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MIA COUTO E J.M.G LE CLEZIO: DOIS DISCURSOS DA MEMÓRIA
Vivian, Ilse Maria da Rosa1 CNPq Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGL Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS [email protected]
RESUMO
Frente ao legado histórico que insiste em manter a ilusão de uma memória única, as representações do passado
ganham especial interesse, principalmente quando relacionam espaços que, durante a consolidação das grandes
potências, foram destituídos de voz. Torna-se relevante, assim, a análise da narrativa com vistas a verificar o seu
discurso, que se altera de acordo com o lugar a partir do qual se enuncia o sujeito. As marcas da memória são
constitutivas do momento linguístico, já que “em sua fase declarativa, a memória entra na região da linguagem: a
lembrança dita, pronunciada, já é uma espécie de discurso que o sujeito trava consigo mesmo” (Ricoeur, 2007).
A partir disso, no amplo contexto que envolve a imagem do africano hoje, observo o debate engendrado ao se
colocar em diálogo Mia Couto e J. M. G. Le Clézio, os quais configuram, pelas imagens de memória, a África
que se enuncia “de si, dos outros e de ninguém”.
Palavras-chaves: narrativa - memória – Mia Couto – Le Clézio
INTRODUÇÃO
Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento, como Gombrowicz o disse e fez. Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida.
Gilles Deleuze
Não é de surpreender que O Africano, do escritor francês Jean-Marie Gustave Le
Clézio, tenha sido coroado com o Prêmio Nobel de 2008, considerando os intuitos
criteriosos que sempre moveram a Academia. Mas esse fato torna-se mais problema
quando, ao ler diversas críticas sobre o livro, deparei-me com comentários, em grande
parte, saudosos com relação à construção literária da memória e à “precisa e rica
africanidade” existente em O Africano.
É possível, também, encontrar estudos que o afirmam como referencial de pesquisa
histórica, social e antropológica sobre os africanos. Li, ainda, alguns artigos que tentam
mostrar, segundo Lejeune, Le Goff e outros mais, o quanto O Africano é autobiográfico,
abordagem que entra em conflito com os pressupostos abordados aqui, já que, de antemão,
o autor seria „ressuscitado‟ e, com isso, mudado o foco do texto para a obra, conforme
distinção feita por Barthes:
1 Doutoranda em Teoria da Literatura, sob orientação da Dr. Sissa Jacob.
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um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que
entram umas com as outras em diálogo (...); mas há um lugar onde essa
multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, (...) o leitor é o espaço
mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações
de que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem,
mas no seu destino (...) a obra é um fragmento de substância, ocupa
alguma porção do espaço dos livros. Já o texto é um campo metodológico.
(...) o texto mantém-se na linguagem: ele só existe tomado num discurso.
(BARTHES, 2004, p.64-67)
Nesse sentido, considerando que o texto sempre implica experiências de limite e que
se coloca como questão das regras de enunciação, enquanto textura plural, infinita, opõe-se
o texto à obra. Essa, cujo significado encerra-se em seu processo de filiação, impede ou, no
mínimo, dificulta que se ouça a sua própria voz, a voz da linguagem, do discurso. As marcas
da memória são constitutivas do momento linguístico, já que “em sua fase declarativa, a
memória entra na região da linguagem: a lembrança dita, pronunciada, já é uma espécie de
discurso que o sujeito trava consigo mesmo” (RICOEUR, 2007, p.41).
A partir disso, observa-se, no amplo contexto que envolve a África e a imagem do
africano hoje, o debate discursivo engendrado ao se colocar em diálogo Mia Couto e J. M.
G. Le Clézio, os quais configuram, pelas imagens de memória, a África que se enuncia “de
si, dos outros e de ninguém”. Dois romances são eleitos como referência para o texto que
segue: Terra Sonâmbula (1992), de Mia Couto, e O Africano (2004), de Le Clézio.
* * *
O Africano consiste na narrativa de um homem que, com o objetivo de reconhecer-
se, conta a história do pai, médico militar, que fora transferido da França, pelo exército
inglês, para a África durante a Segunda Guerra Mundial. O narrador inicia a trajetória, que
percorre os vinte e dois anos de história do pai na África, com as suas impressões tidas na
infância, quando tinha oito anos e passou a morar em Ogoja. As primeiras imagens que se
formam são a da humilde choupana, cuja moradia simboliza para o narrador a data de início
do apagamento de seu rosto e a do aparecimento dos corpos:
Meu corpo, o corpo de minha mãe, o corpo de meu irmão, o corpo dos
garotos da vizinhança com os quais eu brincava, o corpo das mulheres
africanas nos caminhos, ao redor da casa, ou então no mercado, perto do
rio. Sua estatura, seus seios pesados, a pele luzente de suas costas. O
sexo dos garotos, sua grande rosa circuncisa. Os ventres protuberantes,
(...) Também o cheiro dos corpos, o tato, a pele nada áspera, mas quente e
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suave, eriçada em milhares de pêlos. (...) Na África a falta de pudor dos
corpos era magnífica. (LE CLÉZIO, 2007, p.08)
O narrador, do ponto de vista do presente, analisa o exótico e erótico corpo estranho.
Não há como não lembrar da descrição dos índios e da natureza feita por Vaz de Caminha,
n‟A Carta, ao chegar no „paraíso‟. Nesse primeiro capítulo, que se intitula O corpo,
configuram-se os pólos espaciais percorridos pela memória, que se alternam ao longo de
todo o romance, metonimicamente atribuídos a Nice, à França, o rosto, e a Ogoja, à Nigéria,
o corpo.
Embora componha com detalhes a paisagem africana, como nas passagens que
indicam a harmonia e a sensualidade do corpo com a natureza (LE CLÉZIO, 2007,
p.8,9,11,13), e enuncie diversas vezes a força que exercem essas sensações sobre si, as
passagens que descrevem a vida na França (LE CLÉZIO, 2007, p.7,12,13,14,15,16,17),
tanto do ponto vista pessoal, quanto das condições gerais da Europa durante a Segunda
Guerra, predominam consideravelmente como referências mais íntimas e mais fortes do
narrador. A África, assim, aparece como pretexto para iluminar o passado vivido na França.
O narrador idealiza, quase idolatra a África, mas em nenhum momento intervém ou se
insere. Seu ponto de vista permanece exterior e distante, mesmo ao se reportar ao tempo
da infância:
A liberdade, em Ogoja, era o reino do corpo. Ilimitado, o olhar, do alto da
plataforma de cimento na qual fora construída a casa, semelhante ao
habitáculo de uma barcaça sobre o mar de capim. (...) Alguém que
houvesse conservado a memória fotográfica do lugar se espantaria com o
que um menino de oito anos era capaz de aí ver. Um quintal, sem dúvida
(...) era mais um pedaço utilitário, onde meu pai tinha plantado fruteiras,
mangueiras, goiabeiras, mamoeiros (...) Em algum canto, mais para trás da
casa, no meio do matagal, um galinheiro (...) (LE CLÉZIO, 2007, p.13)
No capítulo intitulado Cupins, formigas etc..., a construção da narrativa assemelha-se
à estrutura do capítulo anterior. A paisagem africana, palco das travessuras do personagem
menino, apenas ilustra superficialmente, do ponto de vista europeu, as diferenças culturais e
o choque provocado pelo contato entre elas. Essa parte compõe-se pela comparação entre
a disciplina imposta pelo “poderio do império” (LE CLÉZIO, 2007, p.22), representada na
figura do pai e nas histórias do império europeu, e a suposta liberdade e prazer do mundo
africano – sob o olhar do narrador:
Nós aprendemos a demolir as muralhas. (...) Voltávamos a golpeá-las, até
sentir as mãos doendo, como se combatêssemos contra um inimigo
invisível. Não falávamos; batíamos, dávamos gritos de raiva, e novas partes
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de paredes desabavam. Era uma brincadeira. Era uma brincadeira? Nós
nos sentíamos cheios de poder. (...) Os garotos da aldeia nunca estavam
conosco (...) já que no mundo no qual eles viviam os cupins eram algo que
se impunha, tendo um papel a representar nas lendas. (LE CLÉZIO, 2007,
p.25-6)
O Eu que se enuncia na narrativa pouco se desprende da enunciação do presente. O
narrador, bem como o personagem, o pai, permanece no seu lugar de origem. Em poucos
momentos o Eu desliza ou abstrai-se do lugar ocupado no presente. Seu discurso, quando
evoca o passado, é imediatamente intercalado com juízos do narrador do presente,
impedindo que se alastrem ou que se atravessem passado e presente. De acordo com
Ricoeur,
É em conjunto que o aqui e o lá do espaço vivido da percepção e da ação e
o antes do tempo vivido da memória se reencontram enquadrados em um
sistema de lugares e datas do qual é eliminada a referência ao aqui e ao
agora absoluto da experiência viva.(...)
De saída, temos a espacialidade corporal e ambiental inerente à evocação
da lembrança. Para explicá-la opusemos a mundaneidade da memória a
seu pólo de reflexividade. (RICOEUR, 2007, p.157)
Ricoeur (2007) refere-se, nesse sentido, ao eu do passado que, na escritura, reúne-
se ao eu do presente, e que, dessa terceira posição, enuncia-se. Em O Africano, esse
reencontro não existe, o narrador mantém as imagens do passado como alojadas em
alguma parte da consciência do enunciador do presente e é dessa posição que narra a saga
do pai. Esse tipo de construção da memória termina por formular uma visão totalizante do
mundo.
O ponto de vista do narrador, quando se volta para o passado e quando se enuncia
do presente, permanece o mesmo. Sua voz é a única a conduzir toda a narrativa. A imagem
do pai é fixa, do início ao fim da história. Esse configura-se como um homem “pessimista,
desconfiado e autoritário” (LE CLÉZIO, 2007, p.41). Exceto pelos efeitos da guerra e das
dificuldades impostas pelo mundo da África sobre a vida do pai, não há nenhum tipo de
intencionalidade em seu discurso sobre colocar-se em questão, nem mesmo sobre as
relações ou diálogos mantidos pelas duas realidades que o cercam.
Deleuze (1997), em Crítica e clínica, ao tratar do inacabamento e do devir que deve
existir na literatura, cita justamente Le Clézio, com seu primeiro romance, onde a
personagem é toda devir, até esvair-se por completo. O inacabamento de que fala Deleuze
em seu texto, inexiste em O Africano. As especificidades do sujeito, aqui, são suspensas em
relação ao todo da memória, a qual o narrador mantém subjugada à posição exclusiva do
presente da narrativa, mantendo-a sob o signo de unidade. Faltam a essa memória as
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imagens dialéticas que, segundo Benjamin (1992), formam-se de um objeto, enquanto
composto por elementos diversos e contraditórios. De acordo com Deleuze (1997):
Escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e
lutos, sonhos e fantasmas. Pecar por excesso de realidade ou de
imaginação é a mesma coisa: em ambos os casos é o eterno papai-mamãe,
estrutura edipiana que se projeta no real ou se introjeta no imaginário. (...)
Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja
aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros no
interior deles? (...) A saúde como literatura, como escrita, consiste em
inventar um povo que falta. (...) Não se escreve com as próprias
lembranças, a menos que delas se faça a origem ou a destinação coletivas
de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações.
(DELEUZE, 1997, p.13-4)
No capítulo que dá nome à obra, o narrador, introduzindo a história do pai, com o
qual mantém apenas “longos anos de afastamento e silêncio” (LE CLÉZIO, 2007, p. 49),
conta sobre o “heroísmo sem ênfase” (p.41) da sua mãe, do seu pai e até das mulheres
francesas. A África, aí, aparece apenas de forma caricaturizada e, novamente, do ponto de
vista exterior.
Com o apagamento do rosto e o surgimento do corpo, apontando o instinto e a
liberdade, de que fala o narrador no primeiro capítulo, ameaça-se um caminho para a
narrativa. Mas esse instinto e essa liberdade têm seus sentidos encerrados quando são
postos como contraponto de imagem da vida opressiva e limitada na França durante a
Guerra. Portanto, trata-se da memória de um sujeito europeu, que se enuncia desse lugar e
jamais se desprende dele. É esse sujeito que está a olhar o outro continente. Com essa
forma de construção da memória, engessa-se a narrativa, mantendo o traço genealógico
sempre exposto aos olhos leitor.
Em Terra Sonâmbula, de Mia Couto, as proliferações de vozes, como a alternância
de narradores ou o silenciamento do narrador para dar lugar ao testemunho da personagem,
o uso da linguagem oral popular ou folclórica são apenas algumas das opções de escrita
que indicam a pluralidade dos caminhos percorridos pela memória. Esse princípio faz
transparecer o multiculturalismo que caracteriza a África.
A narrativa se abre aos nossos olhos pela descrição do cenário da guerra. Composto
de onze capítulos, o romance nos mostra a história de dois meninos. Cada um dos
capítulos, narrados em terceira pessoa, é intercalado por um Caderno de Kindzu, subtítulo
atribuído à parte da narrativa que põe em ação uma voz em primeira pessoa, a voz de
Kindzu. No primeiro capítulo nos é anunciado o encontro de Muidinga com Kindzu, ou seja,
Muidinga encontra os Cadernos de Kindzu num carro queimado, e começa a sua leitura. Até
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o final da narrativa, teremos, paralelamente, acompanhado a vida desses dois personagens.
A história de Kindzu, assim, é lida por Muidinga. O mundo de Muidinga é atravessado pelas
aventuras de Kindzu. Na narrativa de Kindzu, Muidinga compõe sua própria história.
Duas histórias independentes tornam-se ligadas pela leitura. Espaços e tempos
distintos cruzam-se aos olhos do leitor. Ao final do terceiro capítulo, já não podemos mais
imaginar Muidinga sem Kindzu, nem Kindzu sem as suas personagens e suas histórias. A
duplicidade começa pela estrutura do romance e permanece na pluralidade de sentidos que
se compõe ao longo do texto, pelo cruzamento de várias vozes, já que as experiências de
Kindzu e de todas as suas personagens, em sua longa viagem, tornam-se a memória de
Muidinga.
A presença do duplo, nesse sentido, é fundamental para que ocorra a passagem
entre um nível e outro da narrativa, e um não existe sem o outro. O poder da memória, no
entanto, não consiste unicamente como metanarrativa, ou seja, como componente formal do
romance que auxilia no todo de seu significado. A memória é, nesse caso, componente
indispensável na composição das personagens, pela relação que estabelece entre Kindzu e
Muidinga.
Além disso, com seu traço de anterioridade, a memória realiza a inscrição da
polaridade entre dois Eus. Os deslocamentos espaço-temporais da consciência, em que
coexistem as imagens do presente e do passado, conduzem-nos a perceber a constituição
do Eu a partir “das aporias de uma identidade suspensa apenas pelo testemunho da
memória” (RICOEUR,1991, p.152):
Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz. (COUTO, 1993, p.17)
A aventura da sobrevivência é contada, assim, a partir da ótica subjetiva de muitos
sujeitos, da perspectiva de vários tempos – distintos tempos de guerra e, também, através
de projeções oníricas. O mundo pós-colonial é revisto a partir do caótico presente, um
presente que se prolonga em anos de conflitos civis. A definição do passado, que se
confunde com o presente, torna-se bem expressa nas palavras de Kindzu: “A guerra é uma
cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em
todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o
olho da vida. Nós estávamos cegos” (COUTO, 1993, p.19).
Os efeitos da guerra são visíveis a partir da transfiguração do humano, exposta
através da história de cada personagem. Junhito, irmão mais novo de Kindzu, é levado a
viver no galinheiro, por ocasião de uma visão tida pelo pai, de que viriam matar alguém da
família. Mais tarde, foi o próprio pai que, enlouquecido, afastou-se para viver num barco até
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a morte. Por conta disso, a mãe, por orientação de um feiticeiro e seguindo a tradição,
passou a ver e a alimentar o defunto em casa construída para ele no interior do mato.
Além do tema da perda das identidades pela exploração dos limites entre
humano/não humano, Mia Couto põe em questão os deslocamentos e a contingência que
subjaz à inscrição do sujeito no tempo e no espaço. Através da imagem de Surendra, o
indiano, pode-se ver o preconceito em relação ao árabe, cuja voz explicita o sentimento do
estrangeiro, partilhado também por Kindzu, apesar de ser nativo.
O estrangeiro Surendra abrange, assim, significados importantes na narrativa, uma
vez que explicita, pela própria voz, não só o peso da diferença, por estar em país
estrangeiro e ser indiano, mas conserva na memória o peso da condição humana no
contexto em que vive, como se pode observar abaixo:
-Vês, Kindzu? Do outro lado fica a minha terra. É mesmo ali onde o sol se está a deitar. E ele me passava um pensamento: nós, os da costa, éramos habitantes não de um continente mas de um oceano. Eu e Surendra partilhávamos a mesma pátria: o Índico. (...) Estavam ali nossos comuns antepassados, flutuando sem fronteiras. Essa era a raiz daquela paixão de me encaseirar no estabelecimento de Surendra Valá.(...) (p.29) (...) -Que pátria, Kindzu? Eu não tenho lugar nenhum. Ter pátria é assim como você está a fazer agora, saber que vale a pena chorar. (...) -Não gosto de pretos, Kindzu. -Como? Então gosta de quem? Dos brancos? -Também não. -Já sei: gosta dos indianos, gosta da sua raça. -Não. Eu gosto de homens que não têm raça. É por isso que eu gosto de si, Kindzu. (COUTO, 1993, p.33)
Kindzu, como Surendra, para sobreviver à miséria imposta pela guerra, também
parte em viagem pela costa marítima, carregando o peso amargo da culpa de não ter
cumprido as antigas tradições; desenraiza-se ao se deslocar da aldeia. Kindzu sofre ao se
afastar da sua terra, da sua cultura.
Entretanto, a valorização da cultura africana e de seus rituais tradicionais não impede
a exposição e a crítica dos problemas decorrentes da própria cultura, por vezes dramáticos.
A história da personagem Farida comprova isso: “cumpria um castigo ditado por
milênios”(COUTO, 1993, p.85) porque nasceu filha-gêmea. Não choveria mais. Foi expulsa
de sua aldeia, amaldiçoada. Adotada por um casal de portugueses, passou a ser violentada
pelo português Romão Pinto.
A imagem do português, além de grotesca e violenta, como é a de Romão Pinto,
representação do colonizador, aparece também do ponto de vista humano, através da dor e
da loucura da personagem Virgínia, que quer voltar a Portugal para não presenciar o
sofrimento da terra em que está. Como isso não acontece, a única saída é a loucura: “ela se
foi fazendo remota e, aos poucos, Farida receou que sua nova mãe nunca mais se
acertasse.(...) Era como se movesse o passado dentro do presente”(COUTO, 1993, p.91).
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O homem expresso por Mia Couto revela seu universo conflitivo: de um lado, a
tradição, os rituais, a força simbólica do passado dos ancestrais; de outro, a falência desse
mundo pela transfiguração que a guerra provoca em cada ser e, consequentemente, com a
necessidade de sobrevivência, que obriga cada ser a operar nos interstícios da sua própria
história para recompor seu elo de ligação com alguma realidade.
No sentido contrário a qualquer pretensão de controle sobre a história do passado, Mia
Couto realiza o que Bergson já chamava de "memória que imagina", quando diz que "para
evocar o passado, em forma de imagens, é preciso abstrair-se da ação presente, é preciso
atribuir valor ao inútil, é preciso querer sonhar" (BERGSON, 1963, p.228). Assim como
afirma Barthes (2004), estamos diante de um Eu que se encontra tanto na sua estrutura
individual quanto histórica sustentado pela sua própria linguagem:
um sujeito que já não é o sujeito pensante da filosofia idealista, mas sim despojado de toda unidade, perdido no duplo desconhecimento do seu inconsciente e da sua ideologia, e só se sustentando por uma sucessão de linguagens. (...) É o sujeito que depressa se encontra na sua estrutura própria, individual: ou desejante, ou perversa, ou paranóica, ou imaginária, ou neurótica - e, bem entendido, também na sua estrutura histórica. (BARTHES, 2004, p.42)
O Eu já não está no passado, nem no presente, nem no futuro. E é este justamente o
fundamento da narrativa. Para haver a manutenção de si, é preciso reinventar o Outro e o
espaço habitado, ambos locus representativos da relação do personagem com o mundo. O
passado é vasculhado até se tornar ruína. Origina-se um Eu alterado, dilacerado, que se
constitui pela dialética do próprio ato de narrar-se. O processo memorialístico do „ser‟
impulsiona-o ao „não-ser‟, e nesse conflito compõe-se a memória no romance, como
constante devir.
De acordo com Achugar (2006), a memória, enquanto imagem democrática de uma
nação, origina-se "não tanto no que „os indivíduos têm em comum‟, mas na negociação e na
batalha que esses indivíduos realizam sobre o que pode ser esquecido e o que poderia ou
deveria ser lembrado."
Mia Couto põe em evidência as lembranças desejadas, as lembranças impostas, os
esquecimentos desejados e os esquecimentos impostos. Mas nunca sob uma única voz. Os
personagens compõem-se como estilhaços de uma história da qual fazem parte sob ângulos
difusos, construídas pelas aporias do tempo. O cruzamento das várias vozes que narram a
si mesmas permitem que os componentes de cada personagem sejam iluminados e
apreendidos pela voz do Outro, com toda a contrariedade que é natural de suas
constituições. Assim como afirma Remédios, “a narrativa só faz sentido e é compreensível
na medida em que lhe subjaz a ação humana que ela pretende configurar”(REMÉDIOS,
2010, p. 188).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente ao legado histórico que insiste em manter a ilusão de que há uma memória
única, as representações do passado ganham especial interesse, na literatura,
principalmente quando relacionam espaços que, durante a consolidação das grandes
potências, foram destituídos de voz. Torna-se relevante, assim, as análises das narrativas
com vistas a verificar a construção do texto e o discurso que se opera nos interstícios da
narrativa. A natureza do discurso, como se observou, altera-se de acordo com o lugar a
partir do qual se enuncia o sujeito, mas, sobretudo, transforma-se conforme a arquitetura da
narrativa.
A narrativa é o meio privilegiado para a instauração da memória. E esta sempre dá
origem a uma desordem conceitual, como afirma Ricoeur (1991, p.152). Uma vez em ação,
obriga o sujeito à reflexão sobre os fatos. Seu aspecto temporalizante induz ao caminho da
alteridade. Não é possível mais ver a si próprio como era. Assim, é pela memória que se
articulam identidades. É ela que estende o ser através do tempo. Na dimensão do texto, as
escolhas feitas relativas à configuração da narrativa marcam o processo memorialístico de
reinscrição do sujeito no devir da própria constituição.
A imagem do africano em O Africano, apesar da diversidade de figuras poéticas
empregadas na narrativa e que caracterizam a escrita de Le Clézio, aparece caricaturizada.
Em poucos momentos, o Eu desliza ou abstrai-se do lugar ocupado no presente. Seu
discurso, quando evoca o passado, é imediatamente intercalado com juízos do narrador do
presente, impedindo que se atravessem passado e presente. As opções de linguagem
durante a construção narrativa asseguram a permanência do narrador em seu lugar de
origem.
As personagens de Mia Couto nascem à medida que se narram. A suas imagens
formam-se, para o leitor, a partir de suas próprias vozes e experiências sobre o presente e o
passado. A articulação da narrativa, que põe em relevo a concomitância de tempos, ou
vozes distintas a narrarem-se, privilegiando a diversidade de pontos de vista, resulta no
discurso mais humano do homem e do mundo.
As ações compõem-se pela desconstrução de vozes 'oficiais' para que se erga a voz
de um Eu-alteridade, que se apresenta como conflitivo e indisciplinado. Esses sujeitos
constituem-se, então, como lugar de descentramento, de dilaceramento, de transgressão,
de desterritorialização, de multiplicidade, lugar das diferenças, do esvaziamento de sentido
de determinadas tradições culturais, enfim, lugar de questionamento sobre a condição
humana perante a redução do Outro ao Mesmo num mundo violentamente grotesco
naturalizado por uma hegemonia que insiste em impor uma memória única.
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REFERÊNCIAS
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura.
Tradução de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. pref. Theodor W. Adorno,
Lisboa: Relógio d`Água, 1992.
BERGSON, Henri. Matière et memoire. Essai sur la relacion du corps à l'esprit. In: Oeuvres.
Paris: PUF, 1963. p. 225-260.
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed.34, 1997.
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
LE CLÉZIO, J. M. G. O africano. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. Entre o viver da personagem, o seu outro e o narrar do
narrador: a construção do sujeito em O conquistador, de Almeida Faria. Navegações. Porto
Alegre, v. 3, n. 2, p. 188-192, jul./dez, 2010. Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/viewFile/8440/6025.
Acesso em: 20 abr 2012.
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. São Paulo: Editora da
UNICAMP, 2007.
____. O si-mesmo como um outro. São Paulo: Papirus, 1991.