingentes de pesquisadores, artistas e escritores,homens de negócios, indicando o sentido geral da construção da contem-

poraneidade.A tônica, dada pelo romantismo, não abandonaria a problemática da

independência, antes reforçava-a, com os temas do nativismo agora revestidos e adensados por forte sentimento patriótico. Cria-se, como analisouAn tônio C ândido, "uma literatura independente, diversa, não apenas umaliteratura, de vez que, aparecendo o classicismo como manifestação dopassado colonial, o nacionalismo literário e a busca de modelos novos, nemclássicos n e m portugueses, davam um sentimento de libertação relativamente à mãe-pátria". Observando-se o perfil dos formadores da nacionalidade,nota-se, ainda nas palavras do autor da Formação da literatura brasileira,a passagem do "tipo-ideal do intelectual esclarecedor, reformista ilustrado e

universalizante para o do intelectual particularista alinhado n a tarefa patriótica na construção nacional".31 Até o ex-liberal Bernardo Pereira de Vasconcelos chegaria a dizer ter-se tornado "bárbaro" a partir dos estudos naUniversidade de C oimbra, vendo-se obrigado a esquecer o que lá aprendeupara pensar o Brasil...

N esse p rocesso, o patriarca da independência, José Bonifácio, o velhoárcade A mérico E lísio, aprisionado nos quadros mentais do classicismo, ficaria marginalizado das novas tendências dominantes de seu tempo. Ele eseus admiradores viam -se obrigados a ceder passo ao movimento de jovensque, com foco em Paris entre 1833 e 1836, estimulados pela liberdade deexpressão pregada por seu inimigo E varisto d a Veiga e adeptos, adquiriram

consciência da necessidade d e promoção de uma literatura autônoma. L iderados por Gon çalves de M agalhães, e a despeito de serem muito marcadospela "M adama" de S taêl e outros, adotavam tese s que repudiavam a imitaç ã o , como se verifica nas conclusões do famoso Discurso sobre a históriada literatura do Brasil (1836):

31 Antônio Cândido, Formação da literatura brasileira (São Paulo: Martins, 1964), vol. II, p. 11.

c o m o fim de tirar úteis lições para o presente, assim no estudo d o q u e chamamosmodelos n ã o n o s devemos limitar à s u a reprodução imitativa.32

Liderados por Gonça lves de M agalhães, participavam desse grupo deParis Francisco de Sales Torres Homem, Manuel de Araújo Porto-Alegre,João Manuel Pereira da Silva, com o projeto de articular " n o plano da arte o

que fora a Independência n a vida política e social".33

Tal grupo integrava-senas correntes do romantismo e do nacionalismo d a época, milhando n a literatura, na política e cultivando os estudos históricos. N a França mantinhacontatos diretos e indiretos com Ferdinand Dénis, e com um a "colônia" degente franco-brasileira, ex-estudantes, p olíticos, negociantes, livreiros. N oBrasil, com Januário da Cunha Barbosa, o ex-diretor do famoso ReverberoConstitucional Fluminense (1821-22), o mais combatente da independência, e do Diário Fluminense (1830-31). E suas relações se estendiam aPortugal, de vez q ue, desse grupo, Porto-Alegre tivera contato com o português A lmeida G arrett em 1832, introduzindo suas idéias a M agalhães, chegado no ano seguinte a Paris, o que talvez explique a rápida e entusiasmada

adesão deste ao romantismo.Es se grupo, por sua vez, seguia com admiração a atividade jornalística

de Evaristo da Veiga que, com suas maneiras pequeno-burguesas, lutavapela expressão de um país livre, empostando a voz das camadas médiasurbanas emergentes. Desse modo, na busca do nacional idealizado, elaborava-se uma nova linguagem, no diapasão do tempo, embora - diga-se - umtanto inspirados por Chateaubriand, Madame de Staêl e Garrett... Pois, comoconcluía Magalhães em seu célebre Discurso, "mais vale um vôo arrojadodeste gênio, que a marcha reflectida e regular da servil imitação". 34

32 Gonçalves de Magalhães, Discurso sobre a história da literatura do Brasil (Rio de Janeiro:Fundação Casa de Rui Barbosa, 1994), p. 50.

33 Antônio Cândido, Formação da literatura brasileira, cit., p. 12.34 Gonçalves de Magalhães, Discurso sobre a história da literatura do Brasil, cit., p. 51 .

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vi

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da declaração da maioridade de Pedro II. Ao localizá-los no contexto da

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M as a expressão m ais forte e sistemática dessa consciência h istórica eidentidade nacional formulava-se na produção historiográfica. Como equando nasce tal identidade? Aqui n os deparamos com a questão central emnosso excurso: d escrever e narrar, escrever diários, memórias, ficção e, poroutro lado, produzir histórias não é a mesma coisa.

Nessa perspectiva, a consciência de nação somente se consolidariaplenamente quando se conseguiu elaborar u m a história própria. "Brazil", temade História das M entalidades, aparece sob variadas formas, apresentando-se de modo variado no quadro geral das representações mentais do períod o . Em inúmeras obras de autores estrangeiros surpreende-se a existência-o u , quando men os, esboç os - de formulação e interpretação histórica sobreo que vinha a ser o "Brasil", para além d os registros, d a ficção, de anuários ecronologias. Os ingleses, dentre os quais o referido Armitage talvez seja omais importante, deixaram textos históricos de maior valor por revelarem acompreensão de História enquanto processo, inaugurando uma nova fasede conhecimentos sobre o Brasil.

Todavia , uma consciência propriamente nacional, brasileira, somente pode ser captada na historiografia que se define no fim dos anos 30 einício dos anos 40. É ela que nos interessa nesse passo, permitindo fixarnovos marcos n a História d a Historiografia n o Brasil, obrigando-nos em conseqüência a repensar a história das ideologias e mentalidades no B rasil doséculo XIX .

N essa perspectiva, dois livros tornam-se desde logo fundam entais. Anosso ver, revelam perspectiva mais avançada e estimulante que os deVarnhagen, dentre outros: a História do Brasil, de Francisco SolanoConstâncio, e o conhecido Compêndio da história do Brasil, escrito pelo

general José Inácio de A breu e Lima, o "general das massas". Têm-se, n eles,dois marcos que indicam a abertura de um novo período na história doautoconhecimento, ou melhor, d a definição de uma identidade histórica propriamente nacional. Tais livros aparecem num contexto em que a vida dopaís atravessava fase de grandes convulsões. Vale notar que Constâncio eAbreu e L ima são contemporâneos de Feijó, do C ousin Fusco, do barão deCaxias.

Es ses dois historiadores são também contemporâneos da fundação doInstituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838) e viveram no clima político

época, não se deve ainda perder de vista o fato de estarem já em funcionamento, havia dez anos, as faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda.Formavam-se as novas elites nacionais, dando-se novo impulso à intensaatividade jornalística já existente, n a qual se destacavam figuras com o Evaristod a Veiga e Bernardo Pereira de V asconcelos, lideranças que tanto aborreceram Pedro I, chegando a apeá-lo do poder.

O ambiente conturbado do país pode ser apreendido em observaçõesdo livro de Solano Con stâncio, em que men ciona desde "attentados contradiversas pesso as, e até contra mulheres solteiras e casadas", até "expedicçõ esnocturnas das quais o próprio imperador participou mascarado e com doisvalentões", numa delas levando a pior, pois "quando as luzes se apagaramele recebeo uma forte contusão na testa". Nada obstante, para além d essas"petites histoires", a História do Brasil de Francisco Solano Constânciosurpreende por sua qualidade de interpretação e argumentação consistente.

Difícil entender-se como sua obra, nos estudos historiográficos, ficou àsombra durante tantos anos. Solano Constâncio, médico, foi membro dasSociedades de Medicina e de História Natural de Edimburgo, Lineana deNova York e Paris e, ainda, autor do Dicionário crítico e etimológico dalíngua portuguesa. Sua obra em dois volumes, com quase 500 páginas,apareceu em 1839 editada em Paris pela Livraria Portugueza d e J . P Aillaud.35

A obra apresenta, na introdução, um diagnóstico do Brasil em 1831,com cerca de 60 páginas, abrangendo desde aspectos geográficos até informações sobre clima, fósseis, reino mineral, população, escravidão, longevidade, doença s, etc. O resto é História. N o primeiro volume, trata desde odescobrimento até a expulsão "completa" dos holandeses do Brasil, em 1654.O tomo II abarca da morte de d. João IV e regência da rainha d. Luísa àsprimeiras expedições para descobrir mina (1674-75) até a abdicação de1 8 3 1 . Seguindo de perto os acontecimentos, apresentando relato ano pora n o dentro d e uma linha "analytica e chronológica" rigorosa, Solano Constâncioorganiza u m a interpretação q u e revela p or inteiro su a teoria d a independência.

C onstâncio julga que o limite natural d a presente história deveria ser aseparação definitiva do Brasil (já com s, note-se), quando foi reconhecida

3 5 No Q uai Voltaire, na 1 1, tendo sido impressa pela famosa Typographie de Casimir, situada n a ruede Ia Vieille-Monnaie, n° 12.

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sua independência pela Coroa de Portugal, começan do-se então " u m a nova

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sil e se interpretar a História destas partes n a perspectiva d a descolonização,

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épocha":

Mas pareceo-nos acertado reservar para remate a Revolução que obrigou o ImperadorD . Pedro a descer de um throno onde, tão pouco tempo havia, o tinha levado o votogeral dos Brasileiros, e do qual aagora descia sem que hum só indivíduo compadecessede sua sorte.36

A pós comentar a atuação de Pedro, conclui:

Não tinha talento para meditar e coordenar hum plano, nem perseverança para oseguir com firme resolução. Déspota por inclinação e hábito, criado entre míserosescravos, tyrannicos senhores, e vis cortezãos, o primeiro impulso de D. Pedro foisempre a violência, e quando não p odia vencer a resistência, então recorria à astúcia[...] Essa contínua instabilidade, quando Brasil carecia de hum bom systema de administração adotado com madurez e seguido com constância, não podia deixar de terfunestos resultados.37

Solano menciona a perseguição de d. Pedro a jornalistas e à liberdade

de expressão, e o fato de ter recorrido in extremis a José Bonifácio ("DeVossa M agestade nem hum copo d'água aceitarei", teria dito o Patriarca).Historiando o insuces so na guerra contra Bu enos Aires, critica o desprezodo imperador pela "opinião publica" e o confronto com o ministro d a Fazend a , o marquês de Barbacena, que, rejeitado, queria derrubar Pedro do tron o . Denuncia, ainda, q u e Caldeira Brant inseria e m jornais republicanos artigosviolentos contra o sistema monárquico, "recomendando as instituições daFederação Americana com o mod elo que se devia imitar".

Não somente tal interpretação, como também o tipo de narrativa deSolano, deve ter sido muito impactante e convincente, pois pode ser reencontrada, com poucas alterações - e aqui reside a importância da crítica e

reconstrução historiográficas - , em outros historiadores que se lhe seguem,repontando, já em meados do século XX, nas interpretações de OtávioTarquínio de Sousa.

Trata-se, a nosso ver, do início de um a tradição historio gráfica quemerece referência e atenção. Uma maneira inovadora de entender-se o Bra-

36 Francisco Solano Constâncio, História do Brasil,cit., p. 414.37 Ibid., p. 415.

articulando uma nova periodização em que se enfatiza o processo de independência e a expulsão do imperador, contrapondo-se à visão bragantina ereacionária de Varnhagen.

Já Abreu e L ima é m ais citado, embora não haja estudo aprofundadoque o situe no con texto da historiografia nascente. R etomando várias tesesde seu famoso Bosquejo histórico, político e literário do Brasil, publ icado

em 1835, ele termina seu Compêndio de história do Brasil em 1841, quatro meses d epois da coroação de Pedro II, quando ainda continuava a guerra civil n o R i o Grande d o Sul.38 E perguntava o "General das M assas": "Quaesserão os futuros do B rasil?".39

Havia, de fato, muita expectativa no ar quanto aos destinos d a nação, eAbreu e L ima demarca e periodiza a nova etapa:

Uma nov a era começou no 18 de julho de 1841, assim como d ez annos antes tinhamarcado a Providência um deccenio para o nosso purgatório. Se o m au fado nos nãopersegue mais, como até aqui, podem [os novos tempos se] annunciar como muitolisongeiros debaixo do reinado do S EGUND O P EDRO. 40

Embora controverso, po is revela uma certa simpatia por Pedro I e esperanças em Pedro II (a quem o livro é dedicado), A breu e Lima, lutador daindependência e ex-revolucionário internacional (combatera sob o comandode Bolívar), produziu interpretação em geral progressista d a História.41

S eu Compêndio, nem sempre bem escrito, revela-se positivo sobretudo quando descreve movimentos de insurreição como os de 1817 e 1824,ou fala do fuzilamento de frei Joaquim C aneca, "homem ameno d e variadacultura". Ele enfatiza o papel e a probidade de José B onifácio, preocupadoem fixar e controlar as atitudes do Príncipe R egente, analisando a atuaçãodiplomático-militar d o Brasil no Rio d a Prata. Ao criticar a atuação desastra-

3 s Ver o estudo introdutório de Barbosa Lima Sobrinho a O socialismo (2 . ed. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1979).

39 José Inácio de Abreu e Lima, Compêndio de história do Brasil (Rio de Janeiro: Eduardo eHenrique Laemmert, 1943), p. 304.

40 Ibidem.4 ' Sobre o autor, ver José Honório Rodrigues, "José Inácio de Abreu e Lima", em História e

historiadores do Brasil (São Paulo: Fulgor, 1965) e Teoria da História do Brasil (5 . ed. Rio deJaneiro: Nacional, 1978), cap. 5, "A periodização na História do Brasil".

232 C a r lo s G u i l h e r m e M o t a

da de Cochrane e Grenfeld no Maranhão, menciona inclusive o trágico epi

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Os estudos e as pesquisas historiográficas vêm recuand o no tempo no

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sódio em que morreram sufocados 254 insurretos no porão de um navio,acontecimento que bastaria para pôr abaixo a interpretação oficial de umahistória harmoniosa e incruenta.

O volum e em foco é uma edição abreviada, formato pequeno , dos doisgrossos volum es originais, com notas e docum entos e sete estampas "muitofinas". Trata-se, como os editores informam na abertura, de uma "edição

mais adequada para os COLLEGIOS e para toda a Mocidade Brasi le i raque pelo volum oso não intimidasse os joven s leitores". Um a edição que facil i tasse a "profícua instrucção que a Mocidade deve colher sobre a Historiapátria, abreviando um po uco a leitura, tornando o l ivro mais m anual"...

Apesar de tratar-se de interpretação cheia de altos e baixos, desigual,elaborada por um h ome m de ação, ela entretanto se sustenta num a perspectiva nitidamente nacional. Por certo Abreu e Lima, general, sempre revelouuma visão hierárquica em suas ati tudes, e por isso mesmo apreciava comcerta complacência - quando não admiração - a atuação de almirantes ecomandantes em suas re lações com subordinados. Nesse mom ento em qu ea idéia de Brasil-nação se afirma em cad a embate, ele oferece informações

por isso mesmo importantes, inclusive no tocante à Província Cisplatina, afronteira mais problemática do terri tório nacional. Construía, a seu modo,uma certa idéia desse todo nacional.

Do contraste entre esses autores com Varnhagen ou Pereira da Silva,dois outros marcos da denominada historiografia nacional, constata-se queuma historiografia propriamente nacional mais consistente e mais sofisticadaantecedeu a visão "oficial" do Brasil , embora não tenha se transformado emdominante. Mas ela tem alti tude se situada no contexto da época, seja emrelação a congêneres em Portugal, como A lmeida Garrett , o autor do importante ensaio sobre revolução e contra-revolução em Portugal na balançada Europa (Lisboa, 1830), seja na França de Charles Fourier e de HoraceSay (o autor da Histoire des relations commerciales entre Ia France et leBrésil, publicada em Paris em 1839). Ou seja, ainda, nos Estados Unidos,de W illiam Lloyd Garrison.

Sua qu alidade nada desprezível, muito ao co ntrário, revela a existênciade bolsões de produção e reflexão intelectual que devem ser reavaliados,para além da história convencional ou "oficial". No caso de Abreu e Lima, adedicatória a Pedro II não invalida suas formulações m ais duras e independentes ao longo do Compêndio, simpática em geral aos revolucionários. JáVarnhagen ficaria conhecido, e criticado, por seu aulicismo militante.

sentido e no esforço d e se rastrearem os fragmentos de textos e relatos qu epermitam compreender a passagem da crônica e do memorialismo à interpretação histórica compen diada e "estabilizada". Tal passagem, a no sso ver,constitui importante indicador na long a trajetória de colônia a n ação.

A construção de uma identidade nacional se dá formulando-se um ahistória própria, inventando-se um passado, um povo, uma interpretação

dos confli tos, lutas e ajustamentos. Sobretudo em relação à antiqüíssimaHistória de Portugal, cuja identidade se reitera e reconstrói a cada embate,dissolvendo e harm onizando as contradições internas, e incorporando as diferenças ou sedições externas. Nesse sentido, a permanência de dois monarcas da família dos B raganças à frente do E stado independente amorteceuo caráter revolucionário d a descolonização. Deu -se, a partir do confli to co-lônia-metrópole, um a intensa e prolongada "negociação " de sentidos, de interpretações, para se acertar uma visão histórica "equilibrada" do passadocom o pre sente. Visão que, no caso vertente, não poderia ser só de lutas, devez que os Braganças continuavam no poder, pois, como se sabe, houve atéperigo de um retorno de Pedro I, fantasma polít ico do qual falava Abreu e

Lim a. De outra parte, tal história obviamente não era tampouco de q uietação,como d emon stravam o s movimen tos e levantes polít icos e sociais do período regencia l, que se prolongaram pelo Segundo R einado.

A idéia contemporânea de Brasil se funda quando se consolida nahistoriografia uma idéia de nação. Nação que, na construção de seu imaginário, teve seu "em brião" na colônia, depois uma origem precisa entre 1817e 1824, uma guerra (em verdade duas: contra os portugueses de Avilez eMadeira, e a Cisplatina), um lugar de nascimento (no riacho do Ipiranga;depois, o "berço esplênd ido"), mais os traumas de nascimento, uma famíliacom o avô liberal (d. João VI), um pai jovem e impulsivo (o príncipe d.Pedro), uma mãe austríaca e sábia ( d . Leopoldina), um inimigo conspirador

na família (d. Miguel, lembrand o a velha estória dos irmãos inimigos), umhino com uma letra fantástica, o padrinho velho e sábio José Bonifácio, oPatriarca, que em época de crise volta a ser chamado para cuidar do neto-menino Pedro II . E, comp letando o quadro, Domitila, a marquesa d e Santos,além do amigo boêmio Chalaça. Claro que existem problemas, sobretudocom a tutela estrangeira (inglesa) e com a escravidão (de negros africanos),reforçando o paternalismo duro de Pedro e a "bondade" do avô Andrada...Imaginário q ue se sustenta com a continuidade bragantina, suavizada com osegundo Pedro, jovem, sábio e - sobre tudo - j á brasileiro.

2 3 4 C a r lo s G u i l h e r m e M o t a

O mito de um a história sem rupturas, marcada p o r supostas continuida-d e s , vem daí. M as também uma certa maneira de pensar, uma postura, um

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e por essa razão os liberais avançados, os "anarquistas", foram alijados da

história.42

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modo de interpretar o mundo que envolve essa idéia essencialmente culturalque evoca a palavra "Brazil", solta, inteligente e generosa, se considerada navertente que se desdobra de José Bonifácio a Machado de Assis e GilbertoFreire. O u rígida e aborrecida, se cultivada na perspectiva de M artius, deVarnhagen e dos ideó logos da contra-revolução, prenhes de certezas quan

do se posicionavam para escrever sobre o Brasil, sabedores (supunham elese os áulicos do Segundo Reinado) do "véritable point de vue ou doit seplacer tout historien du Brésil".

Parte VII

[ . . .] e u v i c o m p e s a r o s m o d e r a d o s a o l e m e d a r e v o l u ç ã o .

Teóf i lo O t ôn i

[ . . . ] 0 s e g u n d o i m p é r i o f o i u m a p a r a d a . D i g a m o s m e l h o r: u m o s i t u a ç ã o

d e e q u i l í b r io .

E u c l i d e s d a C u n h a

O Brasil adquirira nova fisionomia. P or volta d e meados do século XIX ,as pessoas sentiam mais em seu cotidiano o p eso do m undo exterior, as ambigüidades d a escravidão em contraste com os desafios das inovações que emanavam dos principais centros do capitalismo. As usinas, ao substituírem osvelhos engenhos, davam novo tom à vida. O mundo dos sobrados e das cidad e s , do vapor, das pontes de aço e das ferrovias, dos bacharéis, engenheiros,

médicos, escritores e publicistas abria outros horizontes mentais.Desd e 1808, e sobretudo entre 1817 e 1850, viveu-se a maior mudan

ça da história do subcontinente, até então. Primeiro, a chegada da corte,depois as insurreições, instabilidades, Independência, revoluções, conflitos elevantes de escravos sob a Regência, demarcando a passagem para umanova fase. Deixav a-se de viver em colôn ia, mas não se sabia o que era viverem nação independente, na ordem liberal e pesadamente unitária. N em emcidades cosmopolitas, com escravos. Mas, sobretudo, temia-se a república,

Em resposta às insurreições e levantes, a ideologia d a contra-revoluçãologo se instaurou, no esforço de abafar a utopia republicana. E ssas formasde pensamento contra-revolucionárias regressivas marcariam indelevelmen-te a mentalidade nascente da "Democracia coroada".

Nada obstante, surpreendem-se algumas formulações nas vozes de

escritores e ex-participantes das revoluções de 1817, 1822, 1824 e 1831que permitem detectar essa nova identidade nascente. T rata-se de uma eliteliberal, reformista, raramente revolucionária, com vertente mais tipo classemédia (retiro esta expressão de Caio P rado Júnior e Pau lo Mercadante), deleitores de Constant e Bentham, como era o citado Evaristo da Veiga. Ou,numa vertente m ais conservadora, a voz do senador Nicolau V ergueiro, ex-deputado junto às cortes e figura importante na Regê ncia e nos anos 50.

Essa transição foi percebida pelo professor e jornalista Justiniano Joséda Rocha (1812-1862), cujas idéias podem ter o sentido de contraponto efinalização do processo da independência. Carioca, Justiniano José da R ocha estudou no Liceu Henri IV em Paris e se formou em direito em São

Paulo. Deputado, fundou os jornais Atlante, Cronista e, de 1839 a 52,Brasil, tendo escrito também uma biografia de Pedro I. M as ficaria fam osopela autoria do definitivo documento-panfleto Ação, reação, transação**onde conclui:

O observador que desprevenido confrontar as épocas, verá que em tudo e por tudo oscaramurus de 1831 a 1836, e os liberais de 1841 a 1851 desempenharam o mesmopapel, cometeram os m esmos erros, fizeram os mesmos benefícios [...]

42 O julgamento sobre os rumos que tomou a "revolução" do 7 de abril de 1831 foi feito por Teófilo

Otôni: "O 7 de abril foi uma verdadeira journée des dupes. Projetado por homens de idéiasliberais muito avançadas, jurado sobre o sangue dos Canecas e Ratclifes, o movimento tinha porfim o estabelecimento do governo do povo por si mesmo, na significação mais lata da palavra.Secretário do Clube dos Amigos Unidos, iniciado em outras reuniões secretas, que nos doisúltimos anos espreitavam somente a ocasião de dar com segurança o grande golpe, eu vi compesar os moderados ao leme da revolução [...]"; cf. Circular, p . 6 9 , citado por Otávio T. de Sousaem Evaristo da Veiga, cit., p. 99. Sobre a. journée, para Euclides da Cunha, "o conceito é falso J[...] O que houve foi o caso vulgar das revoluções triunfantes [...] E stávamos como nos grandesdias da Convenção" ("Da Independência à República", em À margem da História, cit., pp. 158e 162.

43 Rio de Janeiro, 1. ed. 1855; 2. ed. 1901.

236C a r lo s G u i l h e r m e M o t a

O trabalho da reação monárquica foi completo; onde a democracia havia posto umelemento seu, a reação colocou um elemento oposto [...] Sob o pregão do p rogresso

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conservador apareceu a época da transação.

A nação estava constituída. Liberais e conservadores assemelhavam-se em sua visão de Brasil e, com o se percebe pe lo julgamento do jornalista,despontava também a dura crítica a. esse estado de coisas. O "progresso

conservador" vencera, soldando as diferenças, mas haviaa

consciência desse processo de desmobilização nacional. O diagnóstico demolidor deJustiniano José da R ocha encerrava um cic lo de reflexões sobre o Brasil.

Justiniano sinalizava o fim de um período, como Euclides documentariao fim de uma época, meio século depois. Ele, porém, não estava só. A seulado, do "grupo de Paris", o contemporâneo Francisco de S ales Torres Homem (1812-1876), formado em medicina no Rio e direito em Paris. SalesTorres Homem , antiescravista, escrevera o Libelo do povo (sob o pseudônimo de "Timandro"), publicação em que, também ele , radical, denunciava avolta do "despotismo imperial" e, com ele, o retorno dos "inimigos da Nacionalidade". N o juízo do historiador mineiro Francisco Iglésias, "T imandro,com o Libelo do povo, é um dos momentos vivos do jacobinismo nativo,provocado pelos eventos de 1848".44

Con cluindo, a "estabilidade" do Segund o R einado e a consolidação deum Estado nacional dependente, nos quadros do neocolonialismo, mal esconderiam tumultos, conflitos, levantes e movimentos revolucionários, comoa Cabanada, a Praieira, a Farroupilha, que seriam, cada um a seu tempo,aplastados pelos mecanismos políticos e culturais criados nessa longa história de formação d o patronato político brasileiro, detentor da idéia desmobili-zadora e sufocante de um Brasil "estável", unido, denso.

44 Francisco Iglésias, "Vida política, 1848-1868", em Sérgio Buarque de Holanda (org.), Históriageral da civilização brasileira (5. ed. São Paulo: Difel, 1985), vol. 3, tomo II, p. 14.

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N o s achamos e m campo a tratar daliberdade" : a resistência negra noBrasil oitocentista

— — — — — • — •J o ã o J o s é R e i s

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J_-/urante a maior parte do século XIX, a escravidão no Brasil experimentou uma vigorosa expansão, associada ao incremento da lavoura deexportação, o crescimento das cidades, a intensificação do tráfico de escravos. N os primeiros anos do século, a economia açucareira já havia se recuperado de um longo período de estagnação, aproveitando um mercadointernacional que se tornara menos com petitivo com a saída do Haiti, seumaior fornecedor até a revolução escrava que destruiu sua econo mia exportadora juntamente com o regime escravista. O s engenhos brasileiros prosperaram até que, a partir da década de 1830 , tiveram que enfrentar o crescimento

da produção do açúcar cubano e daquele extraído da beterraba.Também prosperaram os campos de algodão em diversas regiões, noNorte. Minas Gerais, apesar da decadência da mineração, tornou-se umfenômeno de utilização maciça e diversificada da mão-de-obra escrava, nãosó na nascente lavoura cafeeira, mas sobretudo naquela dedicada ao abastecimento interno, fazendas de ga do, pequenas fun dições, indústria têxtil, alémdo que restara da prospecção mineral. A escravidão ganhou também volum enas charqueadas e plantações de chá e cereais sulistas, no Rio Grande doSul, Paraná e Santa Catarina.

Foi entretanto nas lavouras de café onde o trabalho escravo mais vicejou durante o século X IX , após tentativas malsucedidas de utilização do tra

balho de colonos imigrantes. Produzido em várias regiões do B rasil, seu cultivose concentrou no Vale do Paraíba a partir da década de 1830 e posteriormente ocupou largas áreas do oeste paulista, fazendo dessas reg iões o grande celeiro do escravismo na segunda metade do sécu lo.

Entretanto, a escravidão envolveu praticamente todas as atividades produtivas, e não apenas aquelas ligadas ao setor exportador. Já mencionamos

* Este trabalho faz parte de um projeto mais amplo apoiado pelo CNPq.

244 J o ã o J o s é R e i s

o caso de Minas Gerais, a respeito do qual devemos acrescentar que a região chegou a ter a maior concentração regional de escravos não dedicados

" N o s a d i a m o s e m c a m p o a t r a t a r d a l i b e r d a d e " : a r e s i st ê n c i a n e g r a no B r a s i l o i t o c e n t i s t a 245

escravos, 123.590 apenas nos três últimos anos do tráfico legal (18 28-3 0). l

Dessa forma, em quarenta anos o Rio importou o equivalente a mais de um

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à agricultura exportadora. M as em diversas outras regiões tamb ém observa -se a presença maciça de trabalhadores cativos nas lavouras de abastecimentointerno, na p lantação d e cereais, da mandioca, de produtos hortifrutigranjeiros,na pesca, na caça, na coleta de m adeiras, em pequenas indústrias.

Registre-se, finalmente, a formação de grandes centros urbanos

escravistas, como Recife, Salvador e sobretudo o Rio de Janeiro. O Riochegou a representar a maior cidade n o hemisfério em popu lação escrava,que se aproximou de 80 mil em meados do século. Nas cidades desenvolveu-se um sistema peculiar de trabalho escravo ao ganho, abrangendo sobretudo os se rviços de transporte de cargas e pessoas (em cadeiras de arruar),mas também o pequeno comércio ambulante, nos ofícios manuais e, é claro,o serviço d oméstico, um setor numeroso e ocupado principalmente por escravas.

A escravidão brasileira alcançaria seu ápice no século X IX , difundidacom o estava em todo o território nacional, os diversos setores da economia,conformando praticamente todas as instituições sociais, inclusive a família.

Saliente-se também q ue a propriedade sobre escravos n ão se limitava a grandes senhores de engenh o, fazendeiros e mineradores. Tanto no campo com ona cidade era grande o número de pequ enos escravistas, donos d e um, dois,três escravos, trabalhadores na pequena lavoura, nos serviços de rua ou node casa. P or todas essas características, os escravos marcaram em profundidade os co stumes, o imaginário, a cultura e até, através de uma intensamiscigenação, o próprio perfil étnico-racial de nossa população. Tendo sidoo B rasil o último país do hem isfério a abolir a escravidão, em 1888, pode-sedizer que a história do século X IX brasileiro, que viu es se im enso territórioformar-se enquanto nação independente, se confunde com a história do apogeue queda d o regime escravista.

N esse sentido, os números da demografia são eloqüentes. F oi duranteo século X IX que o país mais recebeu escravos africanos, se contabilizadosos quase três séculos de duração do tráfico de seres humanos. Como ésabido, apesar da proibição desse comércio em 1831, ele prosseguiu até1 8 5 0 . Nessa primeira metade do século, estima-se que entraram no paíscerca de um m ilhão e meio de africanos, principalmente através do porto doRio de Janeiro, sem d úvida o maior terminal do tráfico no Atlântico. S egundo uma estimativa recente, entre 1790 e 1830, ali desembarcaram 697.945

terço da população cativa no Brasil em 1818, que era de 1.930.000 pessoa s , e, ainda, o equivalente a cerca de 17% de todos o s escravos importadospara o B rasil enquanto durou o comércio negreiro.

O tráfico se constituiu no mecanismo m ais usado para repor a mão-de-obra escrava ao longo da história do escravismo brasileiro. Com sua proibição definitiva em 1850, a população escrava declinaria, apesar de aindacrescer, durante as duas décadas seguintes, nas regiões cafeeiras mais prósperas, através do tráfico interno, sobretudo no sentido norte-nordeste para osudeste. Em seu conjunto, os escravos no Brasil eram 1.715.000 em 1864,1.540.829 em 1874, 1.240.806 em 1884 e apenas 723.419 em 1887, àsvésperas da abolição.2

O revigoramento da escravidão, e seu eventual declínio, não se deu deforma tranqüila, dependente sempre da visão e dos desígnios das tradicionais classe s dom inantes brasileiras. Estas ganharam a independência d o país,impuseram seu estilo na formação do Estado nacional, conciliaram discursosliberais e civilizatórios com a manutenção da escravidão. Mas não foi essa aúnica visão de B rasil disponível na época. Além de não estar sempre unidas,além dos desafios levantados por dissidências regionais amiúde com apelopopular, de enfrentar periodicamente a contestação do povo livre do campoe da cidade, sobretudo no conflagrado período regencial, as elites brasileirase os escravistas de um modo geral tiveram de enfrentar a resistência doscativos em cada lugar em que a escravidão floresceu. Essa resistência sugereque o projeto vencedor de um país escravocrata não foi desfrutado sem acontestação d os principais perdedores.

A s reb eliões representaram a mais direta e inequívoca forma de resistência escrava coletiva. M as nem toda revolta previa a destruição do regimeescravocrata ou mesm o a liberdade imediata dos escravos nela envolv idos.M uitas visavam apenas corrigir excesso s de tirania, diminuir até um limitetolerável a opressão, reivindicando benefícios esp ecíficos - às vezes a reconquista de gan hos perdidos - ou punindo feitores particularmente cruéis.Eram levantes q ue alvejavam reformar a escravidão, não destruí-la. Em 17 89,

1 Manolo Florentino, Em costas negras (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), pp. 50-1.2 Robert Conrad, The Destruction of Brazilian Slavery, 1850-1888 (Berkeley: Univers)t?3>Tr) >

Califórnia Press, 1972), pp. 283-5. / > V U<? \

246J o ã o J o s é R e i s

por exemplo, no engenho Santana de Ilhéus, Bahia, os escravos mataram ofeitor e se adentraram nas matas com as ferramentas do engenho, até reapa

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predominantemente crioulos, com o fora o caso no engenho Santana há pouco m encionado.

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recerem algum tempo depois com uma proposta de paz em que pediammelhores cond ições de trabalho, acesso a roças de subsistência, facilidadespara comercializar os ex cedentes dessas roças, direito de escolher seus feitores, licença para celebrar livremente suas festas, entre outras exigências. 3

As revoltas tornaram-se mais freqüentes exatamente a partir d o final doséculo X VI II, favorecidas p ela expansão das áreas dedicadas à agriculturacomercial e a conseqüente intensificação do tráfico escravo, que fez crescera população cativa e em particular o seu contingente africano. Um a proporção alta de escravos na população e, entre estes, um maior número de africanos, e mais ainda, de africanos do mesmo grupo étnico, reforçava aidentidade coletiva e estimulava a consciência de força diante das camadaslivres nacionais. Onde os africanos natos constituíam a maioria dos escravos,e, além disso, encontravam dificuldade em constituir famílias (em decorrência da alta taxa de m asculinidade n os planteis), foi mais difícil para a classesenhorial controlar a senzala. As revoltas escravas n a Bahia n a primeira metade do século XI X , em número superior a duas dezenas, foram promovidaspor cativos de origem africana, especificamente haussás e n agôs. 4

M a s , se n a Bahia e outras regiões, ainda nu m período de tráfico aberto,os escravos n ascidos na África parecem ter sido o principal agente de com bustão, os crioulos (n egros nascidos no B rasil) não eram exatamente passiv o s . Além de fugirem sistematicamente e formarem quilombos, eles seassociaram, m ais do que os africanos, a movimentos concebidos por outrossetores sociais, com o os motins antilusos na B ahia, em P ernambuco, Sergipe,Rio de Janeiro, Maranhão, entre 1821 e 1831, ou as revoltas regionais doperíodo regencial na década de 1830. C om o declínio d a população escravaafricana depois d o fim do tráfico, os crioulos responderiam p ela formação dequilombos e a promoção de revoltas, especialmente nos últimos anos daescravidão. Mas, mesmo antes disso, há exemplos de levantes de planteis

3 Stuart Schwartz, "Resistance and Accommodation in Eighteenth-Century Brazil", em HispanicAmerican Historical Review, 57: 1 (1979), pp. 69-81.

4 Sobre a pacificação da população escrava em decorrência de uma maior presença das redesfamiliares, ver recente trabalho de Manolo Florentino e José Roberto Góes, A paz das senzalas(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997).

Ad emais, em se tratando de escravos africanos, deve-se chamar a atenção para que alguns grupos étnicos se mostraram mais aguerridos do queoutros. Que a Bahia tivesse sido o palco de muitas revoltas escravas deve-seao fato de que para lá convergiram nagôs e haussás em grande número,africanos que vinham de experiências guerreiras recentes, entre as quais o

envolvimento em conflitos ligados à expansão do Islã e guerras civis em território iorubá. Já para o Rio de Janeiro seguiram nesse período africanosprincipalmente de origem banto, muitos deles bastante jovens e s em exp eriência com a arte da guerra. O governo m etropolitano instalado no R io reconhecia essa situação e por isso exigiu, em 1814, que o governador dacapitania da B ahia melhor controlasse seus escravos, proibindo que se reunissem para batuques e outros folguedos que lhes d essem ocasião d e conspirar. Naquele ano o marquês de A guiar, ministro de d. João V I, escreveu aoliberal conde dos A rcos:

[...] além de não ter havido [no Rio de Janeiro] até agora desordens, bem sabe V . Exa.

que há huma grande differença entre os Negros A ngolas e Benguellas nesta Capital, eos [negros] dessa Cidade [Salvador], que são muito mais resolutos, intrépidos ecapazes de qualquer empreza, particularmente os de Nação Aussá. 5

N essa ép oca, já havia começad o o ciclo d e revoltas escravas baianas,só encerrado vinte anos depois. E ssas primeiras revoltas foram realmentelevadas a cabo sobretudo pelos "intrépidos" haussás, depois substituídospelos, ou unidos aos, não menos intrépidos nagôs, cuja campanha rebeldeculminou com a revolta dos males em 1835. A mbos os grupos, especialmente o primeiro, contavam com numeroso contingente muçulmano. Tratareiadiante sobre religião enquanto ideologia e linguagem d a revolta escrava.

Além do fator africano, cuja importância aliás declinaria com o fim dotráfico, um ambiente francamente favorável à rebeldia escrava foi-se formando ao longo do século XIX em torno dos movimentos pela independência,das revoltas regionais, da circulação de ideologias liberais e mais tardeabolicionistas.

5 Marquês de Aguiar ao conde dos Arcos, 22-3-1814, Arquivo Público do Estado d a Bahia (APEBa),Ordens regias, vol. 116, doe. 89.

248 J o ã o J o s é R e i s

A onda de tranformações políticas e ideológicas que varreu o mundoatlântico, na chamada era das revoluções, influenciou a rebeldia negra nas

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viados para recuperar a ilha e reintroduzir a escravidão. J á n a Bahia escravocrata, em 1814, os escrav os falavam abertamente nas ruas sobre os s uces

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A méricas, inclusive no B rasil. Os debates em torno do direito dos homens edas nações à liberdade, além de desmascarar a hipocrisia dos brancos, queconciliavam esses princípios com a escravidão, revelaram aos cativos que oshomens livres estavam divididos. A chamada Conspiração dos A lfaiates, em1798 na Bahia, embora tendo à frente homens pardos livres e libertos, principalmente artesãos e soldados, contou com a participação de alguns escravos e incluiu em se u programa, de inspiração francesa, o fim da discriminaçãoracial e da escra vidão.6

A revolução francesa também estimulou a rebeldia negra n o continenteamericano por vias indiretas. A única revolução escrava bem-sucedida noNovo Mundo aconteceu em Saint Domingue, depois Haiti, no início da década de 1790. Naquele momento em que a França se via ela própria dividid a por uma revolução, em sua colônia antilhana senhores mulatos e brancosracharam na luta pelo poder. O s escravos aproveitaram-se da situação e daretórica revolucionárias do dia para agir. A revolução haitiana destruiu umadas mais lucrativas colônias européias e criou um Estado negro nas A méric a s , transformando-se num símbolo de resistência escrava em todo o hem isfério, um lembrete de que er a possível vencer a classe senhorial.7

O "haitianismo" se tornou a expressão q ue definiria a influência daquelemovim ento sobre a ação política de negros e mulatos, escravos e livres nosquatro cantos do continente americano. O Brasil não ficou de fora. Em 1805,apenas um ano após a proclamação da independência haitiana por Jean-Jacques Dessalines, seu retrato decorava medalhões pendurados dos pescoços de milicianos negros no Rio de Janeiro, episódio que ganha maiorsignificado se lembrarmos que Dessaline s era também militar, o comandante-em-ch efe das forças haitianas que derrotaram os exércitos de N apoleão en-

6 Katia M. de Queirós Mattoso, A presença francesa no movimento democrático baiano de 1798(Salvador: Itapoã, 1969); Luís Henrique D. Tavares, História da sedição intentada na Bahia em1798 (São Paulo: Pioneira, 1975); acrescentar István Jancsó, Na Bahia contra o império (SãoPaulo/Salvador: Hucitec/EDUFBA, 1996); e Carlos Guilherme Mota, Atitudes de inovação noBrasil, 1789-1801 (Lisboa: Horizonte, s.d.).

7 O estudo clássico sobre esta revolução é de C. L. R. James, The Black Jacobins (2. ed., NovaYork: Vintage, 1963). Uma interessante interpretação recente, que enfatiza a tradição quilombistados cativos haitianos para o desenlace do movimento, diminuindo a importância dos "ideaisdemocrático-burgueses", é de Carolyn Fick, T he Making of Haiti (Knoxville: The University ofTennessee Press, 1990).

sos nas antilhas francesas. N as conjunturas revolucionárias de 1817 e 1824no Nordeste, o Haiti esteve na ordem do dia. Na revolução pernambucanade 1817, ao lado da corrente anticolonialista liderada pelos proprietáriosrebeldes, insinuaram-se tendên cias mais radicais constituídas por pretos emulatos interessados numa revolução social inspirada na que ocorrera na

colônia francesa. Em 1824, em Laranjeiras, Sergipe, num jantar "ma-ta-caiado" - uma das denominações d os movimentos antilusos -, deram-sevivas ao "Rei do Haiti" e a "São Domingos, o Grande São Domingos".8 N omesm o ano, durante a chamada Confederação do E quador, em P ernambuco,soldados do batalhão de pardos saquearam lojas de portugueses e distribuíram pasquins contendo versos haitianistas:

Qual eu Imito a CristóvãoEsse Imortal HaitianoEia! Imitai ao seu povoOh meu povo soberano!9

Por uma dessas ironias da história, quando foi assim saudado em 1824em Pernambuco, Henri-Christophe, o Cristóvão do verso, que em 18Í1 seproclamara rei Henri I do Haiti, já havia cometido suicídio, logo após te r sidoderrubado, em 1820, por uma revolta de seu próprio povo soberano.10 M aspermanecia "imortal" na poesia popular pernambucana, que assim sugeriaum projeto revolucionário para o Brasil, incluindo até, quem sabe, um m onarca negro.

Talvez mais do que as senzalas e barracos, entretanto, o Haiti penetrou,com o um pesadelo, as casas senhoriais, os palácios governamentais e mesmo os clubs rebeldes brancos. N a conjuntura da descolonização no B rasil,

várias vozes ligadas à ordem advertiram sobre uma reprodução aqui do fenômeno haitiano, caso as divergências entre portugueses e brasileiros se

8 Carlos Guilherme Mota, Nordeste 1817 (São Paulo: Perspectiva, 1972), pp. 117-20; Luiz Mott,Escravidão, homossexualidade e demonologia (São Paulo: ícone, 1988), pp. 11-8.

9 Marcus Joaquim M. de Carvalho, "Hegemony and Rebellion in Pernambuco (Brazil), 1824-1835", teses de doutorado, University of Illinois Urbana-Champaign, 1989, pp. 66-7 e nota 86.

10 Robin Blackburn, The Overthrow of Colonial Slavery, 1776-1848 (Londres: Verso, 1988), p.2 5 7 .

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aprofundassem. E sse temor foi usado junto aos proprietários como moedade negociação pelo comandante das forças que combateram os revolucio

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escravidão colonial. A iniciativa política escrava podia ir longe, revelandoque muitos cativos se fizeram atores ativos no cenário da descolonização.

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nários pernambucanos em 1817. Durante os tumultos da independência naBahia, opinião semelhante tiveram u m cônsul e um almirante, ambos frances e s , os q uais, talvez traumatizados com o que ocorrera em sua colônia, provavelmente exageravam sobre o potencial revolucionário da situação. Masnão estavam sozinhos. A s notícias sobre os conflitos luso-brasileiros chega

das a Portugal através de cartas de sua irmã em Salvador, fez José G arcês,que não era francês, refletir: "Se faltasse a tropa, eram outros São D omin g o s " . B em m ais tarde, em 1867, uma autoridade do M aranhão se lembroudo Haiti em meio ao medo de que os brancos fossem massacrados duranteuma revolta no município de Viana, onde escravos desceram do quilomboSão Benedito para sublevar as senzalas das fazendas locais. Por sua dataavançada, esse episódio mostra que o haitianismo representou um temor delonga duração a sobressaitar a alma do escravism o brasileiro.11

N a conjuntura da descolonização p ortuguesa no Brasil, o próprio discurso anticolonial serviu de argumento à rebelião negra. Lemb remos que apropaganda patriótica insistia na imagem da escravidão para definir retori-

camente os laços que ligavam o Brasil a Portugal: o B rasil seria "escravo" dePortugal, as cortes portuguesas desejavam "escravizar" os brasileiros, a independência n os "libertaria" dos "grilhões" portugueses. E m 1 8 2 2 , por exemp l o , após falar em quebra de algemas e esmagamento d e grilhões, o ou vidorde Itu, São Paulo, concluía: "Oh! Brasileiros, caros compatriotas! Nuncamais sereis escravos, nem vis colonos". Tempos depois, resolvida a independência, ainda persistia na Bahia e alhures expressões como "facção lusaescravizadora" para definir os seguidores de d. Pedro I. 12 Esse tipo de discurso foi comum e m todo o Brasil. Os escravos ouviam a tudo com atençãoe muitos traduziram o falatório dos brancos em causa própria, sobretudo osescravos crioulos, negros nascidos no Brasil, que se identificavam como bra

sileiros e apostavam na possibilidade de se libertarem d a escravidão real, damesm a forma que os patriotas diziam querer libertar o país da metafórica

11 C. G. Mota, Nordeste 1 8 1 7 , cit., p . 1 1 9 ; João J. Reis, "O jogo duro do D ois de Julho", em J. Reise E. Silva, Negociação e conflito (São Paulo: Cia. das Letras, 1989), pp. 90-91, 94; MundinhaAraújo, Insurreição de escravos em Viana, 1867 (São Luís: Sioge, 1994), p. 50.

12 Sobre Itu, Magda Ricci, "Nas fronteiras da Independência", dissertação de mestrado, Cam pinas,Unicamp, 1993, pp. 222-226, 258; Francisco Carinhanha para Joaquim Azevedo, 27-3-1831,APEBa, Juizes de Paz. Caetité, maço 2.284.

Aproveitaram com o puderam a nova conjuntura aberta pela revolução constitucional do Porto, que promoveu a reunião das cortes em Lisboa. Algun sdecidiram agir como verdadeiros cidadãos. Em 1822, um grupo de escravoscrioulos de Cachoeira, no R ecôncavo baiano, centro da produ ção açucareira,peticionou p ela liberdade aos d eputados da Bahia n as cortes, mas aparente

mente estes não encaminharam o documento para discussão.13

Outros escravos já achavam te r conseguido a liberdade das cortes e dorei de Portugal, antes até da própria colônia haver se desvencilhado da metrópole. Aqu i o instrumento não seria o da petição, da cultura escrita dossenhores, m as a tradição oral escrava, manifesta na forma de rumores. Em1 8 2 1 , por exemp lo, correu entre os escravos de Itu o providencial boato deque as cortes (ou o rei de P ortugal, havia dúvida) teriam proclamado o fimd a escravidão, mas os senhores e as autoridades ituanas e vizinhas insistiamem mantê-la. O fenômeno repetiu-se em vários lugares. No Espírito Santo,em maio de 1822, um escravo espalhara o aviso de que os escravos deJacaraípe, Una, Tramerim, Queimado e P edra da Cruz se reun issem para

ouvir do vigário a proclamação da liberdade, "e todos apareceram na ocasião da missa armados de armas de fogo, paus, etc" . N a Bahia, os escravosacompanharam rumores que aparentemente não teriam n ascido nas senzal a s . Segund o o comandante militar de Salvador em 1822, o português InácioLuís M adeira de M elo, agitadores andavam

infundindo nos E scravos as idéas mais Luciferinas para se sublevarem, declarando-lhes, que se achão libertos não só em virtude do systema Constitucional, como porDecretos d'El Rei, que seus senhores têm sonegado; resultando de medida tão malvada [...] acharem-se os Escravos de tal forma seduzidos, que, despresando a obediência,inculcão no seu modo de proceder huma próxima sublevação.

13 Sobre a Bah ia, J. J. Reis, "O jogo d uro", cit., p . 92. Em trabalho recente Iara Li s Carvalho Souza,Pátria coroada (São P aulo: Editora da Unesp, 1999), procurou mas não encontrou a petição doscrioulos de Cachoeira no Diário das Cortes, o que a fez concluir que "a bancada baiana nã o levouavante a petição, não se reconhecendo enquanto representante daqueles homens" (p. 129, nota3 4 ) .

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E acrescentava que a Bahia estava próxima a repetir " o horroroso quad r o , que apresenta a Ilha de São Domingos". 14

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mente massacrados por Luís A lves de L ima e Silva, futuro duque de Caxias,em 1844, na decisiva batalha de Porongos. O s sobreviventes negros foram,

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Em toda parte, os conflitos entre os homen s livres, como foi o caso daépoca da independência, favoreceram a rebeldia escrava. A desunião doshomen s livres, em tese, favoreceu grandemente a rebelião escrava porquerevelava aos cativos a debilidade política dos senhores, afrouxava sua vigilância individual e coletiva, e diminuía sua capacidade de retaliação militar.

Em P ernambuco, os quilombolas instalados nas imediações de R ecife costumavam aumentar suas fileiras e su a ousadia n o ritmo das ondas que agitavamo universo dos hom ens livres. Escreve M arcus Carvalho:

Não é possível entender a existência de negros rebeldes atacando os arredores doRecife sem referência as divisões políticas das elites em 1817,1821-22,1824,1831;ou ainda à C abanada (1832-1835), que obrigou o governo provincial a concentrar todoo seu aparato repressivo no outro lado da província, na fronteira com A lagoas.15

N a Bahia, uma onda de revoltas escravas, iniciada no início do séculoXIX, recrudesceu após a independência paralelamente aos mata-marotos,

as quarteladas, as rebeliões federalistas. C om freqüênciaa

rebelião escravanão passava de um perigo potencial, que o governo tem ia fosse atiçada porinimigos políticos. E m 1831, uma vaga de medo varreu a província de que a"classe escrava" estava em pé de guerra. Nessa ocasião, alguns homenslivres que conspiravam contra a corte foram acusad os de querer levantar "osescravos do país", significando, m uito provavelmente, o s crioulos.16 Rebeldes federalistas, em duas outras ocasiões, 1832 e 1837, quando já quasevencidos , chegaram perto de convocar a escravaria para sua causa em trocade alforria. Em nenhum dos casos os escravos responderam positivamente aesse abolicionismo interesseiro e limitado, embora alguns tenham se bandeadopara a Sabinada em 1838. Já os farroupilhas do Rio Grande do Sul alistaram

escravos dos adversários (e os de simpatizantes, depois de devidamenteindenizados), q ue vieram a formar o batalhão de L anceiros N egros, brutal-

14 Magda Ricci, "Nas fronteiras da Independência", cit., pp. 222-6, 258; APEBa, maço 2.860(Proclamação de Madeira de Mello, 29-3-1822); sobre o Espírito Santo, Vilma Almada, Escravismo

e transição (Rio de Janeiro: Graal, 1984), p. 166.15 Marcus Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo (Recife: Editora Universitária

UFPE, 1998), p. 182.16 Libelo acusatório, f. 50v, em APEBa, Revolução, maço 2.856.

no entanto, contemplados pelo artigo 7 do Convênio de Ponte Verde, quecelebrou a paz, assinado no ano seguinte entre os rebeldes e C axias: "estágarantida pelo governo imperial a liberdade dos escravos que tenham servid o n a s fileiras republicanas ou nelas existiam". O s líderes farroupilhas haviamexigido assim, para recompensar os bons serviços dos escravos-soldados.

Bo ns serviços: este o m esmo princípio que orientava a concessão das cartasde alforria privadas, e que não deve ser confundido com princípios abolicionistas. Descon hecem -se, no entanto, quantos escravos teriam sido realmente beneficiados.17

O s escravos d o M aranhão participaram ativamente do movimento daindependência, que com o n a Bahia lá também foi cruento, e dos movimentosantilusos que se seguiram. Posteriormente, durante a Balaiada (1838-1841),os rebeldes liberais, ou bem-te-vis, e os escravos, estes liderados pelo liberto cearense C osme Ben to das C hagas, constituíram revoltas diferentes queconvergiram apenas na fase  final d o conflito. C omo o s farroupilhas, o s balaiosnão tinham um ideário abolicionista - embora existisse entre seus segmentos

mais hum ildes uma certa identidade racial -, mas C hagas, o líder dos escrav o s , que se intitulava "tutor e imperador da liberdade", escreveu em 1840qu e " a República é para n ã o haver a escravidão". Esse abolicionismo radicallevou m uitos rebeldes bem-te -vis a debandarem para o lado da legalidade,facilitando o papel repressor do mesm o C axias que mais tarde sufocaria osfarrapos e seus combatentes escravos. O próprio Chagas foi condenado àmorte e enforcado em setembro de 1842.18

A guerra externa também podia enfraquecer o controle dos escravos,com freqüência prom ovendo perigosas alianças entre estes e homens livrespobres. Foi o caso do conflito com o P araguai. Os quilombos de M ato Gros-

17 João Reis, Rebelião escrava, c a p . 2 ( S ã o Paulo: Brasiliense, 1986); Paulo César Souza, A Sabinada,c a p . 7 (São Paulo: Brasiliense, 1987); Mário Maestri, O escravo gaúcho (Porto Alegre: Ed. daUniversidade, 1993), pp. 76-82; e Helga I. L. Piccolo, "A questão da escravidão na RevoluçãoFarroupilha", em Anais da V Reunião da SBPH (São Paulo, 1986), pp. 225-30. Ver também,sobre a participação negra nos movimentos de homens livres, Lana Lage Lima, Rebeldia eabolicionismo (Rio de Janeiro: Achiamé, 1981), pp. 71-5.

18 Maria Januária V. Santos, A Balaiada e a insurreição de escravos no Maranhão (São Paulo:Ática, 1983), pp. 96-102; Mathias A ssunção, "Quilombos maranhenses", em J. Reis e F. Gomes(orgs.), Liberdade por um fio (São Paulo: Companhia das Letras, 1996), pp. 433-65.

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s o , província vizinha ao teatro da guerra, engrossaram suas fileiras não apenas com escravos fugidos, mas com d esertores do exército e homens livres

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A conspiração de Campinas foi descoberta e a revolta terminou pornão acontecer, mas esse depoimento demonstra que os escravos acompa

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em fuga do recrutamento. Só depois da guerra as autoridades puderamdeslanchar a repressão contra quilombolas e desertores. Nu m outro extremodo B rasil, o Maranhão, a guerra também repercutiu nos quilombos locais,que teriam experimentado "incremento excessivo, não só de escravos, com ode criminosos e desertores", segundo os vereadores da vila de Turiaçu, es

crevendo em julho de 1867. A o mesm o tempo, autoridades, comerciantes elavradores da região alegavam q ue o recrutamento de guardas nacionais parao P araguai diminuíra a capacidade de comb ate aos quilombos, além de colocar os senhores à mercê de seus escravos. 19

Entre as mudanças políticas do século, foi da maior importância para aagitação escrava a longa trajetória abolicionista, desde as leis que haviamproibido o tráfico, até as que reformaram a escravidão, e por fim as campanhas da última década do regime, o abolicionismo como propriamentemovim ento so cial. O s escravos participaram ativamente, e às vezes surpreendentemente, da desorganização e extinção do escravismo brasileiro. Suasestratégias de liberdade constantemente se chocavam com a visão gradualista

do abolicionismo oficial, porque eles faziam suas próprias leituras, amiúderadicais, de cada conjuntura desfavorável à sobrevivência do sistema. Exemplos não faltam. A lei de 1831 proibindo o tráfico transatlântico de cativos foiinterpretada como emancipadora por escravos da vila de Itapemirim, noEspírito Santo. A mesma lei também entrou na complexa malha de motivações dos escravos que conspiraram contra seus senhores no município ca-feeiro de Campinas, São Paulo, em 1832. Em seu depoimento, o escravocrioulo Francisco

disse que no dom ingo, indo de recolhida para o Sítio encontrando-se na sahida da villa,com Joaquim Ferreiro escravo do capitam Joaquim Teixeira, entrando com elle em

conversa, elle Reo dicera "ora Tio Joaquim [...] os negros já não vem para o Brazil,não seria justo que nos dessem tão bem a liberdade?" ao que lhe respondera o Joaquim, que alguma coisa disso há de acontecer.

19 Luiza R. C. Volpato, Cativos do sertão (São Paulo/Cuiabá: Marco Zero/Universidade Federal deMato Grosso, 1993), pp. 186-97; Mundinha Araújo, Insurreição de escravos, cit., pp. 79, 84-5,135-8, por exemplo.

nhavam, discutiam e agiam estimulados p elo noticiário sobre as coisas quelhes diziam respeito. Não se pod e dizer que fossem p oliticamente ingênuospor interpretarem "erroneamente" o que se discutia no mundo dos brancos,pois o importante é que interpretavam de acordo com seus interesses. N essaleitura, se os africanos haviam deixado de ser capturados e transportados da

África com o escravos, eles cuja presença no Brasil era decisiva para a reprodução do escravismo, nada mais lógico - e mais "justo" - do que imaginar que ess e sistema de trabalho e mod o de vida desaparecessem por aqui.Visto por um outro ângulo, se os negros passavam a ser livres na África,deveriam também sê-lo no B rasil.

Vinte anos depois, de novo no Espírito Santo, agora em São Mateus,os escravos insistiam na m esma tecla. C orreu o boato entre eles de que "anovíssima Lei de Repressão ao Tráfico os há libertado da escravidão queeles, supondo lhes ser ocultada pelos sen hores, procuram obter [a liberdade] por meios violentos e criminosos", escreveu o presidente da província.Tratava-se de u m a reação à lei de 1850, que abolia definitivamente o comér

cio transatlântico de africanos. Vilma Almada interpretou esse e outros episódios posteriores, em particular a Lei do Ventre Livre em 1871, comoresultado de uma leitura libertária feita pelos escravos da retórica e do noticiário abolicionistas. O m esmo aconteceria em C ampos, R io de Janeiro: osescravos se inquietaram porque interpretaram as discussões em torno daquela lei como sinal de abolição definitiva da escravidão. O fenômeno, apropósito, se repetiu em outras áreas escravistas das Américas. Em 1823,os escravos da colônia inglesa d e Demerara (parte da atual Guiana) tam bémtraduziram com o abolicionistas leis metropolitanas que visavam tão-somentereformar a escravidão, e, por acreditarem que os senhores e o govern o co lonial se recusavam a adotá-las, encetaram uma revolta de grande propor

ção em número de participantes.20

No Brasil, a lei de 1871 promoveu o desassossego entre os escravos,embora não em termos de revolta coletiva. T ratava-se do primeiro instru-

Vilma Almada, Escravismo e transição, cit., pp. 167-74; Lana Lage Lima, Rebeldia negra eabolicionismo, cit., p. 9 3 . Depoimento de Francisco, apud Suely R. Reis de Queiroz, Escravidãonegra em São Paulo (Rio de Janeiro: José Olympio, 1977), p. 220; sobre Demerara, EmiliaViotti da Costa, Coroas de glória, lágrimas de sangue (São Paulo: Companhia das Letras, 1998).

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mento legal que estabelecia abertamente certos direitos dos escravo s diantedos senhores, com o por exemplo a posse de pecúlio e a alforria por valores

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va evitar pânico e incentivo adicional à rebeldia. Foram comuns os levantespequenos, envolvendo apenas algumas dezenas de escravos, que assassina

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arbitrados em juízo. Pela primeira vez o Estado se intrometia em profundidade nas relações escravistas, e os escrav os souberam aproveitar a nova situação acionando-o com bastante freqüência em seu favor. São inúmeros osestudos que o s mostram leva ndo seus senhores ao tribunal para garantir esses direitos através do instrumento legal da ação de liberdade. A lei , n a feliz

expressão do historiador Sidney C halhoub, "politizou o cotidiano" das relações entre senhores e escravos.21 Animados co m a nova situação, muitosescravos de origem africana, importados após 1 831, moveriam a ções contraseus senhores por se encontrarem ilegalmente escravizados, já que todosaqueles trazidos para o país de contrabando eram considerados livres.

Embora a resistência legal dos escravo s tivesse o teor de batalhas individuais, o fenômeno não teria se generalizado sem alguma elaboração coletiva , através d e canais informais, da circulação de boca em boca d e informaçõessobre novas possibilidades de ruptura com o domínio senhorial. Nesse esforço contaram os cativos com a solidariedade de homens livres, entre elesdedicados advogados abolicionistas como o negro baiano Luís G ama, pro

motor de dezenas de ações de liberdade em São Paulo, cujo andamento eresultados ele discutia na imprensa, castigando pub licamente, quando era ocaso, juizes que emperravam suas demandas ou as julgavam desfavoravel-mente.22

M as os escravos nã o se detiveram na luta legal após 1871 . Durante afase final d a escravidão aconteceram levantes e a formação de quilombos emvárias partes do país, embora fossem na sua maioria movimentos localizad o s , em geral restritos a uma ou duas propriedades e, nos meses anterioresao 13 de maio, fugas em massa das fazendas de café, com ou sem o concurso de agentes abolicionistas. Há notícias de muitas conspirações e revoltasem São Paulo, pouco conhecidas na época porque, segundo a historiadora

M aria Helena M achado, havia uma espécie de censura à imprensa que visa-

2 ' Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: um a história das últimas décadas da escravidão na Corte(São Paulo: Companhia das Letras, 1990).

22 Elciene Azevedo, Orfeu de Carapinha (Campinas: Editora da Unicamp/Cecult, 1999). Sobreações de liberdade, ver, além do livro de Chalhoub acima, Keila Grinberg, Liberata, a lei daambigüidade (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994); e Eduardo Spiller Pena, "Liberdades emarbítrio", em Padê (1989), pp. 45-57.

vam feitores e senhores, e log o depois se entregavam pacificamente ao delegado local. M as houve também revoltas q u e , embora logo sufocadas, tiveramtanto o objetivo de punir essa gente com o o d e reivindicar a liberdade. Em1 8 8 2 , os escravos da fazenda Castelo, em Campinas, se rebelaram aos gritos de "M ata branco" e "V iva a liberdade" - e realmente mataram toda a

família de um administrador da fazenda, inclusive crianças, sem no entantoalcançarem a desejada liberdade.23

É importante observar, no entanto, que o tema d a abolição nas revoltasescravas não teve de esperar o momento de maior agitação abolicionistapara emergir. S e agora nem todo levante visava a liberdade definitiva, emépocas anteriores nem to do levante v isava apenas punir feitores, reformaraspectos da escravidão, libertar somente os poucos escravos nele envolvidos ou fugir para formar quilombos. Em 1867, por exemplo, durante umarevolta em Viana, no M aranhão, os quilombolas do mocambo de São B enedito ocuparam propriedades d a região co m um programa abolicionista. N umdos lances d o levante eles obrigaram o administrador de uma das fazendas

conflagradas a escrever uma carta onde declaravam: "nos achamos em ca mpo a tratar da Liberdade dos Cativos, pois a muito que esperamos por ella[...]". O s rebeldes de V iana já haviam perdido a paciência.24

Antes disso, vários movimentos escravos dos anos vinte e trinta, nopróprio Maranhão e outras regiões do país, incluíram a liberdade em seusprogramas. A diferença é que, nos últimos a nos da escravidão, a populaçãolivre, anteriormente dividida em torno de outras questões - os conflitos luso-brasileiro, regionalistas, federalistas, republicanos - , agora estava divididaem torno da questão específica da escravidão. Ou seja, o discurso abolicionistaganhava terreno entre homens e mulheres livres. Com isso, cresceram asalianças entre os escravos e essa gente, inclusive membros da elite branca,

alianças que antes eram ocasionais ou envo lvendo interesses individuais res-

23 Maria Helena Machado, O plano e o pânico (Rio de Janeiro/São Paulo, EDUFRJ/Edusp, 1994),p p . 73, 92-4. Sobre resistência escrava e seu impacto sobre as populações livres, inclusive omovimento abolicionista, ver, além deste livro, Ronaldo M . dos Santos, Resistência e superaçãodo escravismo na província de São Paulo (São Paulo: IPE/USP, 1980), especialmente cap. II eCélia Maria M. de A zevedo, Onda negra, medo branco (São Paulo: Paz e Terra, 1987).

24 Apud Mundinha Araújo, Insurreição de escravos, cit., pp. 33-4.

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tritos, como foram as relações de quilombolas com taverneiros e lavradores,aos quais forneciam produtos p or eles cultivados ou roubados, além de mão-

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Para os escravos, o ataque à escravidão nem sempre acompanhava ocalendário ou usava a linguagem da grande política secular. Com freqüência

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cionista, o cam po político da atuação escrava se ampliaria, potencializandoo movim ento escravo, desenvolvend o novas estratégias, embora nã o imprimindo um sentido absolutamente novo.

Isso nos leva a uma discussão importante sobre a resistência escrava

no Brasil, como de resto nas Américas. Como vimos antes, os rebeldes escravos freqüentemente se apropriaram da ideologia liberal, tida como propriedade do hom em livre, e a transformaram em instrumento da liberdadeescrava. O historiador norte-americano Eu gene G enovese chega a afirmarque, na era das revoluções b urguesas e das independências am ericanas, teriam praticamente desaparecido os africanismos ideo lógicos e culturais queno período anterior, ele acredita, haviam orientado a rebeldia negra, com o,por exemplo, a formação dos quilombos. Essa tese já foi refutada muitasvezes por historiadores de várias regiões e rebeliões nas A méricas, os qu aisconcluíram que nem os quilomb os representaram um retorno a uma Áfricaperdida nem as id eologias africanas cederiam inteiramente lugar ao no vo

ideário democrático burguês em expansão.25

Se no Brasil este último despertou os rebeldes de olho e ouvido na retórica do liberalismo, ou inspirounegros (sobretudo crioulos) e mulatos sob a forma indireta e africanizada do"haitianismo", o m esmo não se p ode dizer da corrente central das rebeliõesescravas baianas e outros movimentos levados a cabo pelos africanos. NaBahia, m estres muçulmanos formaram a liderança do movimen to da revoltados m ales em 1835 e, durante o levante, seus seguidores ocuparam as ruasusando vestimentas islâmicas e amuletos contendo passagens do A lcorão - enão trechos da Declaração dos Direitos do Homem -, sob cuja proteçãoacreditavam estar de corpo fechado contra as balas e espadas dos soldad os.A própria revolta foi marcada para acontecer no final d o mê s sagrado do

Ramadã daquele ano, a festa do Lailat al-Qadr, a Noite da Glória, que coincidia com a popular festa católica de Nos sa S enhora da Guia. Ou seja, o Islãafricano também circulava n o mundo atlântico como uma ideologia de transformação social.26

25 Eugene Genovese, From Rebellion to Revolution (Nova York: Vintage, 1979). Entre seus muitoscríticos, Michael Craton, Testing the Chains (Ithaca: Cornell University Press, 1982) e CarolynFick, The Making of H aiti, cit.

26 João Reis, Rebelião escrava, cit., pp. 136-55.

a melhor hora de atacar estava marcada no calendário da miúda política docotidiano ou da m isteriosa política do u niverso espiritual. Segundo esse registro do tempo, o senhor baixava a guarda nos períodos de festas, domingos e dias santos, o mesmo momento aproveitado pelos escravos para celebrarseus deuses e deles adquirir força espiritual para mudar o mundo. Grande

parte da política escrava se celebrava num campo de poder localizado emalgum lugar entre o cotidiano e outro mundo. Por isso, muitas conspirações erevoltas escravas ocorreram exatamente nos períodos festivos, não só noBrasil, mas mundo afora. O presidente da Bahia explicou em 1831 que emsua província eram "freqüentes as sublevações de escravos, os quais principalmente no tempo do Natal fazem algumas desordens em razão de estaremmais folgados do serviço pelos dias santos".27 N o contexto do folguedo escravo se verificavam experiências culturais bastante distantes de qualquerideário "liberal". Ali, identidade e solidariedade coletivas eram potencializadasatravés de símbolos e rituais que reafirmavam o s valores espirituais e étnicosdo grupo. A li se produ zia um clima extraordinário de liberdade e de inversão

ritual do mundo que os escravos rebeldes procuraram perpetuar na vidacotidiana. As revoltas eram planejadas para os dias festivos, especialmenteas noites festivas, não s ó porque seus líderes contavam com o relaxamentodo controle senhorial, mas porque contavam com a disposição de escravospossuídos por um espírito de liberdade amiúde cultivado no cam po do d ivin o . Enfim, os escravos não costumavam romper com o universo senhorialsem a ajuda de seus deuses.28

M uitos dos líderes rebeldes africanos foram também sacerdotes de religiões africanas. N o interior do quilombo do Urubu baiano, esmagado em1826 nas imediações de Salvador, funcionava uma casa de candomblé.M anuel C ongo, líder de uma revolta em Vassouras, em 1 838, era chamado

"pai" Manuel, talvez com alguma conotação religiosa. A conspiração deCam pinas, em 1832, é um dos levantes escravos de que se tem conhecimento em cuja devassa m ais se mencionam feitiços. Perguntado sobre o assunto,o escravo Felizardo disse que as "meizinhas era para amansar aos brancos

27 APEBa, Correspondência do Presidente, vol. 679, f. 140.28 Em meu artigo "Quilombos e revoltas escravas no Brasil", em Revista U SP, 28 (1995-96), pp.

3 1 - 2 , listo diversos casos de revoltas acontecidas ou planejadas para acontecer em dias festivos.

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para as armas dos mesmos não ofenderem a elles pretos e se levantaremafoitamente com os mesm os brancos, mata-los, e ficarem elles pretos todos

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Santos católicos estiveram envolvidos em outras lutas escravas. Constaque Cosme Chagas era devoto de Nossa Senhora do Rosário, santa

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forros". As "meizinhas" eram poções em geral feitas de raízes e vendidaspelos escravos congos da região. Um dos cabeças dessa conspiração, encarregado de distribuir as p oções protetoras, era o escravo de nação reboloDiogo, ou "Pai Diogo", provavelmente significando, como no caso de Manuel Congo, o que depois veio a ser pai-de-santo. Até Cosme Bento das

Ch agas, comandante dos escravos da B alaiada, era infamado de feiticeiro,mas consta q u e buscou sacralizar sua liderança com elem entos d o catolicismo popular. Ele fora visto "conduzido em uma cadeira nos braços dos negros dando vivas à liberdade da escravatura [...] em cuja procissão conduziamuma porção de imagen s e paramentos da Igreja". Metido numa revolta liberal, como fora a Balaiada, Cosme e seus liderados faziam uma viagem cultural própria, que nada tinha do racionalism o liberal.29

C omo sugere o caso de C osme, o papel da religião na revolta escravanão se limitou apenas a expressões de maior densidade africana. Os escravoscristianizados criaram n o N o v o Mundo um a forma peculiar de catolicismo queàs vezes o s ajudou na revolta. Em 1836 escravos baianos se juntaram à plebelivre católica n a destruição de um cemitério construído para fazer valer a proibição dos enterros nas igrejas. Libertos e escravos associados a irmandadesnegras integraram ess e movimen to em defesa d o direito de ocuparem sepulturas em espaço sagrado, medida essencial para q ue lograssem a boa morte qu eos levaria à liberdade no outro mundo. Outros escravos tocados pelo catolicismo preferiram não esperar a liberdade encontrada na morte. Em 1849, osrebeldes de Queimado, no E spírito Santo, foram convencidos por seu líder, oescravo E lisiário, d e q u e u m missionário capuchinho iria persuadir seus senhores a alforriá-los no dia de São José. Os escravos vestiram suas melhoresroupas e se dirigiram à igreja para ouvir do frade a boa nova , durante a missafestiva. E ra tudo engano. As circunstâncias não sã o muito claras, mas sugeremque só escravo s católicos e d evotos daquele santo, cuja igreja ajudaram pen o

samente a construir, poderiam atribuir tal poder ao padre.30

29 Sobre a revolta de Manuel Congo, João Luiz Pinaud et alii, Insurreição negra e justiça (Rio deJaneiro: Expressão e Cultura/OAB, 1 9 8 7 ) e especialmente Flávio Gomes, Histórias de quilombolas,c a p . 2 (Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995). Sobre Campinas, Suely R. Reis de Queiroz,Escravidão negra, cit., pp. 216, 219. Sobre Bento das Chagas, ver Maria Januária V. Santos,A Balaiada, cit., pp. 88, 96-102, 111, 118-9, 132.

30 Afonso Cláudio, Insurreição do Queimado (Vitória: Editora da Fundação Ceciliano Abel deAlmeida, 1979), especialmente capítulos II e III.

popularíssima entre os negros brasileiros, para cuja irmandade o libertocearense recrutava seus combatentes. Ele m esmo escreveu , num portuguêstortuoso: "Toudos que quiserem dotarem a Lei Consedo a irmandade doRosário onde tenho o meu isercio [exército]". Adiante chamava seu movimento de "partido sagrado dessa Irmandade".31 Em Vassouras, em 1847,

escravos devotos de Santo Antônio teriam se envolvido numa conspiraçãocom data marcada para o dia de um outro santo, São João. Robert Slenessuspeita da cumplicidade de Santo Antônio em uma vasta conspiração, noano seguinte, da qual participariam escravos de origem banto espalhadospor vários mun ícipios do Vale do Paraíba e sul de M inas Gerais.32

Santo A ntônio reapareceria em São Paulo na última década da escravidão, quando os africanos, bantos e outros, já estavam reduzidos a minoria.Sua presença aqui sugere que ideologias religiosas, e até messiânicas, podiam servir aos objetivos abolicionistas dos escravos melhor às vezes do queideologias seculares. Foi o que aconteceu em 1882 na fazenda Castelo, emCam pinas, no episódio antes referido brevemente. Sufocada a rebelião des

cobriu-se, tal como cinqüenta anos antes no mesm o município, uma comp lexa teia conspiratória envolvendo líderes que distribuíam "bebida preparadacom raízes" para fechar o corpo. O s líderes, segundo o d epoimento de umescravo, "entretinhão continuadamente os escravos da fazenda em sessõesde feitiçaria, nas quais abertamente pregavão a desobediência aos senhores,o roubo e o assassinato de feitores e proprietários agrícolas". A imagem deSanto A ntônio fazia parte do s rituais de curandeirismo d e u m t a l João GaldinoCam argo, não diretamente vinculado ao movimen to, mas popular entre osescravos da região. Esses rebeldes buscaram a liberdade através de umalinguagem r eligiosa sincrética, em avançado estado de crioulização, que combinava elementos do registro religioso africano, especialmente banto, àque

les do catolicismo popular e mesmo do espiritismo. A lgo muito próximo doque se entende hoje com o a umbanda paulista. Tínhamos lá uma umbandaabolicionista. 33

31 Maria Januária V. Santos, A Balaiada, cit., p. 111.32 Robert Slenes, "'Malungu' Ngoma Vem", em Revista U S P , São Paulo, 12 (1991-92), pp. 64 e ss.33 Maria Helena Machado, O plano e o pânico, cap. 3, cit.

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O que discutimos até aqui se baseia numa historiografia d a escravidãorelativamente recente, que tem demonstrado ser possível entender os escra

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Bibliografia selecionada

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vos co mo sujeitos históricos ativos. Sujeitos políticos e por isso históricos,no sentido de que a história não passou por eles incólume, de que foramcapazes de d esenvolver uma visão crítica d a sociedade em q u e viviam e umavisão de futuro redimido. Ao contrário do que um dia escreveu FernandoHenrique Cardoso, sua "consciência d e revolta" não se esgotou "na fabulação

e nas crenças religiosas".34 Estas, como tivemos oportunidade de demonstrar, foram muitas vezes usadas como instrumentos d a revolta social.

O s escravos, obviamente, dispunham de poucos recursos políticos, masnão desconheciam o que se passava no mundo dos poderosos. Aproveitaram-se das divisões entre estes, selecionaram temas que lhes interessavamdo ideário liberal e anticolonial, traduziram e emprestaram significa dos pr óprios à s reformas operadas no escravismo brasileiro ao longo do século X D C .

Alguns de seus líderes tiveram posturas abolicionistas muito antes de oabolicionismo ser adotado por largos setores livres da sociedade, e quandoestes o fizeram o movimento escravo cresceu, não permitindo que a aboliçãose transformasse em um negó cio apenas de brancos.

N o B rasil da segunda metade do século X IX , os escravos identificaramrapidamente as brechas abertas pela legislação emancipacionista e freqüentemente levaram seus senhores aos tribunais em defesa de direitos garantidos em lei. Fizeram política sim, mas co m um a linguagem própria, ouco m a linguagem do branco filtrada por seus interesses, ou ainda combinando elemen tos da cultura escrava com o discurso da elite liberal. Fizeram dareligião africana ou do catolicismo popular instrumentos de interpretação etransformação do m undo, mas não deixaram de assimilar com o s m esmosobjetivos muitos aspectos de ideologias seculares disponíveis nos diversosambientes sociais em q u e circulavam.

Não fosse a ação dos escravos rebeldes, a escravidão teria sido um

horror maior do que foi, pois eles marcaram limites além dos quais seusopressores não seriam obedecidos. Embora fossem derrotados tantas vez e s , os escravos se constituíram em força decisiva para a derrocada final doregime que os oprimia. Tivessem ele s se adequado aos desígnios senhoriais,o escravismo brasileiro talvez tivesse adentrado o século X X .

34 Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão (São Paulo: Difel, 1962), pp. 242-3.

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Olhares estrangeiros sobre

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J-Jrni 1808 abrem-se os portos da colônia portuguesa na América doSul e, conseqüentemente, ocorre a derrocada do antigo sistema colonial.Superado o exclusivismo português, inúmeros estrangeiros podem finalmente visitar a desconhecida terra, tão promissora em riquezas n aturais. SérgioBuarque de Holanda refere-se a um "novo descobrimento do Brasil"1 em -preitado por comerciantes, artistas, imigrantes, naturalistas, diplomatas, mercenários, educadores vindos de diferentes regiões do Velho Mundo e dosEstados Unidos. Tra ta-se , pois , de um dos aspectos do processo de"internacionalização" pelo qual o Brasil estava passando, chegando a em

prestar, aos principais centros da ex-colônia, especialmente os portuários,um "caráter cosmopo lita".2 En tre os estrangeiros, a presença dos ingleses éa mais expressiva, em decorrência dos privilégios comerciais que desfrutavam no B rasil , desde o Tratado de 1810. Nã o é difícil compreen der que elesexerceram significativa influência tanto sobre a econom ia quanto sobre o cam po das idéias, estando, nesse mom ento, entre os primeiros a lançar publicações sobre o Brasil no Velho Mun do. 3 Apesar do predomínio inglês, que se

1 Sérgio Buarque de Holanda (org.), "A herança colonial: sua desagregação", em História geral dacivilização brasileira (4. ed. São Paulo: Difel, 1976), vol. 1, tomo II, p.13.

2 Carlos Guilherme Mota (org.), "Eu ropeus no Brasil à época da independência", em 1822: dimen

sões (São Paulo: Perspectiva, 1972), p. 60.3 Pelo segundo artigo do Tratado de 1810, os ingleses gozavam o d ireito de negociar, viajar, residire estabelecer-se nas cidades, vilas, portos e lugares do país. Virgílio Noya Pinto, "Balanço dastransformações econômicas no século XIX", em Carlos Guilherme Mota (org.), Brasil em perspectiva (6. ed. São Paulo, Difel, 1975), p. 133. Sobre a predominância inglesa relacionada àliteratura de viagem e à história sobre o Brasil, ver Ilka Boaventura Leite, Negros e viajantesestrangeiros em Minas Gerais. Século XIX, tese de doutorado apresentada ao D epartamento deCiências Sociais da FFLCH-USP, São Paulo, mimeo., 1986, pp. 41-4; C. G. Mota (org.), "Europeus no Brasil à época da independência", em 1822: dimensões, cit.; e também Carlos Oberacker,"Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros", em Sérgio B uarque de Holanda (org.), Históriageral da civilização brasileira, cit., vol. 1, tomo I I, cap. V, p. 120.

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estende ao longo do século, outras nacionalidades voltaram seus interessesao país e deixaram igualmente importantes registros de suas viagens ou esta

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mercenários, todos estudavam, com maior ou menor afinco, a fauna e a flora,os recursos naturais; observavam a vida social, tanto rural como urbana;

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e m aterial iconográfico, contribuindo para a produção de imagens sobre opaís e para a sua inserção no con certo das nações européias.4

De um mo do geral, as viagens dos estrangeiros e a sua produção intelectual devem ser compreendidas no contexto da expansão capitalista e

neocolonialista do século XIX. Nesse período, observa-se a existência dedois grupos distintos representados por momen tos político-expansionistasdiferentes: Inglaterra, França e, em menor escala, R ússia e os EU A estariaminteressados na "exploração imediata", com notórios interesses comerciaismanifestados po r uma burguesia em franco fortalecimento. Já a Alemanha, aÁustria, a Suécia e a Itália - que estavam para se firmar como naçõesunificadas - ainda não estariam participando osten sivam ente da corridaexpansionista, ou seja, seu lugar no processo de internacionalização d o Brasil era mais periférico, em decorrência de seu próprio status no continenteeuropeu. Essa diferença reflete o perfil dos estrangeiros errantes no Brasil.Entre os alemães, por exemp lo, não se tem n otícia de tantos comerciantes,

como ocorria entre os ingleses,5

o que não excluía, obviamente, o interessede explorar o país, o qual se manifestou, sobretudo até meados do século,nas grandes expedições científicas. A pesquisa científica e as "descobertas"de novas esp écies e m atérias-primas não serviam meramente como contribuição para a montagem de museus, a instalação de jardins botânicos e aampliação de sociedades e academias científicas - ainda incipientes, se comparados com L ondres e Paris - mas também implicavam um significativoretorno econôm ico e prestígio político.

Em suma, nos escritos desses forasteiros estão sendo avaliadas aspotencialidades econô micas, sociais e naturais do país. Em jogo estão a conquista, a ampliação e a manutenção de novos mercados e a coleta de amos

tras da natureza. Daí uma das razões da variedade temática que caracterizaa literatura de viagem. De comerciantes, aventureiros, diplomatas, artistas a

4 Lembrando aqui Pedro Moacyr Campos, que analisa as "imagens" que nas primeiras décadas doséculo XIX a literatura européia criou sobre o Brasil. Campos investiga tanto a literatura deviagem, a fíccional - de autores que conheciam ou não o país - como a historiografia; cf. P edroMoacyr Campos, "Imagens do Brasil no Velho Mundo", em Sérgio Buarque de Holanda (org.), op .cit., vol. 1, tomo II, cap. II, pp. 40-63.

5 Ilka Boaventura Leite, op. cit., pp. 84-6.

investigavam as relações de trabalho, de produção, a economia e as qu estões escravistas e indígenas. E, dependendo dos objetivos da viagem, a ênfase no s assuntos é d iferente. É evidente que o s naturalistas, particularmente,aprofundaram os temas da história natural: botânica, zoo logia, geografia, m i-neralogia, paleontologia, astronomia, meteorologia.6

A literatura de viagem sobre o Brasil no século XIX é muito extensa.Salvo eventualmente o M éxico, nenhum país exerceu tanta atração sobre oseuropeus e norte-americanos com o o B rasil. Esse grande afluxo forasteirotalvez se explique po r razões muito práticas: em relação ao restante da América Latina, viajar no B rasil era mais seguro devido à relativa estabilidadepolítica e à presença de muitos estrangeiros; igualmente er a possível fazer-seuma longa viagem, passando po r regiões m uito diversas, sem o transtorno decruzar fronteiras. A melhora dos m eios de transporte e de comun icação e adifusão de notícias acerca das riquezas e das possibilidades econômicas dopaís também m otivaram a vinda de muitos estrangeiros, além do apoio quemuitos naturalistas e exploradores receberam de d. Pedro II; por sua vez,

razões menos práticas foram m otivo de interesse, como o estudo da naturezae a multiplicidade étnica que carateriza a nossa sociedade,7 servindo de rico"laboratório" para os estudos sobre as diferentes "raças" e "culturas".

Tomando por base alguns desses dep oimentos de estrangeiros, pretendemos, pois, perscrutar as imagens criadas sobre o Brasil, focalizando aquestão em torno dos dois aspectos que o particularizam no contexto daAm érica e da E uropa: primeiramente, o fato de ter sido a única monarquia,desconsiderando-se o trágico episódio no M éxico, para mencionar o maisimportante, num continente formado por numerosas repúblicas independen-

6 A respeito das tipologias de viajantes e características do gênero literatura de viagem, ver(capítulos introdutórios) Elisabeth Mendes, Os viajantes no Brasil, 1808-1822, dissertação demestrado apresentada ao Departamento de História da FFLCH-USP, São Paulo, mimeo., 1981;Ilka Boaventura Leite, op . cit.-, Míriam Moreira Leite (org.), A condição feminina no Rio deJaneiro, século XIX (São Paulo: Hucitec/Pró-memória/Edusp, 1981) (Estudos Históricos); KarenMacknow Lisboa, A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem peloBrasil, 1817-1820 (São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1997); Flora Sussekind, O Brasil não é longedaqui (São Paulo: Companhia das Letras, 1991).

7 Alicia Tjarks, "Brazil: Travei and Description, 1800-1899. A Selected Bibliography", em Revista de Historia de América, México, n. 83 , jan.-jun. 1977, pp. 209-10.

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t e s , e, em segundo lugar, de ter mantido por mais tempo o escra vismo, numperíodo em que predominava o trabalho livre. Para tanto, nas páginas que se

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o próprio fato de testemunharem as mudanças políticas, econômicas e sociais decorrentes da transferência da corte portuguesa, o fim do pacto colo

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seguem, veremos primeiramente como os estrangeiros registram o momentodo "nascimento da nação" brasileira; em seguida, recuperaremos algumasfacetas da imagem de d. Pedro II; por fim, examinaremos alguns aspectosdos complexos e controversos temas da escravidão, da miscigenação e doprojeto civilizador.

Diante do enorme universo de escritores viajantes e da abrangência doperíodo aqui tratado, fomos obrigados a selecionar alguns autores, considerando no mínimo um relato de viagem por década. Vale ainda ressalvar queestamos lidando com "imagens" que os autores criaram a respeito do B rasil,sem a preocupação de conferir a sua veracidade. E sse esforço ultrapassariaos limites propostos a este trabalho.

O "nasc imento da nação"

O império do Novo Mundo entra no concerto dos Estados europeus - um mamuteressuscitado, cuja voz não carece ser medida em léguas quadradas. D . Pedro desposaa princesa da casa de Habsburgo, Leopoldina da Áustria: dois mundos heterogêneoscelebram bodas - fantasia e diuturna realidade, Eldorado e A lemanha.

Carl Seidler, Dez anos no Brasil, 1825-1835

Nas primeiras três décadas do século XIX, nota-se que os autoresviajantes preocupavam-se com questões em torno da formação da nação,embora as teorias a esse respeito ainda fossem incipientes. 8 Provavelmente

8

Vale lembrar q u e , no início do século XIX , não havia ainda uma teoria sobre o que seria a naçãoe os Estados-nações. O conceito não é paralelo à própria formação dos Estados-nações naEuropa, e sim posterior, conforme Hobsbawm demonstra. Nesse período, há somente um pequeno número de Estados-nações. E indagava-se quais das numerosas populações européiasclassificáveis como uma "nacionalidade" poderiam vir a ser um Estado e quais dos numerososEstados estariam dotados de um caráter de "nação". A "escola histórica" dos economistasalemães, na década de 1820, conceitua uma idéia "liberal" de nação: a nação teria que ser detamanho suficiente para formar uma unidade viável de desenvolvimento: "um território extensoe uma grande p opulação, dotados de múltiplos recursos [...] são exigências essenciais da nacionalidade", e como modelo serviam a Inglaterra e a França. Esse "princípio da nacionalidade" eraaceito por grande parte dos pensadores sérios a respeito do assunto. Mas, na prática, ele servia

nial e do exclusivismo português serviu de ensejo para que dispensassemmais atenção ao assunto.

A relação que se estab elece entre a chegada da família real, a montagem do Estado e a fundação da nação evidencia-se em alguns relatos: ofrancês Alcide Orbigny comenta em sua obra que a formação do Estado se

deu com a mudança da família real, vindo a ser um império mais poderosodo que o reino europeu.9 Para os bávaros Spix e Martius, a "selvageriaamericana", ao menos na capital, fora removida pela "influência da civilização e cultura da velha e educada Europa".10 E ponderam que a presença dacorte real no Brasil, a abertura dos portos e o comércio com nações deoutras partes do mundo exerceram incalculável influência, favorecendo osurgimento de um sentimento de patriotismo, algo ainda inédito.11

Já para o comerciante inglês Lu ccock, a abertura dos portos é considerada o primeiro grande esforço para realizar a obra de unificação do terri-

apenas para países que tivessem um razoável território ou que estivessem em condições deexpandir sua área, mantendo certa unidade nesse processo. De 1830 a 1880, Hobsbawm apura aexistência de três critérios que permitiam a um povo ser classificado como nação, desde quetivesse suficiente dimensão territorial: primeiramente era necessária a associação histórica entreo povo e o Estado ou um Estado de passado recente e razoavelmente durável; em segundo lugar,a existência de uma elite cultural longamente estabelecida, "que possuísse um vernáculo adm inistrativo e literário escrito". E, em terceiro lugar, a provada capacidade para a conquista, o queajudava na conscientização do povo de sua existência coletiva, bem como servia, a partir demeados do século, como prova darwiniana do sucesso evolucionista como espécies sociais. VerEric J. Hobsbawm, Nações e nacionalismo, desde 1780, trad. Maria Célia Paoli, Anna MariaQuirino (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990), pp. 36-50.

9 Alcide Orbigny, Viagem pitoresca através do Brasil, trad. David Jardim (Belo Horizonte/SãoPaulo: Itatiaia/Edusp, 1976), p. 185 (grifos meus).

10 Considerando o contexto da expansão do capitalismo, é importante lembrar q u e , como herdeiros

da Ilustração, a visão de mundo desses viajantes se apoia nos conceitos complementares decivilização e barbárie, cultura e selvageria, perfectibilidade e degeneração. A despeito de suasvariantes (o conceito franco-inglês de civilização e o conceito alemão de cultura), a questãocentral é a imposição eurocêntrica de valores e crenças preconcebidos para se enxergar umasociedade historicamente diferente, bem como justificar, acreditando na superioridade do europeu, a expansão e domínio político, econômico e cultural. Para mais detalhes acerca dessadistinção, ver Norbert Elias, O processo civilizador, trad. Ruy Jungmann (Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1990).

11 J. B. von Spix & C. F . P . von Martius, Viagem pelo Brasil, trad. Lúcia Furquim Lanmeyer, r e v . deRamiz Galvão, B asílio de Magalhães e Ernst W inkler (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp,1981), vol. I, pp. 47-8, 53 (grifos meus).

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tório, mas não evocou nenhum sentimento especial. Ao seu ver, o momentodecisivo para a. formação de um caráter e de sentimentos nacionais foi a

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que o idioma inglês havia se propagado com maior intensidade graças aoaumento do comércio. A s influências dessa preponderância sobre as institui

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elevação do B rasil a reino unido. O "povo [...] pareceu sentir-se guindado àcategoria mais elevada na escala dos seres humanos", convicto de que oBrasil, "no futuro, ainda seria considerado co mo uma das nações do mund o , deixando de ser sacrificado aos interesses de outra nação". Fruto dessastransformações foram o "sentimento de independência, uma consciência

própria de sua importância e a resolução de manter sua nova dignidade".12

Para compreender a extensão e importância desse "sentimento nacional", comenta Luccock, era necessário lembrar de que anteriormente as províncias eram quase "completamente desligadas umas das outras" e que talvezo único traço que elas tinham em com um e r a a "semelhança da língua"; o fatode receberem seus governadores da mesma corte e que se orientavam comercialmente para a mesma metrópole; e que entre as províncias havia m esmo interesses diferentes e rivalidades. Quando a corte chegou, diz ele, aameaça de desintegração da colônia fora evitada pela grande "habilidade dogoverno", apoiado pela Inglaterra. Assim, a unidade do território seria mantidae o poder centralizado na capital do nov o reino.13

Se para Luccock, na perspectiva de súdito britânico, a atuação dosingleses é entendida como uma ajuda na formação da unidade territorial e daformação da nação, outros se queixam da preponderância inglesa, que semanifestava abertamente. Os interesses políticos e econômico s ingleses quemotivaram a vinda da família real são notados por vários estrangeiros e,dependendo de sua nacionalidade e posição política, criticados. 14

O pintor alemão Rugendas notou que as classes abastadas tinham aobstinada mania de querer imitar os costumes ingleses. Percebeu também

12 John Luccock, Notas sobre o Rio d e Janeiro e partes meridionais do Brasil, trad. Milton da Silva

Rodrigues (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975), p. 376 (grifos meus).l3Ibidem.14 A título de exemplo, ver Maximilian W ied Neuwied, Viagem ao Brasil (1820-21), trad. Edgar

Sussekind de Mendonça e Flavio Poppe de Figueiredo (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp,1989), pp. 23-5. Poderia ser citada uma lista interminável de autores que fazem semelhantesobservações. Ver, por exemplo: T. von Leithold & L . von Rango, O Rio de Janeiro visto por doisprussianos em 1 8 1 9 , trad. Joaquim de Sousa Leão Filho (São Paulo: Cia. Ed . Nacional, 1966), p.1 4 1 ; P. H. Schumacher, Beschreibung meiner Reise von Hamburg nach Brasilien im Juni 1824nebst Nachrichten über Brasilien bis zum Sommer 1825 und über die Auswanderer dahin(Braunschweig: Friedrich Vieweg, 1826), p . 6 7 ; Paul Harro Harring, Dolores, ei n Charaktergemaldeaus Süd-Amerika (Basiléia: Chr. Krüsi, 1859), vol. II, livro 3, cap. 7, pp. 60-61.

çõe s civis e a "marcha da civilização" ele prefere não analisar. C ivilização,aliás, que progrediu em conseqüência das "inúmeras relações comerciaiscom as nações européias".15 Rugendas também acha que o marco inicial dahistória do B rasil e do R io de Janeiro, em particular, é 1808. D esde então,considera que não houve grandes "acontecimentos, vitórias ou derrotas sangrentas". Ho uve, sim, relevantes m udanças no "estado intelectual e materialda antiga colônia". E con sidera que os acontecimentos causadores da separação do B rasil de Portugal "influíram m enos na situação interna" do país doque na "política geral". A emancipação, em que, segu ndo o autor, Portugal,na verdade, teria se desmembrado do Brasil, e não o Brasil de Portugal, évista não como uma modificação da situação do Brasil, e sim como a "conservação e a legalização de uma ordem de coisas" que existia havia muitosanos. A inversão política, que ocorria naquele tempo, foi sintetizada com aseguinte observação: "Pode-se dizer com muita razão, que Portugal sedesmembrou do Brasil do que o B rasil de Portugal".16

Já para John Arm itage, um inglês extremamente arguto, não fora a vinda da fam ília real e abertura dos portos (Orbigny, Spix e M artius, Rugendas)ou a elevação a reino unido (Luccock) que desperteram um "espírito quenão havia ainda aparecido anteriormente", mas sim os desdobramentos daRevolução do Porto, a convocação das cortes e o juramento da constituiç ã o . Finalmente, a independência assume relevância na história universal: eraela o "acontecimento memorável ante as nações civilizadas, e nos anais dahistória do mundo transatlântico".17

M aria Graham, que observou de perto a vida política do pa ís, analisoucom cuidado a emancipação: "A questão da independência com eçava a serpublicamente agitada e desta derivaram várias questões". Deveria o B rasilpermanecer parte da monarquia portuguesa, co m jurisdição separada e suprema? O u deveria voltar "à situação abjeta" e "degradante" de colônia? Ese alcançada a independência, deveria ser um reino centralizado co m a capi-

15 Johann Moritz Rugendas, Viagem pitoresca através do Brasil, trad. Sérgio Milliet (4. ed. Sã oPaulo: Martins, 1949), pp. 134, 136.

16 Ibid., pp . 132-3.17 John Armitage, História do Brasil (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981), pp . 38 ,63 .

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tal no Rio ou deveria haver várias províncias sem ligação, cada qual com seugoverno supremo, responsável perante o rei e as cortes de Lisboa? Essa

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Rugendas, ao sublinhar a inversão dos papéis da metrópole com a colônia,reforça a debilidade dos ex-colonizadores.20

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possibilidade er a defendida pelos republicanos e pelos que temiam a separaç ã o . A s províncias separadas seriam mais facilmente dom inadas por Portugal, já o "Brasil unido sobrepujaria qualquer força q ue Portugal pudesse enviarcontra e l e " , em ca so de luta entre ambos. Diante d os acontecimen tos, apuraGranam, "o po vo" estaria "desconfiado de tudo".18

Armitage também se refere à desconfiança do "povo", num momentoposterior, diante da conduta política de d. Pedro I, figura que para muitosautores, de m odo geral, transpira certa ambigüidade. 19 O monarca não soube ser "homem do seu po vo", por nunca "ter-se constituído verdadeiramente brasileiro". Tam bém nunca soube ele conciliar a opinião pública com o seugoverno. Apesar de, na época da independência, ter ele expressado "sentimentos que deveriam lisonjear o espírito nascente de nacionalidade", suasatitudes com relação à política externa, ao tratado de independência, à ingerência nos negócios de Portugal, à instituição do gabinete secreto e ao protecionism o dos p ortugueses naturalizados geraram dúvidas no "povo" devidoà lusofilia do m onarca em detrimento dos interesses dos brasileiros. A indaassim, no cômputo do processo, escusa ele os "erros do ex-imperador e deseus ministros", pois o Brasil, durante os dez anos de sua administração, teriafeito "certamente mais progressos em inteligência do que nos três séculosdecorridos desde a sua descoberta até a proclamação da Constituição Portuguesa em 1820". Nota-se que a colonização portuguesa explica o atrasodo Brasil, argumento, pois, que é retomado por vários autores. Também

18 Maria Graham, Diário de uma viagem pelo Brasil, trad. Américo Jacobina Lacombe (BeloHorizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1990), pp. 96-7.

19 Ver também Charles Ribeyrolles, Brasil pitoresco, trad. Gastão Penalva (Belo Horizonte/SãoPaulo: Itatiaia/Edusp, 1980), vol. I, pp. 136-41; Daniel Parish Kidder, Reminiscências de viagens e permanência nas Províncias do Sul do Brasil, trad. Moacir N. Vasconcelos (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp , 1980), pp. 50 e ss . Carl Seidler, mercenário alemão que veio aoBrasil para integrar as tropas imperiais, não se cansa de explorar a imagem de Pedro I comodéspota, um Napoleão transatlântico, porém sem os louros da vitória. É ele um dos personagenscentrais do que o autor chamaria de uma "mogiganga tragi-heróica", em que são descritas asdesventuras da Guerra Cisplatina e os acontecimentos- do império de 1825 a 1835; cf. CarlSeidler, Dez anos no Brasil, trad. Bertholdo Klinger (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp,1980).

Já num mom ento posterior à independência e às complicações em torno da elaboração da C onstituição de 182 4, Ferdinand Denis, citando e concordando com Saint-Hilaire,21 levanta vários problemas que obstacularizavamo pacto proposto à "nação" e critica a sua desconexão com a realidadesocial. P rimeiramente, faz referência à impopularidade de d. P edro I em decorrência do golpe que deu na Assembléia Constituinte (1824). Depois,questiona o conteúdo da proposta do monarca por não ter "adivinhado todas as necessidades de um povo, em que se encontram elementos os maisheterogêneos". E conclui com Saint-Hilaire: "neste país, contudo, a sociedade não existia, e com dificuldade se podiam descobrir alguns elementos desociabilidade". Nesse sentido, advoga ele que a nova forma de governo deveria ter sido "adaptada a este triste estado de coisas; deveria tender a uniros brasileiros e dar-lhes, de algum mo do, educação moral e política". Paraisso, era necessário conhecer os habitantes, profundamente. D. Pedro, por é m , mal conhecia o R io, mal conhecia a cidade, cuja população oferecia um"amálgama estranho de americanos e portugueses, brancos e hom ens de cor,

de homens livres, de alforriados e cativos". Apesar de defender as boasintenções do monarca, "estimulado por sentimentos generosos", e CartaConstitucional estabelecer princípios justos, ela "nada tinha de brasileiro", etalvez conviesse tão bem ao M éxico com o ao B rasil , à França ou à Alemanha.22

20 John Armitage, op. cit., p. 213 (grifos meus). Ver também Ribeyrolles, que reforça o papelmodernizador do Brasil em oposição a Portugal, representante do atraso; cf. Charles Ribeyrolles,Brasil pitoresco, cit., vol. I, pp . 128-32; Charles Expilly, Le Brésil t e l q u ' i l est (Paris: Charlieu etHuiillery, 1863), pp. XVI-XVII; e Harro Harring, o p. cit., vol. II, p. 49. Para Stewart, o períodocolonial representaria um estado de "escuridão e ignorância" anterior ao da Idade Média; cf. C. S.

Stewart, Brazil and Ia Plata: the Personal Reco rd ofa Cruise (Nova York: G. P. Putnam & Co.1856), p. 87.

2 ' Cf. A uguste de Saint-Hilaire, "Resumo histórico das revoluções do Brasil desde a chegada do reid. João VI à América até a abdicação do Imperador d. Pedro", em Viagem pelo Distrito dosDiamantes e litoral do Brasil, trad. Leonam de Azeredo Penna (Belo Horizonte/São Paulo:Itatiaia/Edusp, 1974). J

22 Ferdinand Denis, Brasil, trad. João Etienne Filho e Malta Lima (Belo Horizonte/São Paulo:Itatiaia/Edusp, 1980), pp. 163-4. Igualmente, ver a crítica que faz o naturalista inglês CharlesBunbury à Carta Constitucional e ao governo, no período da regência; cf. Charles James FoxBunbury, Viagem de u m naturalista inglês ao Rio de Janeiro e Minas Gerais, trad. Helena G. deSousa (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981), pp. 37-8.

2 7 6 K a r e n M a c k n o w L i s b o a

A s sagazes ob servações de Saint-Hilaire, retomadas por Den is, apontam para um descompass o entre o sistema político e a realidade social. Aos

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er a o "sinal d o poderio", pois, afinal, " j á n ã o havia mais aqui um a colônia masum Im pério", regozija-se, curiosamente, o repub licano, deixando entender

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seus olhos, ao contrário dos outros viajantes aqui citados, a ausência de uma"sociedade" obstaculiza o desenvolvimen to de sentimentos de n acionalidad e , unidade, patriotismo e de uma nação civilizada. E a vinda da família realcolaborou para a decadência moral e não para o processo civilizador. Noentanto, Saint-Hilaire adm ite que o país tenha progredido não por esforços

empreendidos pelo governo, e sim por conta da liberdade das relações comerciais, compartilhando uma visão comum entre estrangeiros.23 A despeitodos preconceitos dos autores (a observação de que não havia "sociedade" etampouco " sociabilidade"), o que é remarcável nas observações é a percepção de um sistema político, de mod elo europeu, que não consegue da r contada complexa realidade social do país, devido à "heterogeneidade" da população. Ou seja, nas entrelinhas dessas observações, o autor pleiteia um sistema q ue esteja mais de acordo com as especificidades da sociedade brasileira.Resta saber qual seria.

Críticas à parte, o que prevalece unânime, ao longo do século, é oapoio à monarquia. A rmitage achava que a m onarquia constitucional era o

melhor instrumento para introduzir a " civilização", bem como propiciar os"aperfeiçoamentos sociais".24 A comparação com as repúblicas sul-americanas corrobora o argumento: Saint-Hilaire chama a atenção para o perigodo federalismo e a conseqüente decadência econômica e social devido àdesintegração territorial. Kidder, testemunha do período da regência, relaciona a monarquia com a unidade do território, embora n ã o exclua a existência de elementos de desordem, referindo-se às numerosas revoltas quecaracterizam o período. O reverendo norte-americano S tewart também considera que "o traço monarquista do governo" é a única razão pela qual sejustifica que o Brasil seja uma exceção na América do Sul, dominada pelaanarquia e derramamento de sangue, o que tem sido tão destrutivo para o

avanço da liberdade e da civilização. Ribeyrolles, retrospectivamente, refere-se às guerras napoleônicas, considerando que a sorte do Brasil - em relação às demais colônias na Am érica Latina - n ã o e r a exatamente feliz, porém"mais favorável". G raças à intervenção da Inglaterra e à presença d a metrópole foi p ossível "guardar as jóias e as pessoas sagradas do reino". E esse

23 Saint-Hilaire, op. cit., p. 217.24 Armitage, op. cit., pp. 227-8. Ver também Spix e Martius, op. cit., vol. III, p. 316.

que ao sul da linha do equador também os próprios preceitos políticos s ofrem inversão.25 M artius, em seu tratado "Como se dev e escrever a históriado Brasil", sublinha q u e a monarquia constitucional não somente é um a proteção ao perigo republicano mas também é o m elhor sistema num país ondehá "tão grande núm ero de escravos".26

Durante a Regência, porém, a ameaça de desintegração da unidadeterritorial e as revoltas e guerras civis são palco frutífero para projeçõesrepublicanas. Entre os autores viajantes há uma voz qu e distoa nesse coroconservador: é a do jornalista e pintor revolucionário teuto-dinamarquês HarroHarring. Sua postura antimonarquista e antieuropéia pleiteia pela fundaçãoda república do B rasil integrada aos "Estados Unidos da A mérica do Sul".Crente de que as forças republicanas no Brasil seriam incombatíveis, criticaele a monarquia constitucional, que, com armas, expulsou várias vezes osdeputados da câmara e atirou nos representantes do povo, anunciando adecadência e lançando-se em sua própria cova. M as isso não exclui que um"espírito de nacionalidade brasileira, baseado em moralidade", côns cio do

dubioso passado do europeu colonizador, que explorou inescrupulosamentea rica natureza e seu habitante autóctone, construindo u m Estado e uma Igreja moralmente decaídos, esteja se desenvolvendo no país. 27

Essas passagens ajudam a ilustrar com o esse s autores articulam os acontecimentos da história política e econômica - a vinda da família real, a ruptura com o exclus ivismo português com a abertura dos portos e o aumento docomércio exterior, a elevação do Brasil a reino, a Revolução do Porto, ojuramento da Con stituição, a independência e a monarquia - com a formação da nação e do E stado. Apesar de atribuírem aos eventos históricos importância e significados nem sempre similares, esse s estrangeiros introduzemconceitos àquele tempo inéditos para a criação de imagens sobre o Brasil:

25 Saint-Hilaire, op . cit., p. 222; Kidder, op . cit., pp. 271-2; Stewart, op. cit., p. 110; Ribeyrolles,op . cit., vol. I, p. 126.

26 C. F. von Martius, "Como se deve escrever a história do Brasil" (1845), trad. W ilhelm Schüch, -»em O Estado do direito entre os autóctones do Brasil (São Paulo: Edusp, 1982), pp . 104-7. Paramais detalhes sobre esse texto, ver infra.

27 Em seu romance Dolores, Harring insere um breve ensaio intitulado "Fragmentos sobre o Brasil,considerações de um brasileiro". Com o ele não atribui nenhuma autoria, é de se supor q u e o textoseja dele mesmo e não de "um brasileiro"; cf. Harro Harring, op. cit., vol. II , pp. 50, 57.

278 K a r e n M a d c n o w Ü s b o a

formação de um sentimento de patriotismo, de nacionalismo, de um espíritobrasileiro, de um caráter nacional, de unanimidade de sentimentos, de unida

O l h a r e s e s t r a n g e i r o s s o b r e o B r a s i l do s é c u l o X IX 279

De m odo geral, assume o imperador uma posição de exclusividade, deexceção, de destaque no contexto social e político do país. As passagens

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de territorial, de um sentimento de independência, de op inião pública, deuma sociedade coesa. O processo de formação do Estado-nação era, pois,interpretado com o um indicador do estág io na escalada dos seres humanosna evolução e no progresso social e na possibilidade de um "povo" e suanação poderem ingressar na história da humanidade, na história da civilizaç ã o , apoiados também em datas e marcos fundadores. Evidencia-se também que a monarquia constitucional - em oposição ao sistema republicano -era vista, para a grande maioria, como uma força motriz para o processocivilizador.

D . P ed ro I I o u u m " S a u l e m I s r a e l "

M uito provavelmente o que contribui para se considerar a monarquiaconstitucional co mo o m elhor sistema para governar o Brasil foi, após o período da Regência, a ocupação do trono por d. Pedro II.

Saint-Hilaire não foi testemunha ocular da abdicação de d. Pedro I(1831), o que não impediu que escrevesse palavras acerca do herdeiro dotrono: "Quanto ao Brasil, seus destinos repousam atualmente sobre a cabeçade uma criança". Em suas apreciações, o naturalista francês fixa duas im agens que se perpetuarão ao longo do século. Primeiramente, o fato de d.Pedro II ser uma garantia para a unidade territorial diante das ameaças dedesintegração ocorridas na Regência: "É uma criança que ainda une as províncias deste vasto império". Em segundo lugar, a feliz realidade de Pedro II ,

em nítida oposição ao seu pai, não ser europeu, e sim brasileiro. Com isso, aordem estaria, por assim dizer, preservada, com o R ibeyrolles simplificariaanos m ais tarde. "O infante nasceu brasileiro. A pátria adotou-o. Foi proclamado, e as crises cessaram", referindo ao período turbulento de 1831 a1 8 4 0 . A paz do reino estaria garantida graças a um "conselho de regênciabrasileira, uma administração brasileira, e porque um príncipe brasileiro"estava no poder.28

28 Saint-Hilaire, op . cit., p. 2 2 1 ; Ribeyrolles, op . cit., vol. I, p. 143 (grifo no original). Ver tambémStewart, op . cit., p. 8 8; George Gardner, Viagem ao interior do Brasil (1836-1841), trad. MiltonAmado (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975), p. 211.

que se seguem mostram um monarca que representa a civilidade, o conhecimento, a cultura, a ciência e a moralidade, despontando co mo contraponto àsociedade de um país que ainda estaria no início de sua marcha para o progresso e a civilização.

D . Pedro II é tido com o monarca que condenou o tráfico negreiro, queera contra a escravidão, e de ser dotado de uma "filantropia esclarecida",segundo a qual tentaria conciliar os direitos sagrados dos homens com osdireitos legais dos proprietários, tal qual defende E xpilly. O autor escusa asua falta de tomada de decisão quanto à emancipação dos escravos em virtude da limitação de seus poderes conforme rezava a Constituição e não porfalta de simpatia pela questão.29 N o entanto, Expilly parece esquecer que omonarca dispunha do quarto poder, o poder moderador, que justamenteampliava o seu campo de atuação.30 Além de ser um monarca por assimdizer humanitário, assume ele um papel de destaque no processo de modernização do império. Mais uma vez retoma-se a imagem do atraso português,de ser um " m a u " colonizador - apesar de suas inegáveis conquistas - quedeixou uma nefasta herança no país, que se traduz em "superstição", "preconceitos mesquinhos", "opressão", "egoísmo", "imobilidade", ou, em umapalavra, "ignorância". "O espírito estreito, indolente e vaidoso da metrópoledeixou m arcas nos costum es e nas instituições", e contra ele o B rasil teriaque lutar. M as entre os hom ens que dirigem a opinião pública, enfatiza oautor, há um que desponta. É d. Pedro II , que alimenta a vontade de se livrardos entraves do passado e de caminhar com o século... 31

N a obra de Kidder e Fletcher, algumas páginas são dedicadas ao imperador. A ele é conferida um a "combinação" em qu e a legitimidade sangüínease une a um caráter que respeita a Constituição, os súditos, e que revelainteresse sincero p ela ciência e literatura. Ess a combin ação seria na "históriadas nações", assim enaltecem os autores, mu ito "rara". Stewart imprime aoimperador o papel de destaque e de fundador do império, referindo-se a el e

29 Expilly, op . cit., pp. 302, 319. Ver também S tewart, op . cit., pp. 110-2. Sobre a suposta limitaçãode atuação de Pedro II, considera Stewart que o poder do imperador era mais limitado qu e o poderdo presidente dos EUA.

30 Lilia Moritz Schwarcz, As barbas do imperador (São Paulo: C ompanhia das Letras, 1998),p . 324.

31 Expilly, op. cit., pp. XVI, XVII.

280 K a r e n M a c k n o w L i s b o a

com o sendo um "Saul em Israel" - "de ombros para cima sobressaía [ele]entre todos" - , qualifícando-o com o hom em de inteligência e caráter, dotado

O l h a r e s e s t r a n g e i r o s s o b r e o B r a s i l d o s é c u l o X I X 2 8 1

o Brasil imediatamente após o 15 de novembro de 1889. Se antes a colonização portuguesa desvelava todo o atraso do país, agora é o império que évisto co mo instituição "caduca", um edifício "mal construído", cujo desm o

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de conhecimentos literários e científicos e de um a exemplar conduta moral, oque não era a regra no império. Canstatt, cujo relato refere-se ao ano de1 8 7 1 , é outro autor que reforça a imagem de exclusividade do imperadorPedro II como sendo uma exceção na sociedade brasileira. "Em variedadede conhecimentos científicos e profundo saber não pode ser comparado

com nenhum brasileiro." So b o manto da superioridade aristocrática, P edroII é monarca que honra a Constituição, que sabe proteger o seu pov o quando ameaçado (quando da Guerra do Paraguai), que, humilde e simples, éeconômico em relação aos seus gastos n a corte, evitando que ele e s u a família sejam um peso para a nação. A lém disso , teria ele a vocação de harmonizar os partidos que se hostilizam reciprocamente no cenário da políticabrasileira.32

R ibeyrolles justapõe a  figura do imperador e o governo com a sociedade escravocrata, fazendo uma tímida alusão às contradições que caracterizavam o país: o estilo de govern o do imperador reforçaria o "espírito geral"do reino, cujos traços eram "a tolerância, a conciliação, a sociabilidade",

apoiadas nos direitos civis defendidos na C onstituição brasileira. Conclui oautor q u e a liberdade er a o preceito máximo do indivíduo: "A alma é livre emtodas as suas confidencias, e o cidadão em todos os seus movimentos". Noentanto, o viajante não esquece d os escravos, q ue justamente estariam privados dessa liberdade e que não gozavam dos mesmos direitos por não serconsiderados cidad ãos. A trás dessa "paz aparente" ocultavam-se as "úlce-ras da escravidão", razão do sofrimento das "almas elevadas", dos "temperamentos delicados", dos "corações altivos", adverte Ribeyro lles. Nova mente,porém, o imperador acaba sendo protegido pela sua sagrada aura da imunidade, pois o "crime" da escravidão não seria responsabilidade do m onarca etampouco do governo, e sim seria uma "doença social", que teria que ser

removida, ressalva o autor, apesar de ser republicano.33

Foi necessário cair a monarquia para que d. Pedro II fosse interpretadosob o sinal da debilidade, assim sugere o jornalista francês Leclerc, que visita

32 Daniel Parish Kidder & James Cooley Fletcher, O Brasil e os brasileiros, trad. Elias Dolianti (SãoPaulo: Nacional, 1941), vol. I, pp. 269-72; Stewart, op. cit., pp. 77-8; Oscar Canstatt, Brasil,terra e gente (1871), trad. Eduardo de Lima Castro (Rio de Janeiro: Pongetti, 1954), pp. 294-7.

33 Ribeyrolles, op. cit., vol. I, p. 148.

ronamento se deu naturalmente. Por isso mesm o, "a monarquia não foi derrubada, ela desmoronou por assim dizer". O povo surge como massacoadjuvante, que, "agastado por longos anos de um governo paternal e anárquico", assistira passiva e ingenuamente à queda do regime.34

Também para Leclerc a brasilidade do monarca é o aspecto decisivoem s u a conduta. N o entanto, ela n ã o é m ais garantia d a unidade d o territórioe da estabilidade da monarquia, com o queriam acreditar alguns viajantes, esim formadora de sua personalidade. "Mas antes de tudo era ele brasileirona alma, brasileiro no caráter", diz Leclerc. O que significa que o meio brasileiro teria definido mais o seu caráter do que o sangue dos Braganças,Bourbons e Habsburgos: "afabilidade", "simplicidade nos trajes e maneiras,sua lentidão em tomar partido, sua instintiva desconfiança para co m a novidade", a "intermitente apatia e a mania de deixar tudo para o dia seguinte", a"indecisão de seu caráter, à qual se juntava a falta de precisão nas idéias",seriam traços "tipicamente brasileiros" e que influenciaram o seu governo ,

sugere o autor. Embora reitere a imagem do monarca que com bateu a ameaça da anarquia republicana e fosse a força motriz para a pacificação e uniãodo império após o sangrento e instável período da Regência, o d. Pedro IIde Leclerc não preenche os quesitos de um monarca esclarecido, respeitadorda ordem constitucional, conciliador, inovador e m odernizador. Seria ele "conservador", aves so a inova ções, centralizador e usurpador do poder, criandodescontentamento entre as várias facções políticas, sendo responsável p elopróprio ocaso. A desatenção para com as coisas militares e a hesitação quantoao processo da abolição e às tomadas de providência para proteger o setorprodutivo foram os seus grandes erros, propiciando o fim do regime.35

Este breve panorama permite notar que a imagem de Pedro II, que

goza de um lugar privilegiado n o contexto social e político do país, é substituída por uma outra em que o monarca representa traços do "caráter nacional", tornando-se uma personalidade cujas características não se diferenciamdos dema is brasileiros. Além d isso, opõem -se as imagens de um imperador

34 Max L eclerc, Cartas do Brasil, trad. Sérgio Milliet (São Paulo: Nacional, 1942), pp. 131-3.35Ibid., pp . 134-41.

2 8 2 K a r en M a c k n o w L i sb o a

como representante mor da civilidade, com o uma força motriz para conduziro processo civilizador, e do monarca decaído que não percebeu as transformaçõ es econô micas , sociais e políticas para se ajustar a elas e manter-se no

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sublinha a seriedade do tema e insurge-se contra muitos estrangeiros que seapropriam das informações de uma maneira irresponsável. A pesar da faltade precisão nos relatos, a escravidão sempre é assunto e com umente repete-

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poder. Obviamente, não é necessário dizer o quanto a visão de mundo e asideologias que a delineiam, de cada um desses observadores, condicionaramessas con struções tão contrastantes.

Escravidão, miscigenação e projeto civilizador

Neste "mais democrático dos impérios", nesta "monarquia rodeada de instituiçõesrepublicanas", nesta "república disfarçada em império", todos os homens brancos,n ã o , todos os hom ens livres, são iguais, social e politicamente. Todos são [...] "tãonobres quanto o rei, mas não tão ricos". [.. .] A sociedade só conhece duas divisões,homem livre ou escravo, ou como sinônimos, homem branco e homem negro.

Richard Burton

A despeito das imagens que cultuaram a figura de Pedro II como ummonarca que incorporou os mais a ltos valores e virtudes da cultura européia,sendo u m propulsor do pro cesso civilizador, e portanto uma grande "sorte"para um país em parte ainda tão bárbaro, ou as im agens degradantes, permaneciam ainda as espinhosas questões da escravidão e da miscigenação.Duas questões distintas, porém complementares, sendo que a escravidãoserá entendida como contra-senso à civilidade do império, ta l qual Ribeyrollestimidamente apontou, enquanto a miscigenaçã o pode ser um fator para promover ou atrasar o processo civilizador.

Vejamos primeiro o caso da escravidão.36 Grande parte dos viajantesreconhecia a sua importância, porém se esquivava de falar dela profunda

mente, argumentando que outros já o teriam feito. Gardner, por exemplo,

36 Evidentemente, o escravismo no Brasil, no período de 1808 a 1888, passou por várias transformações. Em 1826, com a convenção sobre a extinção do tráfico negreiro firmada entre o Brasile a Inglaterra, inicia-se a controvertida questão do contrabando de cativos africanos, o quenaturalmente muitos viajantes irão criticar. Finalmente, em 1850, cessa o tráfico, em conseqüência do aumento da pressão britânica sobre o Brasil, baseada no "Bill Aberdeen" (1845),autorizando a marinha inglesa a tratar os navios negreiros como navios piratas e submeter osenvolvidos à justiça britânica. Em compensação, o m ercado interno cresce, de modo que regiões

se uma série de aspectos, forjando alguns mitos que se perpetuarão ao lon godos séculos XIX e XX. O mais significativo talvez seja o da docil idade,amenidade e brandura d a nossa escravidão,37 embora fosse ela algo terrível,uma "úlcera no organismo político", uma "doença social", criada p or notóri

os interesses econômicos e que se opõe à civilidade do império.38 A brandura servia de escudo para eventuais ataques à própria instituição. Ou então,com o sugere o diplomata inglês Richard Burton, para criticá-la quanto à suafrouxidão. S egundo o diplomata, a notória benevo lência dos senhores paracom seus escravos provocaria ausência de respeito e temor dos últimos pelos primeiros, que se expressaria em comportamentos ainda mais bárbaros.39

Outro aspecto que relativiza uma eventual crueldade ou injustiça dainstituição é a certeza de que a escravidão contribuiria para o processocivilizador dos negros. A África é interpretada com o o continente da barbáriee o s africanos transportados para o Brasil, ainda que em cond ição de cati

v o s , teriam mais chances de superar o seu estado de decadência graças aoconvívio com o branco, considerado moral e intelectualmente superior aonegro.40 Já o norte-americano Thomas Ewbank, quando de sua estada no

economicamente em decadência tornam-se fornecedoras de m ão-de-obra escrava para as lavouras de café e os centros urbanos no sudeste. Igualmente deve-se mencionar o processo abolicionistae as formas d e protesto contra a instituição que se manifestam ao longo do século até a abolição.

37 Kidder & Fletcher, op . cit, p. 1 5 5 ; Friedrich von Weech, Reise über England und Portugal nachBrasilien undden vereinigten Staaten des La Plata Stromes wahrendden Jahren 1 8 2 3 bis 1827,(Munique: Fr. X. Auer, 1831), vol. I, p. 80; Denis, op. cit., p. 151; Gardner, op. cit., pp. 24-5.

38 Kidder & Fletcher, op. cit., p. 155 e Ribeyrolles, op. cit., vol. I, p. 148.39

Richard Francis Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, trad. David Jardim Júnior(Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1976), p. 233.40 Spix & M artius, op. cit., vol. II, p. 160; W eech, op. cit., vol. I, p. 92; Denis, op. cit., p. 154;

Seidler, op. cit., p. 250. Nas primeiras décadas do século XIX, os conceitos complementares de"perfectibilidade e degeneração" da I lustração ainda servem como chave interpretativa para asdiferentes "raças" e "culturas ", cujo potencial de mudança dependeria mais do meio e da formação do que de padrões biológicos e, portanto, hereditários. Acreditava-se numa humanidade única(monogenismo), que caminharia para a civilização. Evidentemente, isso não excluía a idéia deque os europeus (a "raça branca") gozariam de uma superioridade intelectual e moral em relaçãoàs demais etnias. Em meados do século, são formuladas as teorias raciais em que as diferençasseriam determinadas biologicamente, abrindo o campo para o racismo científico. Observam-se três

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Brasil, em 1845-1846, questiona essa leitura otimista. Do pouco que pôdeVer, deduz que a situação do escravo é "horrorosa".

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O que ainda reforçava a idéia da amenidade do sistema escravista er a acrença na mobilidade e integração social d o liberto. Para Denis, a possibilidade de o s negros livres compartilharem os mesm os direitos dos brancos era

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Em q ue sentido a vida destas pobres criaturas [escravos em fazendas] é melhor aquido que fora na África n ativa é coisa que não se pode conceber. A o assistir a um leilãode escravos, choca-se com a frieza do tratamento. Assim vi pela primeira vez emminha vida os ossos e os músculos de um ho mem, com tudo que lhe pertence, postosà venda, e seu corpo, sua alma e seu espírito entregues a quem pagasse mais. [...] Do

que eu vi, penso que seria m elhor para muitos terem sido sacrificados na m ocidade,tendo as peles convertidas em cola e os ossos em marfim neg ro, do que padecer pelavida o que padecem.41

Um outro argumento para escusar a escravidão era, associada à bran-dura, a comparação com o trabalhador livre europeu. E sse não gozaria demelhores condições de vida que o cativo no Brasil. Weech afirma que emtodas as culturas houve a prática de castigos e que, "em nossa civilizadaEuropa", o homem livre recebe tratamento pior que o escravo nas propriedades e lares brasileiros.42 Essa comparação fazia sentido no contexto darevolução industrial, quando se forma uma classe de trabalhadores explora

dos e vivendo em condições marginalizadas. Ainda assim, o cotejo peca pordesconsiderar a questão da coisificação do escravo em relação ao senhor,de quem ele se torna propriedade particular, o que, aliás, Thomas Ewbankhavia notado.

importantes vertentes: a escola etnológico-biológica, que, pautada no poligenismo, queria provar — com base em diferenças físicas e, portanto, mentais — a inferioridade dos negros e índiosem relação aos brancos. A escola histórica (representada por Gobineau) p reconizava que as raçassuperiores, ou seja, a branca, determinavam a história (arianismo). A terceira vertente era a dodarwinismo social, segundo a qual, as raças "superiores", ao longo de um processo histórico-evolutivo, teriam predominado sobre as raças inferiores, condenadas ao desaparecimento. Paramais detalhes sobre o pensamento racial na Ilustração, ver George W . Stocking, VictorianAnthropology (Nova Y ork: The Free Press, 1987). Sobre as principais teorias racistas no séculoXIX, ver Thomas Skidmore, Preto no branco, trad. Raul de Sá Barbosa (Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1976), pp. 65-70, e Lilia Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças (São Paulo: Companhia das Letras, 1993), pp. 43-66.

4 ' Thomas Ewbank, A vida no Brasil o u diário de uma visita à terra do cacaueiro e d as palmeiras,trad. Jamil Almansur Haddad (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1976), pp. 214, 325.

42 W eech, op. cit., p. 101. Ver também Burton, op. cit., p. 233; Moritz Lamberg, Brasilien. LandundLeute in ethischer, politischer undvolkswirtschafilicher Beziehung un d Entwicklung (Leipzig:Hermann Zieger, 1899), p. 42.

tão real que explicava o fato de serem men os dispostos a se revoltar do queem todas as outras partes da América meridional. Kidder e Fletcher lembram que a Constituição do período imperial não discrimina a cor comobase para os direitos civis; "portanto, uma vez livres, os homens brancos oumulatos, se p ossuem energia e talento, podem erguer-se às mais altas posições sociais, das quais sua raça está excluída nos EUA". 43 À deriva de darconta da complexidade de uma sociedade escravista, em que os mecanismos de exclusão são inerentes ao sistema, dificultando a formação da cidadania, os autores recorrem à comparação com os EUA, para ajudar a construiro m ito da democracia racial, da igualdade de ch ances para "todos" os súdit o s , desde que sejam livres.

O naturalista e diplomata suíço T schudi, que visita o Brasil de 1857 a1 8 5 9 , utiliza-se do mesm o recurso para argumentar a favor da m obilidadesocial e concluir que, no B rasil, "os direitos humanos são mais respeitadosdo que nos EUA". A educadora alemã In a von B inzer considera o brasileiromais bondo so do que o americano, lembrando-nos timidamente do "homemcordial", que Sérgio Buarque de Holanda descreverá sessenta anos maistarde. "O desprezo de um lado e o sentimento de amargura do outro não sãoaqui tão grandes como entre os nossos irmãos do N orte", compara a autora.Os negros libertos gozam dos mesmos direitos dos brancos, tanto que hánumerosos professores, artistas, médicos, deputados e at é ministros de "cor",generaliza a viajante.44 No entanto, sabe-se que o status legal do escravoliberto transpirava ambigüidade, mesmo após o embargo de 1865 - que não"pegou" -, sobretudo devido ao direito do senhor de revogar a alforria deseu cativo por motivo de ingratidão. Cidadão de fato livre somente se torna-

43 Denis, o p. cit, p. 152; Kidder & Fletcher, op. cit., p. 145,147. De fato, a Constituição brasileiraconsagrava as garantias individuais, seguindo os preceitos da Declaração do s Direitos do Homemformulada na R evolução Francesa. No entanto, ela somente era válida para os cidadãos, ou seja,a população livre.

44 Johann Jakob von Tschudi, Reisen durch Südamerika (Stuttgart: Brockhaus, 1971), vol. I, p.1 2 3 ; Ina von Binzer, Leid und Freud einer Erzieherin in Brasilien. Alegrias e tristezas de umaeducadora alemã no Brasil, ed . bilíngüe, trad. Alice Rossi e Luisita da Gama Siqueira (Frankfurt:Teo Ferrer de Maquita, 1994), pp. 159-60. Ver também Burton, op. cit., pp . 233-4; Harring, op.cit., vol. II, pp. 55-7; L amberg, op. cit., pp. 42-3.

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va o forro munido d e carta sem restrição alguma, o que não era a regra.45 Aeducadora observa a questão da escravidão no interior de São Paulo, naantevéspera da abolição. Se ela faz referência à suposta mobilidade de nossa

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ou prejuízos de tal mistura racial, graças à qual teria se formado uma sociedade tão heterogênea. E quanto mais o debate sobre as teorias raciais, sobretudo a partir de meados d o século, acalentava os fóruns científicos, m aispolêmica se tornava a questão.

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sociedade escravista, também percebe que m uitos escravos quando libertosvivem n a marginalidade, não tend o nenhuma estrutura ou mecanismo que osintegre dignamente na sociedade. E ssa situação certamente condizia com agrande maioria da popu lação e revelava nitidamente a "omissão" por partedas classes dirigentes e do governo diante do processo abolicionista.46

N ão resta dúvida de que esses depoimentos contribuíram para a imagem de uma sociedade que, embora escravista, não tinha preconceitos de"raça". As palavras de Burton, na epígrafe desse tópico, expressam essefenômeno prenhe, evidentemente, de contradições e longe de revelar a complexidade social, justamente quando se leva em consideração que o negro oumestiço (quanto mais escuro), independentemente de seu status, era identificado no imaginário da população, de antemão, como escravo.

Finalmente, a questão da mobilidade social e integração do homem de"cor" nos conduz ao segundo grande assunto que ocupava a mente dessesforasteiros: o da miscigenação. Com certeza era esse um dos aspectos quemais lhes chamava a atenção. Já Spix e M artius, em 1818, quando de passagem por Salvador, observam q u e nem L ondres nem P aris apresentavam umavariedade, uma mistura tão grande de "raças", "índoles" e "classes". Eracom o se m irassem num "espelho mágico" e visse m passar "representantesde todas as épocas, de todos os continentes, de todos os gênios". 47 A sociedade brasileira não som ente era um rico manancial para se estudar diferentes"raças" e "culturas", mas também para se indagar quais seriam os benefícios

45 Katia M . de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1982), pp. 180 e ss.46 Ina von Binzer, op . cit., p. 246. Florestan Fernandes observa q u e , durante a fase de consolidação

da ordem social competitiva em São Paulo, não se "formaram [...] barreiras que visassem im pedira ascensão do 'negro', nem se tomaram medidas para conjurar os riscos que a competição desseelemento racial pudesse acarretar para o 'branco'. Em síntese, não se esboçou nenhuma modalidade de resistência aberta, consciente e organizada, que colocasse negros, brancos e mulatos emposições antagônicas de luta. Por paradoxal que pareça, foi a omissão do branco - e não a ação- que redundou na perpetuação do status quo ante", ou seja, "os padrões de relações raciaiselaborados sob a égide da escravidão e da dominação senhorial"; cf. Florestan Fernandes, Aintegração do negro na sociedade de classes. O legado da "raça branca" (São Paulo: Dominus/Edusp, 1965), vol. I, p. 194.

47 Spix & Martius, op. cit., vol. II, p. 152.

Pautados ainda em m áximas do pensamento racial d a Ilustração, Spix eMartius, na Viagem pelo Brasil, defendem timidamente que a mistura dasraças é u m benefício para a constituição de uma sociedade civilizada em queo tripé burguesia, Igreja e Estado estaria se firmando. 48 Essa idéia Martius

desenvolverá mais tarde em seu tratado Como se deve escrever a históriado Brasil, dedicado ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHG B) eque serviria de base metodológica para ulteriores estudos sobre a história doBrasil.49 M uito provavelmente n enhum viajante explorou de forma tã o metódica a miscigenação, entendendo-a como a "peculiaridade histórica do pov oe da nação" brasileira. O "gênio da história", "sabiamente", lançou mão damescla das raças "para alcançar os mais sublimes fins", profetiza o autor.Tanto o neg ro quanto o índio contribuíram para o "desenvolvimento d a nacionalidade brasileira", embora os portugu eses, com o representantes da raçabranca, considerada intelectualmente superior às demais, formem o "maispoderoso e essencial motor". A eles cabe absorver "os pequenos confluen-

tes das raças índia e etiópica", defende o naturalista, atestando a sua interpretação enganosa quanto aos dados demográficos. T endo viajado pelo país,não teria ele notado que, em várias regiões, a maioria da população não erabranca?50 Se por um lado M artius sublinha a importância dos autóctones edos africanos na construção da nação - uma visão qu e transpira ainda ohumanismo da Ilustração, em op osição às teorias racistas que vão tomandocada vez mais o es paço - , por outro vislumbra ele o desaparecimento desses

48

Ibid., vol. III, p. 316.49 A esse respeito, ver Karen Macknow Lisboa, op. cit., pp. 178-84.50 Martius, op. cit., pp. 87-8. Vale ressaltar que Martius escreveu o tratado no auge do tráfico

negreiro (década de 1840), quando a população de africanos aumentava consideravelmente. NoRio de Janeiro, no final da década, quase metade da população era escrava. Em Niterói, no ano de1 8 3 3 , quatro quintos da população o eram. Em 1840, 59% da população de Campos era escrava.Segundo o censo de 1849, na província fluminense, em cada dez habitantes, quatro eram brancos.E o censo de 1870 revela que 20% da população do país, no mínimo, seria preta e 38% mulata;cf. Luiz Felipe de A lencastro, "Vida privada e ordem privada no Im pério", em Fernando Novais(org.), História da vida privada, cit., vol. 2, pp. 24-30, 83.

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grupos, apostando num paulatino branqueamento da sociedade.51 Ou seja,na medida em que a miscigenação poderia propiciar o branqueamento dapopulação e, assim, a homogeneização social, é ela interpretada positiva

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blicana à monarquia e ao poder dos brancos. Tam bém o interesse dos europeus pelas "bonitas" e "am áveis" mulatas, que aceitam permanecer numa"posição inferior" por consentir q u e esses hom ens não se casariam com elas,

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mente com o fator civilizatório e de formação nacional.J á u m a diferente interpretação encontramos n o republicano Ribey rolles.

Para ele, até aí concordando com o princípio de Martius, a fusão das raçasseria um dos m eios para se atingir a civilização. Contudo, a seu ver, os branc o s , no B rasil, eram "débeis", devido ao calor e à ociosidade, e, portanto, aocontrário do que M artius advog a, não poderiam ser irradiadores da civilizaç ã o . Grande esperança residiria nos m estiços, polem iza R ibeyrolles, atribuindo-lhes central importância na formação da sociedade burguesa. Nessedesenvolvim ento, nem os escravos nem o s índios teriam um papel decisivo.Embora os cativos, assim explica o autor, fossem a grande mão-de-obranacional, não podiam eles dar conta da demanda de trabalho, devido a seunúmero exíguo. E os índios, carentes de educação, estavam inaptos paracontribuir nesse pro cesso. O s me stiços, po is, híbridos quanto à cor, teriamum "espírito ativo" e "fortes mú sculos", constituindo a grande força de trabalho e produção. O s melhores profissionais seriam os mulatos, formando a"verdadeira burguesia brasileira", defende o auto r,52, opondo-se abertamente a uma forte tendência do período (final da década de 1860) em que setentava, a qualquer preço, provar cientificamente a inferioridade dos m ulatos. Queria-se demonstrar que os casamentos híbridos geravam descendentes degenerados e mais fracos, ou, no pior dos casos — por absurdo queseja -, até estéreis.

Nesse contexto, evidentemente não faltariam vozes desconfiadas damistura racial. Gardner pondera que as raças mistas eram uma ameaça repu-

5 ' No meio político e intelectual brasileiro, a discussão do "branqueamento" da sociedade brasileiratomou enorme fôlego no período abolicionista, quando também o pensamento racista já forasistematizado em várias vertentes. Segundo Thomas Skidmore, a tese do branqueamento basea

va-se na suposição da superioridade branca e no uso dos "eufemismos raças 'mais adiantadas' e'menos adiantadas'". Acreditava-se que por meio da miscigenação o negro desapareceria e apopulação ficaria progressivamente mais clara. Os miscigenados não seriam produto da degene-ração, mas estariam aptos a produzir descendentes cada vez mais brancos. Isso se explicaria emparte pelo fato de o gene branco ser mais forte e em parte porque os parceiros brancos seriammais procurados para procriação; cf. Thomas Skidmore, op. cit., p. 81. Vale notar que Martiusnão explica o fenômeno da mestiçagem e do decorrente branqueamento do ponto de vistabiológico. Nesse sentido, suas idéias se pautam em conceitos filosóficos, em coerência com o"racismo da Ilustração" (Stocking).

52 Ribeyrolles, op. cit., vol. I, pp. 93, 156.

segundo observa B urmeister, contribuía para "baixar a moralidade do povobrasileiro, dando, assim, à raça d e cor um a expansão cada vez maior". Stewartnota que a mistura se apresenta em todas as esferas da vida, "doméstica,social, civil, militar, no palácio imperial e diante dos altares d a Igreja", o que

não deixa d e ser "revoltante", sobretudo por ele ser um visitante dos E UA ,tal qual faz questão de mencionar. 'Terríveis" e "assustadores" m estiços formam a maioria da população, cujo desejo era de se tornar branca, conclui omissionário, apontando, despropositalmente, para o racismo que plasma asrelações sociais. Por que querer ser branco se havia os mecanismos de ascensão e integração para a população de "cor", tal qual tantos estrangeirosenxergavam? E, por fim, o fam oso naturalista Agassiz, representante da escola etnoló gico-biológ ica, que não tardou em radicalizar os males da miscigenação , declarando que os mestiço s seriam um grupo degenerado.53

Em extensão à questão da miscigenação, voltaria a questão da nação.Vimos que , para M artius, tanto brancos quanto negros e índios constituíram

a base da nação, emprestando à mistura racial a tarefa histórica na formaçãonacional, e que para Ribeyrolles os m estiços, sobretudo os m ulatos, representam a "verdadeira burguesia". Trata-se de concepçõ es que os defensoresdas teorias racistas obviamente não adm itiriam. Esse é o caso do diplomatasuíço Tschudi, que, levando às últimas conseqüências as mesmas preocupações d e Denis e Saint-Hilaire quanto à heterogeneidade d a população, asseverou que a miscigenação torna-se um empecilho para pensar o império com onação. T schudi constata q u e a única ligação que existe entre os habitantes doimpério é a "forma de governo". A o contrário das nações européias, onde,além dessa forma de ligação, a união se faz através da ascendência ou origem com um e, portanto, de um caráter, em suas linhas gerais, comum , essasnações formam u m todo limitado pela sua ascendência, seu caráter, sua língua, sua história, suas necessidades. N o B rasil, no entanto, observa-se umaascendência miscigenada, impossibilitando assim a formação de um "tipo

53 Gardner, op . cit., p. 26; Burmeister, op . cit, p. 7 1 ; e Stewart, op . cit, pp. 7 2 - 3 ; Louis & ElizabethAgassiz, Viagem ao Brasil (1868) (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1983). Sobre arecepção da obra de Agassiz no meio brasileiro, ver Skidmore, op . cit., p. 67.

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nacional" e de um "caráter brasileiro". O naturalista conclui que nos pov osda Europa reina a nacionalidade, no Brasil a individualidade (grifo no original). Por fim, o autor tece observações para definir o "brasileiro". Sob esse

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gu m esclarecimento entre a população, mas sim precisava-se d e reformadores,a exemplo de um L utero ou Fenelon...56

N o olhar providencial e (re)formador dos viajantes não resta dúvida,

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termo não entende ele o total da população, mas somente a parte "maisinteligente", de origem preponderantemente branca.54 Pode-se repreendê-l o , reconhece T schudi, de ser aleatório e injusto, mas acredita ele ter justificado a sua postura. A o descrever a vida intelectual, social e administrativa

dos brasileiros, recusa-se a juntar o "indígena apático", o "caboclo preguiçoso", o "rude negro liberto", o "superficial mulato" aos d escendentes d ecolonos civilizados, em sua maioria d e origem latina.55

Em suma, no olhar desses forasteiros, essa "sociedade multicolorida,heterogênea, bizarra", com o a adjetivou E xpilly, teria que passar por transformações para evitar sua estagnação ou mesm o decadência para um estadode barbárie e desorganização social tanto quanto assegurar o seu cam inhopara tornar-se uma nação civilizada. O maior debate, certamente, gira emtorno da questão da miscigenação e a dúvida que esta suscita quanto à viabilidade de o B rasil se tornar uma sociedade "civilizada" nos moldes eu ropeus. A despeito dessa polêmica, ao longo do século, há uma certa

unanimidade quanto às providências a ser tomadas, visando a constituiçãodo E stado e do sistema monárquico-constitucional: moralizar as instituiçõespúblicas (governo, administração, Igreja, etc.) e privadas (família, casamento , etc), bem como o trabalho e as relações sociais de toda natureza; expandir e melhorar o ensino bá sico e m édio, aumentar o com ércio, incrementar osme ios de transporte e comun icação, instalar indústrias e investir na produtividade agrícola.

A lguns viajantes enfatizarão a necessidade de reformas morais e religiosas . Kidder acreditava que a formação de uma "grandeza nacional" dependia do combate ao vício, à ignorância, superstição e intolerância, cujaarma seria a "piedade" e o "poder do saber". O que mais precisava o Brasil

era de "evangelizadores piedosos". Já Ewbank é mais extremo ao afirmarque o catolicismo er a que impedia o progresso do país e, em geral, da Am érica do Sul. N ão bastariam " evangelizadores piedosos " para se alcançar al-

54 Saint-Hilaire, que esteve em nossas paragens entre 1816 e 1822, se refere ao B rasil como sendoum país onde "não havia brasileiros", ou seja, não havia "homogeneidade" entre os habitantes,ou algo que lhes imprimia alguma identidade; cf. op . cit., p. 213.

55 Tschudi, op. cit., vol. I, pp. 119-20.

porém, de que o grande problema para o progresso do país estava na mão -de-obra escrava, deixando entrever a contradição da ideologia liberal, queprojetava no país a constituição de uma sociedade burguesa inserida nomund o capitalista e a prática da escravidão. O mito da brandura, do poten

cial civilizador d a escravidão e d a possível ascensão social do liberto não erasuficiente para sustentar a instituição. Num erosos autores se opõem à escravidão por corromper moralmente a sociedade, afetando as relações humanas (licenciosidade, libertinagem sexual, exploração humana) e a disposiçãoao trabalho. Autores como Tschudi e Burton reforçaram a idéia de que oescravismo era o caminho m ais certo para destruir economicam ente o país.O diplomata inglês, munido de um transparente racismo, acusa diretamente onegro, concluindo que a "importação" do negro ("cativo, proscrito, criminoso") da África p ode ter contribuído para a melhora da "raça", mas prejudicou a "raça superior" que o adm itiu, no sentido m oral e físico, sobretudoindispondo -o ao trabalho e, acima de tudo, ao melhor de todos os trabalhos

em um país jov em : a agricultura. "Onde os negros trabalham, todo trabalhose torna servil, e, em conseqüência, o povo carece do 'altivo camponês,orgulho do País'". Também a educadora Ina von Binzer desmascara a desmoralização d o trabalho provocado pela escravidão. N o entanto, enfatizaela que todo trabalho é realizado pelos negros, em contraste com a classedos proprietários que, completamente dependente dos escravos, acostumou-se ao ócio.57

E xpilly, após observar por mais de dois anos a sociedade escravista nadécada de 1860 , reconhecia que a corrupção agia reciprocamente. A escravidão oblitera o senso moral tanto dos opressores como dos oprimidos. E,em alguns casos, o vício do qual alguns escravos são acusados é resultado

de senhores inebriados pelo poder absoluto que exercitam, tendo esq uecidoas noções mais simples de direito e justiça. Também encontramos visõesmais lúcidas em Ribeyrolles. Nota ele que os negros escravos formavam a"mão-de-obra nacional", cuja produtividade, contudo, era limitada pela violência, suplício e opróbrio qu e caracterizavam a própria instituição. E mais:

56 Kidder, op. cit., pp. 271-2; Ewbank, op. cit., p. 19.57 Tschudi, op. cit., vol. I, p. 116; Burton, op. cit., p. 230; Binzer, op. cit., p. 157.

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impede mesmo a formação do "povo", pois a escravidão representa a "morte da sociedade e das almas". O escravo não é integrado na sociedade pormeio da lei, do direito e da família, que são as bases para se edificar um

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para a economia do país -,61 a ênfase na vinda dos europeus - e não asiátic o s , ou a t é , como explicita Ina von B inzer, d e preferência germ ânicos - reiteraa crença na vocação civilizatória do europeu nas ex-colônias, devolvend o-

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"povo", desmascarando a segregação que dominava as relações sociais.Desd e as primeiras décadas do sécu lo compartilhava-se a opinião de

qu e a população era numericamente exígua, moralmente decaída e culturalmente despreparada para enfrentar o desafio de explorar uma natureza tão

pródiga.59

Com o término do tráfico (1850) e o avanço do abolicionionismo,o problema da mão-de-obra recrudesce, necessitando de solu ções. O s muitos males que perduram no Brasil há séculos somente seriam remediadoscom o emprego da mão-de-obra livre em larga escala e a dedicação à agricultura, advertiria Burton, entre outros. E praticamente todos os autores estavam de acordo que a grande salvação estaria na imigração européia.R ibeyrolles insistia na necessidade de aumentar a população e educá-la, pre-parando-a para o trabalho, o que poderia ser auxiliado por meio da imigração européia e de um projeto colonizador oficial, organizado pelo governo.Ina von B inzer afirma categoricamente que "a gente preta é um peso para oBrasil, formando a escravidão uma verdadeira chaga, ainda pior para os

senhores do que para os escravos; e isso mais se nota [...] nas vésperas deser extinta". Comparando as condições de trabalho no Brasil com os E UA ,deduz que a falta de moral aqui reinante impede que os ex-cativos sejamabsorvidos no mercado. "O brasileiro [...] despreza o trabalho e o trabalhador." Portanto, "como esperar que o escravo, criado em animalesca ignorância, mas dentro dessa ordem de idéias, seja capaz de adquirir outras porsi [...]"?, pergunta-se a educadora. E con clui: "Tenho a impressão de que oBrasil logo de início irá sofrer horrivelmente com a abolição da escravatura,porque não se decidiram aqui pela imigração européia, nem ofereceram aosmais úteis imigrantes - os germânicos - condições bastante favoráveis".60

Com exceção de Ribeyrolles, que deposita a esperança nos mestiços

para impulsionar o processo civilizador - embora tivesse notado que essespouco queriam dedicar-se à agricultura, o que er a uma grande desvantagem

58 Expilly, op. cit., pp. 289 e ss.; Ribeyrolles, op. cit., vol. I, p. 92 e vol. II, p. 91.59 Denis, op. cit., pp. 397-8; Spix & Martius, op. cit., vol. I, pp. 87,118 e vol. III, p. 316; Stewart,

op . cit., p. 89.60 Burton, op. cit., p. 231; R ibeyrolles, op. cit., vol. I, pp. 154-6; Binzer, op. cit., pp. 244-5.

lhe o papel de fundador e formador da sociedade. É notório como algunsautores atribuirão ao imigrante a incumbência pedagógica de moralizar essasociedade tida com o tão corrupta e decaída, em todos os sentidos, com o sepode acompanhar pelas palavras de Leclerc, sintetizando o que mu itos via

jantes expressaram anteriormente.Leclerc ch ega no Brasil, como v imos, imediatamente após a queda da

monarquia e, portanto, mais de um ano após a abolição. O jornalista avaliaque os últimos anos do império teriam sido anárquicos e que os males daescravidão ainda atormentavam o país. O autor resume:

O "com monwealth" brasileiro durante mais de um século baseou-se na escravidão; aofaltar esta encontrou-se sem alicerces [...] A sociedade brasileira trocou um sistemabárbaro e inumano pelo desconhecido; voltou ao estado inorgânico; é um protoplasmaem que as células giram em bu sca de uma lei de agrupamento.62

O autor nota que o escravismo foi um fator de coesão e organização dasociedade e do Estado durante o império. Contudo, teria ele impedido aconstituição da família, base para a formação da sociedade moderna. Portanto, com o fim d o sistema escravista, instaura-se um período de absolutainstabilidade, já q u e , no seu entender, não havia uma m alha social capaz deabsorver os impactos de tamanha mudança. O B rasil de 1889 era um paísem crise, adverte Leclerc. A herança do império foi a pior possível. A seuver havia uma crise política, mas cujo desenlace se aproximaria, graças ao"bom senso do povo brasileiro", embora, como disse em outro lugar, as"massas" não obtiveram educação política de forma q u e o "espírito público"não se formou, lembrando-nos as observações de alguns estrangeiros sobreo B rasil do início dos O itocentos. A isso se acrescentaria uma "crise social",cuja resolução seria mais difícil de se prever e que somente seria superadaquando a disciplina fosse restabelecida no exército, na adm inistração e n opovo; e, por fim, a "crise econômica" devido à abolição da escravidão, quesomente poderia ser remediada com uma imigração "bem conduzida". C om

6 ' Ribeyrolles, op. cit., vol. I, p. 93.62 Leclerc, op. cit., pp. 156-7.

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estas observações, o autor recupera a imagem de um Brasil caótico, emestado primevo, aguardando que uma nova ordem seja criada. Por isso.m es-mo pleiteia ele, com urgência, a vinda de imigrantes europeus, que devem

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pensar o país como nação. Sentimentos nacionais, espírito público, patriotismo, sentimento de independ ência sustentariam os primeiros passos de umanação conduzida por um monarca constitucional.

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fundar suas famílias para servir de "exemplo" e mostrar "o valor da famíliapura, liberta de contatos aviltantes e corruptos com o elemento servil". Erapois necessário reabilitar o trabalho livre e a dignidade humana. Associada àcrise da mão-de-obra, estaria o problema do latifúndio. A concentração de

grandes propriedades por poucos e a falta de terra para ser distribuída aosimigrantes (salvo n o sul do país) seriam uma das maiores mazelas, obstandoo desenvo lvimento social e econôm ico do país ou, em outras palavras, dificultando o projeto imigratório.63

Em suma, a notória insistência para a vinda de colon os europeus nãosomente deveria solucionar o cas o da mão-de-obra, educando e disciplinando o trabalhador, mas, em última instância, também seriam eles úteis paraacelerar o branqueamento da sociedade. Pois abolir a escravidão não resolvia o problema do grande contingente de mão-de-obra de origem escrava etampouco a questão racial. A população continuaria negra e mestiça. E umcaminho certo para branqueá-la seria por meio da introdução de famílias

européias. Finalmente, as preocupações reveladas po r esses forasteiros também tiveram os seus interlocutores brasileiros, quer no parlamento, quer nosmovimentos e sociedades abolicionistas e imigrantistas, desvelando a angústia de nossas elites quanto à cor que a sociedade brasileira ia tomando. 64

O Brasil imperial mostrou muitas caras aos viajantes estrangeiros. Lon ge de esgotar a multiplicidade de imagens que eles criaram a respeito denossa sociedade, n osso governo, nossas instituições e nossa história, é notório que o Brasil de 1808 a 1889 desponta como grande terra prenhe depotenciais, mas que permanece num constante estado de formação, de aindaestar po r fazer, pelo p rocesso civilizador, um eu femismo para dominação devalores cunhados pelos europeus e transpostos ao Novo Mundo. Nossos

autores identificaram que com a vinda da família real iniciou-se o p rocessode ruptura com o antigo sistema colonial e foram colocadas as bases para se

"Ibid., pp. 86-90, 157, 173.64 Para uma interessante discussão a esse respeito, ver Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda

negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX (São Paulo: Paz e Terra,1987); Thomas Skidmore, o p . c i t . ; e Roberto Ventura, Estilo tropical (São Paulo: Companhia dasLetras, 1991).

Mas apesar desses votos esperançosos, que procuravam equiparar ojovem reino às demais nações européias, restava o problema do escravismo,a maior herança do período colonial e que distanciava o Brasil das potênciaseuropéias. Em op osição a essa instituição, que corrompia econômica e mo

ralmente a sociedade, é construída a imagem de d. Pedro II, um ícone dacultura e civilização européia, emprestando estabilidade ao império ao longode sua permanência por mais de quarenta anos no poder. No entanto, elenão foi capaz de sanar a "doença social" do escravismo.

Igualmente a heterogeneidade da população - outra herança do período colonial - , que se m anifestava na mistura entre negros, índios e brancos,imprimindo à sociedade brasileira um especial caráter, muito diferente doque ocorria na Europa e nos EUA, revela-se, no olhar dos nossos forasteiros, como um desafio para dar continuidade à formação de uma naçãocivilizada. Tratando-se justamente do século em que se procura provar cientificamente a absurda idéia da inferioridade de seres humanos que não fos

sem brancos e em q ue as teorias racistas se convertem em moeda correntepara explicar as diferenças culturais, a questão da miscigenação assume es pecial importância. Dependendo da filiação ideológica do autor, ela torna-seum em pecilho para o progresso, acelerando a degeneração social. Por outraparte, essa discussão permitiu que muitos viajantes, como vim os, coloca ssem os fundamentos para a construção do mito da democracia racial, que osnossos intelectuais da década de 1930 - sobretudo Gilberto Freire - levarãoadiante, configurando-lhe o papel de identidade nacional. N o cômputo dapolêmica, porém, e em correspondência com as ansiedades das nossas elit e s , a tendência geral era querer branquear o país, o que, finalmente, não sereduzia ao problema da "cor", mas obviamente ao da negação de uma cultu

ra que não se encaixava n os mod elos, por assim dizer, europeus. Na m edidaem que os imigrantes do Velho M undo vão chegando, destinados, entretanto , somente a certas regiões, estatisticamente os dados demográficos vãomudando e, com o num passe de mágica, a sociedade vai se "branqueando".Mas sabe-se que a segregação entre os grupos étnicos se acirrou, desmentindo o próprio mito da democracia racial; sabe-se que as diferenças econômicas entre as regiões do Brasil não foram superadas; sabe-se que asdiferenças sociais entre as classes continuavam a produzir fossos intrans-

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poníveis, furtando de uma grande parte da população o direito da cidadania.Por fim, a despeito das amarras ideológicas dos nossos visitantes, que setraduziam em concepções racistas, classistas, eurocêntricas, colonizàdoras e

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Bibliogra f ia selecion ad a

Obras d e viajantes

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na incapacidade de relativizar as diferenças do ponto de vista cultural, a leitura de seus textos nos con duz a temas de no ssa longa duração.

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J

O Brasil n o espelho d o Paraguai

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F r a n c i s c o A l a m b e r t

A r e v o l u ç ã o d e 6 4 c o m e ç o u n a G u e r r a d o P a r a g u a i .

G l a u b e r R o c h a

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A. relações entre o Brasil e seus vizinhos sul-americanos ao longodo século XIX e início do século XX marcaram-se por tensões, diferençasexaltadas e violências consumadas. N o campo geo político, as tensões seacirravam à medida que íamos definindo nossas fronteiras, tanto ao norte(com a disputa pelo controle dos rios amazônicos) quanto ao sul (com aquestão platina e os conflitos intermitentes com o Uruguai, a Argentina e oParaguai). N o campo ideológico, as diferenças traduziam-se numa guerra deidéias assentada nadefesa brasileira de sua "civilização" imperial e escravista,vista em oposição às "outras" nações americanas, já então formalmente republicanas e antiescravistas.

Nosso liberalismo sonhava ser a diferença, a particularidade sign ificativa diante do modelo liberal-revolucionário europeu que nossos "bárbaros"vizinhos meramente copiariam. N o B rasil, conforme Roberto Schwarz escreveu em ensaio co nhecido: "impugnada a todo instante pela escravidão, aideologia liberal, que era a das jovens nações emancipadas da América, des-carrilhava".1 Nã o éramos apenas uma "idéia fora do lugar" diante do modeloliberal europeu, mas fundamentalmente diante de nossos vizinhos am ericanos. Dess e m odo, seria impo ssível pensar qualquer conjunto de identidade"americana".

Se a imagem que um país constrói de si está relacionada à diferençaque impõe em relação a imagens de outras nações, então o "outro" do B rasil

foi toda a Am érica Latina. M as, dentro do m undo sul-americano, numdeterminado momento do século XIX, nosso "oposto" foi o Paraguai, contra oqual fizemos umaguerra qu e era uma luta por territórios, por hegemonia, m asantes de tudo, uma guerra pela identidade afetada pela iminente derrocadade nosso império escravista e seu m odelo de " civilização".

Roberto Schwarz, "A s idéias fora do lugar", em Ao vencedor as batatas (São Paulo: Duas Cidades,1981), p. 15.

304 F r a n c is c o A J o m b e r t

A Guerra do Paraguai representou n o campo da cultura (no sentido dasideologias, das representações e das identidades), o momento em que omundo imperial-escravista enfrentou sua mais forte crise externa e interna.

0 B r a s i l n o e s p e l h o d o P a r a g u a i 305

sombra que se projeta nas obscuras relações entre o Brasil e o resto daAm érica Latina, ou, dito de outra forma, da idéia de Brasil construída emoposição aos outros estados de herança colonial que lhe são contemporâ

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Sobre a república guarani foram atirados exércitos, mas também idéias eimagens que buscavam transferir ao outro as mazelas que nossa realidadenos impunha, o "m al-estar" de nossa "civilização", para falar com Freud. OParaguai, bárbaro, incivilizado, autoritário, atrasado aos olhos da cultura da

corte, serviria então para nos salvar de nossas próprias condições e definir aimagem civilizada que tanto buscávam os. No esp elho do Paraguai - usadocom o metáfora da situação latino-americana - construiu-se um dos elementos de nossa "identidade nacional".

Em seu l ivro Ordem e progresso, G ilberto Freire elaborou am pla pesquisa biográfica com p essoas nascidas entre 1850 e 19 00 .0 sociólogo descobriu que para a formação desses homens e mulheres foi importante apresença rotineira de brincadeiras infan tis inspiradas na G uerra d o Paraguai.N essas brincadeiras, criava-se a idealização de soldados como heróis nacionais.2 M ais do que nossa historiografia po ssa te r pensado (pois de fato nunca pensou), a Guerra do Paraguai entranha-se de maneira efetiva na

composição ideológica nacional. A imagem das crianças e da infância atém-se a ela, perpassa os anos, chega a todos que, num momento ou noutro,cantaram eu fui no Itororó... Quando lutávamos contra a "barbárie"paraguaia, uma das justificativas "civilizacionais" vinha da idéia d e q u e faríam os um bem ao inimigo, revelando-lhe justamente su a condição de civilização em estado de infância, já q u e , para nossos ideólog os do Império, éramosentão um povo "adulto". Mas vencida a guerra contra as "crianças" guaranis,passados muitos anos e m uitas mudanças políticas, sociais, econômicas, parece que a idéia do "Brasil criança", do "país do futuro", foi a que maisimpregnou-se entre nós. A memória da guerra poderia não ser nomeada,mas co nvertia-se e m "cultura".

O s motivo s e as conseqüências q ue produziram a Guerra do Paraguai- a que aconteceu entre 186 4 e 1870 e a Guerra das Letras, do s Do cumen t o s , das Interpretações que se lhe seguiram - condicionaram (mais do que asdiferenças " lingüísticas", "culturais" ou relativas à colonização hispânica) a

2 Cf. Gilberto Freire, Ordem e progresso (Rio de Janeiro: José Olympio, 1962). Cf. tambémRicardo Salles, Memórias de guerra. Guerra do Paraguai e narrativa nacional, mimeo., 1997.

neos. Sensibilidades que não se encontram entre historiadores e especialistasperceberam isso co m imensa clareza na capacidade de propor problemas.

A artistaplástica Regina Silveira reconheceu e interpretou a questão emduas obras. N a primeira, sob o crivo da ironia e da perplexidade questio-

nadora, elaborou um a espécie de painel intitulado to be continued..., um amontagem caótica onde figuras, mitos, emblemas e sinais característicos dahistória e da cultura de toda a Am érica Latina são apresentados na forma deum quebra-cabeça. Nã o há resposta à vista nem mesm o trilhas a seguir porentre o caos dos símbolos, apenas a constatação de uma impossibilidadequ e a própria história, personagem e fundo da obra, nos lego u. Diante d ela,a única pergunta, a pergunta essencial aliás, é a constatação da impossibilidade que a própria artista sintetiza: " N a verdade, eu não sei o que é Am éricaLatina".3

Não vemos por onde puxar o fio da meada, mas sabemos, e a artistatambém, por onde com eçar a desatar os nós. Num a obra de 19 94 intitulada

O paradoxo do santo, Regina Silveira nos apresenta um desses n ó s , justamente o que principia na Guerra do Paraguai. Na obra, a artista contrapõeuma pequena figura de Santiago a cavalo - nada menos que o proclamadopatrono da América espanho la - a uma sombra projetada na parede daescultura que B recheret, noss o escultor modernista por excelência, fez d oduque de Caxias. É desnecessário comentar o impasse que o paradoxo e ojogo da sombra e da projeção instalam entre presente, passado, história,memória e modernidade.

O presente ensaio organiza-se em torno da seguinte questão: como umevento histórico pôde funcionar ao m esmo tempo para demarcar o futurodas relações tensas entre o B rasil e o resto da A mérica Latina e ainda servir

com o base fantasmagórica n o processo de con stituição da idéia de "culturabrasileira"? Um a da s respostas possíveis seria q u e a busca da diferença dianteda Am érica do Sul foi um dos caminhos pelos quais desenhou-se a imagemdo Brasil como cultura "originar. Trata-se, portanto, de analisar as cons-

3 "Regina Silveira devora e subverte arquitetura e história." Entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, "Caderno 2", 8 set. 1998, p. D12.

306 F r a n c i s c o A l a m b e r t

truções e os artifícios ideológico s que estão no fundo d o debate cultural epolítico ocasionado pelo mais decisivo momento, ao lado da abolição daescravidão, do S egundo Reinado e suas conseqüên cias para a vida cultural

0 B r a s i l n o e s p e l h o d o P a r a g u a i 307

sidade, exercício da honra, defesa da civilização contra a barbárie. Passou aser também um pa sseio da civilização, um ajuste de contas que reporia nolugar as coisas que a A mérica do Sul vinha confundindo. Tudo p oderia ser

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brasileira posterior. Serão abordados três momentos em que se apontam ascontradições desse processo: a obra de Machado de Assis, no momento emque comen ta ou encena questões ligadas à Guerra do Paraguai; o discursocrítico dos p ositivistas, na virada do século; e a análise crítica esboçada pelo

jovem M onteiro Lobato.

i

O tema da Guerra do Paraguai na obra de Machado de A ssis ainda éum campo quase inexplorado.4 Ele se entranha na obra do autor, em suascrônicas, poesias, contos e romances. Observar a maneira com que nossomaior escritor acompanhou e refletiu sobre as questões da guerra permite-nos compreender a formação de um ideário cujos traços principais são, aprincípio, a oposição radical entre a sonhada "civilização brasileira" e a cul

tura paraguaia ou latino-americana. N esse sentido, M achado, assim comooutros escritores de sua época (destacando-se o visconde de Taunay), funciona como uma espécie de ideólogo do império. Mas com o tudo se moveardilosamente na obra do escritor, podemos acompanhar também o início deuma reflexão crítica que apontará na saga bélica nacional os indícios dascontradições que efetuaram a construção da idéia de B rasil que se erigiu nosanos posteriores.

Em suas primeiras crônicas de juventude, contemporâneas ao conflito,tudo era otimismo e possibilidade de redenção. A guerra era desejo, nec es-

4 Cf. Brito Broca, "A Guerra do Paraguai", em Machado de Assis e a política (São Paulo/Brasília:Polis/INL, Fundação Pró-Memória, 1983); Raimundo Magalhães Jr., "Machado de Assis e aGuerra do Paraguai", em Machado de Assis desconhecido (Rio de Janeiro: Civilização B rasileira,1955); Humberto Peregrino, A Guerra do Paraguai na obra de Machado dè Assis (João Pessoa:Departamento Cultural da Universidade Federal da Paraíba, 1969), Coleção Ensaios Contemporâneos, n. 3. Explorei mais detidamente esse tema em minha tese de doutoramento Civilizaçãoe barbárie, História e cultura: representações culturais e projeções da Guerra do Paraguai nascrises do Segundo Reinado e da Primeira República (São Paulo: FFLCH-USP, 1998), mimeo.Uma parte desse trabalho foi publicada em Maria Eduarda M. C. Marques (org.), A Guerra doParaguai, 130 anos depois (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995).

muito simples, ainda q u e se demonstrasse, dependendo da ocasião, que tudotinha um ar de solenidade civilizatória e obrigação cívica. Francisco S olanoLóp ez representa a negatividade total, o antiexemplo do caminho "liberal-monárquico" a ser trilhado. Suas atitudes, ou aquilo que se imaginava serem

suas convicçõe s, deveriam funcionar com o um espelho invertido. A mentirano poder inventa ações políticas que nosso cronista se esforça em ridicularizar para mostrá-las ainda mais ameaçadoras, ainda mais dignas de uma resposta em armas. É esse o presente que o ditador bárbaro de uma bárbaranação sem imperador oferece aos seus:

O cavaleiro paraguaio convoca as multidões, prepara as m anifestações públicas, fala-lhes a linguagem da liberdade e do valor. Tudo se extasia, tudo aplaude; corre umafaísca elétrica por todos os peitos; uma centelha basta para inflamá-los. Ninguémmais hesita; todos vão depor no altar da pátria o óbolo do seu dever - o s homens o seusangue, as mulheres a sua honra.5

Ora, não é exatamente o mesmo que faz Machado no campo de cá?Suas crônicas não funcionam exatamente assim, convocando uma particular"multidão" restrita ao mundo da corte, da opinião que pesa e que, no finaldas contas, é qu em vai decidir a sorte da contenda? Sua linguagem irônica eindignada, apelativa aos valores pátrios, não quer funcionar como " centelha"para inflamar nossos ânimos guerreiros? Seu desejo não é exatamente poderum d ia dizer algo com o: contribuí com minha parte de escritor, "ninguémmais hesita"? Não seria tão absurdo ver López co mo o seu "O utro", como oParaguai era o "Outro" do Brasil. Era melhor matá-lo logo, tão grande eameaçadora era sua presença para que a identidade p udesse se ver livre.6

Prontamente, a guerra, segundo M achado, deixa de ser uma temeridade para se tornar orgulho, desejo escondido no inconsciente nacional, na

5 Machado de Assis, Crônicas (1864-1867) (Rio de Janeiro: W. M. Jackson Editores, 1946),publicada em 24 out. 1864.

6 "Depois de Aguirre, passa-se a López. Mata-se o dois de paus e arma-se a cartada ao rei de copas.É esse o pensamento de um epigrama publicado no último número da Semana Ilustrada: 'joga-se agora no Prata,/Um jogo dos menos maus:/0 López é o rei de copas/O Aguirre é o rei depaus" ' , 24 jan. 1865, ibid., p. 299.

3 0 8 F r a n c is c o A l a m b e r t

alma de hom ens e mulheres, no "ventre das mães", que não pode ser represado: "Todos desejam a entrada das forças libertadoras"7; "Todos os espíritos estão voltados para o sul. A guerra é o fato que trabalha em todas as

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Era o golp e final, dirigido certeiro no coração do problema brasileiro.Agora, os sú ditos da corte escravista podiam tomar para si a tarefa de libertar os "escravos" paraguaios... N ossos escravocratas recebiam da pena po

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cabeças, que provoca todas as dedicações, que desperta todos os sentimentos nacionais".8 "Todos" juntos com "todos". O fruir a guerra deve serexperimentado como êxtase coletivo , como glorificação dos mais altos ideais civilizatórios. Suas agruras se consubstanciam nos símbolos da força e do

saber - em fogo, em luz - para alcançarem a "Justiça", a "Liberdade". Porum momento a guerra torna-se a religião d a nação em comunhão e o escritorseu capelão. Para a expressão de tais sentimen tos, agora claramente extremados, a lírica seria o lugar mais apropriado:

[...]Então (nobre espetáculo, só próprioDe almas livres!) então rompem-se os elosDe homens a homens. Coração, família,Abafam-se, aniquilam-se: perduraUma idéia, a da pátria [...]Basta isso? Ainda n ã o . Se o império é fogo,

Também é luz: abrasa, mas aclara.Onde levar a flama da justiça,Deixa um raio de nova liberdade.Não lhe basta escrever uma vitória,Lá onde a tirania oprime um povo;Outra, tão grande, lhe desperta os brio s;Vença uma vez no campo , outra nas almas;

Era justamente a batalha das "almas" que estava em processo, umaguerra contra a apatia, o desinteresse, a ind ecisão e a dúvida. Um a batalhapela idéia do Brasil diferente e superior ao resto da América. Os últimosversos funcionam como o tiro de misericórdia, m ortífero, contra qualquer

resíduo de indecisão marcial:

Quebre as duras algemas que roxeiamPulsos de escravos. Faça-os homens.9

7 24jan. 1865, ibid., p. 327.8 21 fev. 1865, ibid., p. 327.9 "A cólera do Império", em Obra completa (Rio de Janeiro: José Aguilar, 1997), vol. III, p. 299.

Já vinha de antes essa pulsão patriótica em versos, bem como essa representação do Brasil

ética o m ais cobiçado presente: ganhavam o direito de ser os libertadoresdos "escravos" dos outros ao mesmo tempo que podiam continuar a serescravizadores em sua própria nação. O transe marcial, agora mais do queantes, seria o curativo de um a ferida aberta. O bom sono estava salvo com

essa guerra redentora.O teatro de guerra compô s o palco ideal para que Machado lançasse,

ou resum isse, idéias centrais para a formação d o espírito bélico, o que nocaso poderia não ser, como quer Faoro, uma apologia do exército comoinstituição salvadora nacional, mas certamente é uma defesa da guerra emnome de determinados ideais de "civilização".10 O Paraguai, o mais estranhodos países dessa estranha América que rodeava ao longe o mundo da ru a doOuvidor, tão bem retratado por Machado, deu-lhe o mote para exercer opapel de publicista do Império, ainda que esse personagem não lhe caíssebem. Seu "testemunho" distante dos casos e razões da guerra diz muito desse lugar onde repousava a "opinião pública" nacional - vale dizer, da corte -

e de ve também dizer bastante (esse é um assunto que os estud iosos do autorainda estão por abordar mais firmem ente) sobre a formação política e ide ológica do grande escritor.

M as o cronista Machado de A ssis se encaminhou para a ficção, se fezcontista ao mesmo tem po que a guerra chegava a seu fim. Em con tos com o"Um capitão de voluntários" ou "Uma noite", por exemp lo (assim com o noromance laia Garcia), a guerra funciona com o plano, fundo e situação importantes no quadro pintado pela narrativa. Neles, o tema da Guerra doParaguai assume novos timbres, que trazem sutis inflexões à abordagem,realinhando a reflexão para outros cam pos.

Vejam os com o o tema se apresenta agora em um desses contos. "Um

capitão de voluntários" trata de um homem que resolve partir para a guerra

escravocrata como campeão da liberdade. Por ocasião da questão anglo-brasileira, Machado teriapublicado um "Hino Patriótico", identificado por J. Galante de Sousa, que, em uma de suasestrofes inflamadas, diz: "Nação livre, é nossa glória/Rejeitar grilhão servilj/Pareça a nossamemória/Salva a honra do Brasil", ibid., pp. 298-9.

10 Raymundo Faoro, Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio (São Paulo: Nacional, 1976).

3 1 0 F r a n c is c o A l a m b e r t

quando se descobre traído pela m ulher e pelo melhor a migo. Entretanto, "a

causa foi complexa",11 como se diz já no fim da narrativa, e que pode ser

tomado como metáfora das causas e das resoluções da própria guerra (e,

0 B r a s il n o e s p e lh o d o P a r a g u a i 311

Magalhães Júnior notou que essa posição crítica, posta na boca de"X", esse julgamento qu ase iconoclástico diante dasantes sagradas razõesdo conflito, poderia explicar-se pelas razões e conseqüências da guerra que,anos depois de seu término, podiam ser melhor balanceadas, como a posi

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por extensão, das motivações que animaram o próprio escritor). No início,um primeiro narrador, que log o se retirará, nos d á notícia de qu e a história aseguir será um relato escrito por outro narrador, este também um dos protagonistas da trama. Sim ão de Castro nos contará umepisódio de sua vida.

Um episódio que envolve amizade, amores ilícitos, traição, abandono, moralambígua, guerra e morte. "X" era seu melhor amigo (só na última linha dotexto ficamos sabendo seu nome: Em ílio). M ais velho, "X " vivia maritalmentecom Maria, uma baiana que "fora educada no Rio Grande do Sul", "ummodelo de graças finas", mulher que "tinha em si o fogo e o gelo".12 Aprincípio, o narrador nos insere nas circunstâncias d as relações estreitas entre ostrês personagens, que logo formarão um trágico triângulo amoroso.

Antes, porém, o tema da guerra é introduzido, proporcionando-nostanto uma outra situação quanto uma posição diferenciada diante do evento.Nesse conto o tema dahesitação, da apresentação de diferentes atitudes eopiniões sobre o conflito b élico, a p a r d o conflito amoroso, d á o tom particu

lar. Vemos M aria dedicada a recolher donativos para a guerra. A isso responde ceticamente "X", declarando que tais ações não são mais que"fantasias" passageiras. Do ceticismo à dúvida, vai se operando uma transformação nas certezas quanto ao caráter civilizador do conflito - até mesmoquanto à posição que o país deveria assumir diante de seus supostos aliados.É o qu e se vê num diálogo surpreendente entre " X " e seu amigo, que sucedeaquela impressão de ceticismo:

- [...] a Guerra do Paraguai, não digo que não seja como todas as guerras, mas palavra,não entusiasma. A princípio, sim, quando López tomou o "Marquês de Olinda",fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que tínhamos feito muito melhor se nos aliássemos aoLópez contra os argentinos.

- Eu n ã o . Prefiro os argentinos.- Também gosto deles, mas, no interesse da nossa gente, era melhor ficar com López.- Não; olhe, eu estive quase a alistar-me com o voluntário da pátria.- Eu, nemqu e me fizessem coronel não me alistaria.13

1 ' "Um capitão de voluntários", em Obra completa (Relíquias de casa velha), cit, p. 694.l2Ibid., pp. 690-1."Ibid., pp. 688-9.

çã o d a Argentina que "enriquecera com os fornecimentos ao nosso exércitoe à nossa esquadra, obtendo as vantagens e nos deixando os ônus".14

É uma explicação bastante convincente e, de certa forma, dizalgo do

sutil ceticismo que tomou nosso escritor nos anos posteriores àqueles emque escrevia seu evangelho bélico em versos e crônicas. Entretanto, são aindaos temas íntimos e domésticos que surpreendem e dirigem os saltos narrativ o s , as mudanças deatitude. O narrador e M aria aproximam-se, e nvolvem -se , separam-se. O marido descobre tudo. Não se revolta, não enfrenta nemo amigo traidor nem a mulher adúltera, não se sabe se por amizade e amor,p or bondade ou por vergonha. S eu castigo, para todos e para si, é ir à guerra-j us to ele, que acreditava ter sido melhor a aliança com L ópez... O esforçode guerra não é mais do que a máscara ideal para o destino das identidadesem crise: "lá fora torno a ser o que sou, e, na campanha, serei o que devoser".15 A ssim, "alguma coisa mais particular q ue o patriotismo",16 como diz o

narrador numa passagem , cond uz a sorte dovoluntariado e desmascara su-tilmente a honra patriótica.

O amálgama histórico entre uma guerra de sentido duvidoso e os dilemas morais e regras subsumidas da ordem social brasileira formam o fundode um a tela pintada com cores de tragédia. "X" morre em combate. Mariamorre em Curitiba, quando regressava dos anos que passou no Rio Grandedo Sul à espera (ou não, pois nunca são claros seus motivos) do retorno dohomem com quem viveu. Também morrera uma filha que tivera antes deconhecer " X " (não sabemos ao certo em que circunstância). O amigo fica sócom seus "remorsos", até que, ao embarcar para a Europa, "logo depois daproclamação da república"17 (seria ummonarquista?, chora-se também a

morte do império?), deixa para outros os relatos do episódio terrível. Tudona vida da corte, em seu teatro de bons modos e hipocrisia, compõe umatragédia dissimulada, um a guerra n ã o declarada. AGuerra do Paraguai esta-

14 Raimundo Magalhães Jr., "Machado deAssis e a Guerra doParaguai", cit., p. 55.15 "Um capitão de voluntários", cit., p. 693.t6Ibidem.iJ Ibid., p. 685.

3 1 2 F r a n ci s c o A l a m b e r t

va aqui. O teatro da guerra não era mais que uma exten são do teatro social.A hipocrisia e a ilusão que o cronista e o poeta Machado de Assis viam noParaguai era a mesma que o contista via inteira nos jogos d a corte brasileira.

Ir ou não à guerra, escolher participar de um evento político nacional, é

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Os ideólogos positivistas ligados à Igreja Positivista do Rio de Janeiro

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um tema que leva ao problema da decisão e seus motivos. Aqui, Machadoparece encenar a questão do deslocamen to do p olítico para o privado, numaresolução bem típica daquilo que Roberto Schwarz, pensando a obra do

escritor ao mesmo tempo que o movimento das idéias e sua efetivação noBrasil, chamou d e "idéias fora do lugar". Afinal, M achado parece proble-matizar a ausência efetiva, entre nós, de uma relação substanciosa entre osacontecimentos de caráter nacional e o engajamento político dos "cidadãos"(vale dizer, aqueles pouco s a quem a cidadania era permitida). É como senos mostrasse que aqui não existe essa relação de substância, e as d ecisõespolíticas funcionam n o terreno privado como um fim em si mesmas.18

A ssim, no primeiro momento, a partir do conflito com o Paraguai, Machado contribuiu para criar imagens e estereótipos que vieram para ficar, quese incorporaram à ideologia brasileira. No segun do, encenou discretamentea crítica desse m esmo processo que ajudou a iniciar. Uma chave cujos d es

dobramentos poderiam ser contra-ideológicos. Dessa forma, iniciou também a crítica necessária para a compreensão do lugar e das conseqü ênciasda Guerra do P araguai na vida cultural brasileira. N ão era pou co.

S e a Belle Époque européia terminou com uma guerra, a nossa com eçou com uma. N o que se seguiu, na construção de nossa "modernidade", aguerra permaneceu como fantasmagoria. Por isso, a Guerra d o Paraguai e osconflitos inerentes à sua interpretação se fizeram presentes sempre que tivemos que nos defrontar com os impasses da "modernidade", em todos osseus campos e sentidos. Como em Machado, as interpretações flutuaramentre essa possibilidade de reconhecimento do "país profundo" com seucontrário, a idealização do Brasil como nação original - e por isso, tudo

podia ser aceito, mesmo , ou principalmente, diante da Am érica Latina, nosso oposto metaforizado pela imagem demonizada do Paraguai cujo futuroposterior a guerra reforçou.

18 Cf. John Gledson, Machado de Assis: ficção e história (Rio de Janeiro: P az e Terra, 1986). Verdo mesmo autor, "Introdução", em Machado de Assis, A Semana: crônicas (1892-1893) (SãoPaulo: Hucitec, 1996).

foram os mais duros críticos do envolvimento do Brasil na guerra e suasconseqüências, travando verdadeiras batalhas pelos jornais para denunciar a

incúria do império, à qual opunham seu projeto republicano de inspiraçãocomtiana. De fato, e a rigor, a luta contra a herança da Guerra do Paraguai

iniciou-se com eles, o que n os permite supor que a transposição do esquem apositivista para o B rasil produziu pelo menos u m aspecto novo: o universalismodos positivistas pensava a América Latina como um todo. Nessa visada,resolver a questão pendente da guerra era fundamental para a efetiva retomada de um projeto republicano de integração latino-americana. Ospositivistas foram apóstolos dessa união, na qual caberia o Brasil inteiro, aocontrário de propostas integracionistas oriundas do sécu lo X IX , com o a queprofessou o escritor francês Charles Expilly ou o geógrafo anarquista EliséeReclus.19 As sim, colocaram em jo go uma outra visão do ideal civilizacional,pautado em seus princípios universalizantes, mas também numa interpretação negativa do papel da guerra n a constituição da nacionalidade brasileira.

Com isso, talvez tenham ensaiado abrir - como disse Alfredo Bosi comentando outro aspecto pouco co nhecido da militância positivista - "as trilhasque sulcam o processo civilizatório".20

Em um artigo intitulado "Pela fraternidade sul-americana e especialmente B razil-Argentina", Raimundo T eixeira Men des, vice-diretor d a IgrejaPositivista do R io de Janeiro, comenta um incidente ocorrido em 25 de maiode 1910, no qual "um grupo de moços exaltados" teria arrancado a bandeirabrasileira do "C afé Paulista", na cidade argentina de Rosário de Santa Fé.

19 Duríssimo crítico da m onarquia e do escravismo brasileiro, Expilly sonhava com a constituição

de uma n ova "civilização latina" que incluiria indígenas e africanos no sul da A mérica do Sul apartir do P araguai (para ele a mais progressista das nações latino-americanas), unindo, a princíp i o , as províncias argentinas, o s u l , o sudeste (até São Paulo) e o M ato Grosso, no Brasil, além doUruguai. Cf. C. Expilly, L e Brésil, Buenos Aires, Montevideo et le Paraguay devant Ia civilization(Paris: E. Dentu, 1866). Já Reclus esboçou o projeto de uma federação na zona equatorial, unindoa região amazônica brasileira e andina. Cf. E. Reclus, "Le Brésil et Ia colonization, I et II", emRevue des Deux Mondes, Paris: tomo XXXIX, 15 jun. e 15 jul., 1862; "Les republiques de1'Amériquedu Sud - leurs guerres et leurs projets de civilization", em Revue des Deux Mondes,tomo LXV, 15 out. 1866.

20 Alfredo B osi, "A arqueologia do Estado-Providência: sobre um enxerto de idéias de longa duraç ã o " , em Dialética da colonização (São Paulo: Companhia das Letras, 1992), p. 304.

314 F r a n c is c o A l a m b e r t

Como resposta, um grupo de brasileiros atacou o consulado argentino noRio Grande do Sul. Detectando o clima de violência e rivalidade entre osdois países, o artigo positivista aproveita para atacar as "encenações militaristas". E conclui destacando o lugar chave da Guerra do Paraguai nesse

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Procurando responder à guerra de fatos e contrafatos, cujo objetivo eraproclamar o silêncio pe los erros do império escravista em nome da unidaded a pátria, que se alastrou pelo s éculo X D C , os positivistas afirmam agora: "Overdadeiro culto dos antepassados prescreve a confissão de suas culpas e

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clima, ressurgindo no presente como um trauma nã o resolvido: "o dia de hojesó poderá ser de regozijo para os brasileiros, como para a Humanidade,quando ele [o Brasil] assimilar a cabal reparação do crime que a Guerra do

Paraguai constitui".21

Os positivistas tocavam as feridas abertas e retomavam as críticas de,por exemplo, C harles Expilly, com relação ao alto preço que pagaria o Brasilpor te r mantido a escravidão. Em outro artigo, "Pela fraternidade universal",sutilmente provocando os "contemporâneos", diz:

[...] cumpre-nos, porém, neste solene momento, respeitosamente lembrar que - hámeio século - a América, o Ocidente, a Humanidade, ansiosamente aguardam a inauguração da realização dessas esperanças regeneradoras, mediante a sincera reparação dos maiores crimes e erros de nossos antepassados e contemporâneos, quando -a par com a escravidão da raça africana - rematarão as atrocidades praticadas contraas ingênuas tribos selvagens, senhoras do continente colombiano, pelo monstruoso

aniquilamento da mais am ericana talvez das nações americanas [...]22

Vale observar, aqui, além da referência à escravidão e da substituiçãodo termo "negro", tão marcado pelo passado escravista, por um mais honroso "africano", e o em prego do termo "continente colombiano", usado repetidas vezes no lugar de América Latina. Isso demonstra a ênfase na questãoamericana e na utopia da constituição de um campo comum de afinidades einteresses na Am érica do Su l. Tal preocupação se justificava na medida emque eles acreditavam que as rivalidades entre B rasil e Argentina poderiamredundar em outro conflito 23 derivado da questão da dívida paraguaia, quefazia rondar fantasmagoricamente a hipótese de anexação do Paraguai pelo

Brasil ou pela Argentina, caso não houvesse indenização.Em "Paraguai-Argentina-Brasil", o s positivistas afirmam que dentre

todas as guerras "fratricidas", a Guerra do P araguai teria um papel especial,uma vez que o pôs "quatro povos irmanados biológica e sociologicamente".

21 Publicado no Jornal do Comércio, 25 maio 1910.22 Jornal do Comércio, 19 ago. 1912, p. 4.23 "Ainda pela fraternidade universal", em Jornal do Comércio, 18 set. 1912.

erros".24

A "verdade histórica", e não mais a "verdade dos fatos" com o antes,agora assume um sentido negativo. O passado não exposto da guerra contra

o P araguai assombra, dirige e desestabiliza o presente. Fazia-se necessáriocombater esses efeitos. O primeiro deles era a possibilidade sempre crescente de conflitos com a Argentina. Por isso, p ublicam uma série de artigoscom o título " A confraternização Brasil-Argentina". Nesses artigos é formulada uma incisiva pergunta: "o que lucrou a Humanidade com a Guerra doParaguai?". A resposta vem certeira:

[...] os prejuízos foram im ensos, sob todos os aspectos e especialmente sob o aspecto moral. É dessa guerra nefanda que data a recrudescência do espírito militante quetem perturbado até hoje a evolução pacífico-industrial do povo brasileiro e dos povossul-americanos. Os quadros que tentam celebrá-la hão de despertar em nossos descendentes o horror que hoje nos acusaria a contemplação de uma cena de antropofagia

ou de um navio negreiro! [.. .]25

Tudo é dito em nome da moral e dos altos valores da humanidade:'Tod a a guerra provém sempre do atraso moral e m ental dos beligerantes".Entretanto, as coisas mudam de figura quando se pensa em territórios e propriedades:

Porém as m esmas reflexões demonstram que o erro cometido pelo Brasil e Argentina,impondo arbitrariamente os limites que quiseram à nossa irmã a República d o Paraguai,mortalmente vencida, não comportaria, infelizmente, agora, reparação direta alguma.Com efeito, os supremos interesses da Humanidade não consentem que se pretendaanular o ato consumado há quase meio século, e nas desgraçadas condições em que o

f o i , para submeter as questões de limites ao arbitramento.26

24 Jornal do Comércio, 25 set. 1912, edição da manhã, seção "Ineditorial".25 Raimundo Teixeira Mendes, A confraternização Brasil-Argentina, a independência da nossa

irmã a R e p . do Paraguai, e o cancelamento da sacrttega dívida resultante para esta, da guerrafratricida entre ela e o Brasil (Rio de Janeiro: S ede Central da Igreja Positivista d o Brasil, Jornal

do Comércio, 1912), pp. 27-8.26Ibid.,p. 11 .

316 F r a n c i s c o A l a m b e r t

Agora, "desde que não é p ossível ressuscitar os aborígines e restituir-lhes os territórios usurpados", resta reocupar os territórios e as identidadesarruinadas através dos princípios civilizados ocidentais, ou seja, positivistas.A combalida imagem do Paraguai, desgastada pelos anos de abominação a

0 B r a s i l n o e s p e l h o d o P a r a g u a i 317

Outro momento que suscita a retomada do debate sobre a guerra e suaherança é a proposta de construção de um monumento em homenagem aRiachuelo:

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que foi subm etida pelo esforço em justificar a guerra é colocada em novostermos, ou, pelo menos, termos que remontam à caracterização que delafaziam autores como Expilly e Reclus: a "República do Paraguai é a maisamericana das nações ocidentais [...] tão ibérica como a argentina ou a brasileira".27

A s fontes nacionais nas quais se baseiam as idéias positivistas sobre asituação da América são conhecidas. Numa outra coleção de artigos,publicada em 1910, "Pela fraternidade universal, e especialmente sul-americana", além de B enjamin C onstant, José B onifácio é recuperado como crítico de primeira hora da guerra. Com a autoridade do político imperial, odiscurso positivista conseguiu alcançar um tom ainda mais forte em suas crí

ticas.28 Um novo cânone de personagens históricos vai se formando com acruzada positivista. Autores e depoimentos antes silenciados, como o dodeputado e escritor Cristiano Otôni,29 ou restritos aos críticos estrangeirospassam a fazer parte da edificação de uma espécie de contra-história doconflito sul-americano.

Vai ficando claro que a crítica positivista, nesse caso esp ecífico pelomenos, desconcerta a memória da nação vitoriosa, indispõe-se com a sagaguerreira nacional, legitima os sentimentos negativos em relação ao conflitoe, por conseguinte, a imagem da nação estável e justa forjada em oposição àAmérica Latina "bárbara" e retrógrada. Nesse processo, põe em questãoaté mesm o a glorificação do militarismo que se acoplou à república, do qual,como se sabe, os próprios positivistas foram adeptos.

27 Ibid., p. 14.28 Raimundo Teixeira Mendes, Pela fraternidade universal, e especialmente sul-americana: a

propósito de mais uma comemoração da desgraçada guerra travada entre os quatro povosirmãos, brasileiro, argentino, uruguaio, de um lado e paraguaio, de outro (Rio de Janeiro: Typ.do Apostolado Positivista do Brasil, 1910), p. 3.

29 "Passou, por certo, no tempo, que o nosso inimigo, uma ou duas vezes, em seguida a sériosreveses, esteve disposto a negociar a paz [...] E que a grande dificuldade era a pretensão de depô-lo , a ele López, estipulada pelos aliados. [...] A campanha nos foi uma enorme calamidade, nãocompensada por glória militar equivalente, nem por aumento de segurança em nossa fronteira",citado em artigo publicado no Jornal do Comércio, 25 maio 1911.

[...] Foi com a escravidão que se elaborou o passado brasileiro. Ainda na própriaexecranda guerra, cuja glorificação d escabida ocasiona estas linhas, fez-se sentir ainfluência da nefanda instituição. Pois, como é sabido, foram libertados escravos paraservirem no exército. E quem se lembraria hoje de propor que se erigisse um monu

mento à escravidão como fator importante na constituição do povo brasileiro?30

Como podemos ver, os positivistas faziam perguntas inconvenientes.Mas é certo também que tais perguntas eram muito melhores do que suasrespostas, no m ais das vezes meramente doutrinárias. S eus princípios, comoé sabido, eram as idéias de Com te, que via a grandeza futura da humanidadecomo resultante da fusão da "raça branca" com as "raças" italianas e ibéric a s , britânicas e germânicas, negra, amarela, etc. Essa utopia integracionistaseria o "progresso" e o futuro da "civilização". M as, po r força d as condiçõesnacionais esboçadas anteriormente - a escravidão, o militarismo e a Guerrado P araguai, momento-chave onde todas as distorções nacionais se irmana

ra m contra qualquer desejo de união americanista - , o A postolado, independente de sua doutrinação, acabou por revisar fortemente um a parte da históriaq ue envolveu o fim da monarquia e o início d e u m a sociedade civil, machucadade saída por uma guerra de sentido obscuro. Por tudo isso, os positivistastiveram a capacidade de nos alertar para as dificuldades do caminho que opassado nos legou para q ue chegássemos a qualquer estágio considerável de"civilização" e "justiça". Um de seus artigos conclui-se assim, e m tom depergunta inquietante: "a política sem ideais do Império fez com que fo sse oGoverno brasileiro o ú ltimo a abolir a escravidão africana; a mesma p olíticacontinuada pela República reserva ao Governo brasileiro a triste sorte d e sero último a abandonar o regime militar. E a isso chama-se Pátria?".31

Seria necessária uma abordagem teórica incisiva para que se pudesseexplicar efetivamente a situação d o positivism o brasileiro diante desse projeto americanista esboçad o. Para nossos fins e limites resta dizer que se podeencontrar, ainda antes de se iniciarem o s "famosos anos vinte", que substi-

30 Raimundo Teixeira Mendes, Pela fraternidade universal, cit., p. 4.31 Jornal do Comércio, 10 dez. 1906.

318F r a n c i sc o A l a m b e r t

turram o b inômio "civilização-barbárie" por "modernidade-brasilidade", frutos desse ataque revisionista. Em 21 de março de 1916, mais ou menos namesma época em que os positivistas faziam sua pregação, era lançado naBahia um requerimento pedindo a abolição d o s festejos de Tuiuti e Riachuelo.32

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Se a Primeira R epública durasse muito mais do q ue durou, o traumahistórico estaria resolvido a partir de sua substituição pela "ideologia da cultura brasileira".33 Porém, as crises foram se sucedendo ao longo dos anosvinte e início dos trinta, o q u e , vez por outra, fazia o temor da guerra voltar a

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Especialmente, era também esse o momento em que os Institutos H istóricose a Revista do Brasil voltavam a se interessar pelo tema da Guerra doParaguai. Um d ocumento com o esse pod e nos mostrar como de fato a batalha sobre os sentidos da guerra penetrou o século e permaneceu presente,

como uma sombra, durante a construção do sentido da "cultura brasileira".O texto do requerimento, aqui reproduzido em parte, é o seguinte:

Há mais de nove lustros que o Paraguai e o Brasil mantêm os mais amistosos desígniosnas suas relações internacionais. Relembrar, portanto, em meio de públicas solenida-des os atos de guerra havidos entre os dois povos irmãos [...] ofende aos intuitos edestoa dos ditames de uma sã política racional orientada para a confraternização dospovos [...] E, considerando um nobilíssimo dever cívico render homenagens aos queno passado souberam amar e sentir a Pátria Brasileira, quer nos campos de batalha,quer nas outras esferas da atividade humana, pedimos designe o G overno da R epública um dia para que anualmente se prestem, em todos os recantos do País, públicospreitos de amor e gratidão aos que, na paz e na guerra, honraram o nome brasileiro.

Para esse dia de culto cívico lembramos o 26 de janeiro, aniversário da "capitulação daCampina do Taborda", glorioso epílogo da luta defensiva sustentada durante 24 anos,em prol da integridade do pátrio território, pelos guerreiros heróicos do indígenaFelippe Camarão, do negro Henriques Dias e dos brancos André Vidal e FernandesVieira, representantes denodados das três raças constitutivas de nosso povo .

Os autores sabiam bem o que pretendiam, e propunham uma reade-quação do jog o da m emória histórica, substituindo o culto da guerra pelacelebração do país das três raças irmanadas. Tal proposição visava reavaliara história de uma tragédia nacional (que no caso nasceu de uma vitória),formulando um novo mito que fala à memória e substitui a lembrança dobelicismo escravista pela ideologia d o caráter "cordial" brasileiro (que então

se afirmava). Assim, seria possível "irmanar mais intimamente os membrosdas classes militares entre si", bem com o "estreitar ainda mais os laços defraternidade que os prendem às classe s civis".

Antônio Costa Ferreira et alii, Requerimento ao presidente da República (Venceslau Brás)pedindo a abolição dos festejos comemorativos pela vitória brasileira nas batalhas de Tuiuti eRiachuelo. São Félix, Bahia, 21 ja n. 1916. 2f., impresso com assinaturas autografadas. O documento encontra-se na seção de manuscritos da Biblioteca Nacional.

assombrar o mundo dos v ivos e o silêncio dos mortos. É como se os autorespercebessem , questionando a herança da guerra, esse drama que acometeas "classes militares" e as opõe "às classes civis", bem como cria tensõesdentro dessas mesm as classes , e propusessem uma saída conciliadora para

tentar esvaziar as contradições. Seja como for, a Guerra do Paraguai eraainda um pesadelo de difícil despertar, um trauma muito longe de serequacionado no inconsciente da nação.

II I

Do mesmo modo como Machado de Assis percebera que depois daGuerra do Paraguai os relógios andavam m ais depressa - ou seja, a modernização batia definitivamente às portas do Brasil — ,34 M onteiro L obato pare

ce te r percebido as transformações no tem po que a ordem do progresso sobo capitalismo impunha após o fim de outro conflito, a Primeira Guerra Mundial de 1914-1918. Talvez nenhum outro intelectual de sua época tenha dadotanta atenção ao tema da modernização e aos impactos do progresso capitalista na estrutura econômica, política e cultural brasileira quanto ele. 35 Po risso mesmo, o tema da Guerra do Paraguai não poderia deixar de aparecerem suas preocupações.

Em 1921, mesmo ano em que aparecem a novela Os negros e a coletânea de contos Cidades mortas, Lobato reúne vários escritos dispersos e

33 Penso aqui à maneira crítica de Carlos Guilherme Mota, Ideologia da cultura brasileira (SãoPaulo: Ática, 1978).

34 Gazeta de Notícias, 6 ago. 1893. Cf. Machado de Assis, A Semana: crônicas (1892-1893), cit.,John Gledson (org.), p. 29.

35 O papel específico de Lobato, com seus avanços e ambigüidades, na formação intelectual moderna brasileira tem sido objeto de m uitos estudos recentemente. Cf. Tadeu Chiarelli, Um jeca nosvernissages (São Paulo: Edusp, 1995); Vasda B. Landers, De Jeca a Macunaíma: MonteiroLobato e o modernismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988); Carmen L. Azevedo,Mareia Camargos, Vladimir Sacchetta, Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia (São Paulo:Editora SENAC São Paulo, 1997).

320F r a n ci s co A l a m b e r t

reflexões e os publica no volume intitulado A onda verde. Nele, encontramos surpreendentes abordagens do tema da Guerra do P araguai e sua relaçã o com a formação dasociedade brasileira. Trata-se deuma reflexão que,embora contemporânea de trabalhos como os de Batista Pereira ou dosideólogo s da guerra dos anos 20, se choca radicalmente com a maneira com

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o exaltamento das virtudes guerreiras, revigoram, na vitória, a mentalidadebélica enfraquecida nos anos de p a z " , impondo a "todas as almas uma idéiasuprema de vingança".40 É à instituição estatal, pensada em oposição aopovo livre, que é creditada a montagem exclusiva desse circo de horrores:

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qu e as heranças e conseqüências do conflito vinham sendo abordadas.36

Lobato soub e ver melhor do que qualquer outro de seus contemporâneos osimpasses nos quais o país transitava e sua íntima relação com um fato do

passado.O presente deMonteiro Lobato era o tempo da Primeira República e

das conseqüências d a modernização estimulada pelo café nos ritmos d a vidanas franjas dos centros urbanos. Elesoube ver e aproximar desse quadro agrande tragédia européia de então: a Primeira Guerra Mundial. Como erauma máquina de pensar paralelos, exemp los e soluções, irá se pôr a refletirprimeiramente sobre o papel da guerra no destino das civilizaçõ es. U m dostextos do livro apela a u m problema freudiano. Ele se pergunta: quem afinal éo "pai da guerra"?37

Para nosso liberal exaltadíssimo, o pai da guerra e ra o Estado, o "parasita" que sugava as forças de liberdade que emanavam do povo. A guerra

era seu meio mais terrível de existência e perpetuação, pois se atem ao mundo na medida em que se constitui num infernal círculo vicioso onde tanto a

vitória quanto a derrota não se diferenciam, po is não podem sanar as chagascriadas, mantendo "vivida a mentalidade guerreira".38 Trilhando esse cam in h o , Lobato se aproxima d a famosa interpretação de Walter Benjamin quanto ao caráter estetizante da guerra,39 especialmente na forma que lhe deu o

nazismo (que antes já havia promovido a estetização d a política), responsável por sua permanência e reprodução: "a apoteose d os heróis, a apresentação estética de todos os crimes, o embelezamento sistemático d a carniçaria,

36

Antônio Batista Pereira, Civilização contra barbárie (São Paulo: Rossetti&Camara, 1928). Aobra deBatista Pereira resume todos osargumentos favoráveis aoimpério brasileiro no momento em que a discussão sobre os sentidos da Guerra d o Paraguai ganhou destaque nos anos 20, coma aproximação dacrise daPrimeira República.

37 Monteiro Lobato, " O pai da guerra", em A onda verde e o presidente negro ( S ã o Paulo: Brasiliense,1951), pp. 53-8.

38 Ibid., p. 53.39 Cf. W alter Benjamin, "Teorias do fascismo alemão"; "A obra de arte na época de sua

reprodutibilidade técnica", em Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas de Walter Benjamin (São Paulo: Brasiliense, 1986), vol. 1.

[...] pois os povos não fizeram a guerra. Eles são vítimas da guerra, porque são

vítimas do monstro Estado. O monstro empolga-os e a partir da escola organiza a

mentira viva de que se alimenta e em que se rebolca. Mentira alemã de um lado,

mentira francesa de outro, mentira inglesa, mentira italiana, mentira em todos osidiomas, sob todas as formas.41

A Primeira Guerra Mundial deu o mote para que Lobato colocasse o

Brasil no rol das línguas dos Estados que mentem. AGuerra do Paraguai, a

Grande G uerra do século XIX sul-americano, era nossa mentira ainda pulsando num mundo demuitas mentiras bélicas, um m undo que se esforçavapor sobreviver ao fim da era dos impérios. E a porta de entrada na nossaGrande G uerra foi o episódio de Uruguaiana.

Uruguaiana foi tema deuma espécie deresenha incluída no livro. A

idéia de pensar o episódio e sua importância para a sociedade brasileira foi

sugerida a Lobato pela leitura de trechos do diário deAndré Rebouças, queàquela época vinha sen do publicado por Yan deAlmeida Prado na Revistado Brasil, fundada e dirigida por Lobato desde 1916.42 O ressurgimento dodiário deRebouças teve um peso decisivo no debate sobre as conseqüências da guerra nos projetos civilizadores brasileiros. Como um observadormenos preso do que Taunay aos "m istérios" d a natureza, como alguém maisafinado com a maquinaria da modernidade (em sua acepção fundadora: a

bélica), era muito m ais difícil para Rebouças enxergar a guerra como metáfora, idealizá-la como um espetáculo exclusivo de nobreza. Arealidade lheassolava as quimeras.

40 Monteiro Lobato, "O pai da guerra", cit, p. 53.41 Ibid., p. 57.42 Todo um estudo ainda está por ser feito, analisando a presença da Guerra do Paraguai na fase dos

anos 20 daRevista do Brasil. Porora, fica apenas indicada a particularidade do tema no ideárioda revista, coisa que pode ser notada se arrolarmos, além da publicação do Diário de Rebouças, apublicação de textos como: Mário Bulhões Ramos, " O bailado sobre o cadáver d e Solano López",em Revista do Brasil, SãoPaulo, nov. 1923, ano 8, vol. 24, n. 95; ou, agora, pela editora darevista, dirigida por Lobato, Alfredo D'Escragnolle Taunay, Dias de guerra e de sertão (SãoPaulo: Edição daRevista doBrasil, 1920).

322 F r a n c is c o A J a m b e r t

O pesadelo de Rebouças fez Lobato acordar para as fantasmagoriasda guerra e sua presença e peso na constituição do Brasil moderno.Uruguaiana e a Guerra do Paraguai, vistas pelo olhar ambíguo e doloroso deR ebouças, levaram L obato a esboçar uma violenta e satírica reflexão sobre

0 B r a s i l n o e s p e l h o d o P a r a g u a i 323

como disse Marisa Lajolo, "as cidades moitas de Lobato não morreram demorte natural".46 N a literatura adulta lobatiana ess e p rocesso de análise dadecadência, simb olizada pelo colapso im posto à tradição e ao estilo de vidarural, baseia-se numa crítica ao progresso com preendido com o predador do

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história, memória, guerra e patriotismo, onde a idéia da estetização da guerracomo fator de manipulação política e manutenção do estado de violência nasociedade, desenvolvida em "O pai da guerra", é retomada:

Foi de ontem a Guerra do Paraguai; seus veteranos ainda vivem por aí ao léu, àsdezenas; no entanto, parece um fato de priscas eras - tão rapidamente o Brasilevoluiu daí para cá, aos pinotes. Uruguaiana está na história devidamente estilizadaao sabor do paladar patriótico. Tem isso a história de generoso: estiliza os fatos,descasca-os dos realismos dolorosos, desfigura-os num sentido estético. É o meio dahumanidade poder ver-se com bons olhos [...]43

Nesse ponto, o texto e a fluência ensaística das idéias fazem o críticode arte empedernido e mal-humorado se encontrar com um surpreendentecrítico da história e das mentiras do E stado modernizador brasileiro - seja oEstado monárquico de antes, seja o republicano de sua época. Para fixar a

imagem dessa mentira, Lobato aproxima-a da cor azul, para ele a maiorilusão da natureza. A montanha de longe p ode evocar a estabilidade tranqüila do azul de safira, mas de perto é só "aspereza, precipício, perambeira,bossoroca, mata híspida tramada de cipós e arranha-gato. E não é azul". Ocrítico da história d eve proceder com a mesma aproximação destemida, negar o azul dos grandes homens e de seus feitos, buscando o "colorido dagrisalha suja das coisas contemporâneas".44

E sse projeto de "descolorir" a história é consubstanciado num esboç oliterário chama do "V oluntários da pátria".45 O início desse "conto" é marcado pelo que já foi descrito em m ais de uma oportunidade com o a "obsessão"de Lobato c om a idéia de "decadência", de suas "cidades mortas". M as,

43 Monteiro Lobato, "Uruguaiana", em A onda verde e o presidente negro, cit., pp. 95-6.44 "Cinco anos de guerra foram suficientes para desenvolver entre nós o germe do militarismo, o

qual, senhoreando-se da situação, fez uma República para uso e gosto dos militares. Do ponto devista humano, bem como do ponto de vista imperial, prosseguir na guerra foi um desastre.Uruguaiana deveria ter sido um ponto final. O fazê-la vírgula, deu com o Império em terra. Quegrande ciência, na política, a ciência da pontuação! [...]", ibid., p. 99.

43 Monteiro Lobato, "Veteranos do Paraguai", em A onda verd e e o presidente negro, cit., pp. 35-4 0 .

modelo social erigido em torno da sociedade agrícola e provinciana. Seuscontos querem encenar em seu movimento a passagem de um Brasil pré-capitalista para uma ordem capitalista acelerada e imp lacável, centrada no

mund o urbano-industrial.Em "Voluntários da pátria", entretanto, não são apenas essas as razõesd o quadro desolador. Su a forma aproxima-o tanto da narrativa ficcional quanto da crônica o u d a impressão de testemunho. A narrativa se inicia através deuma cena de compo sição pictórica, lembrando um quadro de A lmeida Júniorou de outro de nossos retratistas daquele mundo destroçado, tão ao gostonaturalista de Lobato:

Foi lá que vimos, uma tarde, sentado num mocho de três pernas, à porta dum casebre,esse velho cujo cadáver ali passa na rede com rumo ao cemitério. De bruços numporretão de cego, atentamente ouvia ler notícias da Grande Guerra a um meninodescalço, de cócoras à soleira da porta.47

Nesse texto, a razão da decadência, simbolizada pelo velho cego, nãoestá diretamente ligada às forças econôm icas e ao rolo com pressor do progresso, mas a um fato do passado que fantasmagoricamente reaparece nopresente. A o ou vir o nom e "Curupaiti", pronunciado pelo ancião como murmúrio em resposta às histórias do desenrolar da Grande Guerra, o narradorpercebe estar diante de um veterano soldado da Guerra do Paraguai, quevagava quase como mendigo, apenas "roendo a meia pataca do soldo". Seunome era Pedro Alfaiate. Representante de um passado q ue já então haviase tornado história oficial, ele era a memória semiviva, a contra-história queainda podia ser encontrada para ser consultada, co mo um livro: "um velho

soldado é sempre um livro interessante, rico de incidentes, pitoresco e nãoraro heróico".48

46 Marisa Lajolo, "Monteiro Lobato, o mal-amado do modernismo brasileiro", em Contos escolhido s (São Paulo: Brasiliense, 1996), p. 9.

47 Monteiro Lobato, "Veteranos do Paraguai", cit, p. 35.48 Ibid., p. 36.

324 F r a n ci s co A l a m b e r t

Em seu célebre ensaio sobre Nicolai L eskov, Walter Benjamin tambémrelacionou a perda de experiências narráveis e transm issíveis a os horroresda Grande Guerra de 1914. Segundo Benjamin, o soldado que voltava dasbatalhas constitui um dos tipos arcaicos fundadores do "reino narrativo".

0 B r a s i l n o e s p e l h o d o P a r a g u a i 3 2 5

duras penas construídos desde a ironia cínica d o primeiro Machado de A ssis.Essa espécie de Jeca Tatu destroçado de Lobato era a contraprova dahistoriografia e da memória cívica nacional, o testemunho definitivo que ospositivistas procuravam mas não podiam encontrar, pois seu olhar só via os

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M as a guerra da técnica, que imita da esfera da produção de ma ssas a capacidade industrial de matar, matou também no soldado sobrevivente aqu elasexperiências narráveis cujo caráter exemplar era o fundamento de sua sabedoria.49 O velho soldado narrador de Lobato pertence a essa categoria.Porém, sua experiência trágica de guerra antecede em décadas a experiênciabélica da guerra total européia à qual Benjamin se refere como m arco. Também nesse sentido a Guerra d a Tríplice Aliança antecipa as guerras do sécu l o X X .

Pedro A lfaiate tem m uito o que contar, mas tudo o que p ode narrar desua experiência subordina-se a uma tragédia que se inscreve mais na ordemdo inenarrável que na categoria das experiências exemplares. Por isso, aescassez de testemunhos, lendas e fábulas de homens comu ns sobre a Guerra do Paraguai não deve ser creditada apenas ao fato concreto de que aimensa maioria das tropas era formada por analfabetos, escravos, etc. Ofato de que um acon tecimento de tal magnitude na vida de milhares de pessoas tenha deixado pouquíssimas marcas n a memória coletiva é sintomáticodesse estado de empobrecimento e falta de sentido construtivo dessa experiência em nossa vida cotidiana desde então.

De fato, é o horror que cerca tudo. Passado e presente, ligados pelaaproximação da guerra que encerrou o século XIX brasileiro e da que iniciava o século XX, a saber: a Grande Guerra européia e sua conseqüêncian a Am érica, em especial no m undo do interior, em guerra contra o progressoe a "modernidade" que engendrara ambos os con flitos. Por isso a aproximação da técnica da batalha do passado e do presente é apresentada comocontinuidade e paralelo. A descrição das trincheiras do Paraguai feita p eloveterano cego se aproxima assombrosamente das fam osas lutas de trincheiras d a Primeira G uerra M undial.

Deixar falar a memória do hom em simples era a estratégia lobatianapara dinamitar os discursos da boa guerra e a força do heroísmo cívico a

49 W alter Benjamin, "O narrador - Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov", em Magia etécnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas deWalter Benjamin, cit., vol. 1, p. 198.

documentos oficiais, os depoimentos solenes. A cantiga infantil do "Itororó",celebrizada na memória d as crianças, como identificou Gilberto Freire, também é confrontada pela fala do velho cego , onde horror e tristeza se unem ao

heroísmo inútil. Na lembrança d o Alfaiate, tudo e ra "terrível" e "triste", fazendo co m que a façanha fundadora da nacionalidade perdesse todo sentido.N esse ponto, a h istória de P edro Alfaiate é interrompida e a narrativa

toma outro rumo. O narrador imparcial cede lugar a outro que apresenta suadefesa do "verdadeiro tipo do herói humilde, que o é sem saber". A elecontrapõe um outro personagem, de cuja identidade nada sabemos. Essenovo soldado é o oposto daquele porque escondia-se na enfermaria duranteos com bates, só sabia da guerra através da "janela do hospital". A covardiae o cinismo eram sua m arca, por isso "era incapaz de dar às suas narrativasuma impressão belicosa". A anteposição entre o heroísmo do homem simples e desse outro, cuja facilidade em esconder-se dos conflitos pode significar tratar-se de alguém com certa patente e favores, é evidente e bastariapara encerrar a nota. Mas o herói e o desertor sobreviveram. O primeirodestroçado, o segundo sem demonstrar qualquer crise de consciência porseus atos "antipatrióticos". A "pátria", a "nação" pela qual lutou o voluntárioverdadeiro abandonou-o na m iséria das cidades m ortas, também elas abandonadas, velhas e cegas aos olhos d o progresso que fazia história empilhandoseus derrotados.

O velho soldado que Lobato flagrou vagando pelas cidades mortasseria a última esperança de negar a G uerra do P araguai com o ato de redenção que separaria a "civilização" brasileira da "barbárie" latino-americanasimbolizada p or Solano López. Seu destino mostrava que a "barbárie" esta

va entre nós mesm os. Entretanto, desde entãoa

versão "heróica" do conflitoseria contada pelo covarde sobrevivente. S ua figura tornar-se-ia responsável pela perpetuação do b elicismo no interior da república. A través de seudiscurso, a guerra seria definitivamente içada a símbolo do orgulho pátrio, aelemento d e definição da idéia de Brasil que se inscreveria no século X X .

V imos que o debate sobre o significado da G uerra do Paraguai para aconstituição do ideal do B rasil civilizado - a "Guerra d a s Letras" que antecedeu e ultrapassou a guerra do campo de batalha -, com suas contradições e

3 2 6 F r a n c i s c o A l o m b e r t

ambigüidades, firma-se para além do momento em que nasce, sedimentando-se com o um a referência constante para a reflexão sobre o "caráter" brasileiro - e, por conseguinte, sua "cultura" própria - e sua relação com a AméricaLatina, ao mesmo tempo que, mais ou menos explícito, perpassa diversos

0 B r a s il n o e s p e l h o d o P a r a g u a i 3 2 7

Bibliogra f ia selecion ad a

ALAMBERT, Francisco. Civilização e barbárie, histór ia e cultura: represen tações culturais e

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mom entos em que se tentou pensar o B rasil e suas possibilidades civilizadase civilizadoras. Do binômio antitético "civilização-barbárie" passamos, coma república e os projetos modernizadores, para outro binômio, agora anco

rado nas oposiçõe s "m oderno-passado", "progresso-atraso", sem que seusconteúdos tenham se modificado significativamente. Pois a violência, o cinismo ético, o preconceito, se associam, fazem parte dos despojos de nossos"bens culturais", no sentido de Benjamin,50 e, em larga medida, deram-nos osentido de nosso caminho para a civilização, seja lá o que isso queira dizerentre nós. M onteiro Lobato via-se diante da ausência de acumulação de umlegado crítico sobre as questões relativas à G uerra do Paraguai, na medidaem que as formas de utilizá-la para justificar a formação da nação brasileira ede sua cultura, a forma dos interesses das classes dom inantes, foi ela tambémvencedora de todas as batalhas de que participou.

50 "Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hojeespezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo,como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais [...] N unca houve um monumento de cultura que não fosse também um monum ento de barbárie", cf. W alter Benjamin,"Sobre o conceito da história", em Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura ehistória da cultura. Obras Escolhidas de Walter Benjamin, cit., vol. 1, p. 225.

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Um Brasil mestiço: raça e cultura na

passagem da monarquia à república

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R o b e r t o V e n t u r a

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o s escritores, políticos e cientistas repensaram a identidade culturale p olítica do Brasil em m eio às transformações que levaram à extinção daescravidão em 13 de maio de 1888 e à implantação do regime republicanoem 15 de novembro de 1889. An te a liberdade prometida pela abolição e aigualdade oferecida pela nova Constituição - que transformava todos emcidadãos -, parecia imperativo colocar em discussão a organização do país.A adoção do trabalho assalariado, a queda da monarquia e os conflitos danascente república trouxeram à tona dúvidas sobre o futuro do país, cujoatraso era atribuído à grande diversidade de sua população.

Que lugar atribuir ao africano e a seus descendentes, ex-escravos re-

cém-libertos? Como garantir a vitória da civilização sobre a barbárie em umaterra povoada por uma maioria de negros, índios e mestiços? De quê formamanter a unidade de uma nação marcada por diferenças raciais, culturais eregionais de toda espécie? Com o escolher os governantes pelo voto, se grandeparte da população era analfabeta e inculta? Estas foram algumas das questões debatidas por intelectuais, vindos de famílias da elite rural e política oudas camadas médias urbanas, e formados pelas faculdades de direito e m edicina ou pelas escolas de engenharia.1

O s letrados se mostravam divididos entre a valorização dos aspectosoriginais do povo brasileiro e a meta de se construir uma sociedade brancade molde europeu. Adotavam teorias sobre a inferioridade das raças não-

brancas e das culturas não-européias, ao mesmo tempo que buscavam asraízes da identidade brasileira em manifestações compósitas e mestiças.Observado por viajantes estrangeiros, analisado com ceticismo por cientis-

Abordei tal debate sobre raça e cultura em Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias

no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 1991).

332 R o b e r t o V e n t u r a

tas europeus e norte-americanos, temido por boa parte das elites loca is, ocruzamento de raças era tomado como pista para explicar a possívelinviabilidade do B rasil como nação.

M uitos, como S ílvio Romero, Nina R odrigues e Euclides da Cunha, se

U m B r a s i l m e s t i ç o : aç a  e c u l t u r a n a p a s s a g e m d a m o n a r q u i a à r e p ú b l i c a 3 3 3

poder público e os habitantes das grandes cidades seguiam ignorando ointerior do país.2

M ais de 12 jornais enviaram repórteres e fotógrafos a Canudos na primeira cobertura ao viv o de uma guerra no B rasil, tornada possível graças à

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voltaram para as formas sincréticas de literatura, religião e cultura, das quaisforam os primeiros intérpretes. Consideravam o Brasil como uma naçãomultiétnica o u uma "sociedad e de raças cruzadas", n a expressão de Romero,

caso único e singular de miscigenação extremada. Por outro lado, encarava m a mestiçagem co mo uma desvantagem evolutiva e uma ameaça à civilização, por trazer riscos de degeneração ou esterilidade devido à fusão deraças díspares.

A rebelião de Canudos, no início da república, foi percebida como asíntese dos perigos e ameaças representados por um Brasil mestiço, dominado por fanatismos e superstições. A comunidade se formara no nordesteda Bahia em 1893, sob a l iderança de Antônio C onselheiro, que se opunhaàs leis seculares do novo regime, como a separação entre a Igreja e oEstado e a introdução do casamento civil. Seus seguidores foram acusadosde fazer parte de uma conspiração internacional com o objetivo d e restau

rar a monarquia, o que serviu d e justificativa ao massacre da comunidade.O governo republicano se atirou em uma longa e sangrenta guerra, que seestendeu por quase um ano, de novembro de 1896 a outubro do ano seguinte. Quatro expedições militares foram enviadas até a completa destruiçã o d a cidade, cuja população foi estimada entre 10 mil e 25 mil habitantes.

O assunto mobilizou os escritores, como o cético Machado de Ass i s , o republicano Euclides da Cunha e o monarquista Afon so A rinos, quepublicaram artigos e crônicas sobre o conflito. Machado observou, emsua coluna na Gazeta de Notícias, do R io de Janeiro, que C anudos apresentava uma feição de mistério, já que pouco se sabia sobre a doutrina deseu líder, capaz de mobilizar milhares de seguidores. Propunha que fosse

enviado um repórter a Canudos, para fazer o retrato do Conselheiro ecolher a verdade sobre a seita. Eu clides comparou, em artigo no Estadode S. Paulo, o conflito à revolta dos camponeses monarquistas e católicos da região da Vendéia contra a Revo lução Francesa, ocorrida em 1793.Arinos, diretor de O Comércio de São Paulo, negava que o movimentotivesse uma orientação monárquica, como afirmavam o governo e grandeparte da imprensa. O crescimento de Canudos mostraria porém que o

instalação de linhas telegráficas, que ligavam Salvador à base de operaçõesdo Exército em Monte Santo. A campanha foi fotografada por Flávio deBarros e pelo espanhol Juan Gutiérrez, morto em ação. O Estado de S.

Paulo enviou, como correspondente, o engenheiro Euclides da Cunha, queescreveu um a série de reportagens sobre as últimas semanas d o conflito.Euclides denunciou a violência da campanha militar em Os sertões,

publicado em 1902, cinco anos após o extermínio d a comunidade. Relatou,no livro, fatos sobre os quais silenciara antes nas reportagens, como a degolados prisioneiros e o comércio de mulheres e crianças. Com u m enfoque maisamplo do que nos artigos d e jornal, explicou a guerra com o o resultado dochoque entre dois processos de m estiçagem: o cruzamento de raças no litoral, com o predomínio do mulato, e a formação no interior da raça e dacultura sertanejas.

Outros escritores e cientistas, também interessados nos efeitos da

mestiçagem, trataram de Antônio Con selheiro. O crítico Sílvio R omero, queinvestigou a contribuição dos povos e raças à formação do folclore.e daliteratura nacionais, conheceu o líder religioso n o interior de S ergipe n a dé cada de 1870 e registrou alguns poemas populares em sua homenagem. Omédico R aimundo N ina Rodrigues, da Faculdade de Medicina da Bahia, fezum diagn óstico psiquiátrico do C onselheiro com base em artigos de jornal enos relatórios da Igreja e do governo, tendo recebido, com o fim da guerra,o seu crânio, que submeteu a exame científico.

A po lêmica Alencar -Nabuco

O negro, o escravo e o mestiço foram incorporados ao discurso literário e cultural a partir da década de 1860, quando passaram a ser abordados

2 Machado de Assis, "Crônica" (3 1 jan. 1897), em A semana (Rio de Janeiro: Jackson, 1944), vol.3 ; Euclides da C unha, "A nossa Vendéia" (14 mar. 1897), em Canudos: diário de um a expedição(Rio de Janeiro: José Olympio, 1943); Afonso Arinos, "Campanha de Canudos (O epílogo daguerra)" (9 out. 1897), em Obra completa (Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1969).

334 R o b e r t o V e n t u r a

em poemas, romances e peças teatrais, nos debates parlamentares e emartigos n a imprensa. Tal interesse pelo afro-brasileiro surgiu no momento emque se discutia o futuro da agricultura e a necessidade de substituir a mão -de-obra escrava, cuja manutenção se tornara inviável após a proibição do

U m B r a s i l m e s t i ç o : r a ç a e c u l t u r a no p a s s a g e m d a m o n o r q u i o à r e p ú b l i c a 3 3 5

A polêmica que Joaquim N abuco travou com José de Alencar em 1875nas páginas de O Globo, do R io de Janeiro, mostra essa mudança culturalque colocou o negro, o escravo e o mestiço no centro das atenções. Odebate teve, co mo ponto de partida, a estréia da peça de Alencar, O jesuíta,

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tráfico em 1850, resultado da pressão da Inglaterra. A Lei d o Ventre Livrede 1 871, que concedeu liberdade aos descendentes de escravos, anunciavaa derrocada de um sistema de trabalho há m uito arraigado.

O cativeiro, antes tido como natural, benevolente e civilizador, passou aser denunciado como cruel, injusto e pouco rentável. A substituição do trabalho escravo pelo assalariado se deu associada à percepção de uma sociedade dividida entre senhores indefesos, de um lado, e escravos violentos, deoutro. A escravidão passou a ser vista como problemática e se falava entreas elites de um "perigo negro", que poderia colocar em risco a civilizaçãobrasileira. O projeto de abolição dos escravos se ligava a um programa deapoio à imigração européia, que recebeu subvenção dos go vernos imperial eprovincial no final da década de 1880 .

O indígena, que tinha sido destacado por autores românticos, comoGonçalves Dias e José de Alencar, como símbolo de autonomia da ex-colô

nia frente à metrópole, desapareceu com o personagem ficcional ou assuntopoético no último terço do século X IX , só tendo sido retomado e revalorizadocom o movimento m odernista na década de 1920. C omo observou A lfredoBo si , o mito d o bom selvagem deixou de te r o que dizer: " E r a u m símbolo deoutros tempos, forjado pela cultura da Independência, e que só poderia sobreviver com o a ssunto de retórica escolar".3

Escravo s atormentados, que sofrem nas mãos de senhores impiedo sose cruéis, enquanto recordam um a África idílica e articulam planos de vinganç a, surgem nos poemas de Castro Alves e Fagundes Varela. Romances comoA escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães, a trilogia de JoaquimManuel de Macedo, As vítimas algozes (1869), ou O cortiço (1896), de

Aluísio Azevedo, oscilam entre a imagem nobre do negro e a afirmação desua influência maléfica sobre as fam ílias brancas. O s efeitos d a escravidão,com a "perversão" dos costumes, foram um dos temas recorrentes no pensamento abolicionista e no s textos literários que trataram do cativeiro, concebido com o "infecção" moral.

3 Alfredo Bosi, "Sob o signo de Cam", em Dialética da colonização (São Paulo: Companhia dasLetras, 1992), p. 246.

para se encaminhar para as possíveis form ulações de um projeto de civilização nacional. O futuro líder abolicionista criticou, em Alencar, a contradiçãoentre a sua posição de deputado do império, favorável à manutenção daescravidão, e a sua visão literária d o cativeiro, marcada pelo tratamento sentimental dos escravo s.

As críticas de Nabuco não são, porém, isentas de contradição. Apesarde lutar pela supressão do cativeiro, conceb ia a arte com o expressão idealizada da sociedade branca e cosmopolita, cujo domínio político e culturalseria a pré-condição para a civilização moderna. Tomando a arte como oretrato da sociedade ideal fundada no trabalho livre e na harmonia entre asraças, rejeitava o realismo de Alencar na tem atização da escravidão.

O cativeiro era, para Nabuco , uma "linha negra" que limitava e com prometia não apenas o teatro do país, como sua própria civilização. O s votos de Alencar na Câmara dos Deputados mostrariam a fé profunda quetinha nos destinos dessa instituição, ao se colocar contra a Lei do VentreLivre em 1871 , que combateu com argumentos de liberal ortodoxo, contrário à intervenção d o Estad o no círculo fam iliar e na autoridade do patriarca aque, por direito de compra, pertencia o escravo.

N as Cartas de Erasmo (1865), Alencar julgou a escravidão um "fatosocial necessário", que só poderia ser abolido com a evolução da sociedadebrasileira, pois a emancipação prematura traria ameaças à agricultura e àestabilidade da monarquia.4 Alencar proibiu em 1869, com o ministro d a Justiça, a venda de escravos em praça pública e extinguiu os leilões no m ercadodo Valongo, no Rio de Janeiro, que causavam má impressão aos viajantesestrangeiros. Debret, Darwin, S pix e M artius registraram sua revolta co mtais leilões e com os castigos físicos sofridos pelos escravos no Brasil. Amedida de Alencar teve um efeito apenas cosmético, pois as transações decompra e venda de cativos se mantiveram, não sendo m ais feitas em m ercado aberto, de mod o a resguardar a imagem civilizada da capital do império.

4 José de Alencar, "Cartas de Erasmo" (1865), em Obra completa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar,1959-60), vol. 1, p. 1.059.

336 R o b e r t o V e n t u r a

A s críticas de N abuco ao teatro de Alencar e a seus romances indianistasse relacionam à sua perspectiva cosmopolita. Os romances indianistas deAlencar, O guarani, Iracema e Ubirajara, seriam, para seu crítico, uma"falsa literatura tupi", escrita a partir da imitação da s obras estrangeiras, como

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Nabuco ampliou a extensão do termo escravidão, que tomou comoeixo de uma interpretação global da sociedad e brasileira, determinação social básica, cuja influência maléfica se estenderia às diversas esferas sociais,desde os cativos, agregados e moradores até a camada dos proprietários,

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as de Cooper e Chateaubriand, e do desconhecimento da realidade dos"selvagens" brasileiros. O teatro de Alencar, com personagens escravos ecenas de moralidade duvidosa, estaria inspirado pela "idéia de fundar a literatura tupi", necessitando para tanto "desacreditar a sociedade brasileira, avida civilizada d o nosso país".5

A posição de N abuco aponta para a exclusão do escravo e do indígena da cena cultural por meio da abolição do cativeiro e da sua eliminaçãocom o tema literário. C omo observou Roberto Schwarz, o realismo de Alencarinspirava a Nabuco aversão por não guardar as aparências, revelando aspectos da sociedade brasileira, como a escravidão e os indígenas, em desacordo com os padrões europeus: "Nabuco põe o dedo em fraquezas reais,mas para escondê-las".6 Nabuco relacionava a idéia de uma literatura nacional, baseada na contribuição européia e na ação diferenciadora d o me io,à reforma das bases do trabalho e à construção da nação sob a hegemoniados grupos letrados.

0 abolicionismo

O deputado Joaquim Nabuco retomou a questão da escravidão em Oabolicionismo (1883), obra de propaganda política, em que realizou umadas primeiras análises socio lógicas do país. A tribuindo o atraso brasileiro àmanutenção do cativeiro, pregava a abolição imediata, sem indenização aossenhores de escravos, como forma de dar início a uma revolução social eeconômica. Para ele, a escravidão teria corrompido a nação, ao gerar uma

estrutura arcaica, em que a terra se concentrava nas m ãos d os grandes proprietários, as eleições eram controladas pelos chefes locais e o sistema deprodução oferecia p oucos empregos fora da burocracia estatal.

5 Afrânio Coutinho (org.), A polêmica Alencar-Nabuco (Rio de Janeiro: Tempo B rasileiro, 1978),p p . 84, 113-4, 209.

6 Roberto Schwarz, Ao vencedor, as batatas: forma literária e processo social nos inícios doromance brasileiro (São Paulo: Duas Cidades, 1977), pp. 31-2.

políticos e burocratas. O baixo nível de vida da população resultaria domonopólio da terra, gerado pela grande propriedade escravista, " um estadono E stado", que mon opolizava a terra, o capital e o trabalho.

A epidemia do funcionalismo, "vocação de todos", seria outro d o s efeitosdo cativeiro, ao servir de asilo para as fortunas desbaratadas pela escrav id ã o . De modo semelhante aos agregados e moradores, dependentes dosproprietários de terras, os funcionários públicos seriam "servos da gleba dogoverno", condenados a "uma dependência da qual só para os fortes nãoresulta a quebra do caráter". A escravidão impediria o influxo de novas idéias e a formação de opinião púb lica, ao corromper as instituições políticas:"As senzalas não podem ter representantes, e a população assalariada eempobrecida não ousa tê-los".7

Para Nabuco, a eclosão da campanha abolicionista em 1879 coincidiucom a aparição de uma opinião pública autônoma e com o fortalecimento daimprensa, importantes fatores para a democratização do país. Tal campanhase ligou ao mo vimento intelectual progressista que chamou de "novo liberalismo", cujas bandeiras eram o estím ulo à indústria e a o trabalho livre e anecessidade de reforma do sistema político com a introdução de eleiçõesdiretas. Divulgavam -se idéias filosóficas e científicas, com o o naturalismo, opositivismo e o evolucionismo, que traziam a crença no progresso e na e volução, tornando possív el a crítica à ordem estab elecida.

A longa crise do Segundo Reinado, que culminaria com a abolição e arepública, teve início com a demissão do gabinete liberal de Zacarias deGóis em 1868. D. Pedro II dissolveu a Câmara e convocou eleições, demodo a obter uma m aioria parlamentar conservadora e formar outro gabinete de mesma filiação partidária. O pai de Joaquim N abuco, o senador Nabucode Araújo criticou, em um famoso discurso, o poder autoritário da coroa,acusada de submeter a sociedade a uma espécie de cativeiro político. 8 Arevolta dos liberais levou à formação do Partido Liberal Radical em 1869 e

7 Joaquim Nabuco, O abolicionismo (1883) (Petrópolis: Vozes, 1977), pp. 66 e ss.» Cf. J. Nabuco, U m estadista do Império (1897-9) (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1975), p. 663.

338 R o b e r t o V e n t u r a

d o Partido Republicano e m 1 8 7 0 , incompatibilizado co m a ordem monárquica,ainda que omisso quanto à questão do cativeiro.

De modo a induzir o trono à extinção do cativeiro, a propagandaabolicionista se dirigiu às camadas urbanas, com a missão de formar uma

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Essa restrição do âmbito do movimento foi formulada por JoaquimNa buco por meio do m odelo jurídico da delegação, que revela muito de suaformação como bacharel em direito pela Faculdade do Recife. Os abolicionistas representariam, em suas palavras, o "advogado gratuito de duas c lasses sociais que, de outra forma, não teriam meios de reivindicar os seus

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opinião púb lica, capaz de atuar politicamente para pressioná-la. C rescia onúmero de jornais diários e se ampliava o círculo de leitores com a politizaçãotrazida pelos movimentos republicano e abolicionista e com o processo de

urbanização resultante da liberação de capitais após a proibição do tráfico.Surgiram a ssim as bases de uma opinião pública burguesa, em que cidadãoslivres expressavam suas idéias de m odo independente da vontade do monarc a . A partir do "mandato da raça negra", o movim ento assumiu a representação da sociedade total e estabeleceu um programa político qu e, ao incluira reforma agrária e a ampliação d o vo to, ultrapassava a própria eman cipação.9

O movim ento abolicionista se estendeu até 1888, liderado po r JoaquimNabuco, Tavares Bastos e José do Patrocínio, e organizado pela SociedadeBrasileira contra a Escravidão. O abolicionismo apresentava modelo de exclusão, q ue barrava a participação do escravo da agitação e da propagandapela reforma das bases do trabalho. Com o afirmou N abuco em O abolicionismo: "Não é aos escravos que falamos, é aos livres".10 Segundo as suaslideranças, o m ovimento deveria se restringir ao âmbito das elites e das classes m édias urbanas, na busca d e uma solução pacífica, deliberada no interiorda comunidade de cidadãos, de modo a não trazer transtornos à ordemsocial.

O s abolicionistas reprovaram assim os grupos d issidentes que levarama questão às senzalas, promovendo fugas e levantes, como o reunido emtorno de An tônio Bento e do jornal Redenção, em São P aulo. André Rebouçasdefendia que a propaganda não deveria se dirigir às "vítimas" do cativeiro, oque poderia suscitar ódios e vingan ças, mas aos seu s "algozes", n a esperança de obter, pelo remorso e arrependimento, a reparação das injustiças. Oabolicionism o colo cava em pauta tanto a libertação dos escravo s, quanto aredenção da consciência dos senhores.

9 Paula Beiguelman, "Joaquim Nabuco: teoria e práxis", em Joaquim Nabuco, Política (São Paulo:Ática, 1982), pp. 31 e ss.

10 J. Nabuco, O abolicionismo, cit., pp. 71-5.

direitos": os escravos e os ingênu os. S eus participantes se nom eavam " delegados" ou "advogados" da causa da abolição perante a massa escrava.

O movimento abolicionista n ã o atingiu as reformas sociais pretendidas,sendo desarticulado quando ameaçou transbordar dos quadros de pensamento dominantes. Essa ameaça se insinuou na proposta de Nabuco eReb ouças de vincular o projeto de eman cipação à questão da posse da terra , co m a criação de u m imp osto territorial antilatifundiário e a realização dereforma agrária, capaz de instituir a pequena propriedade e de fixar o ex-escravo à terra. Na buco assum iu essa vinculação nos discursos de sua campanha ao parlamento em 1884, ao afirmar q u e a "emancipação d os escravos"deveria vir junto co m a "democratização do solo": "Uma é o complementoda outra. Acabar com a escravidão não n os basta; é preciso destruir a obrad a escravidão" - o latifúndio.

Segundo Nabuco, o movimento teria se dispersado após a abolição,

pois parte de suas fileiras se aliara à grande propriedade contra a extensãodas reformas soc iais. Afirmou, em discursos parlamentares de 1888 e 1889,que a a gitação republicana era uma reação dos proprietários contra a lei de13 de m aio, um a "desforra do escravismo", abrigada à sombra d a república.Semelhante origem comprometeria, de forma irremediável, o novo regimeco m a classe proprietária, levando-o a u m a orientação antipopular: "A mim,me sobra consciência de que estou com o povo defendendo a monarquia,porque não há, na república, lugar para os analfabetos, para os p equenos,para os pobres".11

A visão de Joaquim Nabuco sobre a república se relaciona à sua intransigente defesa da monarquia parlamentar. Sua interpretação mostra, por é m , a ambigüidade e a omissão do movimento republicano em relação ao

1 ' J. Nabuco, "Discurso num meeting popular na Praça de S. José do R iba-Mar" (5 nov. 1884), emConferências e discursos abolicionistas (São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949), pp.285-6; "Agitação republicana no Exército" (5 nov. 1888), "Apresentação do Ministério OuroPreto" (11 jun. 1889), em Discursos parlamentares (São Paulo: Instituto Progresso Editorial,1949), pp. 341, 373.

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cativeiro. Muito embora abolicionismo e republicanismo tenham se desenvolvido, a partir de 1870, como tendências paralelas, não se pode identificarambos os movimentos, sendo bastante divergentes suas bases de sustentaç ã o . O Partido Republicano nunca se mostrou partidário da abolição, naexpectativa de conquistar a adesão ou a simpatia dos escravocratas descon

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veis ao negro na transição entre o mundo servil e a sua nova existência decidadão. A abolição contribuiu portanto para a marginalização do afro-bra-sileiro, ao barrar sua participação na esfera política e na nova ordem econômica, o que foi comentado por Florestan Fernandes:

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tentes.A lei abolicionista de 1871 e a de 1885, que concedia liberdade aos

escravos com mais de sessenta anos, deixaram os senhores de escravosbastante apreensivos quanto às garantias oferecidas pela coroa à manutenção de seu "patrimônio". Sua indignação foi bem expressa pelo barão deSanta-Pia, personagem do Memorial de Aires, de M achado de A ssis, que,ante os rumores da abolição, concedeu alforria aos seus escravos, por nãoadmitir que o governo interviesse em seus bens... Com isso, raciocinava obarão, os escravos agradecidos talvez continuassem a trabalhar em suas propriedades após a emancipação.

A questão da escravidão e da abolição colocou o trono em um difícilequilíbrio entre duas facções, que o obrigava a absorver o programaemancipador, de modo lento e gradual, para reformar as bases do trabalho,sem trair os compromissos com os senhores de escravos. A extinção docativeiro foi incluída n o s programas dos partidos oficiais do império somen tea partir de 1884, quando se deu a conversão do P artido Liberal. O PartidoConservador só admitiu a abolição em 1888, quando esta se tornou inevitável, aprovando a L ei Áurea no parlamento.

A abolição não foi causa da república, como insinuou Nabuco. Mas arealização da emancipação sem indenização aos proprietários de escravosrompeu o equilíbrio mantido pela coroa entre os partidários e os adversáriosda medida. M esmo não tendo sido determinante para a proclamação darepública, a revolta dos senhores de escravos criou um ambiente propício aolevante militar. A esperança de obter indenização foi frustrada por Rui Barbosa, ministro da Fazenda d o primeiro governo republicano, que determinoua queima dos registros públicos de escravos. Em compensação, foramadotadas medidas que beneficiaram os setores m ais prósperos, sobretudo acafeicultura paulista, pela concessão de subsídios à imigração qué asseguraram suprimento de mão-de-obra barata.

Quase 150 mil imigrantes chegaram ao país entre 1887 e 1888 e o seufluxo aumentou com a república. Os poderes pú blicos aplicaram recursosoficiais no estímulo à imigração, sem que foss em criadas condições favorá-

O liberto viu-se convertido, sumária e abruptamente, em senhor d e s i mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e p or seus dependentes, embora não dispusesse demeios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia

competitiva.12

Lo nge de ser uma conquista merecida, a liberdade se transformou emameaça para o negro entregue à própria sorte. N a peça de Alencar, O demônio familiar (1858), o senhor Eduardo concede a alforria ao molequePedro, como quem o amaldiçoa:

Toma: é a t u a carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque astuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a l e i t e pedirão uma contasevera de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás osnobres sentimentos que hoje não compreendes.13

A liberdade é concedida com a dupla função de punir o moleque intrigante, expulso do acon chego patriarcal, e de livrar a família de um motivopermanente de confusões e desgostos.

A consciência abolicionista se baseou na crítica ao escravismo em termos éticos e econômicos. A elevação dos preços dos escravos, com a proibição do tráfico, gerou a crença, partilhada por Nabuco, nos malefícioseconô micos do cativeiro, concebido co mo prejuízo a partir da premissa damaior rentabilidade do trabalho assalariado. Eticamente, o abolicionismoirrompeu a partir da negação da representação do escravo como coisa e dapercepção de sua condição de homem. A aquisição da cidadania deveriatransformar o escravo em pessoa, dotada de liberdade e habilitada a contra

tar-se no mercado.O escravo foi excluído do movimento abolicionista, cujos líderes s e pro

clamavam representantes dos interesses da massa de cativos, até que os se-

12 Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes (São Paulo: Ática, 1978),p . 15.

13 J. de Alencar, "O demônio familiar" (1858), em Obra completa, cit., vol. 4, pp. 135-6.

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nhores, corroídos p elo remorso e arrependimento, encaminhassem a resolução da questão. O bacharel letrado, com sua consciência jurídica, se propôs asubstituir o senhor n a tutela d o s escravos, libertos e ingênuos. A concessão doestatuto de cidadão ao ex-escravo, realizado pela C onstituição de 1 8 9 1 , levouà tentativa de se estabelecerem limites à su a participação na esfera política.

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Romero definiu a cultura brasileira como mestiça, cujo caráter específico dependeria da integração de elem entos díspares. A literatura e a artenacionais teriam sido criadas pela fusão das raças e pela incorporação a um aexpressão civilizada da s "faculdades de imaginação e sentimento dos selvagens do continente americano e africano". O folclore brasileiro teria sido

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Literatura e poesia popular

Bacharel em direito pela Faculdade do R ecife, professor de filosofia noColégio Pedro II, no Rio de Janeiro, Sílvio Romero foi o autor da primeirahistória sistemática da literatura brasileira e de estudos inovadores sobre apoesia popular. Foi o maior divulgador do que cham ou de "bando de idéiasnovas", representadas pelo naturalismo e evo lucionism o, capazes de fornecer critérios científicos para a análise da literatura e da cultura a partir dodestaque dos fatores raciais e da influência do m eio. O escravo e o liberto,até então vistos como "máquina econômica", deveriam ser transformadosem "objeto de ciência".

Rom ero atribuía a ausência de estud os afro-brasileiros, vo ltados parao negro e o mestiço, à idealização romântica do indígena e à questão daescravidão. Denunciou, nos Estudos sobre a poesia popular no B rasil(188 8), tal desinteresse pela cultura afro-brasileira e abordou o papel dasraças e da mestiçagem na criação do folclore. Fazia ainda um apelo à abolição dos escravo s, "desafortunados que n os ajudaram a t e r fortuna", "cativosque nos auxiliaram na conquista da liberdade". Tal destaque da presençaafricana se prolongou na História da literatura brasileira (1888), em queaplicou às manifestações eruditas os mesmos critérios raciais dos estudossobre a poes ia popular.

Com bateu o romantismo e fez propaganda d o abolicionismo, ainda qu e

fosse favorável à emancipação lenta e espontânea, a cargo da livre iniciativado indivíduo, da família, do mu nicípio e da província... A questão foi retomada no prólogo de s ua história literária, escrito nos dias 18 e 19 de m aio de1 8 8 8 , durante as comemorações da Lei Áurea: "No momento em que traçoestas linhas troa por toda a parte o ruído das festas da abolição". Na suaopinião, teria vingado o programa de abolição gradual, apesar do ato dogoverno imperial que apenas teria apressado, em três ou quatro anos, a completa erradicação do cativeiro.

criado graças à atuação do mestiço, o "agente transformador por excelência", tipo novo , formado a partir de cinco fatores: o português, o negro, oíndio, o meio físico e a influência estrangeira.

Tomou a literatura como expressão da raça e do povo, e relacionou oseu surgimento à ação do mestiço: "No dia em que o primeiro mestiço cantou a primeira quadrinha popular nos eito s do s engenhos, nesse dia começou de originar-se a literatura brasileira".14 Atribuía a formação da literaturabrasileira a esse víncu lo entre a mestiçagem e a poesia popular. Tendo comoorigem o canto dos mestiços no trabalho, a literatura teria se afirmado, apartir do poeta Gregório de Matos, no século XVII, pela crescente autonomia frente às culturas portuguesa, africana e indígena.

A perspectiva anti-romântica e pró-abolicionista de Romero se relacionava ao seu projeto de investigação da contribuição cultural das raças.B aseou-se em um a hierarquia étnica, em que o negro era tido como superiorao indígena e o branco, como mais evoluído do que ambos. Adotando oponto de vista arianista, estabeleceu d istinções no interior da raça branca,que dividia em diversos ramos: enquanto os germanos, eslavo s e saxões caminhariam para o progresso, outros grupos, como os celtas e latinos, mo strariam sinais de decadência. Os portugueses são considerados povo inferior,resultante do cruzamento entre ibéricos e latinos, que apresentariam a im possibilidade orgânica de produzir por si. Como povo de origem latina, osportugueses estariam incapacitados para a civilização, ainda que de modomenos acentuado do que os negros e indígenas. Os colonizadores teriamtrazido assim para o B rasil os ma les crônicos das raças atrasadas, desprovidas do impulso inventivo dos germanos e saxões.

Explicou, a partir dessa concepção etnográfica, a dependência culturalcom o imp ulso psic ológic o ou tendência de caráter, resultante da mistura deraças inferiores: "O servilismo do negro, a preguiça d o índio e o gênio autoritário e tacanho do português produziram uma nação informe, sem qualida-

14 Sílvio Romero, História da literatura brasileira (1888) (Rio de Janeiro: Garnier, 1902), vol. 1,p . xiii, 4; vol. 2, p. 216.

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des fecundas e originais".15 A formação do povo a partir de três raças semoriginalidade teria resultado na tendência à imitação do estrangeiro. Talmimetismo traria prejuízos à produção intelectual, como a "falta de seriaçãona s idéias" e a "ausência de uma genética", o que faria com que os autores eescolas não procedessem uns dos outros, por terem sempre que mudar de

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Seu enfoqu e histórico, com base n as etnias e em seu cruzamento, é próximoao que Romero adotaria no estudo da literatura e das tradições populares. 17

Sí lvio Rom ero regis trou, nos Estudos sobre a poesia popular no Brasil, as quadras que ouviu n o interior de Sergipe sobre A ntônio C onselheiro,o futuro líder de Canudos, que alguns identificavam com Santo Antônio,

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orientação a partir do influxo externo.Sua teoria da mestiçagem e d o branqueamento partia d e u m a combina

ção de pressupostos racistas (existência de diferenças étnicas inatas) eevolucionistas (lei da concorrência vital e da sobrevivência do mais apto).Valorizou a miscigenação como fator de adaptação das raças e culturas aomeio local, precondição para a vitória do colonizador europeu nos trópicos,e acreditava que o elemento branco seria vitorioso na "luta entre raças" de vido à sua superioridade evolutiva. Previa assim o total branqueamento dapopulação brasileira em três ou quatro séc ulos.

Aproximava-se, a esse respeito, do monarquista Francisco Adolfo deVarnhagen, defensor da escravidão, que se mostrara favorável, na Históriageral do Brasil (1855), à miscigenação com o forma de integrar os índios enegros à população branca. Para Varnhagen, a inferioridade das culturasafricanas legitimava o tráfico de escravos para a América, onde estes, submetidos à influência benéfica da civilização, melhorariam " de sorte".16 Mas ohistoriador abraçava, ao contrário de Romero, o projeto de uma civilizaçãocristã, em que o trono assumia um papel central como princípio tutelar danação. Ambos tiveram, como antecedente, o ensaio do naturalista alemãoCarl Friedrich von M artius, um dos autores de Reise in Brasilien (Viagempelo Brasil) (1823-31), que lançou a tese da fusão de raças como princípioformador da civilização brasileira.

M artius estabeleceu as bases da historiografia naturalista d e base racialno ensaio que apresentou em 1845 ao Instituto Histórico e G eográfico Brasileiro: "Como se deve escrever a história do Brasil". O naturalista formulouum programa para os historiadores do Brasil, que deveriam adotar uma orientação etnográfica e abordar a ação dos fatores raciais em suas diversasmanifestações: línguas, m itologias, costumes, conh ecimentos e superstições.

13 Sílvio Romero, Estudos sobre a poesia popular no Brasil (Rio de Janeiro: Laemmert, 1888),p . 355.

16 Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil (1855) (São Paulo: Melhoramentos,1978), vol. 1, pp. 224-5.

outros com o próprio Jesus Cristo:

Do céu veio uma luzQue Jesus Cristo mandou.Santo Antônio AparecidoDos castigos nos livrou!

Romero er a promotor público em E stância, em S ergipe, quando o C onselheiro passou pela cidade em 1874. Com cabelos grandes e longas barb a s , coberto por uma túnica de algodão azul, rezava terços e ladainhas efazia pregações, em que proibia o uso de chalés, pentes e botinas, e recomendava não se comer carnes e doces às sextas-feiras e aos sábados. Emsua peregrinação p elo interior do Nordeste, fazia-se acompanhar por umgrupo de fiéis, que se mostravam dispostos a pegar em armas, caso fosse

preciso, para defendê-lo.18

A etnologia afro-brasileira

Enquanto R omero se vo ltava para a contribuição dos povos e raças àformação do folclore e da literatura, Nina Rodrigues procurou delimitar umobjeto, o negro ou o afro-brasileiro, de modo a estudar sua presença noBrasil. M édico e etn ólogo, autor de obras como Os africanos no Brasil(1932) e As coletividades anormais (1939), realizou os primeiros estudosde etnologia afro-brasileira, investigando, de forma pioneira, os grupos, lín

guas e culturas negras e os fenôm enos de sincretismo entre os cultos vind osda África e a religião católica.

17 Carl Friedrich Philipp von Martius, "Como se deve escrever a história do Brasil" (1845), emO estado do direito entre os autóctones do Brasil (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp,1982).

18 Sílvio Romero, Estudos sobre a poesia popular do Brasil,cit., pp. 21-2.

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Foi ainda o responsável pela criação da medicina legal no país, tendosido professor da disciplina na Faculdade de M edicina da Bahia de 1891 a1906. Partiu dos métodos da frenologia e da antropometria, dese nvolvidospor André Retzius, Cesare Lombroso e Paul Broca, que determinavam acapacidade humana a partir do tamanho e da proporção do cérebro dos

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"homens d a l e i " . Para os juristas, abolida a escravidão e proclamada a república, era preciso criar um cód igo em princípio igualitário que unificasse opaís. Já os m édicos julgavam que só se poderia pensar num projeto nacionalmediante o reconhecimento das diferenças e o estabelecimento de uma orientação científica capaz de assegurar a execução das leis e o progresso do

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diferentes povos. A loucura, a criminalidade e a degeneração poderiam serprevistas e entendidas a partir dos cruzamentos raciais, que produziam um apopulação fraca e doente.

Para Nina Rodrigues, o interesse pela raça negra, que dominava o paísem razão d a campanha abolicionista, não deveria impedir a ciência de abordar, de forma "imparcial", a questão étnica. Proclamava, apesar da "vivasimpatia" que o negro brasileiro lhe inspirava, a "evidência científica" da suainferioridade - evidência que, em sua opinião, nada teria em comu m com arevoltante exploração realizada pelos escravistas.

Seu enfoque mostra a compatibilidade entre a consciência abolicionistae as con cepçõ es racistas e escravocratas. A defesa da abolição não implicava o abandono da teoria das desigualdades étnicas q ue havia justificado ocativeiro, mas trazia, ao contrário, o reforço dessas concep ções. Aproximava-se a ssim do historiador Varnhagen, favorável à escravidão, que situava os

africanos nos limites da noção de humanidade, em razão dos cultos fetichis-tas e da ausência de mono teísmo.

Tais concep ções n egativas se mantiveram após a abolição, quando aspopulações não-brancas, formadas de negros, índios e mestiços, foram tomadas como obstáculos à implantação da democracia representativa e àuniversalização d o s princípios liberais. M uitos intelectuais, sobretudo o s eg ressos das faculdades de direito e de medicina, procuravam desfazer as ilusõesde igualdade política contidas na primeira Con stituição republicana, que transformara formalmente todos em cidadãos. C éticos com as promessas de igualdade trazidas pela abolição e pela república, os escritores, políticos e cientistasse perguntavam sobre as causas das diferenças entre os hom ens.

Nina R odrigues se destacou, com seu enfoque méd ico e etnológico, nacrítica aos p ressupostos liberais do regime republicano. P ropôs, em As raça s humanas e a responsabilidade penal no Brasil, de 1894, uma totalreformulação da legislação penal segundo as concep ções d os criminalistasitalianos e dos legistas franceses. Assumia um novo papel, o de "médicopolítico", "misto de m édico com cientista social", que partia para a disputade espaços políticos até então reservados aos bacharéis de direito e aos

país.19

Para Rodrigues, o s não-brancos ameaçariam a civilização por serem

incapazes de ingressar, como sujeito, na ordem liberal-republicana. O atrasoevolutivo dos negros e a degeneração psíquica dos mestiços colocavam emperigo as classes superiores, ameaçadas pela maré crescente da "negritude",por adotarem os costumes, as superstições e os cultos de origem africana:"A civilização ariana está representada no Brasil por uma fraca minoria daraça branca a quem ficou o encargo de defendê-la".20

A concepçã o liberal de justiça, apoiada na universalidade das idéias,entraria em contradição com a realidade do país, marcada pela hetero-geneidade étnica. A existência de raças não-brancas desmentiria princípiosfundamentais ao liberalismo, como o livre-arbítrio e a capacidade dediscernimento, tornando problemática a implantação de um sistema político

baseado em eleições periódicas. Acreditando que cada raça se encontravaem estádios evolutivos distintos, propôs critérios diferenciados de cidadaniae a divisão da legislação penal em vários códigos, adaptados às condiçõesclimáticas e raciais de cada uma das regiões d o país.

Defendia que a raça fosse considerada com o atenuante da responsabilidade penal, de modo a se poder lidar com a "criminalidade étnica", resultante da coexistência, em uma mesma sociedade, de povos ou raças emetapas evolutivas d istintas. O negro, que ainda não havia ultrapassado o e stádio infantil da humanidade, tenderia não só à loucura e à paranóia, comotambém ao crime dev ido à sobrevivência psíquica de caracteres retrógrad o s . O mestiço também apresentaria alto grau de criminalidade em razão da

degeneração resultante do cruzamento d e raças díspares.Propôs assim que o negro, o índio e o m estiço tivessem responsabilidade penal reduzida e direitos de cidadania limitados, de m odo semelhante ao

9 Mariza Corrêa, As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil(Bragança Paulista: Ed. Univ. São Francisco, 1999).

0 Raimundo Nina Rodrigues, As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894) (SãoPaulo: Nacional, 1938), p. 219.

348R o b e r t o V e n t u r a

louco e à criança, sob a tutela do E stado ou da família. C aberia ao negro eao indígena uma responsabilidade atenuada ou nula, enquanto o mestiço teria sua responsabilidade definida segundo o estrato a que pertencesse. Enquanto os mestiços "superiores" seriam tidos como plenamente responsáveis,os mes tiços "comuns" teriam s ua responsabilidade reduzida. Já os mestiços

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justificaria apenas nos casos, como Canudos e Palmares, de ameaça à ordem soc ial, mostrando-se contrário às tentativas de condenação dos cultosafro-brasileiros pelo clero ou à sua repressão pela polícia.

A partir de informações recebidas em Salvador, Rodrigues fez umdiagnóstico de Antônio C onselheiro como vítima d e um delírio de persegui

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"degenerados" deveriam ser considerados total ou parcialmente isentos, namesm a situação jurídica do negro e do índ io.

Tal programa de expulsão das populações não-brancas do contrato

social restabeleceria, se tivesse sido seguido, a situação jurídica de exclusãoda cidadania que o índio, o escravo e, em parte, o liberto apresentavam àépoca da colônia e do imp ério. Embora não tenha vingado sua proposta derestrição dos direitos civis e políticos da população brasileira- exceção feitaaos indígenas, mantidos sob tutela estatal -, a elite da Primeira Repúb licasegregou, de fato, grande parte dos eleitores com a política dos governad ores inaugurada pelo presidente Campos Sales (1898-1902). As elites civisde São Paulo e Minas Gerais passaram a se revezar no poder graças aocontrole e à manipulação das eleiçõ es, cujos resultados eram previamentedecididos em acordos de gabinete.

Nina R odrigues opunha o litoral, reduto da civilização e dos grupos bran

c o s , ao sertão, dominado por uma população mestiça, infantil e inculta. Porsua inferioridade evolutiva, a domesticação do índio e a submissão do negroseriam incapazes de transformá-los em homens civilizados. O castigo e a violência poderiam contê-los, m as não os fariam adquirir consciência d o direito edo dever. Os mestiços seriam igualmente incapazes de compreender a passagem da monarquia à república, forma política tida como superior, em que orepresentante concreto do poder é substituído por uma abstração: a lei.

Escrevendo em outubro de 1897 sobre a Guerra de Canudos, já emseus momen tos finais, emitiu o seguinte juízo sobre os seguidores do C onselheiro: "Serão monarquistas com o são fetichistas, m enos por ignorância, doqu e p o r u m desenvolvimento intelectual, ético e religioso, insuficiente ou in

completo". Julgava ser necessária a intervenção armada em Canudos, já quesu a população não se submetia à s leis republicanas, assim como fora inevitáve l a extinção do quilombo de P almares no século X V II, que teria representado "a maior das ameaças ao futuro povo brasileiro". 21 M as a repressão se

21 Raimundo Nina Ribeiro, "A loucura epidêmica de Canudos" (1897), em As coletividades anormais (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939), p. 140; Os africanos no Brasil (São Paulo:Nacional, 1932), p. 121.

ção ou de uma psicose progressiva, que o transformara d e enviado divino nopróprio filho de De us. Sua loucura deveria ser interpretada em termos étnicos e sociológicos como o reflexo do meio em que viveu. O Conselheiroteria achado, na população mestiça à sua volta, condições favoráveis à propagação de seu delírio, que ganhou, com o advento da república, as proporções de um a epidemia coletiva. Viu o no vo regime como obra dos maçons ede outros inimigos da religião e se rebelou contra atos de cobrança de impostos. Com sua pregação religiosa, fez vibrar no jagunço, resultante dafusão de raças e culturas desiguais, "a nota étnica dos instintos guerreiros,atávicos, mal extintos", herdados de seus ancestrais indígenas, o que exp licaria a surpreendente resistência armada que a população de C anudos o fereceu às expe dições militares enviadas contra a comunidade.

Os sertões revisitados

Euclides da Cunha retomou, em Os sertões, o enfoque médico eetnológico de N ina R odrigues, ao relatar a Guerra de Canu dos, que presenciou co mo repórter de O Estado de S. Paulo. Julgava que o líder da comunidade sofria de psicose progressiva ou de delírio sistematizado, resumindo,nas fases de sua existência, os aspectos de mal social gravíssimo. Comoelemento passivo e ativo da agitação que tomou o interior da Bahia, o Con selheiro teria sido capaz de sintetizar a s superstições da s populações sertanej a s , que reviveram as tendências impulsivas da s raças inferiores, conden sadas

no seu "misticismo feroz e extravagante".Euclides seguia, como N ina Rodrigues, teorias raciais baseadas na crençana inferioridade dos não-brancos, que davam ares de ciência ao preconceitode cor. Explicou a guerra como o resultado do choque entre os curibocas dosertão, formados de brancos e índios, e os mestiços do litoral, tidos comoneurastênicos e desequilibrados pela mistura entre brancos e negros. Valorizou o mestiço do sertão, que apresentaria vantagem sobre o m ulato do litoral, devido ao isolamento histórico e à ausência de comp onentes africanos,

350 R o b e r to V e n t u r a

que tornavam mais estável sua evolução racial e cultural. "O sertanejo é,antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiçosneurastênicos d o litoral."

Elevou, em Os sertões, o hom em do sertão, vítima das forças republicanas, à altura dos grandes heróis dos poemas épicos e dos romances de

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litoral. C hamou o sertanejo de "rocha viva" da nacionalidade, base sobre aqual se poderia criar o brasileiro do futuro.

Discutiu ainda a fundação da república por meio de um g olpe m ilitar eos problemas que tal origem trouxera ao novo regime. Atuara antes, nosúltimos an os da monarquia, como militante republicano, tendo sido expulso

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cavalaria. Retratou-o como vaqueiro envolto em gibão de couro, de modosemelhante a um titã grego ou a um guerreiro antigo coberto por armadura.

Imaginou o sertanejo como o resultado da confluência entre a bravura indígena e a ousadia do s bandeirantes paulistas, que penetraram pelos rios T ietêe São Francisco rumo ao interior, expandindo o território da colônia portuguesa nos séculos XVII e XVIII. O curiboca do sertão é tomado como oresultado da união entre os desbravadores vindos de S ão Pau lo e os indígenas oriundos do continente am ericano.

Difundiu, junto com o m ito do sertanejo, uma outra representação análoga, o mito do bandeirante, depois retomado por Afonso d'Escragnolle

Taunay, em História geral das bandeiras paulistas (1924-50), por Oliveira Viana, em Populações meridionais do Brasil (1920 ), e por Alfredo E ll isJúnior, em Raça de gigantes (1926). Do cruzamento entre brancos e índios

teria resultado, segundo Ellis Júnior, uma "sub-raça superior", cujo caráterguerreiro e individualista lançou as bases da hegemonia de S ão Paulo.Euclides discutiu as origens do hom em am ericano, a formação racial do

sertanejo e os m alefícios da mestiçagem . C onstruiu uma teoria fatalista doBrasil, cuja história seria movida pelo choque entre etnias e culturas destinadas ao desaparecimento. Recorreu às concepções do sociólogo austríacoLudwig Gu mplowicz, que considerava a história guiada p elo conflito entreraças, com o esmagam ento inevitável dos fracos pelos fortes. Alarmado como avanço da cultura estrangeira, lançou um brado de alerta em Os sertões:"Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos".22

Com base em teorias sobre uma suposta origem autóctone do homem

americano, criou u m a imagem grandiosa d o homem d o sertão como se r autêntico, enraizado no so lo, com cultura própria e evolução autônoma garantidaspelo isolamento g eográfico. A o afirmar o caráter específico d a miscigenaçãosertaneja, expandiu a idéia de nação e valorizou o país interior em vez do

22 Euclides da Cunha, Os sertões: campanha de Canudos (1902) (São Paulo: Ática, 1998), pp. 71,1 0 5 , 131-2.

da Escola Militar em 1888 por ato de insubordinação, ligado a plano derebelião para a derrubada da coroa. Fizera ainda propaganda política nojornal A Província de S. Paulo, que deu origem ao atual O Estado de S.

Paulo, atacando o imperador e a família real e pregando a revolução.Criticava agora, em Os sertões, quer o militarismo dos primeiros go

vernos dos marechais Deodoro da Fonseca (188 9-1891) e Floriano Peixoto (1891-1 8 9 4 ) , quer o liberalismo artificial de um a Constituição que as elitescivis desrespeitavam por m eio de fraudes eleitorais. A deria assim à denúnciada política dos governadores e à pregação pela revisão constitucional dodeputado e jornalista Júlio de Mesquita e do grupo reunido, a partir de 1901,em torno d o jornal O Estado de S . Paulo e da dissidência do Partido Republicano Paulista.

A Guerra de Canudos prolongo u, para E uclides, a "desordem" criadapelo m arechal Floriano, para combater outra "desordem", a R evolta da A r

mada, em que a Marinha e o Exército se enfrentaram de 1893 a 1894 nacapital da república. Canudos teria resultado da instabilidade dos primeirosanos de u m a república, decretada de improviso e introduzida como "herançainesperada" ou "civilização de empréstimo", que copiava os códig os europeus. Em trecho de Os sertões, que não foi incluído na versão final do livro,observou que o novo regime fora incapaz de romper com o passado: "AR epública poderia ser a regeneração. Nã o o foi [...] a velha sociedade nãoteve energia para transformar a revolta feliz numa revolução fecunda".23

Euclides ironizou, nas páginas finais de Os sertões, Nina Rodriguescom o o representante da ciência encarregada de dar a "última palavra" so bre Canudos pelo exam e do crânio do Co nselheiro, enviado a o etnólogo em

Salvador. Rodrigues mantinha, na Faculdade de Medicina da Bahia, umacoleção de cabeças de bandidos e criminosos memoráveis, submetidas aestudos antropom étricos. Sobre o C onselheiro, observou que apresentava ocrânio "normal" de um m estiço, sem traços de anomalia ou degeneração, em

23 E. da Cunha, manuscrito de Os sertões, cf. Leopoldo Bernucci, A imitação dos sentidos: prólog o s , contemporâneos e epígonos de Euclides da Cunha (São Paulo: Edusp, 1995), p. 128.

352 R o b e r t o V e n t u r a

que se a ssociavam os caracteres antropológicos de diferentes raças. Tal conclusão confirmaria o diagnóstico anterior de que a rebelião de Canudos teriaresultado do contágio psíquico de um a população fetichista p o r u m delirantecrônico.24

O médico Afrânio Peixo to retirou o cérebro de Euclides d a Cunha após

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imigrantes no trabalho produtivo. Não exprimiram, portanto, apenas interesses colonialistas e imperialistas, já que se articulavam aos grupos nacionaisidentificados à modernidade ocidental, que os adotaram junto com os m odelos liberais de Estado.

O liberalismo foi fundamental na articulação de um discurso empenha

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sua morte em agosto de 1909. O cérebro ficou conservado em formol noMuseu Nacional do Rio de Janeiro até 1983, quando foi enterrado emCantagalo, sua cidade natal, no Rio de Janeiro. O antropólogo Roquette-

Pinto observou que se tratava de um órgão notável pela  riqueza e complexidade das circunvoluções, sobretudo na zona que governa as faculdades deexpressão.25 O crânio do messias e o cérebro do escritor despertaram ointeresse dos legistas e antropólogos da época, em busca dos traços físicose anatômicos do crime ou do estilo.

0 sincretismo de raças e culturas

A teoria d as desigualdades raciais se difundiu no Brasil nas três últimas

décadas do século XIX, junto com os ideários naturalistas, positivistas eevolucionistas. O chamado racismo científico foi adotado por escritores,políticos e cientistas e teve uma acolhida entusiasta nos órgãos de imprensa enos estabelecimentos de ensino e pesquisa, como a Faculdade de Direito doR ecife, as faculdades de med icina de Salvador e do R io de Janeiro, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Museu N acional, o Museu P araenseEmílio Goeldi e o Museu Paulista.26

O racismo se ligava ao s interesses de uma elite letrada em se diferenciarda massa popular, cujas formas de cultura e religião eram depreciadas com oatrasadas ou degeneradas. As concepções racistas se tornaram parte daidentidade da classe senhorial e dos grupos dirigentes em uma sociedade

hierarquizada e estamental, com grande participação de escravo s, libertos e

24 R. N. Rodrigues, "A loucura das multidões", em As coletividades anormais, cit., pp. 131-133.25 Edgard Roquette-Pinto, "Relações do cérebro com a inteligência", em Revista de Educação

Pública (Rio de Janeiro), vol. 7, 25-32: 1-5, 1949-50.26 Para uma abordagem das instituições científicas que privilegiaram o modelo racial, cf. Lilia

Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil,1870-1930 (São Paulo: Companhia das Letras, 1993).

do na construção da nação e da cidadania, que se articulou com a práticaescravista após a independência e com os m odelos racistas a partir da abolição e da república. Formou-se, no período monárquico, um liberalismooligárquico, po r meio d o qual a classe economicamente dom inante assumiu oseu papel de grupo dirigente, apresentando-se com o parlamentar face à co roa e como antidemocrata perante a vasta população escrava ou pobre.Recorria-se ao liberalismo para legitimar o cativeiro e defender o direito dostraficantes e dos senhores rurais de submeter o escravo mediante coaçãojurídica e de negoc iá-lo com o mercadoria, o que só foi limitado sob pressãointernacional. Politicamente, os brancos eram considerados iguais enquantocidadãos livres, estando asseguradas a livre competição e a liberdade pessoal entre eles.

C om a eclosão da campanha abolicionista e do mov imento republican o , ganhou força, ao lado do d iscurso liberal, um m odelo racial, com o objetivo de restringir os pressupostos igualitários das revoluções burguesas e delimitar a participação do s não-brancos na esfera política. O dogma racial dadesigualdade foi introduzido co mo princípio de naturalização de diferençasem um a sociedade formalmente liberal. Enquanto os modelos liberais regulamentavam as esferas públicas, constando das leis e das medidas de âmbitogeral, a visão racial, formulada pelos intelectuais e divulgada pela imprensa epelas instituições acadêm icas e científicas, se fez p resente nas relações pessoais e nas vivência s cotidianas, justificando hierarquias sociais e políticascom b ase em critérios biológicos. 27

A s teorias racistas foram redefinidas e adaptadas às condições locais,dando origem a modelos de pensamento, como a valorização d a miscigenação e a ideologia do branqueamento, enquanto tentativas de eliminar a contradição entre a realidade étnica, o racismo científico e o liberalismoprogressista. Aceitando a premissa básica do racismo - a superioridade da

27 Sobre esse enviesamento oligárquico e racial do liberalismo, cf. A. Bosi, "A escravidão entre doisliberalismos", em Dialética da colonização, cit.; L. M. Schwarcz, O espetáculo das raças, cit.

354 R o b e r t o V e n t u r a

raça branca -, Sílvio R omero e Euclides da Cunha valorizaram a miscigenação com o mecan ismo de assimilação dos grupos inferiores, de modo a escapar à armadilha determinista d e autores europeus e norte-americanos, c om oBu ckle, Gobineau e Agassiz, que condenavam o B rasil ao atraso e à barbárie.

A té 1910 apenas intelectuais isolados, com o o crítico literário Araripe

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A valorização da mestiçagem e a ideologia do branqueamento foramcontribuições originais que atenuaram, ainda que parcialmente, o racismocientífico então dominante. Enquanto Nina Rodrigues tomava a miscigenação como sinônimo de atraso e degeneração, Romero propôs o "branqueamento" como saída para reabilitar a s raças consideradas inferiores, integradas

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Júnior e o historiador Manuel B onfim, autor de A América Latina (1905) ,atacaram tais con cepções. Araripe atribuía o racismo d a ciência européia aoexpansionismo das nações dominantes, que tomavam a condenação das raças não-brancas e da miscigenação como idéia "fundada para autorizar aexpansã o e justificar a expropriação dos povos sem esquadras". Bonfim também criticava o pretenso caráter científico do racismo, que cham ava d e "so-fisma abjeto do egoísm o humano" e "etnologia privativa d a s grandes naçõessalteadoras", cujo principal objetivo era justificar a dominação de países egrupos sociais: "A ciência alegada pelos filósofos do massacre é a ciênciaadaptada à exploração".28

Apesar das críticas de A raripe e B onfim, o racismo científico se tornoumoeda corrente no debate cultural e político b rasileiro no último terço doséculo XIX. A proclamada inferioridade dos não-brancos e a previsão deesterilidade d os m estiços feita por alguns naturalistas levantavam dúvidassobre o porvir do país e colocavam um dilema para a elite brasileira, queoscilava entre o liberalismo e o racismo, entre o pressuposto da igualdadeformal entre os hom ens e o princípio racista da desigualdade inata.

A questão étnica se tornou central no momento de implantação do regime republicano e do trabalho assalariado. O racismo científico foi adotad o , de forma quase unânime, a partir de 18 80, enviesando as idéias liberais,ao refrear suas tendências democráticas e dar argumentos para estruturassociais e políticas autoritárias. A partir de critérios etn ológico s, escritores ecientistas, como S ílvio Rom ero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Viana, proclamaram o liberalismo, na expressão atual de RobertoSchwa rz, "idéia fora de lugar", em desacordo com a formação racial brasileira, o que tornaria necessária a revisão do modelo político da PrimeiraRepública.

"Tristão de Alencar Araripe Júnior, "Clóvis Beviláqua" (1899), "Sílvio Romero polemista"(1898-99), em Obra crítica (Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1958-70), vol. 3 , p p . 327,400;Manuel Bonfim, A América Latina: males d e origem (1905) (Rio de Janeiro/Paris: Garnier, s.d.),p p . 278-398.

e extintas pela m istura progressiva. Pôde pensar, com iss o, uma "solução"para o dilema racial que escapava às previsões pessimistas sobre o futuro da

civilização no B rasil, sem contestar, porém, os fundamentos d o racismo.Surgia, portanto, um a saída brasileira para a questão étnica: fundir paraextinguir as raças tidas como inferiores. A miscigenação, afirmavam seusideólogos, produziria u m a população cada vez mais "clara", pois os brancos,enquanto grupo superior, predominariam n a mistura. Sílvio R omero acreditava que o branqueamento levaria de três a quatro séculos para se com pletar, já que as leis evo lutivas tornavam "inevitável" a vitória do branco. Oantropólogo João B atista de Lacerda, diretor do M useu Nacional do Rio deJaneiro, era ainda mais "otimista", pois achava que a tríplice desaparição donegro, do índio e do mestiço necessitaria de apenas um século. Os censosdemográficos do Brasil no século XX, cuja população se tornou cada vezmais m estiça, acabaram por desmentir tais previsões de pureza racial.

A imigração era concebida como processo de incorporação de elementos étnicos superiores, de origem européia, que acelerariam, pela m iscigenação, o processo de branqueamento. O programa de imigração chinesa,proposto pelo viscond e de Sinimbu n o final da década de 18 70, fora rejeitado no parlamento, com o argumento de que os chineses corromperiam aformação racial no país. O deputado Joaquim Nabuco foi uma das vozesque se ergueram contra a importação de asiáticos que levaria, segundo ele, à"mongolização" d o país.

O ideal de branqueamento, contido no programa imigrantista, se revelou no decreto de 189 0, que estabelecia: "É inteiramente livre a entrada no s

portos da Repú blica dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho que nãose acharem sujeitos à ação criminal do seu país". M as a essa provisão liberalse acrescentava cláusula, excluindo os "indígenas da Ásia o u d a África", quesó deveriam ser admitidos com autorização do Co ngresso. 29 Ainda que não

29 Thomas E. S kidmore, Preto no branco: raça e nacionalidade n o pensamento brasileiro (Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1976), p. 82.

3 5 6 R o b e r to V e n t u r a

tenha sido aplicado, o decreto mostra o m odelo brancófilo do imigrantismo,que substituiu o escravo pelo imigrante europeu. Os grupos asiáticos, emparticular japonese s, só ingressaram no país a partir da primeira década doséculo X X , quando a imigração européia se tornou problemática.

A difusão das teorias raciais e da crítica positivista ao modelo demo

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em aspectos da reflexão de Romero posterior a 1900, como a perspectivaarianista, a crítica à miscigenação e à democracia, o enfoque dos aspectosclânicos da sociedade brasileira e a defesa d e um sistem a político autoritário.Essas co ncepções, tanto em R omero quanto em Viana, foram formuladas apartir d a indagação sobre a especificidade da formação nacional, precondição

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crático deu origem a ideologias antiliberais, que afirmavam a supremacia d oEstado e de seus dirigentes sobre a sociedade. Com base no pressuposto

das desigualdades étnicas, foram propostos m odelos p olíticos autoritários,apresentados como defesa dos valores da civilização, representados pelaelite branca ou ariana. A crítica ao liberalismo e a virada autoritária no pensamento brasileiro no início do século X X se deram a partir da constataçãoda divergência entre os mod elos europeus e a formação racial brasileira.

Tal constatação aparece, por exemplo , na obra de Sílvio Rom ero, cujamudança de posição em relação à mestiçagem trouxe à tona uma orientaçãoantidemocrática, que reflete a desilusão dos intelectuais com o m odelo liberald a Primeira República. Sua confiança na s vantagens dos cruzamentos raciaisfoi abalada a partir de 1900, quando se mostrou cético quanto ao futurobranqueamento d a população b rasileira e passou a aceitar as teorias arianistas

contrárias à mestiçagem, que antes rejeitara. C onsiderava agora a mistura deraças uma "desvantagem", pois os p ovos cruzados seriam sempre inferioresàs raças ditas puras: "populações que se mestiçaram — nunca mais deixamde ser mestiçadas".

A o questionar o futuro branqueamento da população brasileira, Romeropassou a temer que o país viesse a ser dominado por raças inferiores oucruzadas. Adotou idéias antiliberais d e defesa da elite ariana, "reduto imescladode gente superior", capaz de manter acesa a chama d o progresso e da civilizaç ã o . Seguindo as teses do francês Gobineau sobre a decadência da civilização a partir do abastardamento dos arianos, observou sobre as misturasraciais: "Com o a democracia é, talvez, uma co isa fatal e irremediável, mas é

em grande parteu m

mal".

30

A teoria racial de S ílvio R omero marcou dois intérpretes do Brasil, quese apropriaram de facetas distintas de sua obra: Oliveira V iana e GilbertoFreire. Oliveira Viana, em Evolução do povo brasileiro (1923), se apoiou

30 S. R omero, "Prefácio" (1913), em Obra ilosófica Rio de Janeiro: José Olympio, 1969), p . 201;Martins Pena: ensaio crítico (Rio de Janeiro: Garnier, 1901), pp. 160-2.

para a articulação de um discurso antiliberal no Brasil.Por outro lado, Rom ero fundou, junto com Euclides da Cunha, os mi

tos de identidade nacional basead os na fusão e integração de raças e cultur a s , que m arcariam a cultura brasileira moderna. G ilberto Freire retomou, emCasa-grande & senzala (1933), a valorização da miscigenação e o interesse pelo folclore e pelas tradições populares, presentes em ambos. Ao comentar a publicação, em 194 3, da terceira edição da História da literaturabrasileira de Romero, Freire considerou a teoria da mestiçagem um dosfundamentos do pensamento democrático moderno, ainda que rejeitasse oseu preconceito racial e a crença na inferioridade étnica.31

O reajuste das teorias racistas adquiriu tal autonomia em relação àspremissas iniciais, que a ideologia da mestiçagem se manteve mesmo após arejeição, a partir da década de 1930, do racismo científico e dos modelos

evolucionistas, substituídos pela abordagem culturalista de Gilberto Freire edos antropólogos Roquette-Pinto e Artur Ramos. O abandono do racismocientífico tornou, ao contrário, mais entusiástica a valorização d a miscigenação co mo criação de uma identidade nacional a partir da síntese de raças eculturas.

De 1870 a 1910, o destaque dos fatores étnicos, biológicos e climáticos produziu a ideo logia do branqueamento com o forma de ajuste do racismo europeu às condições brasileiras. A partir de 1930, com a ênfase nosocial, n o cultural e n o econôm ico, o branqueamento se converteu no cadinhode raças de um a sociedade multirracial. O perfil interpretativo passou a sermoldado não mais pelos conceitos de raça e natureza, mas pelos de cultu

ra e caráter.

22

Freire observou, no prefácio a Casa-grande & senzala, qu e

31 Gilberto Freire, "Valorização do mestiço", em A Manhã, Rio de Janeiro, 24 jul. 1943.32 Carlos Guilherme Mota e Flora Süssekind abordaram essa mudança na literatura e no ensaio

histórico-social. Cf. C. G. Mota, Ideologia da cultura brasileira (1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica (São Paulo: Ática, 1978); F. Süssekind, T al Brasil, qual romanc e ? : uma ideologia estética e sua história: o naturalismo (Rio de Janeiro: Achiamé, 1984).

358 R o b e r t o V e n t u r a

seu ensaio se baseava na diferença entre raça e cultura, de modo a separaros fatores genéticos das influências sociais e culturais.

A miscigenação corrigiu, para Freire, a distância entre a casa-grande ea senzala, entre senhores e escravos, ao criar o mestiço como elemento demediação entre os dois mundos, capaz de reduzir e amortecer as tensões

U m B r a s i l m e s t i ç o : r a ç a e c u l t u r a n a p a s s a g e m d a m o n a r q u i a ò r e p ú b l i c a 359

Bibl iograf ia selecionada

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sociais e os antagonismos culturais. Rompend o com o pessim ismo das teorias deterministas do século XLX, que proclamavam a inviabilidade da nação

brasileira, o sociólogo criou o mito da "democracia racial" ou do "novo mundo nos trópicos", capaz de aperfeiçoar o legado ocidental segundo padrõesmais flexíveis.

A apologia da mestiçagem, presente no ensaio histórico-social de G ilberto Freire, reaparece nos romances de Jorge Amado, como Gabriela,cravo e canela (1958), Tenda dos milagres (1969), Tereza Batista cansada de guerra (1973) e Tieta do Agreste (1977), elogios épicos à sensualidade da mulata. Freire e Amado se mantiveram presos a concepções deetnicidade, que entravam em conflito co m a pretensa superação do paradigmaétnico-b iológico, ao atribuírem valor psicológico às raças e glorificarem aformação de uma cultura sincrética a partir do seu cruzamento.

A ideologia da mestiçagem, com o fusão harmoniosa de raças e culturas, se tornou elemento recorrente na cultura brasileira como traço específico ou marca de identidade nacional. Formulada por escritores, políticos ecientistas do final do século XIX e início do século XX, tal ideologia foiincorporada ao senso comum e se tornou parte integrante da representaçãodo país. Promessa reconfortante e utópica de uma futura unidade racial ecultural, as imagens de um Brasil mestiço propostas por Sílvio Romero,Euclides da Cunha e Gilberto Freire revelam a tensão entre o projeto deintegração à civilização e a construção diferenciada da idéia de nação, quemarcou a cultura brasileira desde os seus primórdios.

Bragan ça Paulista: Ed. Univ. São Francisco, 1999.GOMES, Heloísa Toller. As marcas da escravidão: o negro e o discurso oitocentista no Brasil e

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Sobre o s au to r es

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A z i z N a c i b A b ' S á b e r

Bacharelou-se em 1943 e obteve o título de L icenciado em 1944, ambos na FFLCH/USP,

onde fez Especialização em Geografia, n o decorrer d e 1945-46. N o campo d o ensino uni ver- !

sitário, atuou em diversas faculdades particulares do Estado de São Paulo (Faculdade deFilosofia "S edes Sapientie", Escola d e Jornalismo "Casper Libero", Faculdade d e Filosofiad a P U C - Sã o Paulo; Faculdade Campineiras; Faculdade d e Filosofia d e Sorocaba). Defendeutese d e doutorado (1956) e livre-docência em Geografia (1965), e m s u a Faculdade d e origem. iEntre 1 9 7 9 e 1 98 3 colaborou co m a Unesp, e m S ã o José d o R i o Preto, na qualidade d e Diretor !do Ibille (Instituto B io-Ciências e Ciências Exatas). Mais conhecido como geomorfologista, !ao longo de 50 anos de trabalho e pesquisas, diferenciou suas preocupações e escritos por ;todo um vasto leque d e áreas científicas. Fo i presidente d o Conselho d e Defesa d o Patrimônio [Histórico, Artístico e Arqueológico do Estado de São P aulo (Condephaat), e é professorhonorário do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.

J o r g e C o u t o i

Docente n a Faculdade d e Letras d a Universidade d e Lisboa onde, desde 1 9 8 6 , leciona História do Brasil. É autor da s teses O colégio do s esuítas d o Recife e o destino d o seu patrimônio(1759-1777) e O patrimônio da Companhia de Jesus da Capitania-Geral d e Pernambuco.Contributo para o estudo d a desamortização n o Brasil colonial (1759-1808). Publicou, em1 9 9 8 , A construção d o Brasil. Ameríndios, portugueses e africanos, d o início do povoamento afinais de quinhentos (Lisboa: Cosmos, 1995). Atual presidente do Instituto Camões (Por- jtugal), é membro d a Comissão N acional para a s Comemorações d o s Descobrimentos Portu- jgueses e representante do Ministério da Cultura na Comissão M ista L uso-Brasileira para asComemorações do V Centenário d o Descobrimento d o Brasil.

E v o ld o C o b r a i d e M e l lo

Após estudos de Filosofia da História em Madri e Londres, ingressou no Instituto RioBranco, d o Ministério d a s Relações Exteriores, em 1 9 6 0 , iniciando a carreira diplomática em1 9 6 2 . É doutor em História por notório saber pela Universidade de São Paulo, 1 9 9 2 . Publi

cou os livros: Olinda restaurada. Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654 (2. ed. Rio deJaneiro: Topbooks, 1998); O norte agrário e o Império, 1871-1889 (2 . ed. Rio de Janeiro:Topbooks, 1999); Rubro veio. O imaginário da restauração pernambucana (2. ed. Rio deJaneiro: Topbooks, 1997); O nome e o sangue. Uma fraude genealógica n o Pernambucocolonial ( S ã o Paulo: Companhia da s Letras, 1989); Afronda d o s mazombos. Nobres contra jmascates. Pernambuco, 1666-1715 ( S ã o Paulo: Companhia da s Letras, 1995); O negócio d oBrasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste (Rio de Janeiro: Topbooks, 1998).

3 6 2 S o b r e os a u t o r e s

S t u a r f B . S c h w a r t z

Professor de História na Yale University (EUA), tendo sido professor visitante em váriasuniversidades, dentre elas a Universidade de São Paulo. Doutor Honoris pela UniversidadeFederal da Bahia, é autor, entre outros livros, de Burocracia e sociedade n o Brasil colonial(São Paulo: Perspectiva, 1979) e Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedadecolonial (São P aulo: Companhia das Letras, 1988), e de estudos sobre o B rasil-colônia,

S o b r e os a u t o r e s 3 6 3

J o ã o J o s é R e i s

Professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia. Nos EstadosUnidos, foi professor visitante d a s universidades d e Michigan, Princeton e Brandeis. É autor,entre outros, de Rebelião escrava n o Brasil: a história do Levante d o s Males (1835) (SãoPaulo: Brasiliense, 1986), também publicado em inglês, revisto e ampliado, como Slaverebellion in Brazil (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1993); A morte é uma esta:

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publicados na Hispanic American Historical Review, na American Historical Review, noJournal of Social History e na T h e Cambridge History ofLatin America.

I s t v á n J a n c s óLivre-docente pela Universidade Federal Fluminense. Fo i professor d a Universidade Federalda Bahia e da Universidade de Nantes, na França. Atualmente, é professor d o departamentode História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de SãoPaulo.

J o ã o P a u l o G . P i m e n t a

Mestre em História pela Universidade de São Paulo, onde apresentou a dissertação "Estadoe nação na crise dos impérios ibéricos no Prata (1808-1828)", é doutorando na mesmauniversidade.

K e n n e t h R . M a x w e l l

Fellow em Estudos Americanos e diretor d e Estudos Latino-americanos do Instituto Nelsonand David Rockefeller da Universidade de Harvard. Ingressou no Conselho de RelaçõesInternacionais após te r ensinado n as universidades d e Yale, Princeton e Columbia e atuar p o rseis anos como diretor da Tinker Foundation. Seus livros mais recentes incluem Chocolate,piratas e outros malandros: ensaios tropicais (1999); T h e Making ofPortuguese Democracy(1995); Pombal: Paradox ofthe Enlightenment (1995); e T h e N e w Spain: From Isolation toInfluence (1994), em co-autoria. Bacharel e mestre pelo St . John's C ollege e pela Universidad e d e Cambridge, respectivamente, possui outro mestrado e doutorado pela Universidade dePrinceton.

C a r lo s G u i lh e r m e M o t a

Historiador, professor titular (aposentado) de História Contemporânea da Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, tendo sido o primeirodiretor do Instituto de Estudos Avançados da USP (1986-1988). Ex-professor visitante das

Universidades de Londres, do Texas e da Escola d e Altos Estudos de P aris (1985) e VisitingScholar da Universidade de Stanford (EUA). Professor no programa de pós-graduação emEducação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autor deNordeste, 1 8 1 7 ( S ã o Paulo: Perspectiva, 1972); Ideologia d a cultura brasileira (São P aulo:Ática, 1998); Idéia de revolução no Brasil, 1789-1801 (São P aulo: Cortez, 1989), entreoutros. Coordenador das obras coletivas Brasil em perspectiva (São Paulo: Difel, 1968) e7522: dimensões (São Paulo: Perspectiva, 1972).

ritosfúnebres e revolta popular n o Brasil d o século X IX ( S ã o Paulo: Companhia da s Letras,1992). Organizou, com Flávio Gomes, Liberdade po r u m f i o : historio do s quilombos noBrasil (São Paulo: Companhia d a s Letras, 1997).

K a r e n M o c k n o w Ü s b o a

Mestre e doutoranda em História Social pela Universidade d e S ã o Paulo. Pesquisa a literaturade viagem sobre o Brasil, assunto de seu mestrado e doutorado. É autora d e vários artigos edo livro A Nova Atlântida d e Spix e Martius: natureza e civilização na "Viagem pelo Brasil(1817-1820)" (São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1997).

F r a n d s c o A l a m b e r t

Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Foi professor do Departamento deHistória da PUC-SP e da Universidade Federal Fluminense e do Departamento de Filosofiada Unesp-Marília. Atualmente leciona E stética e História da Arte no Instituto de Artes daUnesp. É pesquisador do Núcleo de Estudos da América Latina do Instituto de EstudosAvançados da U S P . Publicou, entre outros, A Semana de 22 (São Paulo: S cipione, 1992) eDocumentos d e história d o Brasil ( S ã o Paulo: Scipione, 1997).

R o b e r t o V e n t u r a

Professor d e Teoria Literária e Literatura Comparada n a Universidade d e S ã o Paulo. Coordenou, de 1993 a 1994, a área d e História Cultural do Instituto de Estudos Avançados da U S P .É autor de História e dependência: cultura e sociedade e m Manoel Bomfim (São P aulo:Moderna, 1984), em co-autoria co m Flora Süssekind; Escritores, escravos e mestiços e m u mpaís tropical (Munique: W. Fink, 1987); e Estilo tropical: história cultural e polêmicasliterárias n o Brasil ( S ã o Paulo: Companhia d a s Letras, 1991). E stá preparando uma biografiade Euclides da Cunha.

U N IVER SID A D D ES^^A N C A

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Leia também:

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Tel , (12) 232-5066 «Fax: (12) 232-3686E-maiL  [email protected] 

Votuporanga

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