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4 O século americano Se todas as conquistas norte-americanas pós-Hiroshima, no final das contas, pareceram golpes de marketing ou lances oportunistas, sempre anunciadas com o tom ufanista próprio aos vaidosos, não fora à- toa. O Velho Mundo há muito não oferecia contrapartidas substanciais, a Segunda Grande Guerra fora a última expressão cultural européia. A energia depositada nesta empreitada pela mais poderosa nação do segundo pós-guerra consolidou a impressão de que o século XX sempre fora o American Century. Os EUA funcionam no regime do feedback – no início da década de 1960 a Minimal Art exibia-se elegantemente, a Pop fazia uma festa imagética e ainda ressoava o vigor da pintura de Jackson Pollock. Na Europa vencida, o alemão Joseph Beuys sobrava no papel de pastor das almas perdidas, o francês Yves Klein saltava no vazio e o suíço Alberto Giacometti assaltava-nos com seres existencialmente encolhidos. Em todos os casos, é preciso admitir, a arte finalmente decidira cumprir sua etapa de Realismo, deixando a impressão de que as tentativas anteriores não passaram de um realismo estatístico e edulcorado a tal ponto que até as coisas ruins ostentaram ares de passageiras ou, no mínimo, suportáveis. Não eram. Qual fora o turning point? A Segunda Grande Guerra terminara oficialmente em agosto de 1945, porém o mundo viveria as cinco décadas subseqüentes sob a égide de um latente combate atômico – o último, certamente. Jamais declarada ou efetivada, et pour cause, a Guerra Fria foi o rótulo genérico da dieta existencial ordenada pelos desentendimentos ideológicos entre as duas maiores potências econômicas e bélicas do planeta. Por outro lado, somando-se ao fato de que os EUA saíram do grande conflito mundial sem prejuízos territoriais, as exigências dos tempos de guerra, a corrida tecnológica e a competição pela liderança mundial também levaram os norte-americanos a caminhar sobre a Lua e a conceber máquinas pensantes. Ou seja, as urgências ativaram a

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4 O século americano

Se todas as conquistas norte-americanas pós-Hiroshima, no final

das contas, pareceram golpes de marketing ou lances oportunistas,

sempre anunciadas com o tom ufanista próprio aos vaidosos, não fora à-

toa. O Velho Mundo há muito não oferecia contrapartidas substanciais, a

Segunda Grande Guerra fora a última expressão cultural européia. A

energia depositada nesta empreitada pela mais poderosa nação do

segundo pós-guerra consolidou a impressão de que o século XX sempre

fora o American Century.

Os EUA funcionam no regime do feedback – no início da década de

1960 a Minimal Art exibia-se elegantemente, a Pop fazia uma festa

imagética e ainda ressoava o vigor da pintura de Jackson Pollock. Na

Europa vencida, o alemão Joseph Beuys sobrava no papel de pastor das

almas perdidas, o francês Yves Klein saltava no vazio e o suíço Alberto

Giacometti assaltava-nos com seres existencialmente encolhidos. Em

todos os casos, é preciso admitir, a arte finalmente decidira cumprir sua

etapa de Realismo, deixando a impressão de que as tentativas anteriores

não passaram de um realismo estatístico e edulcorado a tal ponto que até

as coisas ruins ostentaram ares de passageiras ou, no mínimo,

suportáveis. Não eram.

Qual fora o turning point? A Segunda Grande Guerra terminara

oficialmente em agosto de 1945, porém o mundo viveria as cinco décadas

subseqüentes sob a égide de um latente combate atômico – o último,

certamente. Jamais declarada ou efetivada, et pour cause, a Guerra Fria

foi o rótulo genérico da dieta existencial ordenada pelos

desentendimentos ideológicos entre as duas maiores potências

econômicas e bélicas do planeta.

Por outro lado, somando-se ao fato de que os EUA saíram do

grande conflito mundial sem prejuízos territoriais, as exigências dos

tempos de guerra, a corrida tecnológica e a competição pela liderança

mundial também levaram os norte-americanos a caminhar sobre a Lua e a

conceber máquinas pensantes. Ou seja, as urgências ativaram a

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imaginação e requisitaram um elevadíssimo grau de abstração. Ato

contínuo, a massificação do mundo tornou-se rotina. A longa conduta

bélica codificou o modelo de produção rápida e eficaz e, para que tudo o

mais funcionasse a contento, todos os setores da sociedade foram

aprumados de acordo com o novo comando. Assim, quais as chances de

se prosseguir com experiências individuais, autenticando “eus” a torto e a

direito? O centro autoral deste novo script de vida pública foi, e em certa

medida é ainda, a cidade de Nova York. Geométrica, cinética, ponto de

simetria do mundo, auto-suficiente, significante e significado, a cidade

define um continente.

O minimalismo não é o resultado de um fértil estilo artístico

ordenhado por programas ou manifestos, mas antes auxilia na definição

de um momento histórico centrado em Nova York durante os primeiros

anos da década de 1960. Os impulsos que sustentaram o sucesso do

empreendimento, aponta Kenneth Baker, foram as atuações de Beuys,

Klein e Manzoni, na Europa; Caro e Turnbull na Inglaterra; e Kelly, Stella e

Andre, na América:

A major difference between the Europeans and the Americans and

British is that when Europeans subverted the conventions that set art off from the rest of reality, they chose materials for metaphorical suggestiveness, as Beuys did, for example, in making sculpture from fat, felt and rubber. On the other hand, Americans such as Donald Judd, Carl Andre, and Robert Morris, who also worked the margins of art, aimed to eliminated metaphor and make their sculpture as lucid and specific as possible. These artists tended to choose materials and forms for their matter-of-factness.1

A Minimal Art é um dos melhores exemplos, senão o melhor, de

episódio artístico do segundo pós-guerra a suscitar uma substancial

quantidade de debates públicos. Os artistas abriram a guarda, exibiram os

comandos poéticos dos seus trabalhos, e assim, a crítica pode comparar:

uma coisa é o que o artista faz, outra é o que ele diz que faz. Este spread

é semelhante ao coeficiente artístico definido por Duchamp,2 que reúne

em uma equação os ápices da tarefa crítica – verificar o que o artista quis 1 BAKER, Kenneth. Minimalism. Nova York: Abbeville Publishing Group, 1988. p. 13. 2 DUCHAMP, Marcel. “O acto criador”. In BATTCOCK. Gregory (Org.). A nova arte. pp. 71-74.

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fazer e o que ele fez sem saber que fez.

Partindo das obras de Frank Stella e Donald Judd, de suas

declarações, o capítulo pretende repensar algumas posições críticas dos

primeiros minimalistas. Até um determinado momento da História da Arte,

parece que apenas historiadores, teóricos ou estetas estavam autorizados

a comentar sobre a arte e apenas alguns poucos criadores se dispunham a refletir sobre suas realizações ou sobre o ofício em geral – Klee e

Kandinsky,3 por exemplo. No entanto, da década de 1940 para cá,

assistimos a uma verdadeira explosão de textos elaborados pelos

próprios artistas, talvez na mesma proporção com que suas obras

passaram a surgir cada vez menos literárias.

4.1 Frank Stella x Frankenstein

Frank Stella integra a primeira geração de artistas norte-americanos

com formação universitária. Os anos passados em Princeton propiciaram

um maior convívio entre as obras de Rothko, Newman, Reinhardt e

Pollock, de modo que suas telas iniciais revelam um misto de todos estes

comandos estéticos. Fora a óbvia reflexão crítica do expressionismo

abstrato, que, de um modo ou de outro, se tornou a guia das produções

subseqüentes ao advento Pollock, o próprio artista tributa a Jasper Johns

as suas reflexões poéticas. Mais especificamente, ao que fora estipulado

pelo princípio estético das Flags e dos Targets: a coincidência objeto-

imagem, a repetição ativada pelo ritmo das listras brancas e vermelhas

estendidas de uma lateral a outra, ou difundidas a partir de um centro de

simetria.

Em uma pintura inicial, Stella preenche a tela quadrada com uma

seqüência de faixas brancas de cima a baixo, como se a repetição do

“gesto” estivesse induzida pelas bordas horizontais. A peça - Astoria

(1958) -, ponto de partida da série Black Paintings, será fundamental na

compreensão do minimalismo. E, uma vez eliminadas as ambigüidades

de Johns – o gesto pictórico à la De Kooning e, principalmente, o ambíguo

3 KLEE, Paul. Théorie de l’art moderne. Gallimard, Collection Folio, 1998. Journal. Grasset, Collection Les Cahiers Rouge, 1992. Wassily Kandinsky. Kandinsky, Complete Writings on Art. Da Capo Press, 2ª edição, 1994.

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pretexto temático –, o artista condensa em termos abstratos a lógica

indicada pelas bandeiras e pelos alvos. Mesmo admitindo suas dívidas

com Newman, a pintura de Stella administra um ataque frontal à

transcendência: as “listras” pretendem ser moral e metafisicamente

neutras. O bastante, ao menos, para escapar do tradicional “todo

harmônico” de um “frankenstein” constituído de vários fragmentos do

velho humanismo.

As Black Paintings consistem, grosso modo, em um conjunto de 23

pinturas aprontadas entre 1958 e 1960, que trazem literalmente à tona as

questões desenvolvidas um ou dois anos mais tarde, junto a outros

artistas – Donald Judd, Carl Andre, Tony Smith e Robert Morris – “os

primeiros minimalistas”. Contudo, no tempo das Black Paintings ainda não

se teorizava sobre tais assuntos. Mas o fascínio pelo plano ganhara

metros e metros de terreno desde o all-over de Pollock. A análise da lógica processual das Black Paintings é uma das

maneiras de alcançar as muitas questões trazidas pelo artista,

conscientemente ou não. O risco é considerável. Afinal, esses trabalhos

são – não fossem pinturas – para serem vistos e não lidos. E, justamente

porque são o que são, isto é, obras-de-arte-não-literárias, tornam

extremamente árduo o exame crítico. É sabido que as investidas sobre as

obras minimalistas, que não as de caráter meramente descritivo, podem

resultar bizarras; porém, talvez esta seja a chance de provarem as suas

prescrições. Reprimindo os achaques das teorias viciadas ou estorvando

as deliberações críticas contaminadas, as obras minimalistas obstruem a

ingerência de fórmulas apriorísticas. Trata-se de uma espécie de arte que

embaraça a rotina do ofício, constrange especialistas e confunde leigos,

mas aposta, em contrapartida, no potencial transformador do curto-circuito

perceptivo.

A série compreende três esquemas de um mesmo sistema lógico:

estruturas deduzidas dos sentidos dos limites físicos da peça – a

superfície é preenchida, “de fora para dentro”, por uma seqüência

alternada de faixas negras e fios brancos; estruturas induzidas pelos

sentidos das mediatrizes do retângulo – a tela é recoberta, “de dentro

para fora” desta vez, por uma sucessão de faixas negras e fios brancos

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igualmente alternados; estruturas inferidas dos sentidos das diagonais – o

suporte é revestido, de dentro para fora e vice-versa, novamente por

fileiras de tiras negras e traços brancos alternados.

Getty’s tomb (1959) intitula um retângulo vertical que organiza a

repetição dos sentidos de três de suas bordas – duas laterais e a superior

–, em uma sucessão de faixas negras separadas por fios de “não-cor”,

isto é, por sulcos (brancos) de tela exposta. A operação resulta em um

ninho de retângulos – “um dentro do outro” –, que compartilham uma

mesma linha de base apoiada na borda horizontal inferior da tela, como

numa pilha de caixas emborcadas. A peça gerencia diversas equações

visuais.

A base comum a todos os retângulos, decidida por um limite fraco –

“invisível” até –-, em contraste aos cinturões de tinta negra perfilados em

seqüência, ameaça tanto a integridade física quanto a independência da

peça pictórica, sibilando que a coleção de semi-retângulos acoplados

aguarda uma outra semelhante. A coincidência também sinaliza um

aprumo axial e uma continuidade mundana. Descartada a associação

com caixas emborcadas – afinal, aqui não vigoram as promiscuidades da

Pop Art, a percepção dirige-se para os gigantescos portais das igrejas

góticas que escalonam uma série de relevos desde o arco maior até o da

entrada propriamente dita – avisando o cristão sobre a defasagem

espiritual entre dois mundos. E mais, “um dentro do outro” é uma

descrição capciosa para as linguagens visuais – ajusta-se tanto às

organizações tridimensionais quanto às configurações bidimensionais

perspécticas, e ainda mesmo aos sistemas de padronizações planares.

Cerca de 18 faixas negras e fios brancos rendem um fluxo, um longo

“corredor” que puxa o olhar “para dentro” atraído por um ralo. As enormes

dimensões do quadro acentuam o efeito de absorção que a cor negra

detém como propriedade ótica, amplificando a vertigem do fluxo. O

observador é cooptado para um labirinto de enigmas visuais, como num

jogo de espelhos que reflete infinitamente uma mesma imagem: a

seqüência é infinita ou o túnel é profundo? A viagem é estancada pela

última faixa de tinta negra pincelada pelo artista e, poupado da voracidade

da obra, o espectador aceita o desafio e retoma inúmeras vezes o

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caminho desde o “início” – “de fora para dentro” – quer porque quer

desvendar o mistério.

O espectador de uma obra plástica é sempre enganado? As

imagens fixas evocam uma ação ou um estado de alma; as telas são

superfícies bidimensionais que simulam profundidade ou comportam-se

como objetos tridimensionais situados no mundo. Para estabelecer uma

relação obra-espectador é necessário criar laços de cumplicidade, que

definimos por realismo, ilusionismo etc. Porém, essas obras de Stella

parecem atualizar a arte do trompe-l’oeil com um desejo de desmistificar,

ultrapassar, substituir a ilusão de realidade. Situadas na fronteira que

separa a realidade da ficção e da arte do artefato, são, portanto, plenas

de conteúdo conceitual, são espelhos de reflexos ambíguos, visualmente

fascinantes, provocantes e irônicos.

Stella levou adiante as possibilidades despertadas pelo trato

geométrico da pintura: The marriage of reasor and squalor, Arundel castle

e Club Onyx são telas que exibem os arranjos gerados pela conjugação

de duas fórmulas tipo Getty’s tomb ou por seus rebatimentos especulares.

Trata-se de um sistema lógico que gera configurações complexas a partir

de outras mais simples e cada elemento é passível de ser submetido a

combinatórias ou arranjos.

The marriage of reasor and squalor (1959) é um retângulo horizontal

que ostenta dois módulos Getty’s tomb dispostos lado a lado. Duas

seqüências idênticas de faixas negras e fios brancos decidem dois

“portais” desta vez. Já Arundel castle (1959) e Club Onyx (1959) nomeiam

pinturas retangulares igualmente estruturadas. Ambas foram repartidas

por uma linha vertical de não-cor. Cada subdivisão reproduz o esquema

da Getty’s tomb girado a 90° para o lado externo de modo que os

estreitos “portais” sugeridos pelos últimos fios brancos da seqüência

encontram-se agora transversos às bordas laterais, decidindo a coligação

de dois colchetes reversos que nada isolam ou destacam, muito pelo

contrário.

As manobras de Stella são propositadamente previsíveis. A

geometria destas presenças murais viabiliza incontáveis associações

entre elementos desprovidos de valores ideais através de repetições,

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séries, duplicações, rebatimentos, rotações e inversões. Os elementos

são, de fato, os mesmos empregados pelos artistas da vanguarda

abstrata – linhas horizontais, verticais ou diagonais –, contudo a gramática

é outra: não se trata de fragmentos que devem ser dispostos

harmonicamente em um “todo” preestabelecido pela tela, como em

Kandinsky, por exemplo. Ao contrário, cabe à tela – o “todo” – sugerir o

movimento sobre a superfície. A tela não “finge” ser um mundo

organizado, mas assume-se como mais uma das inúmeras partes da

desorganização do mundo. Tal aspecto será esclarecido pelo mais tarde

próprio artista, por ocasião da série Shaped Canvas.

Um segundo conjunto do sistema explorado pelas Black Paintings

subverte a origem das reverberações pictóricas. Em Die Fahne Hoch! (1959), o plano vertical vem dividido por dois eixos de não-cor, decretando

quadrantes preenchidos, de dentro para fora, por faixas de tinta negra

intercaladas por fios de não-cor. A seqüência de fios brancos provoca a

oscilação de outras figuras, traçando um “X” ou determinando secções

triangulares. O sentido da seqüência agora parece oriundo dos ângulos

retos e o efeito cinético faz o olhar convergir para o centro da tela e voltar

pelos mesmos caminhos em “X”, por mais que o previsível fosse passear

sua atenção pelo fluxo sugerido pelas retas verticais e horizontais – pela

cruz, enfim. O efeito confunde.

Ou seja, apesar e/ou justamente por conta da atividade das

diagonais, não escapa ao olhar a figura de uma cruz estruturando a peça.

O “X” da questão, então, está depositado em uma empreitada estética

que visa o espaço público. Caso contrário, Stella seria apenas mais um

seguidor de Mondrian: o quadro seria antes uma ilustração das teorias

sobre planaridade e objetividade. Persistindo na estrutura de uma lógica

formal como tema, no lugar de “veículo de um tema”, Stella esclarece que

“o que você vê” não é de fato “o que você vê”. O assunto conquistou as

atenções de Rosalind Krauss:

(...) Poderíamos qualificar o fato de acidental, é claro, da mesma forma que poderíamos conceber como acidental o fato de a cruz propriamente dita estar relacionada ao mais primitivo signo de um objeto no espaço: a linha vertical da figura projetada contra a linha de horizonte de um fundo

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implícito. Mas a relação tripolar amalgamada ao longo da superfície listrada desses quadros é uma espécie de argumentação em favor da lógica entre o caráter cruciforme de toda pictoricidade, de toda intenção de localizar uma coisa neste mundo, e o modo como o signo convencional – neste caso, a cruz – emerge naturalmente de um referencial existente no mundo. Encontramo-nos, em telas e mais telas, na presença de um emblema particular, extraído de um repertório comum de signos – estrela, cruzes, entrelaçamento em anel etc. –, parte de uma linguagem que pertence, por assim dizer, ao mundo e não à capacidade criadora particular de Stella inventar formas. Aquilo de que Stella nos convence é uma explicação da gênese desses signos – porque percebemos, nessas pinturas, de que forma eles nascem por meio de uma série de operações naturais e lógicas.4

Ora, a obra só decide uma figura porquanto considerada no todo da

tela da qual é inseparável, colada. Molduras dentro de molduras é um

meio de conter a pintura num campo pictórico e simultaneamente negá-lo

já que esta mesma pintura encontra-se dentro do mesmo campo apenas

como uma imagem de suas bordas. A figura perde seu status lógico, mas

ainda assim o “estar no campo” só existe porque está “contido pelo

campo”. A relação entre o campo pictórico e a figura não é espacial, mas

total e puramente ótica.

Die Fahne Hoch! é um título inusitado. Alguns enxergam na

exclamação uma referência às bandeiras de Johns – Bandeiras ao alto!

Porém, já que nos chega em alemão, o mais óbvio seria conectá-la a uma

canção (Lied) nazista. A lembrança ainda muito próxima do Holocausto,

somada à cor negra, à cruz e às origens judaicas do artista aderem-se à

última hipótese. Outro nome ligado ao nazismo é Arbeit Macht Frei,

lembrando a funesta frase que ornamentava o portão de Auschwitz – O

trabalho liberta. Ao contrário do primeiro, este título (não utilizado, afinal)

não suscita dúvidas quanto às intenções de Stella. Ora, atos de extrema

barbárie conectados a princípios artísticos invocam perguntas. Como

separar o joio do trigo?

Em um terceiro momento das Black Paintings, Frank Stella testa os

efeitos das diagonais e reavalia os alcances dos planos programados por

horizontais-verticais. Gezira (1959) nomeia uma superfície vertical

4 KRAUSS, Rosalind. “O duplo negativo: uma nova sintaxe para a escultura”. In Caminhos da escultura moderna. pp. 315-316.

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preenchida por traços diagonais de tiras e fios acionados pelo risco de

dois “X”, designando duas metades de losangos dispostas acima e abaixo

de um losango idêntico exatamente centrado. O olhar é constantemente

assediado pelos fluxos eucinéticos disparados por três seqüências

paralelas de ângulos obtusos e simultaneamente requisitado para o

“fundo” do ninho de losangos centrais. A teia não descansa, não concede

pausa à visão: as configurações prescritas por diagonais mostram-se

mais ativas e demandam um maior número de percursos visuais.

Aos observadores é vedado estacionar o olhar em qualquer região

da tela, nenhum ponto é mais importante que outro. A obra é o todo dessa

sensação que estabelece – com uma escala excepcional para o velho

alcance contemplativo – um imenso campo de interesse. Não é possível

escapar a tal envolvimento espacial que, se por um lado, enreda o

observador numa teia de revivências agoniantes, também não o entrega

às delícias paralisantes de mais uma pintura xenomorfa cujos códigos

operacionais há muito se vinha denunciando.

Já a pintura Delphine and Hippolyte (1959) conta com dois losangos

verticais inteiros – ângulos obtusos acima e abaixo, e agudos pontuando

a mediana horizontal – dividindo igualmente uma tela horizontal desta

vez. E Tuxedo Junction (Tuxedo Park, 1960) é outra peça que “combina”

com as duas anteriores, já que consiste em dois losangos inteiros

propagando em um suporte vertical as pontuações cinéticas que lhe são

inerentes – dois centros de simetria, um percurso vertical e três vigorosas

horizontais provocados pelos ângulos. Ou seja, de certo modo, trata-se de

uma versão vertical do esquema de Delphine and Hippolyte. O losango assume o posto de módulo gerador dessas peças embora

seja o “X” a origem das ondas. Ao contrário das fórmulas em verticais-

horizontais, os urdimentos das diagonais cruzadas fecundam as áreas

internas. Gezira parece um recorte de uma tela maior que reúne três

losangos. As peças parecem participar de uma arrumação maior e, de

fato, assim procedem. Exibidos em conjuntos, os planos modulados das

Black Paintings providenciam a percepção de gigantescos quebra-

cabeças. Porém, inexiste um desenlace, o jogo apenas promete uma

continuidade infinita ou encaixes temporários entre elementos

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promíscuos.

Trata-se de um working space – espaço perceptivo arquitetado pelas

novas pinturas e que diferem do espaço interior ilusionista. O esforço

exigido por essas áreas garante mais que o simples acesso a articuladas

superfícies. Stella explicou as suas intenções:

My whole of thinking about painting has a lot to do with building –

have foundations to build on. The Black pictures were a groundwork structure in more ways than one. I enjoy and find it fruitful to think about many organizational or spatial concepts in architectural terms, because when you think about then strictly in design terms, they become flat and very boring problems. So I guess I use a little bit of the outside world by bringing in architecture as another way of looking at the problems, as a way of expanding them. But I think my painting remains a distinctly pictorial experience – it’s not finally an architectural one. It doesn’t really to have anything to do with architecture, or the [spectator’s] ability to understand architecture… The bands in the Black pictures weren’t meant to ‘travel’ that much – those pictures were more a pattern imposed on a field. 5

4.2 Shaped canvas Finda a série de pinturas negras, os objetos expedidos pelo ateliê de

Stella indicam um período experimental. Trata-se de produções híbridas

que contabilizam diversos procedimentos lógicos e avaliam novos

materiais: são pinturas em alumínio ou em cobre, cores metalizadas em

geral, que aos poucos começam a assumir formatos específicos. A etapa

o conduziu a famosa série de Shaped Canvas – pinturas formatadas ou

telas recortadas. Agora, as faixas largas estabelecem um eco mais

evidente ao formato do suporte e sugerem depender ainda mais de suas

configurações limítrofes do que nas pinturas negras.

Luis Miguel Dominguin (1960) consiste na repercussão de um “T” em

faixas de tinta-alumínio desde o centro da superfície até o formato

limítrofe do objeto. O procedimento do artista pode ser imaginado da

seguinte maneira: inicialmente são determinados dois eixos (no caso, em

“T”) que vão comandar a seqüência de faixas bilaterais. No ponto em que

a figura genésica perderia totalmente sua definição, a seqüência é

interrompida. A questão é se isto reforça a visibilidade do “T” ou se

deforma o retângulo. As ondas que “estragariam” a distinção da figura 5 Declaração de Stella, citado em RUBIN, William. Frank Stella. Catálogo do MoMA, 1970.

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e/ou a área inútil do suporte são descartadas.

O resultado desse procedimento é que o “T” inicial, determinado por

um fio vertical e pela borda superior, vai distribuir seus ângulos de tal

maneira que o fluxo diagonal estabelecido por esta seqüência designará

uma seta apontando para o alto. Temos, então, dois signos atuando

simultaneamente na mesma superfície. Seta ou “T”, a orientação estética

que gerencia o trabalho é a mesma já definida por Rosalind Krauss,

exposta anteriormente:

A lógica da estrutura compositiva, portanto, é mostrada como

inseparável da lógica do signo. Cada uma deve responder pela outra e, ao fazê-lo, solicitam-nos que aprendamos a história natural da linguagem pictórica como tal. O verdadeiro mérito dessas pinturas é terem mergulhado por completo no significado, mas ainda conseguirem fazer do significado em si uma função da superfície – do espaço externo, público, que de modo algum expressa os conteúdos de um espaço psicologicamente particular. O significado do expurgo do ilusionismo de Stella é ininteligível senão por esse propósito de alojar todos os significados dentro das convenções de um espaço público.6

Já Lake City (1962) exibe uma versão incompleta e invertida da

Getty’s tomb, ou seja, uma seqüência em “U”. As listras são determinadas

pelas bordas “internas” e “externas”. A particularidade desta e de outras

obras que perfazem a série de telas formatadas de Stella é o fato de que

o “miolo” da seqüência é dispensado de sua manifestação matérica.

Assim, a fileira de “us” não se extingue em um “paredão” negro e o plano

vem afirmado com maior vigor já que o corte estanca a sugestão de

infinito que, querendo Stella ou não, se acoplava irremediavelmente ao

plano pictórico.

Lake City reclama as amputações de áreas físicas e/ou pictóricas,

assentando a presença de suas previsões, com maior intensidade de que

aquela reivindicada por Luis Miguel Dominguin que cumpria as

reverberações de um signo conhecido e recortado “por fora”. Nas

recortadas “por dentro”, o olho insiste em completar o polígono, uma

expectativa toma o lugar do pedaço faltante, a percepção anseia por um

signo inteiro. Assim, o estranhamento criado pelo fantasma da parte

6 KRAUSS, Rosalind. Op. cit. pp.316-317.

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removida do campo pictórico, e sempre devolvido pelas bordas, faz com

que o objeto pareça mentir sua natureza.

Por fim, algumas poucas observações sobre a peça intitulada Ileana

Sonnabend (1963) é-nos suficiente para entender a distinção processual

do período. Desta feita, o artista finaliza as intuições latentes desde as

pinturas negras. Como descrevê-la? Trata-se do perímetro de um trapézio

de arestas largas e listradas ou de um objeto trapezóide sem o miolo, ou

de quatro traves listradas arranjadas no formato de um trapézio? O olho

“circula” pelas listras sempre eqüidistantes que perfazem todo o campo.

Agora não sentimos falta do miolo e nem somos sugados para um centro.

Sabemos o que seria necessário para “completar” a seqüência, mas, não

sentimos falta, porque, ao fim e ao cabo, o recorte é a obra.

Uma especial leveza permite a essas telas surgirem mais planas que

as Black Paintings e decerto que a luz metálica da cobertura contribui em

muito para tal efeito: afinal, da cor preta para o cobre vão léguas de

distância luminosa reflexiva.

The units in the Aluminium pictures were intended to be more

individual, put together to make something like a ‘force field’ (to use the term Carl Andre was fond of)... The aluminium surface had a quality of repelling the eye in the sense that you couldn’t penetrate it very well. It was a kind of surface that wouldn’t give in, and would have less soft, landscapelike or naturalistic space in it. I felt that it had the quality of being slightly more abstract.7

O trabalho exala uma irônica modéstia, mas discute veementemente

a sua natureza artística: reage quando disposto na parede e

simultaneamente repele o posto de escultura. Trata-se de um objeto

específico. Em um texto de 1965 – Specific objects –, Donald Judd teceu

o seguinte comentário sobre as pinturas de Frank Stella:

Os Shaped Canvas de Stella apresentam muitas características

essenciais das obras em três dimensões. O contorno do trabalho e das linhas que vemos estão em acordo. Em nenhuma parte os raios são elementos distintos. A superfície, ainda que ela permaneça paralela ao plano da parede, se destaca mais que o normal. Na medida em que a superfície é excepcionalmente unificada, e implica pouco ou nada de espaço, o plano paralelo torna-se inabitualmente distinto. A ordem não é

7 STELLA Frank citado por William Rubin. Frank Stella. Nova York: MoMA, 1970, p. 60.

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racional ou estruturante, é apenas ordenação, continuidade, cada elemento após o outro. Uma pintura não uma imagem. As formas, a unidade, a projeção, a ordem e a cor são específicas, agressivas, vigorosas.8

4.3 A forma e a simetria

“Uma coisa após a outra” é uma leitura que traz de volta os humores

de Jasper Johns. Apesar do fato de que tal observação deveria estar

condicionada aos axiomas da Minimal Art, é impossível evitar associações

históricas, sobretudo com Johns. Sem hesitar, associamos à situação

convocada pelo artista sobre almejar uma especial tranqüilidade

psicológica concedida pelo desfrute de uma vida sem surpresas – apenas

um dia após o outro. Sabemos dos propósitos deste e daquele, mas seria

possível descartar toda e qualquer troca sentimental com os ares

existencialistas que embalaram os anos 50? Perguntados sobre um

possível caráter niilista em suas convicções estéticas, Judd e Stella foram

rápidos ao negar qualquer adesão a semelhante filosofia. No entanto, se

a batalha é contra a metafísica...

Se o tom de Johns o estimulou, estava claro em que clave Stella

deveria agir dali por diante – o artista manteria distância da pintura

relacional, de equilíbrios, de efeitos de composições ou de quaisquer

truques pictóricos: enfim, de tudo que o afastasse da busca da

planaridade sumária. A simetria, imagina então, seria o melhor caminho:

se você está muito envolvido com os problemas (de planaridade) da

superfície, você está destinado a achar que a simetria é o meio mais

natural.9 Ora, parece que as bases da cultura e da civilização estavam se

encontrando finalmente: é sabido que o entendimento da simetria é

central para a física das partículas elementares, fundamental para as

descrições dos fenômenos atômicos ou subatômicos e fora mesmo

indispensável para Einstein pensar a Teoria da Relatividade.

Lançando mão da simetria, supõe o artista, estaria automaticamente

suprimido o ilusionismo e, assim, a obra poderia oferecer uma experiência

de apreensão imediata de sensações visuais puras. Ou seja, nada das

8 JUDD, Donald. Écrits. p. 15. 9 BATTCOCK, Gregory (org). Minimal art. A critical anthology. p. 150

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metáforas ou das imagens sugestivas que haviam povoado a Europa até

bem pouco tempo. Esta maneira de descobrir o mundo (ou encobrir?),

estava desacreditada: “relacionar”, “equilibrar”, “compor”, são verbos

impregnados pela metafísica cartesiana que não têm qualquer

consideração pela matéria mundana. Por este raciocínio, nem mesmo a

“pintura” seria “pintura”, mas apenas um veículo de sensações que não

lhe pertenciam diretamente – um arremedo de pintura. Fora, decerto, um

belo mundo virtual em duas dimensões, porém Stella não mais se

interessava por ele:...eu quero que minha pintura seja de tal maneira que

não se possa evitar o fato de que ela supõe ser inteiramente visual.10 A

visualidade adjetiva que supõe a contemplação não estava

definitivamente no “programa” da Minimal.

Os materiais de Stella continuam sendo os mesmos dos pintores da

tradição, mas agora reaparecem atualizados e adaptados às exigências

locais – pincéis e tintas de parede comuns já estavam em uso desde os

expressionistas americanos. O artista deixa somente as marcas

inevitáveis do pincel – afinal trata-se de pintura mesmo: um objeto. Para

acentuar o efeito de não-janela, o chassis ganha maior espessura

fazendo com que a obra se destaque da parede. Assim, formato,

configuração e pattern, todos juntos, auto-referem-se em um sistema

fechado que pauta sua existência como objeto. O observador terá que

reconhecer que todas as ações registradas naquela superfície pertencem

exclusivamente às questões da arte:

Estou sempre em desacordo com as pessoas que desejam

conservar os valores tradicionais da pintura: estes valores humanistas que elas descobrem sempre sobre a tela. Se você as obrigar a uma definição, elas acabam por declarar que existe alguma coisa fora da pintura, sobre a tela. Minha pintura está baseada no fato de que tudo o que pode ser visto lá está. É realmente um objeto. Toda pintura é um objeto e qualquer um que se envolva o bastante com esta finalidade acabará por se confrontar com a natureza de objeto daquilo que ele está fazendo. Ele está fazendo uma coisa. Tudo deverá vir desta crença. Se a pintura for bastante incisiva, bastante precisa, bastante exata, nos será suficiente apenas olhar. Tudo que desejo que se tire de minhas pinturas e que já tiro de minha parte, é o fato de que se possa ver toda a idéia sem qualquer confusão... O que você

10 GLASER, Bruce. “Questions to Stella and Judd”. In BATTCOCK ,.Gregory. Minimal art. A critical anthology. p. 158.

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vê é o que você vê.11

A prova que contraria o esforço de Stella está incluída em sua mais

conhecida declaração, como atesta Arthur Danto, preparado para as

investigações entre linguagem e mundo: (...) When Frank Stella, as critic

of his own work, said, reductively, that what you see is what you see, the

thought was immediately falsified by saying it. It said, in effect, that the

paint was only an object. But objects in that sense say nothing at all. (…) 12

O crítico Michael Fried já havia anotado os assuntos cutucados pelo

artista:

A progressão [de Stella] da pintura negra ao alumínio e ao cobre

metalizado em suas primeiras séries de pinturas, junto com seu uso de telas formatadas nas últimas duas séries, encaixa-se perfeitamente em uma versão de modernidade que considera que a pintura mais avançada dos últimos cem anos nos tenha levado a dar conta que as pinturas não são senão uma subcategoria de coisas às quais a tradição outorgou certas características convencionais (tais como a sua tendência de consistir em um tecido estendido em cima de um suporte de madeira, retangular na maioria dos casos) cuja arbitrariedade, uma vez admitida, luta por sua eliminação. De acordo com esta opinião, a declaração do caráter literal do suporte do quadro, de Manet a Stella, representa, nada mais nada menos, que a compreensão gradual da “verdade” de que os quadros não são em qualquer aspecto essencialmente distintos das outras categorias de objetos do mundo. 13

A arte permite o acesso aos mais diversos episódios da existência

através de manobras extraordinárias – disfarçando, narrando por vias

tortas, tentando falar uma coisa e dizendo outra. Consciente ou

inconsciente, a prática é antiga e largamente utilizada, como bem explicou

Jean Starobinski em A invenção da liberdade, apoiado em realizações do

século XVIII.14 O viés analítico convida o leitor a estender a noção, a

eficácia da fórmula aconselha o emprego de seus nexos investigativos na

avaliação das ocorrências poéticas de qualquer tempo. As inflexões de

Starobinski dão conta da disparidade entre as muitas leituras de uma

11 Idem. p. 157-8. 12 DANTO, Arthur C. The madonna of the future. p. xii. 13 FRIED, Michael. Three american painters. Fogg Art Museum, Harvard University, 1965, p. 43. 14 STAROBINSKI Jean. A invenção da liberdade.

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mesma obra de arte ou de um mesmo princípio estético. Sempre é

possível vasculhar os obscuros recantos das produções culturais e extrair

algo mais do que o previsto pelo artista. O tema, vastíssimo, jamais

encontrará um termo, um arremate conceitual: continuamente assíduo na

lida, a arte não pode ser pura.

Deveríamos acreditar que o minimalismo escapou a tal modelo? A

pintura talvez jamais chegará a ser tão somente pintura. Os tempos estão

difíceis, o mundo está complicado demais, como prosseguir com as

garantias de avatares insustentáveis? Quais as possibilidades de alguma

coisa não ser contaminada pelo mundo, como obter assepsia nas

entidades fabricadas por humanos?

A gravidade das obras de Stella põe em dúvida se conseguem

permanecer na superfície, se não estão emergindo lentamente de um

buraco negro da existência. A pintura como tal, considerando-se a

hipótese do advento, não poderá mostrar qualquer resíduo de melancolia

que ameace o seu plano e a relegue a outros tantos planos da vida. A

pergunta, no final das contas, é a seguinte: por que a tentativa de fazê-la

aparecer como tal? Talvez, para Stella, a resposta esteja na sua aguda

percepção das necessidades do momento afinada com a vontade de

experimentá-lo positivamente.

Ou seja, estamos supondo que mais coisas respirem nas superfícies

negras deste artista. Jogamos com a dúvida de que, embora pareçam

bem-sucedidas na superação de uma ideologia metafísica, ainda

mantenham algum “elo” em fase de trabalho. Impossível ignorar que

cruzes são também instrumentos de suplício. Afinal, signos são

promíscuos e qualquer distração permite que representem algo fora deles.

Os de Stella são os chamados “imotivados” ou “arbitrários”, o que permitiu

Krauss combiná-los com os desejos do minimalismo. Porém...

* * *

4.4 Don Judd style

Minimalismo é um termo genérico empregado inadvertidamente para

qualquer austeridade estilística, em especial nas artes visuais. A origem

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da prática distingue duas vertentes. Num primeiro caso, o termo refere-se

aos objetos tridimensionais realizados após 1960, de feição abstrata –

que cancela o uso de meros detalhes decorativos, nos quais a geometria

é enfatizada e a técnica expressiva expurgada. Tony Smith e Donald Judd

qualificam obras neste senso. Essa linhagem poética tem ancestrais no

Suprematismo, no De Stijl, nos construtivistas abstratos, pintura e

escultura, desde Malevich e Rodchenko, até Mondrian e Albers. Os dois

americanos responderam também aos estímulos pontuais utilizando os

serviços da produção em massa para ordenar objetos diferenciados,

retomando o controle da estética física com as mesmas armas da

indústria.

Um outro grupo diz sobre o viés poético adotado por Carl Andre,

Dan Flavin e Bob Morris, que exibem “as coisas como elas são”,

indistinguíveis do material industrial ou do object trouvé em contraste com

o material não-artístico do primeiro caso. As condutas poéticas deste

segundo grupo insistem no questionamento do termo “arte”, suas

ascendências são os ready-mades de Duchamp e as esculturas de

Brancusi.

O resumo não dá conta dos motivos que propiciaram o surgimento

de uma poética visual aparentemente inerte em contraponto às agitações

noticiadas pelos últimos abstracionistas. O procedimento ainda não

estava devidamente monitorado. “As doze regras para uma nova

academia” formuladas por Ad Reinhardt em 1957 pareciam surtir efeitos,

conduzindo o fazer artístico para uma redução radical : (...) no texture, no

brushwork, no drawing, no forms, no design, no color, no light, no space,

no time, no size or scale, no movement, and finally no object.15

A crítica estranhou, recuou e voltou ao trabalho. Segundo Barbara

Rose, o aspecto redutivo da Minimal Art chocou o público acostumado à

complexidade visual da pintura gestual: (…) an art whose blank, neutral,

mechanical impersonality contrasts so violently with the romantic,

biographical abstract expressionist style which preceded it that spectators

15 REINHARDT, Ad. “Twelve rules for a new academy. In Artnews, maio de 1957, p. 38.

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are chilled by its apparent lack of feeling or content.16 Lucy Lippard

aventou a hipótese de a monotonia por si só consistir em um gesto de

vanguarda: The exciting thing about … the ‘cool’ artists is their daring

challenge of the concepts of boredom, monotony and repetition.17

Já Michael Fried argumentou que... a história da pintura desde

Manet pode ser entendida como consistindo na progressiva revelação de

sua essencial objetividade. (...) Mas Minimals estão indo muito longe,

fazendo objetos tão literais que eles direcionam o observador para

relações externas, teatrais, em detrimento de sua pureza estética.18 O

assunto não está fechado, é possível prosseguir estudando as

disposições minimalistas por muito mais anos que os quase 50 já

transcorridos desde então.

4.5 Quem tem medo da black box? As obras de Donald Judd que vão passar para a história do

minimalismo americano começam a ser engendradas discretamente nos

primeiros anos da década de 1960. Após algumas investidas frustradas

na pintura, o artista abandona a prática e decide-se pelo retorno aos

estudos acadêmicos – de 1959 a 1965 dedica-se regularmente à crítica

de arte – seus textos são exigentes, plenos de referências históricas e

filosóficas. Axiomático, Judd escreve em 1965 o seu texto mais conhecido

– Specific objects – cujas propostas teóricas irá assinar como artista. No

mesmo ano, começam a sair das fábricas as obras que comprovam, de

fato, o seu programa artístico, articulado teoricamente durante os muitos

anos dedicados à observação da arte americana e européia. A esta

altura, o cubo epistemológico de Tony Smith já completava quatro anos

de existência.

De volta à prática artística no princípio da década, Judd opta pela

tridimensionalidade, já que, com a pintura, mal vislumbrava possibilidades

de escapar do ilusionismo. Trata-se, de certo modo, de uma retomada do

16 ROSE, Barbara. ABC Art. In Gregory Battcock (org.). Minimal art. A critical anthology. pp 294-297. Artigo originalmente publicado em Art in America, outubro-novembro, 1965. 17 LIPPARD, Lucy. “New York letter: recent sculpture as escape”. In Art International, 20 de fevereiro de 1966. 18 FRIED, Michael. Art and objecthood. p. 160.

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famoso mote de Tatlin prescrito em plena idade da máquina: “materiais

reais no espaço real”, mas, ao contrário do russo, os trabalhos de Judd

não continham mensagens sociais ou expressavam aspirações utópicas.

Sobre tal necessidade, o artista comentará em 196419 que os efeitos

perspécticos da pintura, além do equilíbrio harmônico, veiculavam todas

as outras estruturas do mundo – os valores e as emoções da tradição

européia só interessam na condição de temas ultrapassados. Afinal, se

uma imagem sugere três dimensões, as três dimensões existem – não

existem ilusões ou representações. O artista atribui o “problema” à ratio

moderna.

A arte européia, baseada em sistemas apriorísticos, exprimia uma

forma de pensar, uma lógica hoje completamente desacreditada como

instrumento de descoberta do mundo. As obras não-relacionais seriam,

portanto, anti-racionalistas – as unidades simplesmente estão lá, resta

apenas colocá-las uma após a outra. Nas obras que colocam fragmentos

determinados a priori em relações composicionais, vem admitida a

existência de um “todo”, apenas “mais ou menos” definido pelo retângulo

da tela, ou seja, as partes são mais importantes que o todo, quando

deveria ser ao contrário:

Frank Stella’s new paintings are one of the recent facts. They show

the extent of what can be done now. The further coherence supersedes older forms. It is not only new but better, not necessarily on an onlooker’s scale of profundity which can measure Pollock against Stella, but on the scale…of development. The absence of illusionistic space in Stella, for example, makes abstract expressionism seem now an inadequated style, makes it appear a compromise with representational art and its meaning. 20

As unidades moduláveis industriais expedidas sob o comando de

Judd são todas catalogadas como Untitled, apenas numeradas

seqüencialmente com vistas a evitar associações ou referências

históricas, ao contrário de Stella e Smith. Constituídas pelos elementos

“cheios”, “vazios”, “cor” e “luz”, suas peças apresentam-se em arranjos

tridimensionais fixados a superfícies verticais ou dispostos sobre o solo.

19 BATTCOCK,. Gregory (org.) Minimal art. A critical anthology. pp. 148-164 20 JUDD, Donald. “In the galleries: Frank Stella”. In Arts Magazine, setembro de 1962. Reeditado em JUDD, Donald. Complete Writings 1959-1975. p. 57.

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Especialmente governados por apelos racionais extremos, tais trabalhos

são concebidos segundo a nova lógica industrial das produções seriais

americanas dos anos 60. Apegado aos princípios antiilusionistas, o artista

segue os comandos das progressões matemáticas – não- “emocionais”,

apenas visuais – para realizá-las. A decisão pelo trabalho tridimensional

tem escopo teórico nas declarações do próprio artista: Three dimensions are real space. That gets rid of the problem of

illusionism and of literal space, space in and around marks and colors – which is riddance of one of the salient and most objectionable relics of European art. The several limits of painting are no longer present. A work can be as powerful as it can be thought to be. Actual space is intrinsically more powerful that paint on a flat surface. Obviously, anything in three dimensions can be any space, regular or irregular, and can have any relation to the wall, floor, ceiling room, rooms or exterior or none at all. Any material can be used, as is or painted… In three-dimensional work, the whole thing is made according to complex purpose, and these are not scattered but asserted by one form….21

São objetos específicos, define o próprio Judd – não participam das

categorias tradicionais da pintura ou da escultura: possuem a

tridimensionalidade de uma e o modo de exposição da outra, se projetam

da parede ou surgem do solo. Estas características oferecidas pela obra

são caras ao momento: são simultaneamente reações negativas à pintura

e à escultura tradicionais, esclarece.22

4.6 Os americanos falam deles mesmos Entre 1962 e 1965, Judd executa uma série de enormes caixas,

confeccionadas em folhas de compensado, pintadas ou não, para serem

dispostas no solo ou fixadas à parede. Porém, após esse período

“experimental”, tais “caixas” ou “unidades moduláveis” passam a ser

preparadas em placas de plexiglas transparentes de cores vivas, em

folhas de alumínio galvanizado ou de aço inoxidável, de cobre ou latão e

serão eventualmente pintadas com tintas automotivas. Ou seja, definidas

por matérias recém-atualizadas tecnologicamente por conta das

necessidades da última guerra e do conseqüente boom produtivo-

consumista americano. Luminosas, reflexivas e com acabamento 21 JUDD, Donald. “Specific objects”. Arts Yearbook, 1965. 22 JUDD, Donald. Écrits. p. 10.

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necessariamente industrial, essas superfícies combinam,

indubitavelmente, com o american way of life que exige praticidade,

rapidez e assepsia na linha de produção.

Parentes enviesados dos ready-mades duchampianos, as peças de

Judd, assim como as de Tony Smith, comandadas por telefone e

despachadas diretamente para o local da exposição, declaram caducas

as atividades e os produtos de ateliês. No texto de 1965, o artista faz a

apologia desses materiais e afirma que, assim como os objetos, eles

também têm uma especificidade que é ainda mais acentuada se utilizados

em estado puro – há uma qualidade objetiva na identidade intangível do

material.23 Além do mais, esses elementos auxiliam o artista a manter-se

num “anonimato” (relativo, sem dúvida), tal qual, enfim, a massa de

operários das indústrias norte-americanas.

O tema “anonimato” será mais bem explorado por Andy Warhol, que,

ao dramatizar publicamente o ritual de acasalamento entre público-

criador-mercado, vai denunciar o cinismo e a ingenuidade recorrente e

levar a complicada questão estatutária da arte e do artista contemporâneo

a um patamar polêmico jamais alcançado. Judd, ao contrário, não era um

homem regido pela ironia, não admitia comportamentos derrisórios e até o

final de sua vida evitou a divulgação de sua imagem ou estimulou

comentários públicos que o colocassem em situações diferenciadas.24

Em declaração um tanto dúbia, Judd acentua que não há nada de

sacrossanto nos materiais.25 Na teoria, talvez. Mas, na prática, como

indica a elegância de suas linhas e materiais de ponta de alto sucesso

tecnológico, o Don Judd Style vai orientar os designers nos anos

seguintes. Há, decerto, um elogio cultural perverso na utilização dessas

matérias que acabam por freqüentar o altar sagrado dos museus. Caso

não fossem chamadas de arte, passariam, talvez, despercebidas no dia-a-

dia nova-iorquino. Diferentemente dos cubes de Smith ou das Black

Paintings de Stella, as cores vivas, as superfícies vítreas e metálicas de

Judd são extremamente sedutoras, não surgem tão enigmáticas ou 23 Idem. p. 18 24 O artista passou os últimos 18 anos de sua vida em uma pequena cidade do Texas – Marfa. 25 BATTCOCK, Gregory (org). Minimal art. A critical anthology. p. 160

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austeras.

O minimalismo desejava eludir o glamour da Pop Art – afinal se

considerava uma arte de intelectuais e não de publicitários. Contudo,

Judd trabalhou nessa mesma direção com um registro, sem dúvidas,

infinitamente mais erudito, mais elaborado culturalmente. Fato que

acabou por denunciar a expressividade romântica que permanecia

forrando o cinismo de Warhol. Ora, nada havia de contraditório nessa

atitude: não era isso o que se conclamava? A premissa não era

justamente a de se fazer uma arte acessível à vivência terrena? O público

acaba por aceitar (com prazer) as duas modalidades de arte tipicamente

norte-americanas. Ou será que, novamente ludibriado, continuaria

excluído?

Desta sociedade levam ainda, Pop e Minimal, a idéia de serialidade

– reproduzem, ambas, o modo de processar da atualidade –, pois,

“artista” é aquele que trabalha com o modo-de-ser plástico do cotidiano. A

maioria dos pensadores do momento não deixou de anotar o vácuo entre

o modo-de-ser-da-vida e o modo-humano-de-ser. Ora, as duas principais

disposições estéticas norte-americanas mostravam a estreita relação

existente entre elas através de oposições. Os grandiosos fatos

tridimensionais da Minimal, as feéricas séries da Pop são a

contextualização plástica de uma mesma ordem de fenômenos.

É possível pensar em termos de Gestalt? Apesar de não

requisitadas, as aproximações teóricas são esclarecedoras. Argan anota o

seguinte sobre os procedimentos artísticos de Paul Klee na Bauhaus:

Não se trata de encontrar a gute Form: estimulante para os

processos psíquicos da consciência é a forma que não se apresenta como dada, mas captada na sua formação, isto é, no dinamismo que a produz. Tão importante quanto o problema da forma (Gestalt) é o da formação (Gestaltung). (...) Não, a vida é naturalmente irracional: racional é o pensamento que se entrelaça à vida, resolve os problemas continuamente colocados por ela, transforma-a em consciência da vida. A arte é justamente o modo de pensamento pelo qual a experiência do mundo realizada através dos sentidos assume um significado cognitivo, pelo o qual o dado da percepção se apresenta instantaneamente como forma. (...) Não traduz a imagem em conceito, o que equivaleria a destruí-la; limita-se a torná-la visível, pois a percepção já é consciência.26

26 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. p. 272.

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Esta definição parece dar conta de algumas questões formais do

minimalismo. Sem dúvida que se pode aprofundar uma investigação

genética da Minimal. Mas o que poderia ser o responsável formal por um

cube-boom e uma marilynmania?

4. 7 Modulus vivendi

A partir de 1965, Judd começa a apresentar seqüências horizontais

de caixas de medidas idênticas fixadas à parede. Com intervalos

calculados segundo uma lógica matemática a partir das dimensões, dos

hexágonos e da área disponível para a exposição. Senão, vejamos uma

dessas seqüências de caixas de 1966 exposta na Dwan Gallery, em Nova

York, que ostenta seis polígonos regulares de 40’ de lado dispostos lado a

lado em cinco intervalos regulares de 10’ (= lado/4), dispostos a 40’ (= 1 x

lado) do teto e a 20’ (= lado/2) do solo. A obra toda é uma equação que

leva em consideração um recorte do espaço real.

Outro tipo de seqüência regular “de parede” são as já célebres

“colunas”. O artista empilha módulos hexagonais usando uma equação

semelhante à das seqüências de objetos cubóides da experiência acima

descrita. O modo de execução é simples: o pé-direito da sala de

exposição é dividido por um número ímpar e a medida obtida será

distribuída entre peças e intervalos seqüencialmente do chão até o teto,

“começando” e “terminando” com intervalos. A meta é abrir espaço para

uma disposição intelectual visando a experiências concretas através do

embate direto com a obra. Assim, o olhar do observador, ao fazer um vai-

e-vem do solo ao teto, é levado a constatar os efeitos perversos da

perspectiva, já que os elementos “positivos” e “negativos”, ambos

idênticos em suas medidas, são percebidos como se tivessem dimensões

diversas.

Mas, o que constitui, afinal, essas obras? As unidades ou os

intervalos? Os vazios ou os cheios? São escalonamentos de intervalos ou

de elementos matéricos? “Falam” de ausências ou de presenças? De

positivos ou negativos? Trata-se de empilhamentos verticais de

substâncias opostas (?) intercaladas, e que guardam, sem dúvida, a

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atmosfera rítmica da Coluna sem fim de Constantin Brancusi. Nas de

Judd estão encadeados valores proporcionalmente semelhantes numa

perfeita totalidade e poderiam também supor uma continuidade infinita

como a do mestre romeno.

Estas são obras especialmente representativas da tendência

homeless da Minimal Art: permanecem na condição de projetos até

negociarem um abrigo cultural, um sítio urbano ou um teto institucional.

Donald Judd administrava o repasse de suas criações, na maioria das

vezes, com poderosas instituições públicas ou comerciais, vingando os

tempos em que os assuntos mercadológicos não eram da seara dos

artistas.

Igualmente interessantes são as barras horizontais destacadas da

parede e sustentadas por uma seqüência lógica de peças hexagonais

intercaladas por intervalos e que, no entanto, sugerem o contrário – estas

é que estão suspensas pela barra contínua. Fora tal jogo ótico, a

progressão é complexa: as dimensões das cinco unidades decrescem da

esquerda para a direita obedecendo a uma operação que as reduzem em

50% a cada unidade subseqüente. Os intervalos são quatro e seguem

uma ordem crescente na mesma proporção das unidades, sendo a

dimensão do primeiro determinada pela da última das cinco unidades.

Operando na clave dos mais simples enigmas racionais e nada mais, o

indivíduo é chamado a desvendá-los: The series doesn’t mean anything to

me as mathematics.27

Judd também determinou algumas caixas isoladas que têm suas

especificidades garantidas através do material ou das alterações sobre

alguma de suas faces. É o caso do polígono em latão extremamente

polido que reflete o piso de cor semelhante, fingindo não estar ali. Funde-

se de tal modo com o ambiente que sugere uma aparição virtual cujas

arestas definidas nos remete àqueles filmes de ficção científica em que

uma coisa desconhecida – sem dúvida, produto de “mentes evoluídas” –,

embora imaterial e sem entradas aparentes, pode abduzir num golpe de

sucção quem dela se aproximar. São objetos pequenos para que melhor

27 John Coplans. “An Interview with Don Judd”. Artforum, junho de 1971, p. 49.

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mimetize o ambiente e brinque com o espectador. Este, ao se aproximar

do paralelepípedo, tem suas pernas capturadas pelo espelho ao mesmo

tempo em que vê uma pessoa caminhando em sua direção e vice-versa

quando dele se afasta. Esta meia-pessoa ficará lado a lado com o

observador, mas ele jamais a verá por inteiro.

Os cubos de Smith reaparecem domesticados nas instalações de

Judd: são as arrojadas caixas solitárias com faces em plexiglas coloridos

e transparentes. Elas afastam as dúvidas de que nada guardam, mistérios

ou enigmas. São presenças pura e simplesmente. As cores utilizadas pelo

artista são muito mais dóceis que o negro do Die ou da Black box. Não

mais ameaçarão os exegetas da arte metafísica, como Fried. Embora

continuem plenos de ausências.

Também confeccionadas para o solo, conhecemos as configurações

seqüenciais que ocupam uma superfície quadrangular resultante do

arranjo de peças retangulares. É o caso das séries de “molduras-duplas”,

confeccionadas em aço inoxidável ou alumínio esmaltado, enfileiradas

horizontalmente e guardando intervalos idênticos entre elas. Cada uma

dessas peças é formada por duas molduras tradicionais de laterais

chanfradas, coladas por trás, de modo que seus lados apresentam um

perfil em “V” ou “U”. As laterais do objeto hexagonal resultante desta

arrumação se alternam em vazadas (2) ou listradas (4). A peça se

expande no espaço à sua volta através dos desenhos de luzes e

sombras, dos reflexos da cor ou do brilho do metal. Estabelece jogos

variados de vazios e cheios, de efeitos de vários patterns simultâneos. A

altura desses objetos alcança, em alguns casos, até 2 metros e a área,

até quatro, fazendo com que o observador tenha uma vivência

verdadeiramente espacial dos muitos efeitos visuais disparados pela obra.

Ou seja, as peças de Judd se pretendiam, ao fim e ao cabo,

realidades completas em si mesmas – os cheios e os vazios, os positivos

e os negativos do mundo estão à mostra, sem metáforas. As dúvidas

quanto às intensidades destas substâncias ficam por conta da

perspectiva. Supostamente literais, esses fatos estéticos apresentam-se

eles mesmos aos espectadores, no senso físico e não como

representação de algo além do que são materialmente, não contêm nada

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a mais do que ali está sendo oferecido à visão – presenças e ausências

facilmente verificáveis. A Minimal Art trabalha com um sistema binário

simples, porém houve quem duvidasse de tamanha franqueza. E, é

justamente esse convívio simbiótico com o suspense - talvez a única

coisa “abrigada” pelo trabalho de Judd -, o que pode explicar a eficácia da

estratégia do artista.

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