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Cobra Norato, de Raul Bopp Com Cobra Norato, de 1931, cujo tema vem do fundo popular, Raul Bopp compõe, na linha do "primitivismo" da década de 1920, um dos mais belos poemas inspirados pelo Movimento Antropofágico. Neste poema, o poeta cria um drama épico e mitológico nas selvas amazônicas, incorporando à moderna estrutura do verso livre elementos do folclore e da fala regional, fundindo imagens originais com o ritmo tenso, sintético, sincopado, quase telegráfico. Profundo e rigoroso artesão da linguagem, Bopp rescreveu seus poemas à exaustão, sempre cortando excessos, refinando imagens, buscando soluções mais precisas, imprevistas. Soube aliar primitivismo com elaboração construtiva, estabelecendo na poesia um correlato à prosa do Macunaíma de Mário de Andrade. Como Macunaíma, em busca do seu talismã e nostálgico de Ci, Mãe do Mato, Cobra Norato sai, também, na demanda da Rainha Luzia, mãe da filha com quem deseja casar-se, em nome do crescimento da tribo que constituirá as idades da nação. É a materialização das coisas que o autor, em seu estudo detalhado da Amazônia, absorveu, tais como lendas, falares regionais, ritos, para transformar em livro, que não foi bem recebido pela crítica. Sobre seu livro, Bopp chamou-o de "audácias extragramaticais e uma movimentação de material de camada popular". No fragmento a seguir, pode-se notar a capacidade imagética de Bopp em Cobra Norato: "Rios magros obrigados a trabalhar descascam barrancos gosmentos. Raízes desdentadas mastigam lodo." Em determinado momento do poema, Bopp fala do surgimento do Brasil com seus componentes humanos; entre estes aponta o negro, que exerce um papel secundário no processo social. O poema pode ser dividido em duas partes, que estabelecem um contraste. A primeira parte refere-se ao Brasil industrial - urbano e a segunda parte refere-se ao Brasil interiorano e rural. Mostra um Brasil dividido entre o interior e a capital, donde o atraso do primeiro revalida forças contra a riqueza do último. Concebido inicialmente como história para crianças, o poema tem, como já citado, estrutura épico-dramática, da qual se podem extrair também coros para bailado. "No fundo Cobra Norato representa a tragédia das febres, a maleita "cocaína amazônica", quando ouviu o mato e as estrelas conversando em voz baixa" (palavras de Raul Bopp). Observa-se que o mito da viagem, no tempo e no espaço, é a viga-mestra de Cobra Norato. O poema Cobra Norato trata da história de um eu poético que mergulha no mundo maravilhoso do sonho, encarna a cobra lendária da Amazônia e segue para as “ilhas decotadas”, isto é, as terrasdo “Sem-fim”, em busca da mulher desejada. A aventura de Cobra Norato segue o padrão de unicidade ao descrever a

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Cobra Norato, de Raul Bopp

Com Cobra Norato, de 1931, cujo tema vem do fundo popular, Raul Bopp compõe, na linha do "primitivismo" da década de 1920, um dos mais belos poemas inspirados pelo Movimento Antropofágico.

Neste poema, o poeta cria um drama épico e mitológico nas selvas amazônicas, incorporando à moderna estrutura do verso livre elementos do folclore e da fala regional, fundindo imagens originais com o ritmo tenso, sintético, sincopado, quase telegráfico.

Profundo e rigoroso artesão da linguagem, Bopp rescreveu seus poemas à exaustão, sempre cortando excessos, refinando imagens, buscando soluções mais precisas, imprevistas. Soube aliar primitivismo com elaboração construtiva, estabelecendo na poesia um correlato à prosa do Macunaíma de Mário de Andrade. Como Macunaíma, em busca do seu talismã e nostálgico de Ci, Mãe do Mato, Cobra Norato sai, também, na demanda da Rainha Luzia, mãe da filha com quem deseja casar-se, em nome do crescimento da tribo que constituirá as idades da nação.

É a materialização das coisas que o autor, em seu estudo detalhado da Amazônia, absorveu, tais como lendas, falares regionais, ritos, para transformar em livro, que não foi bem recebido pela crítica. Sobre seu livro, Bopp chamou-o de "audácias extragramaticais e uma movimentação de material de camada popular". No fragmento a seguir, pode-se notar a capacidade imagética de Bopp em Cobra Norato: "Rios magros obrigados a trabalhar descascam barrancos gosmentos. Raízes desdentadas mastigam lodo." Em determinado momento do poema, Bopp fala do surgimento do Brasil com seus componentes humanos; entre estes aponta o negro, que exerce um papel secundário no processo social.

O poema pode ser dividido em duas partes, que estabelecem um contraste. A primeira parte refere-se ao Brasil industrial - urbano e a segunda parte refere-se ao Brasil interiorano e rural. Mostra um Brasil dividido entre o interior e a capital, donde o atraso do primeiro revalida forças contra a riqueza do último.

Concebido inicialmente como história para crianças, o poema tem, como já citado, estrutura épico-dramática, da qual se podem extrair também coros para bailado. "No fundo Cobra Norato representa a tragédia das febres, a maleita "cocaína amazônica", quando ouviu o mato e as estrelas conversando em voz baixa" (palavras de Raul Bopp).

Observa-se que o mito da viagem, no tempo e no espaço, é a viga-mestra de Cobra Norato.

O poema Cobra Norato trata da história de um eu poético que mergulha no mundo maravilhoso do sonho, encarna a cobra lendária da Amazônia e segue para as “ilhas decotadas”, isto é, as terrasdo “Sem-fim”, em busca da mulher desejada. A aventura de Cobra Norato segue o padrão de unicidade ao descrever a trajetória do herói mítico: partida/iniciação/retorno. O poema que se inicia com os seguintes versos:

Um diahei de morar nas terras do Sem-fimvou andando caminhando caminhandome misturo no ventre do mato mordendo raízes

Expressa o desejo do narrador de retornar às origens, portanto, à mãe. O herói vive o momento do sonho, configurado pelo tempo “um dia”. Ao penetrar no “ventre” da floresta, ele segue por tortuosos caminhos, logo sente que “(...) o sono escorregou nas pálpebras pesadas”.

Oscilando entre o épico, o lírico eo dramático, é impossível uma classificação rigorosa, em virtude da liberdade de sua estrutura e a riqueza de sua poesia, produzindo efeitos inesperados pela associação da linguagem popular, da linguagem infantil e das linguagens tupi e africana: num soturno bate-bate de atabaque de batuque.

A narrativa é simples: o herói, Cobra Norato (nheengatu da margem esquerda do Amazonas), assumindo a espiritualidade do autor, sai em busca de sua amada - a filha da Rainha Luzia. Em meio aos mistérios da Amazônia vai vencendo os mais insólitos obstáculos até encontrar o rival - a Cobra Grande -

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finalmente derrotado.

De início, o poeta brinca de amarrar uma fita no pescoço de Cobra Norato, estrangula-a e enfia-se na pele do réptil. Depois de dormir começa a procurar a filha da rainha Luzia, descrevendo a natureza amazônica e os obstáculos e incidentes da procura:

Mas antes tem que passar por sete portas,ver sete mulheres brancas de ventres despovoados,guardadas por um jacaré.

- Eu só procuro a filha da Rainha Luzia.

Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo.Tem que fazer mironga na lua nova.Tem que beber três gotas de sangue.

- Ah, só se for da filha da Rainha Luzia!

Uma descrição da Floresta Amazônica:

Esta é a floresta de hálito podreparindo cobras.

Rios magros obrigados a trabalhardescascam barrancos gosmentos.Raízes desdentadas mastigam lodo.

A água chega cansada.Resvala devagarinho na vasa mole.

A lama se amontoa.

.............................................................

Vento mudou de lugar

.............................................................

Um berro atravessa a floresta.

Aqui, Cobra Norato, atolado "num útero de lama", encontra um coadjuvante, seu compadre:

- Olelê. Quem vem lá?- Eu sou o Tatu-da-Bunda-Seca- Ah, compadre Tatuque bom você vir aquiQuero que você me ensine a sair desta goela podre- Então se segure no meu raboque eu le puxo.

Vem depois a chuva, o mar e a pororoca. O poeta Cobra norato e o compadre roubam farinha, ouvem de Joaninha Vintém o "causo" do Boto ("moiço loiro, tocador de violão"), vão a uma festa. O compadre percebe vindo pelas águas algo como um navio prateado:

O que se vê não é navio. É a Cobra Grande.Quando cmeça a lua cheia, ela aparece.Vem buscar moça que ainda não conheceu homem.

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E vai o poeta levando "um anel e um pente de ouro / pra noiva da Cobra Grande", quando lhe perguntam:

Sabe quem é a moça que está lá em baixo...nuinha como uma flor?- É a filha da Rainha Luzia!

O poeta rapta-a e fogem. Cobra Grande os persegue. Mas Pajé-Pato ensina o caminho errado para a Cobra Grande, que:

esturrou direito pra Belém

Deu um estremeçãoEntrou no cano da Sée ficou com a cabçea enfiada debaixo dos pés de N. Senhora

Enquanto isso, o poeta vai para as terras altas com a noiva onde se casam e são felizes:

- E agora, compadrevou de volta pro Sem-Fim

vou lá para as terras altasonde a serra se amontoaonde correm os rios de águas clarasentre moitas de mulungu.

Quero levar minha noivaQuero estarzinho com elanuma casa de morarcom porta azul piquininhapintada a lápis de cor

Quero sentir a quenturado seu corpo de vai-e-vemQuerzinho de ficar juntoquando a gente quer bem bem.

Convida para o casamento muita gente, até a Maleita:

Procure minha madrinha Maleitadiga que eu vou me casar;que eu vou vestir minha noivacom um vestidinho de sol.

E acorda, pois o poema era um sonho.

Os fragmentos transcritos a seguir exemplificam alguns momentos da grande força lírica:

A lua nasce com olheirasO silência dói dentro do mato

Abriram-se as estrelasAs paguas grandes encolheram-se com sono.

A noite cansada parou.

Ai, compadre!Tenho vontade de ouvir uma música moleque se estire por dentro do sangue;

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música com gosto de lua, e do corpo da filha da Rainha Luziaque me faça ouvir de novoa conversa dos riosque trazem queixas do caminhoe vozes que vêm de longesurradas de ai, ai, ai.

Atravessei o Treme-TremePassei na casa do MinhocãoDeixei minha sombra para o bicho-do-fundosó por causa da filha da Rainha Luzia.

No princípio era sol, sol, solO Amazonas não estava prontoAs águas atrasadasderramavam-se em desordem pelo mato.

O rio bebia a floresta

Depois veio a Cobra Grande amassou a terra elásticae pediu para chamar sonoAs árvores enfastiadas de sol combinaram silêncioA floresta imensa chocando um ovo!

Cobra Grande teve uma filha.

Noite está bonita.Parece envidraçada.

Dormem sororoquinhas na beira do rio.Árvores nuas tomam banho.

Jacarés em férias num balneário de lamamastigam estrelas que se derretem dentro d'água.

Por entre trouxas de macegaspassa uma suçuarana com sapatos de seda.

Ventinho manso penteia as folhas de embaúba.A paisagem se desfia num pano.

Cunhado Jabuti torceu caminho- Dê lembranças à dona Jabota.

Enquanto é noitecom todo esse céu espaçoso e tanta estrelavamos andando e machucando estradasmais pra adiante.

Resumo

No ventre da noite, o poeta estrangula a Cobra Norato e enfia-se em sua pele elástica para sair dos confins da floresta amazônica em direção a Belém do Pará, em busca da filha da Rainha Luzia, com quem ele quer se casar.

O primeiro passo da caminhada é apagar os olhos, escorregar no sono e entrar na floresta cifrada. Sob a

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sombra fechada das árvores, entre sapos beiçudos, charco, lama, atoleiros provocados pelas águas dos rios, Norato avança e cumpre as missões impostas pelo mascarão que encontra no meio do caminho: passar por sete portas, ver sete mulheres brancas de ventres despovoados, guardadas por um jacaré; entregar a sombra para o Bicho do Fundo; fazer mirongas na lua nova; beber três gotas de sangue.

Norato cumpre as provas, mas não encontra a moça. Avança sozinho pela selva insone. O entusiasmo inicial cede a um certo desalento: 'Onde irei eu que já estou como sangue doendo das mirongas da filha da rainha Luzia?'

A região torna-se lúgubre. É a floresta de hálito podre, de raízes desdentadas saltando do lodo. Na Escola das Árvores, uma árvore velha enfileira impiedosa as jovens árvores condenadas a produzir as folhas que cobrem a floresta. 'Ai, ai, ai,' gemem elas, 'somos escravas do rio'.

Cobra Norato alcança o fundo da floresta, onde a terra é fabricada e as árvores passam a noite tecendo folhas em segredo. Está perdido em um escuro labirinto de árvores. A atmosfera pesada prenuncia tempestade. Pernaltas movem-se devagar, miritis abrem os grandes leques vagarosos, sapos coaxam com vigor. Desaba a chuva violenta: o vento saqueia as vegetação, nuvens negras se amontoam, lagoas arrebentam, árvores se abraçam.Norato atola-se em um útero de lama, de onde sai graças à ajuda do tatu que se transforma também em companheiro de viagem. Vem um período de descanso e também de tristeza. Onde afinal andará a filha da rainha Luzia? O tatu propõe que partam para o lago Onça-poiema. Cobra Norato refresca-se nas águas do rio, comunga com os animais que por ali pastam. Quando partem novamente para o interior abafado da floresta, a noite já está se fechando.O tatu avisa: começa naquele dia a maré grande. Os dois rumam, pelo mangue, paras as bandas do Bailique. Querem ver chegar a pororoca. Quando a lua cheia aponta, vem a onda inchada, rolando em vagalhões. Na força da enchente, eles navegam para uma polpa de mato onde Norato descansa e cisma: 'o que é que haverá lá atrás das estrelas?' Mas a fome aperta e dois vão para o patirum roubar tapioca.Na casa das farinhadas grandes, as mulheres trabalham nos ralos mastigando os cachimbos. Joaninha Vintém conta o causo do boto que a surpreendeu enquanto lavava roupa. Vendo a animação da festa, Norato e o tatu viram gente. Cantam, dançam os chorados de viola, bebem cachaça. Na hora de partir, Joaninha Vintém quer ir junto, mas Norato não aceita. Pegam o corpo que ficou lá fora e continuam viagem.Mais adiante, uma pajelança. A onça curuana entra no corpo do pajé, que examina os doentes de sezão, de inchado no ventre, de espinhela caída. Faz benzedura de destorcer quebranto, fuma, defuma, até tontear e cair. No meio da floresta, o som longínquo de um trem Maria-fumaça acorda o mato.Ao longe, flutuando no rio, Norato vê um navio com casco de prata e as velas embojadas de vento. Navio não, corrige o tatu. É a Cobra Grande. Quando começa a lua cheia, ela aparece para buscar moça virgem. Enquanto a visagem vai se sumindo paras bandas de Macapá, Norato resolve: quer ver o casamento da Boiúna.A caminho das bodas, Norato pede ao vento que o deixe passar, encontra-se com o saci e com o pajé-pato que lhe arreda o mato em troca de cachaça. O herói e o tatu vaõ com força, nem se escondem para ver as moças tomarem banho na ponta do Escorrega. O tatu está aflito, apressado, mas Cobra Norato avisa: 'Devagar que chão duro dói'.

Na casa da Boiúna, um cururu se posta de sentinela. Norato esgueira-se pelos fundos da grota e avista a noiva, que não é ninguém menos que filha da rainha Luzia. Mas Cobra Grande acorda e começa a perseguição sem fim. Norato pede a tamaquaré, seu cunhado, que corra imitando seu rastro e entregue o seu pixé na casa do pajé-pato. Em cima da hora! Cobra Grande passa rasgando caminho. Chega à morada do pajé que lhe ensina o caminho errado: 'Cobra Norato foi pra Belém se casar'. E lá se vai a Boiúna direto para Belém. Entra no cano da Sé e fica com cabeça enfiada debaixo dos pés de Nossa Senhora.

Cobra Norato volta para o Sem-fim, para as terras altas onde a serra se amontoa. Leva consigo a noiva, para estar com ela numa casa de porta azul piquininha pintada a lápis de cor. É lá que ele espera pela gente do Caxiri Grande, por Joaninha Vintém, pelo pajé-pato, por Augusto Meyer e Tarsila, por todo povo de Belém, de Porto Alegre e de São Paulo para a festa de casamento que há de durar sete luas e sete sóis

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Antes do baile verde (livro), de Lygia Fagundes Telles

Antes do baile verde, livro de contos de Lygia Fagundes Telles, publicado em 1970, é uma das obras mais marcantes da carreira da autora. Os contos inseridos nesta coletânea foram escritos entre 1949 e 1969. Nesse sentido, um pensamento inicial pode recair sobre o questionamento de haver ou não evolução qualitativa e conseqüente amadurecimento do autor, resultantes de vinte anos de investida criativa.

Antes de serem publicados, os contos antigos foram revistos pela autora, sofrendo cortes, acréscimos, mudanças de palavras ou de expressões. De acordo com a própria Lygia, entretanto, isso não alterou a fisionomia original de cada trabalho.

A maior parte das narrativas segue um mesmo padrão e os vinte anos que transcorrem entre a confecção do primeiro e do último conto que compõem a coletânea passariam despercebidos, se a data de publicação não constasse expressa no livro.

Os temas são considerados o ponto forte deste trabalho de Lygia, principalmente ao se observar o período em que foi concebido. Adultério, insatisfação conjugal, desmistificação dos papéis familiares – talvez possam ser considerados temas banais, exaustivamente explorados. Entretanto, a autora abordou-os há meio século, época em que a família conjugal é o modelo dominante e que a autoridade máxima na família é conferida ao pai, o chefe da casa, “e garantida pela legislação que incentiva o moralismo tradicional, a ‘procriação’, o trabalho masculino e a dedicação da mulher ao lar”.

As personagens captadas pela câmera da autora representam as famílias urbanas brasileiras de classe média alta, com aparência distinta diante da sociedade, mas com dramas e conflitos comuns a qualquer ser humano, que, na maioria das vezes, tentam esconder dentro dos armários ou debaixo dos tapetes. Dessa maneira, o perfil de uma classe sócio-econômica específica é delineado para exibir temáticas universais, os jogos de poder envolvidos nas relações entre homens e mulheres, os conflitos, os valores morais, os desequilíbrios.

As personagens são construídas simultaneamente com o enredo. Os detalhes são importantes nessa composição – os gestos, a interação estabelecida com as outras personagens, as associações simbólicas empregadas pelo narrador. Praticamente em todos os contos da coletânea as personagens femininas apresentam importância crucial. São elas que assumem atitudes que desafiam as normas do comportamento adequado, ameaçam as regras sociais e reformulam os padrões de conduta, mesmo quando não estão no papel de protagonistas.

A estrutura mais utilizada pela autora para a elaboração dos contos é a do diálogo entre duas personagens. Assim, apesar da força das personagens femininas: a “rainha do lar”, a “tia solteirona”, a “mulher fatal”, a “amante” –, também desfilam diante do leitor outras personagens, como o “marido ideal”, o “homem apoltronado”, o “irmão perfeito”, o “louco”, caracteres familiares, mas que trazem consigo sempre alguma surpresa. Essa galeria de tipos e os duelos que eles travam em busca da satisfação das próprias necessidades chocam-se com as expectativas dos leitores, que observam os padrões morais e sociais dominantes caírem por terra em confronto com a busca da felicidade.

A narrativa de Lygia apresenta grande agilidade. A autora utiliza linguagem clara, concisa, descartando tudo o que poderia ser considerado desnecessário para a ficção. Aparentemente, tem pressa, parece não haver tempo a perder – por isso, dispensa o supérfluo. O emprego dos diálogos, por meio dos quais autor e narrador constroem as personagens, desenvolvem o enredo, transmitem as informações ao leitor, é feito de maneira primorosa e também contribui para a rapidez narrativa de Lygia.

Sempre que possível, mostra os fatos ao invés de contá-los para o leitor, tirando proveito das características determinantes do modo showing de narrar, a imitação verdadeira, a mimese, as falas diretas, o modo dramático, como que propiciando que a história se conte por si mesma. Assim, na maioria dos contos, o leitor tem a sensação que o narrador se esconde e que ele, leitor, é também personagem e observa os fatos acontecerem diante dos próprios olhos.

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Existem momentos de ousadia e coragem, principalmente com relação à seleção de temas, mas, na maioria das vezes, Lygia Fagundes Telles pode ser classificada como prudente no ato de escrever. A autora não explora todos os artifícios narrativos que os recursos retóricos da linguagem disponibilizam. Lygia, de certo modo, limita o uso de recursos praticados na “modernidade”, ou seja, aqueles que buscam uma ruptura radical com os moldes tradicionais. Assim, ao que parece, evita experimentações. Ao invés disso, pode-se perceber no modo de narrar traços marcadamente realistas. Em suma, em Antes do Baile Verde, sugere, mas não corre riscos.

Aparentemente, pela maneira como Lygia Fagundes Telles utiliza os recursos técnicos para compor os contos – a autora preocupa-se em obter verossimilhança. E isso é conseguido, principalmente, pela forma como institui o narrador em cada história. A escolha do tipo de narrador é o fator principal na determinação de como a história será contada. É por meio da posição do narrador, ou seja, do foco narrativo adotado, que o autor fará com que o leitor veja a história. Além de outras conseqüências que advirão dessa escolha, também conseguirá ou não a obtenção de verossimilhança na obra. Lygia tem habilidade suficiente para proporcionar ao leitor a visualização da trama e, ainda, para fazê-lo acreditar nos fatos narrados.

São 20 histórias que evocam um clima de desencanto e dissipação.

Na introdução de Antes do baile verde, a autora explora obstinadamente o desencontro das personagens, expõe a face dramática das fraquezas humanas, veda os caminhos da redenção. São trechos levam o leitor a refletir sobre as inquietações do ser humano, colocando-o frente à frente com as aflições do cotidiano, fazendo-o sofrer com o desajuste e o desamor vividos pelas personagens.

São vários os contos da coletânea que tratam de temas que evidenciam o desequilíbrio, a tensão e a insatisfação do homem em suas relações, principalmente as afetivas. A solidão, o egoísmo, a infidelidade, a insatisfação no casamento, são abordados nos contos de Lygia Fagundes Telles, em situações extremamente comuns, que proporcionam certa intimidade entre personagens e leitores. Os eventos narradas e os sentimentos descritos são tão conhecidos, a linguagem empregada é tão clara, que a verossimilhança atinge grau máximo nesses contos.

Uma das circunstâncias preferidas por Lygia para a construção de seus contos parece ser a do momento em que os relacionamentos amorosos chegam ao fim. O homem maduro, que substitui a esposa ou companheira – também madura – por uma mulher mais jovem, muitas vezes na tentativa de recuperar a própria juventude perdida, está presente em “A Ceia”, “A Chave” e “Um Chá Bem Forte e Três Xícaras”.

Em Antes do baile verde, Lygia Fagundes Telles aborda o inexplicável em três contos: “Venha Ver o Pôr do Sol”, “A Caçada” e “Natal na Barca”.

Do ponto de vista temático, apesar das intertextualidades apresentadas, nessas três narrativas citadas (“Venha Ver o Pôr do Sol”, “A Caçada” e “Natal na Barca”), Lygia consegue ser mais original do que no resto da coletânea.

Aventura-se a sair do cenário urbano, com a típica família brasileira burguesa dos anos setenta, com seus conflitos a girar em torno da traição e/ou do fim de uma relação amorosa.

Estruturalmente, apesar de continuar empregando o modelo básico de trechos em focalização externa intercalados com diálogos travados entre as personagens, o narrador alcança êxito com as estratégias empregadas. O narrador fornece as informações aos poucos, criando um clima de suspense e, conseqüentemente, prendendo a atenção do leitor.

Seja em uma situação possível de acontecer, como em “Venha Ver o Pôr do Sol”, ou em acontecimentos surrealistas, como em “A Caçada”, o importante é que o clima de mistério é estabelecido e mantido pelo narrador, até o final.

Em estilo afiadíssimo, ela povoa suas histórias com personagens oprimidos. Freqüentemente volúveis, às vezes criminosos. Nada se explica: alguns objetos ou detalhes são suficientes para marcar o clima. Pode ser uma penteadeira em desordem ou um fio de pérolas enrodilhado num bolso e as personagens

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começam a se questionar, raivosas, enlouquecidas de ciúmes. Algumas possibilidades surgem ameaçadoras, improváveis. E terrivelmente perturbadoras. Assim, junto com a leveza de cetins e purpurina, surge uma morte. E há a nudez de madame e seu camareiro chinês. Tiros, lutos, casamentos tardios.

Estão presentes no livro algumas histórias emblemáticas como "O jardim selvagem" e "Meia-noite em ponto em Xangai".

Uma jovem se prepara para ir a um baile carnavalesco onde as fantasias devem ser todas verdes. Enquanto ela se maquia para o baile, colocando lantejoulas no saiote verde que cobre o biquíni, seu pai agoniza no quarto ao lado. Esse ambiente teatral e angustiante do conto "Antes do baile verde" dá a tônica do livro homônimo.

Narrativas turbulentas, de diálogos cuidadosamente esculpidos e marcadas por finais em aberto, como no conto "Natal na barca", em que uma mulher atravessa o rio com o filho no colo, sem que o leitor saiba se a criança está mesmo viva. Os finais das histórias de Lygia provocam o imaginário do leitor. Há sempre uma cartada, uma surpresa, um susto.

A autora demonstra uma coragem singular para trabalhar pontos mais delicados da condição humana através de personagens cínicos, amargos e, principalmente, cruéis como no clássico conto "Apenas um saxofone", onde uma mulher pede ao amante que se mate como prova de amor.

Nas páginas de Antes do baile verde, a autora propõe ao leitor participar ativamente, perseguir os rastros, preencher as lacunas, desvendar os segredos dos interstícios do texto. “É como se viessem à tona os eflúvios de uma matéria em combustão lá no fundo, e sutilmente fossem nos penetrando” (Coelho, 1993, p. 245). Pelo uso técnico da elipse e da sugestão, Lygia convida o leitor para um mergulho em sua ficção, do qual, supostamente, sairá modificado.

Leia, na íntegra, o conto "O moço do saxofone", publicado na obra Antes do baile verde.

Vejamos a seguir, comentários de alguns contos inseridos nesta obra.

Conto ANTES DO BAILE VERDE

Nesta história, uma jovem se prepara animada para o grande baile a fantasia de sua cidade, em que todos devem comparecer vestidos com roupas verdes. No quarto ao lado, seu pai doente agoniza em seus últimos minutos de vida. A jovem, movida pela vontade egoísta de se divertir num simples baile ao invés de assumir a responsabilidade inconveniente de cuidar do pai, inventa a todo momento as maiores desculpas para si mesma. Leia mais...

Conto O MENINO

Com o título escolhido a autora sugere a impressão de que a história versará sobre um tema relacionado à infância. Imagina-se que seja sobre algum evento que aconteceu a esse menino ou sobre algo que tenha realizado.

Apesar do menino ser o protagonista da história, o tema principal do conto não é infantil. Assim, o título do texto pode ser considerado como uma “pista falsa” que a autora utiliza com a intenção de causar surpresa no leitor. Leia mais...

Conto O JARDIM SELVAGEM

Em O Jardim Selvagem, de 1965, a personagem que atua como narrador é uma criança, e será sob o seu ponto de vista que o leitor verá os temas adultos – a relação matrimonial, o preconceito, a morte – serem analisados. Leia mais...

Conto VERDE LAGARTO AMARELO

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Em Verde Lagarto Amarelo, escrito em 1969 e inédito até a publicação de Antes do baile verde, o tema desenvolvido no conto está relacionado à importância da infância e às conseqüências dos dramas infantis na vida de duas personagens adultas. Leia mais...

Conto A CEIA

Em A Ceia, de 1958, o leitor é apresentado ao último encontro entre um casal, Alice e Eduardo. A perspectiva empregada nesse conto é a narração de focalização externa. Leia mais...

Conto A CHAVE

O conto A Chave, escrito em 1965, volta ao tema da diferença de idade entre os cônjuges. O leitor é colocado em contato com os pensamentos de uma personagem, Tomás, desde as primeiras palavras do conto. A personagem Tomás é também o narrador, e será sob sua perspectiva que a história será contada. Leia mais...

Conto UM CHÁ BEM FORTE E TRÊS XÍCARAS

Novamente os temas da traição, dos desencontros no casamento, da velhice versus juventude, são abordados em Um Chá Bem Forte e Três Xícaras, de 1965. Leia mais...

Conto EU ERA MUDO E SÓ

Para construir a narrativa em Eu Era Mudo e Só, de 1958, Lygia Fagundes Telles empregou um narrador autodiegético, a personagem Manuel, o marido que se sente oprimido com o casamento. É por meio do olhar de Manuel que o leitor conhece a esposa, Fernanda. Leia mais...

Conto AS PÉROLAS

Em As Pérolas, conto de 1958, o pano de fundo para tratar o tema é novamente um diálogo entre marido e mulher. Entretanto, diferentemente dos protagonistas de Eu Era Mudo e Só, as personagens que formam o casal apresentado em As Pérolas, Tomás e Lavínia, se amam. Leia mais...

Conto OS OBJETOS

Em Os Objetos, conto escrito em 1969 e inédito até a publicação de Antes do baile verde, a autora mais uma vez apresenta ao leitor uma cena do cotidiano de um casal em desarmonia, Lorena e Miguel, que tiveram um passado feliz mas que, no “presente” (no momento da ação), enfrentam problemas, principalmente pelo desequilíbrio mental de Miguel. São abordados temas como a solidão, a loucura, o fim do amor. Leia mais...

Conto VENHA VER O PÔR DO SOL

Em Venha Ver o Pôr do Sol, o narrador é do tipo heterodiegético, quanto à sua relação com a história – ou seja, existe uma voz, ausente da história, que narra os eventos. Leia mais...

Conto A CAÇADA

Em A Caçada, de 1965, Lygia Fagundes Telles emprega um narrador extradiegético, com relação ao nível narrativo, e heterodiegético, quanto à sua relação com a história, ou seja, a voz que conta está ausente da história. Leia mais...

Conto NATAL NA BARCA

Fantasia e realidade voltam a se encontrar no conto Natal Na Barca, de 1958, narrativa linear que tem como tema a força da fé, a existência de milagres, a vida e a morte. Leia mais...

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Sermão da Sexagésima, de Pe. Antônio Vieira

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O Sermão da Sexagésima foi um dos mais famosos, entre tantos. Foi proferido na Capela real de Lisboa em março de 1655. Através dele, o pregador esmerou-se na retórica, contando com sua memória prodigiosa e rara habilidade no domínio da palavra.

As palavras de Vieira transformaram-no em um orador digno de fé e despertavam nos ouvintes uma paixão transformadora.

O sermão é um todo de 10 pequenos capítulos e é considerado seu mais importante sermão: uma crítica monumental ao estilo barroco, sobretudo ao Cultismo. Como foi pregado na Capela Real, em Portugal, podemos concluir que o auditório era particular, composto por católicos da nobreza portuguesa da época. O autor procura se aproximar do auditório dirigindo-lhe perguntas que ele mesmo, o autor, responde. O autor procurou no sermão a adesão do auditório à sua tese principal de que se não havia conversões em massa ao catolicismo na sua época era por culpa dos pregadores de então.

O tema do Sermão da Sexagésima é a “Parábola do semeador”, tirada do Evangelho segundo São Lucas: Semen est verbum Dei (A semente é a palavra de Deus). Neste sermão, o Padre Vieira usa de uma metáfora: pregar é como semear. Vieira resume e comenta a parábola: um semeador semeou as sementes que caíram pelo caminho, pelas pedras ou entre os espinhos. Apenas parte delas caiu em terra boa. Nele Vieira usa de uma metáfora: pregar é como semear. Traçando paralelos entre a parábola bíblica sobre o semeador que semeou nas pedras, nos espinhos (onde o trigo frutificou e morreu), na estrada (onde não frutificou) e na terra (que deu frutos), Vieira critica o estilo de outros pregadores contemporâneos seus (e que muito bem caberia em políticos atuais), que pregavam mal, sobre vários assuntos ao mesmo tempo (o que resultava em pregar em nenhum), ineficazmente e agradavam aos homens ao invés de pregar servindo a Deus. Vieira examina a culpa do pregador, considerando sua pessoa, sua ciência, a matéria e o estilo de seus sermões e sua voz.

No Sermão, seu autor interessava saber o motivo de a pregação católica estar surtindo pouco efeito entre os cristãos. Sendo a palavra de Deus tão eficaz e tão poderosa, pergunta ele, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Depois de muito argumentar, Vieira conclui que a culpa é dos próprios padres. Eles pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus, afirma. Dito de outra maneira, o jesuíta reclama daqueles que torcem o texto da Bíblia para defender interesses mundanos. No sermão proferido, o Padre também procura criticar a outra facção do Barroco, logo a utilizar o púlpito como tribuna política.

Padre Antônio Vieira, um mestre da persuasão, ensinava que “o sermão há de ser duma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria”. É a regra daunidade do discurso persuasivo.

Pe. Antonio Vieira empregava diversos elementos de retórica no sermão analisado e podemos afirmar que sua palavra produziu muito fruto, visto que sua obra se mantêm como pensamento válido depois de 300 anos de sua morte.

O assunto básico do sermão, à primeira vista, é a discussão de como é utilizada a palavra de Cristo pelos pregadores. Um olhar mais profundo mostra que o autor vai além do objetivo da catequese, adotando atitude crítica da codificação da palavra. Percebe-se, também, que o Sermão é usado como instrumento de ataque contra a outra facção do Barroco, representada pelos chamados cultistas ou gongóricos.

Em O Sermão da Sexagésima, Vieira expôs o método que adotava nos seus sermões:

1. Definir a matéria.2. Reparti-la. 3. Confirmá-la com a Escritura. 4. Confirmá-la com a razão. 5. Amplificá-la, dando exemplos e respondendo às objeções, aos "argumentos contrários".

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6. Tirar uma conclusão e persuadir, exortar.

Nota: O contexto histórico da época do Padre, uma época onde várias atitudes tomadas pelo catolicismo eram apoiadas inclusive pelo próprio poder temporal - já que não é simples separar a Igreja e o Estado português neste momento da história -, como converter almas ao cristianismo.

Nessa época, o mundo assistia a Santa Inquisição atuando a pleno vapor, que inclusive fez visitações ao Brasil colonial nas regiões Nordeste e Norte, além de em outras terras pertencentes ao Império Colonial Português como Angola, Madeira e Açores, e que Goa possuía o seu próprio tribunal do Santo Ofício; também assistia-se a imposição do cristianismo para muitos índios no Brasil; além dos negros africanos que para cá foram trazidos e também foram-lhes imposto o catolicismo.

Considerando o contexto de conversões forçadas da época do Padre Vieira e analisando apenas o sermão que fora pregado em 1655, o padre aparenta ser contra a conversão forçada que imperava no período. No entanto, em alguns sermões ele justifica a escravidão, tanto indígena quanto a negra, com argumentos religiosos, como o de que no juízo final esses escravos terão suas almas salvas, no Céu serão servidos pelo próprio Deus, ou ainda, a comparar o sofrimento dos escravos ao martírio do próprio Cristo