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4 Modelos em Conexão: Administração Reguladora e Argumentação Jurídica. (...) o debate sobre um novo tipo de relações em desenvolvimento entre o político e o administrativo situa a regulação e suas agências como um prenúncio de novos rumos para o governo e para a democracia. Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Este capítulo representa o cerne do problema desta dissertação: trata-se de discutir as relações dialéticas entre a teoria da argumentação e o modelo regulador implantado. Na busca de “novos referenciais democráticos na gestão dos interesses públicos”, o Estado regulador, propagado sob a constelação pós-positivista, toma como pilares de sua atuação valores que outrora assumiam papéis apenas secundários, tais como a legitimidade e a eficiência. 1 Estes valores traduzem uma democracia material, a qual deve ser efetivamente implementada e fiscalizada mediante a justificação de todas as decisões do Poder Público. Deve-se notar que a justificação das decisões abre espaço para considerações não apenas restropectivas, mas também prospectivas, atentando-se para as conseqüências que delas podem advir, as quais devem ser ponderadas mediante a valoração dos princípios em jogo. Cumpre frisar que a atividade de justificação das decisões é tanto mais importante quando se trata de atividades administrativas que envolvam um juízo discricionário, introduzindo a Administração Pública na “era da motivação”, conforme salientou Diogo de Figueiredo Moreira Neto. 2 Todas essas preocupações convergem para o reconhecimento, no campo da metodologia e teoria jurídicas, da importância do paradigma retórico- argumentativo, inserido nas mais variadas vertentes de teorias da argumentação jurídica. As perspectivas de Perelman, Habermas e Alexy, só para citar os principais representantes da nova tendência, acenam para a necessidade de justificação das decisões públicas, fruto de uma racionalidade argumentativa. De 1 Moreira Neto chega a afirmar que reside “ na experiência da regulação um dos mais nítidos prenúncios da passagem juspolítica de uma democracia da representação para uma democracia da eficiência”. Direito Regulatório, p. 158. 2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 100.

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4Modelos em Conexão: Administração Reguladora eArgumentação Jurídica.

(...) o debate sobre um novo tipo de relações em desenvolvimento entre o políticoe o administrativo situa a regulação e suas agências como um prenúncio de novosrumos para o governo e para a democracia.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto.

Este capítulo representa o cerne do problema desta dissertação: trata-se de

discutir as relações dialéticas entre a teoria da argumentação e o modelo regulador

implantado.

Na busca de “novos referenciais democráticos na gestão dos interesses

públicos”, o Estado regulador, propagado sob a constelação pós-positivista, toma

como pilares de sua atuação valores que outrora assumiam papéis apenas

secundários, tais como a legitimidade e a eficiência.1 Estes valores traduzem uma

democracia material, a qual deve ser efetivamente implementada e fiscalizada

mediante a justificação de todas as decisões do Poder Público. Deve-se notar que

a justificação das decisões abre espaço para considerações não apenas

restropectivas, mas também prospectivas, atentando-se para as conseqüências que

delas podem advir, as quais devem ser ponderadas mediante a valoração dos

princípios em jogo. Cumpre frisar que a atividade de justificação das decisões é

tanto mais importante quando se trata de atividades administrativas que envolvam

um juízo discricionário, introduzindo a Administração Pública na “era da

motivação”, conforme salientou Diogo de Figueiredo Moreira Neto.2

Todas essas preocupações convergem para o reconhecimento, no campo da

metodologia e teoria jurídicas, da importância do paradigma retórico-

argumentativo, inserido nas mais variadas vertentes de teorias da argumentação

jurídica. As perspectivas de Perelman, Habermas e Alexy, só para citar os

principais representantes da nova tendência, acenam para a necessidade de

justificação das decisões públicas, fruto de uma racionalidade argumentativa. De

1 Moreira Neto chega a afirmar que reside “ na experiência da regulação um dos mais nítidosprenúncios da passagem juspolítica de uma democracia da representação para uma democracia daeficiência”. Direito Regulatório, p. 158.2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 100.

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fato, afastado o antigo dogma do raciocínio geométrico como modelo para

qualquer tipo de ciência que se pretendesse racional, assumiu-se, nos domínios

práticos, uma racionalidade especificamente argumentativa, pois que lida com

valores e não com dados ou experimentos.

Conforme já assinalado, nos campos eminentemente deliberativos, o

modelo subsuntivo é insuficiente para dar conta de todos os tipos de raciocínio

utilizados, e jogar isso para escanteio da razão é uma atividade extremamente

perigosa. Para este perigo, atentou Perelman, que, com o seu Tratado da

Argumentação, reconheceu, pioneiramente, um modelo de racionalidade

argumentativa estribada numa lógica jurídica. Este modelo foi tomado como

ponto de partida por outros autores, como Habermas e Alexy, que assumiram uma

nova perspectiva argumentativa, centrada fundamentalmente na justificação dos

raciocínios práticos através de procedimentos.

A preocupação com resultados práticos ocupa lugar central no paradigma

regulatório, postulando aliar “a maior satisfação do interesse público substantivo

com o menor sacrifício possível de outros interesses constitucionalmente

protegidos”.3 Por outro lado, as decisões reguladoras, por lidarem com interesses

públicos, devem, para serem justas, revestir-se de um referencial de juridicidade.

Por decisão justa, ressalta Moreira Neto, entende-se aquela que ostente não só o

caráter de regular, como expressão da igualdade de tratamento para idênticas

circunstâncias, e a tal corresponde a noção de justiça formal que Perelman tanto

trabalhou, como também aquela que esteja em condições de obter a concordância

de todos os concernidos, ou seja, referente à sua aceitabilidade. Este último

elemento é de especial valia para as decisões regulatórias, eis que, diante da rápida

e freqüente mutabilidade das circunstâncias econômicas, assim como diante das

pautas principiológicas abertas que operam, pouco se espera delas no sentido de

regularidade, porém, e como contrapartida, a consensualidade é essencial à sua

legitimação.

Por outro lado, como as normas reguladoras, absolutamente distintas das

normas produzidas tanto pelo Poder Legislativo, quanto pelo Chefe do Executivo

no exercício de seu poder regulamentar, não definem um interesse público

específico a priori, devendo o mesmo ser ponderado junto com os outros

interesses protegidos pela ordem jurídica, há de ser ressaltada a importância de se

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garantir uma abertura processual à sociedade. Esta é alimentada por uma

motivação suficiente das decisões administrativas, que permite analisar a sua

razoabilidade na definição do interesse público específico, mediante o uso de

técnicas de ponderação de interesses4. Através destas é que se estabelcerá uma

decisão pragmática calcada na motivação de todos os interesses em pauta: o

interesse geral representado pela agência reguladora, os interesses individuais,

coletivos e difusos dos usuários e consumidores, e os interesses privados dos

agentes econômicos produtores.5

Daí porque, as decisões reguladoras setoriais devem estrita obediência ao

devido processo legal, no qual serão motivadamente considerados todos os

aspectos conflitivos, de preferência com ampla participação social. Na esteira de

Moreira Neto, pode-se dizer que o grau de democraticidade conferido às agências

dependerá essencialmente do nível de abertura do processo decisório à

participação social.6

4.1Atuação das Agências Reguladoras Independentes : Riscos daAtividade

Quando a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 aderiu a

um modelo econômico descentralizado, cujo mote encontra-se nos princípios da

propriedade privada e da livre iniciativa, abriu o caminho para uma Reforma do

Estado que consolidaria, tempos depois, os postulados do Estado regulador. A

esse respeito, Francisco Mauro Dias estabelece que “(...) no regime constitucional

vigente, a livre iniciativa não é apenas fundamento da Ordem Econômica, mas do

próprio Estado de Direito Democrático por ele instituído(...)”.7

O papel subsidiário conferido ao Estado é sublinhado no artigo 173 da

Constituição, que assim dispõe: “Ressalvados os casos previstos nesta

Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será

permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante

3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 93.4 Sobre o tema, ver SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal.5 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 132.6 Idem, p. 95.7 DIAS, Francisco Mauro. “Intervenção Regulatória e competitividade internacional”, p. 152.

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interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Ou seja, a Constituição pretendeu

que o agente econômico no Estado brasileiro fosse, por excelência, o particular,

ou melhor, o agente privado. Por outro lado, com relação à prestação de serviços

públicos, o artigo 175 estabelece que: “incumbe ao Poder Público, na forma da lei,

diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de

licitação, a prestação de serviços públicos”. Aqui, embora a Constituição pretenda

que a titularidade do serviço permaneça com o Poder Público, entende que a sua

execução poderá ser delegada ao particular. Em ambos os casos, tanto no caso de

atividade econômica stricto sensu, como no caso de serviços públicos, vislumbra-

se uma retirada do Estado, o que implica uma atuação menos concentrada dessas

atividades.

O novo desenho constitucional indica uma postura estatal menos

centralizadora e menos imperativa: ao princípio da subsidiariedade soma-se o

princípio da participação, como essenciais ao atingimento eficiente dos fins

colimados pela administração pública. Decerto, além desses, outros vários

aspectos advindos da adoção do Estado regulador podem ser assinalados, nas

palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

(...) a administração pública especializada em setores críticos de interesses, adeslegalização de matérias, a separação entre a formulação de políticas públicas ea administração pública, a abertura de espaços de negociação para o PoderPúblico e a intensa processualização administrativa, inclusive com a introduçãode conceitos (...) de participação dos agentes dos setores interessados, deresponsividade e de visibilidade.8

O Estado regulador pode agir fundamentalmente de duas formas:

restringindo a liberdade de iniciativa econômica ou trazendo “(...) em seu bojo

medidas que contêm indicações, incentivos, apoios ou auxílios aos agentes

econômicos(...)”.9 Sobressaem, portanto, as funções de fiscalização, de incentivo e

de planejamento, tal como dispõe expressamente o artigo 174 da Constituição. O

Estado vê assim deslocada a sua atuação empresarial em prol de uma ampliação

de sua função na regulação, conservando, com isso, um importante papel

econômico na condução da sociedade.

Para Habermas, o Estado regulador apresenta as seguintes características

principais, sublinhadas nas palavras de Alice Leal Wolf Geremberg: 8 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 76.9 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 165.

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a) o Estado procura interferir nos sistemas funcionais da sociedade através

de sistemas de negociação não hierarquizados, procurando exercer uma

política de opções que vá além do estímulo e refreamento de posturas e

passe por um planejamento. Isso é dificultado pelas barreiras impostas

pelos sistemas funcionais a uma intervenção direta;

b) O direito passa a funcionar como um catalisador das transformações

internas, a política o coloca como uma forma a partir do qual cada

sistema organizará suas preferências. Com isso, o direito se torna uma

linguagem comum para os problemas relevantes para toda a

sociedade(...);

c) o conteúdo da democracia deve ser mantido na passagem do plano de

formação democrática da vontade para o das relações intersistêmicas. Os

processos que regulam as relações entre os sistemas são os democráticos

que se valem de um discurso racional capaz de permitir uma base de

consenso mínima para a existência do dissenso. 10

Deve-se notar que a função reguladora do Estado abrange uma grande

variedade de atribuições, tais como informativas, planejadoras, fiscalizadoras e

negociadoras, bem como normativas, ordinatórias, gerenciais, arbitradoras e

sancionadoras.11 Tal complexo de atribuições será cometido a um único órgão

regulador para cada setor específico da atividade econômica ou social.12

O caminho para a concretização desses postulados foi aberto, inicialmente,

pelas modificações introduzidas por Emendas à Constituição de 1988, que passou

a prever expressamente a existência dos órgãos reguladores para os setores de

telecomunicações (Emenda Constitucional n. 8/95) e de petróleo (Emenda

Constitucional n. 9/95). Contudo, apenas com a criação das agências reguladoras,

a partir fundamentalmente do Programa Nacional de Desestatização, hoje

regulado pela Lei n. 9491/97, é que efetivamente se começou a pôr em prática os

postulados do Estado Regulador.

Por outro lado, a intervenção do Estado na ordem econômica via lei é

admitida como forma de equilibrar os diversos interesses. O Cödigo de Defesa do 10 GEREMBERG, Alice Leal Wolf. Op. Cit, p. 106-10711 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 107.

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Consumidor (Lei n. 8078/90), a Lei de Defesa da Concorrência (Lei n. 8884/94),

bem como a Lei de Concessões (Lei n. 8987/95, alterada pela Lei n. 9074/95),

incluem-se no escopo mais geral de garantir segurança jurídica à sociedade.

Deve-se ressaltar ainda, junto com Alexandre Santos de Aragão, que se

encontra entre os seus interesses primários o relativo à proteção e ampliação da

concorrência, o que é problemático quando se trata de regulação de serviços

públicos, uma vez que, nestes, “(...) a instalação generalizada da concorrência no

setor pode prejudicar a arrecadação das tarifas necessárias à universalização dos

serviços a cargo da concessionária(...), pois a exclusividade ou o domínio do

mercado pode ser um importante fator da receita necessária à universalização do

serviço. Daí porque, quando a transição do monopólio à competição envolve

utilidades públicas de fruição essencial para a sociedade, surgem outros objetivos

regulatórios que sobrepujam a importância da proteção da concorrência.13

José Maria Machado Gomes sublinha a importância que a regulação pode

assumir no tocante à diminuição das falhas do mercado, a saber, as externalidades,

o poder de mercado e a informação assimétrica.14 Para os estreitos limites deste

trabalho, cumpre notar a última falha, que diz respeito à questão das informações

assimétricas. O que ocorre é que, “(...)na prática, o concessionário é mais bem

informado sobre as condições da indústria do que os reguladores, e seu

comportamento apenas pode ser monitorado de modo imperfeito”.15 O risco que

se contém nessa assimetria de informações consiste sobretudo no fenômeno da

captura16 do órgão regulador.

Decerto, a especial dinâmica que se estabelece no processo regulatório

entre reguladores e regulados engendra a possibilidade de ocorrência de tal

12 Em âmbito federal, pois no âmbito dos estados federados, tivemos o exemplo do Rio de Janeirocom a criação da agência reguladora dos serviços públicos, referentes a diversos setoresconcernidos nessa categoria.13 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 294.14 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 156. As externalidades, segundo o autor, “(...)ocorrem quando o bem-estar de um agente econômico é diretamente afetado pelas ações deterceiros”. Através de controles diretos ou de incentivos financeiros, os governos induzem asempresas a reduzirem as externalidades e aumentarem as atividades benéficas. A segunda falhaapontada pelo autor, o poder de mercado das empresas, existe quando empresas com posiçãodominante “(...) sentem-se incentivadas a cobrar preços superiores aos custos marginais associadosà oferta”. Op. Cit., p. 160.15 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 160.16 Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o risco de captura traduz-se também na falsaindependência, que consiste em subordinar politicamente a agência reguladora ou pela criação detutelas políticas indevidas sobre os dirigentes colegiados ou pela supressão das garantias de seusmandatos, ou ainda através de pressões indiretas.

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fenômeno, que se verifica “(...) quando as exigências regulamentares passam a se

amoldar às necessidades e interesses das unidades reguladas ou de algumas delas.

(...) A captura do regulador ocorre quando o órgão regulador passa a identificar o

bem comum com os interesses da indústria que é por ele regulamentada”.17 Além

do problema da informação assimétrica, outro fator contribui para agravar o

problema da captura: trata-se da setorização do ordenamento, pois gozando de

formação técnico-profissional especializada no setor, os seus dirigentes tendem a

terem um contato mais estreito e freqüente com os agentes econômicos regulados.

Nesse sentido dispõe Aragão que:

(...) pela necessidade constante de obtenção de informação dos setores reguladose pelo fato destes, com o passar do tempo, possuírem maior interesse na agênciaque os consumidores ou o Poder Público (...) leva a uma certa identificação entrereguladores e regulados e possível atenuação dos vínculos de fiscalização econtrole originariamente previstos. 18

Como forma de evitar a “captura” dos órgãos reguladores, entende Aragão

que devem “ser prescritas normas e garantias para que os seus titulares não atuem

no interesse dos grupos para os quais tenham trabalhado ou para os quais (...)

pretendam trabalhar depois de deixarem a direção da agência reguladora”.19

Nesse sentido, ressalta a importância da “quarentena”, prevista na maioria das leis

criadoras das agências, ainda que tal medida não seja capaz de conter, por si só, os

riscos de uma captura.

Paralelamente à diluição dos papéis entre o regulador e o regulado, pode

haver uma confusão entre o agente regulador e o próprio governo, caso em que,

segundo Gomes, “a sistemática da regulação pode ser rompida porque o governo

pode impor condições, exigindo do regulador um tipo de conduta que viole seu

papel original de instrumento de indução da eficiência na indústria”.20 Este tipo de

captura do regulador pelo Poder Público pode assumir diversos aspectos: pode

retirar a competência do órgão regulador, ou ainda retirar a característica de

independência ou os elementos de autonomia que lhe são inerentes. Vale lembrar,

a este respeito, o exemplo da Medida Provisória n. 2.189-3, de 28 de junho de

2001, “que atribuiu à Câmara de Gestão da Crise de Energia uma função que, por

17 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 163.18 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 366.19 Idem, p. 365.20 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 163.

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ser técnica, poderia ser solucionada pelo órgão regulador mediante ponderação de

interesses”.21

Souto admite ainda a possibilidade, muito menos freqüente, do fenômeno

da captura ser realizada pelo consumidor, mediante a organização de greves e

manifestações, desautorizando as ações do regulador através do uso de grupos de

pressão e de instituições oficiais. 22

Outrossim, vale frisar a possibilidade da captura do regulador levar ao

colapso regulatório, que ocorre quando a regulação implementada pela agência

não consegue dar conta das falhas do mercado, ou quando produz efeitos adversos

sobre a eficiência. O risco do colapso regulatório pode se originar ainda de

políticas regulatórias mal formuladas e da falta de capacitação e de recursos para

implementação apropriada das regulações.23

Como forma de solucionar os problemas gerados por um defeituoso

funcionamento da política regulatória, destaca Aragão que

Como sói acontecer em problemas que envolvem a ética no trato da coisapública, a sua solução se dá, mais do que por meios jurídicos instrumentais, pelamobilização e fiscalização cidadã, sobretudo dos grupos de consumidores eusuários interessados, para o que, certamente, as consultas e audiências públicas,cogentes para as agências reguladoras, muito poderão contribuir.24

Além dos riscos da captura, outros problemas podem ser notados no

horizonte regulatório, como o faz Moreira Neto, ao assinalar a deficiente

deslegalização e a fraca participação. A primeira consiste na instituição de um

conjunto normativo sem coerência e sem clara atribuição de competências e de

responsabilidades. Por sua vez, a fraca participação resulta num deficit de

legitimação da atuação das agências, “alimentando a inércia cívica”.25

Diante desse quadro, avulta a importância de as agências reguladoras

serem portadoras de independência, qualificação técnica e recursos materiais.

Também a existência de agentes públicos qualificados poderá contribuir para

evitar os riscos inerentes à atividade. A eficiência da regulação, que implica em

ausência dos riscos da captura do regulador, bem como ausência dos riscos de

colapso, dentre outros, pressupõe o exercício, por parte das agências, de uma

21 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 293.22 Idem, p. 293.23 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 164.24 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 367.25 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 214.

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autonomia reforçada, à qual se dá o nome de independência. Como forma de

balancear essa independência, ou mesmo como forma de legitimá-la, as leis que as

instituem prevêem mecanismos de participação social, os quais merecem ser

concretizados.

No Brasil, há ainda de ser ressaltado o fato de não existir um estatuto

jurídico das agências reguladoras, com a ressalva da Lei n. 9986/00, que prevê

normas para o regime de contratação de pessoal, o que dificulta enormemente o

trabalho de uniformização dessas entidades, gerando um clima de incerteza e

intranqüilidade que não favorece as suas atividades.

4.2Da Participação

A atuação das agências reguladoras, como já assinalado, possui um caráter

técnico, denotado não só na formação técnica que a lei impõe aos seus dirigentes,

mas principalmente pelo fato de seus atos e normas demandarem conhecimento

técnico e científico especializado para que possam ser emanados, aplicados e

fiscalizados. Contudo, mesmo em se tratando, em princípio, de decisões

eminentemente não políticas, a técnica não é capaz de proporcionar, conforme

ressaltou Bachelet, soluções unívocas a determinados problemas, sempre

existindo uma margem de discricionariedade “dentro da qual a Administração tem

que escolher entre as diferentes soluções proporcionadas pela técnica, o que

deverá ser feito segundo critérios que não são técnicos(...), havendo um momento

claramente político nessas escolhas”.26 Pelagatti destaca que “esta concepção da

ciência e da técnica como conhecimentos neutros tem a finalidade de esconder a

incindível relação entre saber técnico e decisão política.27 Nesse sentido, é

fundamental uma política participativa que equilibre esse pretenso tecnicismo,

que, como não apaga a margem de discricionariedade por completo, e por gozar,

consoante afirma Aragão, de um deficit democrático que lhe é co-original, deve

contar com aparatos de legitimidade distintos do usual. Assim, tanto a eficiência

como a participação são critérios aferidores dessa legitimidade material. 26 Cf. DAROCA, Eva Desdentado. Los Problemas Del Control Judicial de la Discrecionalidad.Apud. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 324.

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Decerto, inseridas num modelo mais fluido e consensualista do Direito, as

agências reguladoras buscam pautar suas decisões em critérios de eficiência e de

legitimidade para o exercício da discricionariedade técnica, de muito maior

complexidade que a conhecida supremacia do interesse público. A eficiência,

traduzida no binômio maximização de benefícios – minimização de custos, e a

harmonia participativa são as funções básicas desses entes, que buscam legitimar

suas decisões através de procedimentos participativos. Cumprem, assim, os

requisitos de uma democracia material, e não apenas formal. Segundo Aragão,

(…)as agências reguladoras são a sede por excelência da manifestação doprocesso de consensualização e flexibilidade pelos quais vem passando o DireitoAdministrativo contemporâneo.28

O princípio da participação, introduzido como legitimador necessário dos

processos de tomada de decisão e de feitura de normas pelas agências, traz como

principal efeito uma conexão administrativa imediata e despolitizada entre a

agência e o administrado interessado. Ou seja, uma conexão que passa pela

autonomização dos sujeitos, que se vêem partícipes concretos da implementação

das políticas públicas estabelecidas pelo legislador democraticamente eleito.

De fato, através da participação, a nova perspectiva da administração

pressupõe uma “autonomização dos sujeitos”, o que possibilita um alargamento

do espaço público estatal ou não estatal. Para Aragão, a autonomização importa

em uma participação em processos formais de tomada de decisão, com o que se

alcança a sua legitimidade democrática. Redimensiona-se, assim, a relação

Estado-sociedade, para fazer com que o Estado se transforme num “espaço de

mediação ético-política”.29

Nesse sentido, Moreira Neto assinala como o surgimento das agências

reguladoras independentes no Brasil engendrou a necessária separação entre o

governo e a administração, de modo que se pode falar agora em dois tipos de

legitimação: a política, calcada no modelo de democracia formal, representativa; e

27 Cf. DAROCA, Eva Desdentado. Los Problemas Del Control Judicial de la Discrecionalidad.Apud. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 325.28 Idem, p. 320.29 Idem, p. 81.

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a legitimação social, que se assenta numa democracia substancial, e deve contar,

para isso, com a participação cidadã.30 Nesse sentido, afirma ser

(...)fundamental que essa nova e especial legitimidade administrativa dosdirigentes das agências reguladoras deva se fundamentar nas premissas dademocracia substancial, ou seja: não mais pela legitimidade originária dainvestidura, mas pela legitimidade corrente, permanentemente aferida naeficiência de seu desempenho, inclusive através de mecanismos da participaçãodemocrática.31

A análise da participação e dos instrumentos encarregados da sua

concretização impõe-se assim como necessária para que da inserção das agências

reguladoras no cenário brasileiro se possa tirar o melhor proveito para a

consolidação de uma democracia substantiva. Para tanto, é fundamental o

fortalecimento de uma cidadania ativa, fundada no reconhecimento dos sujeitos

como autores e destinatários das normas e de todas as decisões do Poder Público,

fato que Habermas já havia atentado como necessário para o plano da validade das

normas jurídicas. A crise de legitimidade que atingiu as esferas de poder, exigiu

uma atenção maior a questões não equacionadas em termos de coerção e de

imperatividade estatal, colocando em relevo a necessidade de justificar o discurso

público, visando conferir-lhe maior eficiência, resultado inevitável de um grau

mais elevado de legitimidade.

À legitimidade segue-se o cumprimento das normas e decisões de forma

menos custosa, pois que mais consentida, exigindo do Poder Público não uma

postura de coação e de constrangimentos, mas de incentivos e fiscalização. Daí

porque ao Estado é benéfica uma política de participação que conduza a

resultados mais concertados .

4.2.1Na Esteira de um Modelo mais participativo : A Representaçãodo usuário

Enquanto a percepção do administrado como assujetti não se fizesse

ultrapassar por outra menos passiva, seria inconcebível cogitar-se de uma atitude

social mais participativa. Assim é que a representação do administrado como

30 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório.31 Idem, p. 162-163.

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usuário, surgida no início do século XX, representou um avanço nesse sentido,

sedimentando os percalços de uma Estado servidor, que, nesta condição, deveria

satisfazer às expectativas da sociedade. Uma administração menos cerrada deveria

ser capaz de possibilitar uma maior integração da sociedade às decisões e atos do

Poder Público, o que malogrou diante de uma postura excessivamente paternalista

do Estado. Contudo, abriu o caminho para o reconhecimento da necessidade da

participação dos administrados na implementação de políticas públicas, o que

inegavelmente, por si só, representou um avanço.

Antes de adentrar o assunto, cabe ressaltar uma associação corriqueira

estabelecida entre os termos usuário e consumidor, que, no entanto, não deve ser

tida como necessária. De fato, a Constituição de 1988 deu sede distinta aos

conceitos, eis que reservou aos usuários lei específica, conforme previsto no artigo

37, §3o, sendo certo, por outro lado, que o Código de Defesa do Consumidor é

norma geral sobre produção e consumo, comportanto disciplina também

específica.32

O específico tratamento conferido aos usuário ocorre por força de uma

situação de todo peculiar, e isso desde o seu nascimento. Jacques Chevallier

assinala como a introdução, em inícios do século XX, dos termos usuários e

serviços públicos, traduziu uma nova relação da administração pública com os

administrados, firmada na necessária diminuição da imperatividade de seu poder.

Colocado como beneficiário das prestações estatais, o usuário assume o principal

papel destinado aos administrados, ao lado de outros como o de parceria e de

sujeição. E a importância do vocábulo atinge tal monta que chega a esgotar o

sentido do termo administrado, tentando, com isso, transformar-se no modelo e

matriz das relações entre administração e público. Esse esforço insere-se na

tentativa de superar as conotações negativas de dependência, de passividade e de

sujeição que o termo administrado ressuscita.

Concebido doravante como sujeito de direitos, essa nova representação do

administrado desenvolveu-se junto à nova perspectiva adotada pela administração

pública. Ambos caminham para uma relação dialogal, centrada no pressuposto de

atendimento dos serviços públicos, cujo núcleo cristaliza-se em três princípios

básicos: continuidade, igualdade e possibilidade de a Administração alterá-los, ou

seja, mutabilidade.

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Contudo, Chevallier nota que o espectro do administrado faz-se sentir na

figura de um usuário cativo, submisso aos serviços públicos: “pouco sensíveis e

fracamente receptivos às solicitações do público, os serviços públicos tendem à

orientar sua ação em função de variáveis que lhes são próprias e a ditar sua lei aos

usuários”.33 Decerto, através de uma construção ideológica que faz da

administração o garante e defensor do interesse geral, ela assegura a sua

supremacia: como cabe à administração, em última instância, conceituar o

interesse geral a ser satisfeito no caso concreto, pode inclusive, nessa

conceituação, ir de encontro aos interesses dos próprios usuários. Legitima-se,

assim, o primado da oferta administrativa sobre a demanda social, escoando o

interesse geral em prol da própria administração. Assim, ressalta o autor, as

situações concretas de dependência dos usuários não desaparecem, apenas tomam

formas mais sutis, e, por isso mesmo, mais eficazes.

Alain Plantey destaca que, a partir da compreensão, por parte dos poderes

públicos, de que a adesão e a cooperação dos usuários podem contribuir

decisivamente para o sucesso de suas empreitadas, passou a administração a

dispensar esforços para uma maior informação dos usuários. Informar implica em

sair do contexto de desigualdade: de um lado, trata-se de dar ao administrado um

melhor conhecimento de seus direitos e de suas possibilidades e uma mais justa

percepção das motivações da administração; por outro lado, trata-se do cuidado da

administração de saber as opiniões e os desejos de seus parceiros. Esta

constatação faz com que o Estado exija cada vez mais do administrado uma

postura ativa, seja através do preenchimento de declarações, pelas quais ele se faz

conhecer pela administração, seja através das pesquisas e verificações que o

levam a participar ativamente de seu próprio controle.

Essa participação é essencial à nova representação pretendida pela

administração pública, pois, nas palavras de Chevallier, contribui à socialização

do administrado, diminuindo as reações de rejeição em face da administração, e

favorecendo a aceitação das suas disciplinas.34 Opera, assim, um efeito de

normalização que assegura certos tipos de comportamento, cujo controle se faz

pela via da auto-disciplina dos usuários.

32 SOUTO, Marcos Juruena Villela Souto. Op. Cit, p. 351.33 CHEVALLIER, Jacques. “Figures de L’usager”, In: Psychologie et Science Administrative, p.44.34 Idem, p. 46.

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As reações da opinião passaram a acompanhar os projetos mais

importantes da administração, que deve, para tanto, conhecer melhor os fatores

sociológicos e psicológicos da ação. Nesse sentido, a participação, como um meio

de coletar informação, tende a reforçar a eficácia do poder.

A emancipação do usuário passa, portanto, por uma modificação profunda

da lógica da ação administrativa, que oscila entre diversas concepções possíveis.

Contudo, como ator, parceiro ou cliente, o usuário não consegue se desprender do

tradicional contexto de submissão à administração. O tradicional distanciamento

entre a administração e os usuários, que se dava pela utilização de formulários ou

de guichets de atendimento, é substituído por um distanciamento que se calça na

diferenciação dos papéis de cada um: os agentes, que detêm o monopólio do saber

e o privilégio da competência, estabelecem as diretrizes de comportamentos dos

usuários. O novo distancialmento funda-se, portanto, na separação entre

normalizadores e normalizados.

Em suma, Chevallier e Plantey sugerem que as novas representações dos

usuários não trazem uma real emancipação do administrado. As dependências

com a administração não são rompidas de fato, o que pode ser atribuído não só às

fracas instâncias representativas dos usuários, como também à falta de uma noção

acentuada de participação, que conduzam efetivamente a uma influência nas

decisões da administração.

Tal dependência, se é que se pode dizer que no Brasil a Administração

algum dia cumpriu esse papel integralmente, foi golpeada com a crise dos serviços

públicos e das estatais, quando se fizeram sentir os efeitos de uma passividade

cívica profunda. A falta de organização e de institutos fiscalizatórios facilitou,

paradoxalmente, o rápido desgaste do modelo paternalista e a sua decadência

parecia um processo incontornável. Tal foi o processo descrito anteriormente, que

levou ao surgimento avassalador do Estado regulador. Neste modelo, existe uma

expectativa muito grande de participação efetiva da sociedade, refletida na

previsão de mecanismos participativos nas leis insituidoras das agências.

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4.2.2O Instituto da Participação nas Agências Reguladoras

Com o intuito de aumentar o grau de legitimidade não apenas das decisões

e normas das agências, mas também do próprio modelo regulatório, as leis

criadoras das agências reguladoras prevêem mecanismos diversos de participação,

que vão desde a simples obrigação de realização de consultas públicas, passando

pelas audiências públicas, até a institucionalização de um Conselho Consultivo,

órgão permanente integrado na agência. Tais institutos inserem-se na tentativa de

obter uma participação social mais dinâmica. No entanto, essa participação não é

delineada por uma lei geral, restando insuficiente para a sua efetiva

implementação a simples menção nos textos legais criadores das agências. Sem

dúvida, a falta de uma lei geral das agências reguladoras, e, conseqüentemente, a

falta de normatização clara sobre o assunto enfraquecem o instituto, tornando-o

mesmo ineficaz.

No entanto, não se pode negar que o surgimento das agências reguladoras

dá origem a uma forma mais interativa de atuação da Administração Pública,

contando com a participação de importantes setores da sociedade, bem como com

a parceria necessária de órgãos de defesa do consumidor. Moreira Neto assinala

algumas vantagens oriundas dessa política interativa, vantagens de índole tanto

política, como também técnica e fiscal. A vantagem política reside na abertura da

participação ao administrado, fortalecendo a legitimidade das decisões das

agências; a técnica, por sua vez, está na despolitização de decisões, evitando

pressões políticas de grupos de interesse; finalmente, a vantagem fiscal, na medida

em que esses entes podem ser criados sem novos ônus para o Estado,

prescindindo de novos tributos para custeá-los, cobrados diretamente dos

beneficiados dos serviços prestados.

Cabe frisar que a consensualização diz respeito sobretudo à concertação,

na qual a Administração não deixa de atuar unilateralmente, mas procura, antes de

emitir o seu ato, obter o assentimento dos sujeitos envolvidos. Ou seja, a

Administração continua com a palavra final sobre os assuntos, daí porque, para

obter uma base para a sua decisão, deve fazer uso de técnicas de convencimento e

de persuasão, que possam levar a decisões mais eficazes. É que, de acordo com

Marcos Juruena Villela Souto, a participação não deve apenas ser facultada, mas

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perseguida, sendo inclusive desejáveis, para tal desiderato, “consultas específicas

para a obtenção de contribuição efetiva”.35 Decerto, para agir legitimamente, a

Administração Pública deve propiciar o espaço público de discussão para tentar

alcançar o acordo: “a magnitude da regulação é, em princípio, diretamente

proporcional ao seu nível de consensualização, seja ela concertada ou

contratada”.36

A administração concertada, há muito em voga na França, conta com o

apoio de fortes mecanismos de participação dos administrados: os comitês de

usuários trazem a possibilidade de um diálogo direto entre a administração e os

atores sociais, diminuindo-lhes a distância. Como forma de consultação coletiva,

leva à uma resposta comum, que é necessariamente mais motivada e flexível.

Ainda que o seu resultado seja apenas facultativo, sempre apresenta o interesse de

melhor informar o responsável e associar à preparação da decisão quem

contribuirá à sua execução. Antes da elaboração dos textos, esses procedimentos

se generalizam pois eles têm igualmente a vantagem de facilitar a aceitação das

assembléias parlamentares.

O princípio da consulta não se limita às decisões individuais, mas estende-

se à organização do serviço. A composição paritária das comissões e comitês

consultativos, que se multiplicaram em centenas na França, teve por efeito

reforçar o caráter corporativo da função pública, limitando o poder hierárquico,

trazendo como efeito uma tendência de a autoridade seguir os pareceres que lhes

são dados. Aliás, Plantey assinala que numerosas sao as comissões que tem um

poder de decisão ou cujo parecer é de determinado grau que sempre é seguido.

Nesse sentido, reconhece que, em geral, os conselhos consultativos realizam uma

forma muito completa de participação, notadamente sobre o plano das

deliberações preparatórias, da coordenação de estudos, da síntese de pesquisas, da

difusão de informação, da ligação entre os serviços, da explicação das motivações.

A concertação, como a etapa mais elaborada desse processo, diz ele, faz com que

as partes coincidam suas atitudes e suas intervenções ulteriores a fim de dar efeito

às decisões que lhes são convenientes. Assim é que ela pode realizar uma

verdadeira associação entre os particulares e o Estado, a quem ela permite regular

importantes dificuldades sem ter de recorrer à coerção.

35 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 82.36 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 114-115.

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Moreira Neto denota o caráter procedimental da concertação da

administração estatal. Em nossa ordem constitucional, o caráter participativo do

processo é uma garantia implícita, decorrente de diversos dispositivos

consagrados como direitos fundamentais, assegurada pela redação do artigo 5o, §

2o, da Constituição, que assevera que “os direitos e garantias expressos nesta

Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela

adotados (...)”. Especificamente em relação ao usuário dos serviços públicos, o

princípio da participação encontra-se expresso, desde a modificação introduzida

pela Emenda Constitucional n. 19/98, no artigo 37, §3o, da Constituição da

República de 1988, nos seguintes termos:

Art. 37 A administração pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes daUnião, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aosprincípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e,também, ao seguinte:§ 3- A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administraçãopública, direta e indireta, regulando especialmente:I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral,asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliaçãoperiódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atosde governo, observado o disposto no art. 5o, X e XXXIII;III – a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo decargo, emprego ou função na administração pública.

Oriundo do princípio democrático, a participação possibilita uma maior

contribuição da sociedade na feitura de normas e tomadas de decisões das

agências, sendo imprescindível à sua legitimidade e eficiência. Nas leis

instituidoras das agências, o princípio é instrumentalizado principalmente através

de audiências públicas e de coletas de opinião. Nesse sentido, ressalta Moreira

Neto que:

(...)o instituto da audiência pública é um processo administrativo de participaçãoaberto a indivíduos e a grupos sociais determinados, visando ao aperfeiçoamentoda legitimidade das decisões da Administração Pública, criado por lei, que lhepreceitua a forma e a eficácia vinculatória, pela qual os administrados exercem odireito de expor tendências, preferências e opções que possam conduzir o PoderPúblico a decisões de maior aceitação consensual, esclarecendo que a eficáciavinculatória, na fase instrutória implica que os subsídios recebidos só podem sercontrariados pelo órgão público competente para decidir sob motivação realista e

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razoável, ao passo que as diretrizes recebidas em fase decisória, ao revés, nãopodem ser afastadas pela Administração, salvo por vício de forma.37

O direito de participação envolve desde o conhecimento da tramitação

reguladora, que atinja aspectos extroversos, até a audiência, a participação e a

negociação ponderada de interesses, sendo esse o traço distintivo de uma nova

postura da Administração Pública, inserida na era da motivação, conforme

destacou Moreira Neto. Como qualquer decisão de conteúdo jurídico, hoje

também para as decisões administrativas reguladoras exige-se um processo

argumentativo, o qual é possibilitado pela motivação de suas atividades, que

exponha “todas as considerações de valor pertinentes para o deslinde da questão a

ser decidida”, incluindo-se aí não somente os valores levantados no caso, como

também, os valores decorrentes do chamado “argumento sobre as conseqüências”,

evitando que “de suas decisões decorram imprevistos e incontroláveis resultados

nocivos para os interesses a serem por ele juridicamente acautelados”.38

As decisões exigem uma ponderação de interesses, envolvendo o Poder

Público, o consumidor e o fornecedor de bens ou serviços, “(...)razão pela qual

deve ser exarada com base em critérios técnicos que assegurem o atingimento do

ponto ótimo, para o que deve ser assegurada a independência do regulador em

relação aos interessados (impedindo-se a chamada captura do regulador)”39. A

consensualidade abre mais espaço de parceria e de complementaridade entre a

sociedade e seus instrumentos políticos, demandando ordenamentos apropriados.

As políticas tornam-se mais efetivas, já que decorrentes do acordo de vontades e

do compromisso livremente assumido e não imposto. 40

Sobre a participação, cabe sublinhar as palavras de Alain Plantey:

Ainsi se développe le contenu juridique et pratique de la notion de participation:en réalité, celle-ci n’est pas tant le partage de l’autorité que celui despréoccupations et des responsabilités. Elle oblige le citoyen à sortir de sapassivité ou de sa crainte, à s’interesser aux finalités et à contribuer aux moyens.Elle contraint l’Etat à lutter contre l’ignorance ou la méfiance et à réduire lespesanteurs, les privilèges et les distances qu’accroît l’institucionnalisation du

37 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Audiências Públicas. Apud SOUTO, Marcos JuruenaVillela. Op. Cit., p. 84-85.38 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 187.39 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 85.40 Idem. Introdução.

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pouvoir. Elle rappelle à l’homme politique que la “langue est le levier dupouvoir.41

Como forma de ampliar a consensualidade e a participação na formação de

normas pelas agências, Souto entende que se deve possibilitar a “provocação

específica da manifestação das corporações envolvidas no segmento regulado

(sindicatos, associações, câmaras de comércio, conselhos profissionais, por

exemplo)”42. Isso ampliaria o debate e ajudaria na consolidação do novo modelo

regulatório de Estado. Outrossim, Moreira Neto assinala que o processo legal deve

ser inteiramente cumprido com base no princípio da participação:

(...) tanto produção como imposição de uma norma reguladora devem iniciar-secom a devida publicidade da intenção da agência, manifestada com a divulgaçãode memória explicativa da oportunidade e da necessidade da norma, com aexplicitação dos trâmites que se seguirão; devem prosseguir com consultas aosinteressados que manifestarem seu interesse na participação convocada, inclusivecom a negociação do conteúdo das pretendidas medidas, e devem terminar com aexplicitação das motivação, em que sejam considerados, positiva ounegativamente que seja, os aportes trazidos pelos interessados.43

O autor assinala ainda que a participação regulatória, como característica

legitimatória, realiza-se pela ampla publicidade, ou seja, pela visibilidade dos atos

e dos processos de regulação, bem como pela garantia de abertura processual aos

administrados, e, finalmente, pela obrigatoriedade ou possibilidade de tomar

decisões com a participação dos interessados.44 Para ele, o princípio da

legitimação pelo processo informa todas as funções extroversas do Estado, dentre

as quais deve ser assinalada a atividade administrativa abstrata reguladora que, do

mesmo modo que a atividade administrativa concreta, poderá alcançar em abstrato

a liberdade e a propriedade das pessoas. Sendo assim, só se legitimará mediante a

observância do devido processo legal, que deve garantir a participação de todos os

interessados através da publicidade, pela intervenção, pelo contraditório e pela

ampla defesa. Isso porque, em sendo o devido processo legal o instrumento de 41 PLANTEY, Alain. Prospective de l’État, p. 233. Desenvolve-se assim o conteúdo jurídico eprático da noção de participação: na verdade, esta não é tanto a partilha da autoridade do que a depreocupações e de responsabilidades. Ela obriga o cidadão a sair de sua passividade ou de seureceio, a se interessar às finalidades e a contribuir para os meios. Ela leva o Estado à lutar contra aignorância ou a desconfiança e a reduzir os ônus, os priviégios e as distâncias que ainstitucionalização do poder faz crescerem. Ela lembra ao homem político que “a linguagem é aalavanca do poder”.42 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit, p. 409.43 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 188.44 Idem , p. 170.

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legitimação das normas reguladoras, devem nele encontrar guarida todos os

interesses, tanto o público como o dos agentes privados setorialmente envolvidos,

devendo ser devidamente equacionados e formalizados nos processos decisórios.

Por outro lado, conforme já se fez menção, a devida motivação é requisito

essencial de qualquer decisão processualizada.45

O aporte do entendimento do processo como legitimador advém da

constatação, no plano jusfilosófico, de uma perspectiva argumentativa que se

assenta, sobretudo, nos processos jurídicos. Para Alexy,

(...) não é possível a elaboração de uma teoria moral material que conduza paracada caso prático uma única resposta correta, mas já o é, uma teoria moralprocedimental que formule regras ou condições para a argumentação práticageral. Uma versão promissora de teoria procedimental moral é a teoria dodiscurso e sua racionalidade é uma racionalidade procedimental universal. Oprocedimento utilizado é o argumentativo e o núcleo da teoria do discurso é oacesso racional à discussão acerca de valores. 46

Em um hard case, não subsumido às normas legais de forma lógica, pois

que confronta princípios garantidos pelo ordenamento jurídico, deve-se proceder à

uma ponderação de interesses que permita decidir sobre o peso específico dos

princípios naquele caso. Assim é que, a par do peso geral de que goza o princípio

no ordenamento jurídico, é preciso, diante do caso concreto, decidir de seu peso

relativo específico ao caso. Por isso é que, segundo Alexy, nenhum princípio pode

arrogar-se o estatuto de absoluto, pois seu peso só pode ser aferido concretamente

e, inevitavelmente, apenas de forma relativa se poderá cogitar de um valor. Isso

explica porque, em sua perspectiva, os topoi sejam deficientes, uma vez que não

permitem estabelecer relações entre os princípios, o que só é conseguido através

de uma argumentação jurídica, que insere definitivamente a moral no plano do

direito. Então, ressalta Alexy, existem três planos que devem se complementar no

ordenamento jurídico: o plano das regras, o plano dos princípios e o plano da

argumentação jurídica, que diz como, sobre a base de ambos, é possível uma

decisão racional.

Assim também se deve entender quanto às decisões regulatórias, inseridas

no âmbito geral dos discursos públicos. Tendo em vista a dificuldade de se

alcançar, por meio da participação, um consenso em matérias substantivas

concernentes à regulação, o que deve ser garantido, como fundamental para a 45 Idem, p. 178-180.

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legitimidade de suas normas e de suas decisões, é a efetiva participação, exigência

de um devido processo legal democrático. Conquanto a agência permaneça com a

última palavra em seus processos, deve possibilitar a mais ampla participação

possível, o que leva à necessidade de motivação dos atos regulatórios, mormente

quando desconformes à opinião obtida pelos instrumentos participativos. Com

efeito, decidir com respaldo social é mais eficiente que decidir contrariamente à

opinião pública, e, por isso, notadamente nestes casos, o cuidado na motivação é

essencial à legitimidade de suas decisões. A possibilidade de colidirem as

opiniões pública e administrativa torna premente que a motivação seja exercida na

maior amplitude possível, pois é através dela que se poderá vislumbrar se a

decisão tomada em descompasso com a opinião social foi efetivamente a mais

razoável, pois que mais eficiente.

Entendida a motivação como tentativa de justificar o discurso como

público, ela deve ser tida como instrumento inseparável da participação social,

pois tanto na feitura das normas quanto na fiscalização das decisões do Poder

Público, é imprescindível a análise das suas razões argumentativas.

Contudo, apenas mediante uma melhor organização dos usuários é que se

poderá vislumbrar uma efetiva penetração no processo decisório das agências, o

que poderá ocorrer, segundo Souto, tanto informalmente, com a organização

espontânea da coletividade, ou institucionalmente, mediante a outorga de poderes

a representantes comunitários para que possam interferir oficialmente no processo

decisório. Nesse sentido, assinala Moreira Neto que a ascensão da sociedade civil

advém como “resultado da densificação da consciência de seus interesses e de ser

ela própria origem e destinatária do poder político”.47

Esse assunto liga-se essencialmente à questão do fortalecimento do espaço

público, como forma de efetivar o princípio da participação no plano político

mediante o uso dos poderes institucionais do Estado, principalmente do Poder

Executivo, que é o que detém, grosso modo, os mecanismos de elaboração e

implementação das políticas públicas. Nesse sentido, o surgimento das agências

reguladoras engendra uma relação muito mais íntima entre a Administração, de

um lado, e os cidadãos, mobilizados em torno de espaços públicos destinados a

servir de ponte entre a sociedade e os poderes públicos do Estado. Essa relação é 46 GEREMBERG, Alice Leal Wolf. Op. Cit, p. 34.47 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 110.

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tanto mais forte quanto mais bem organizados estiverem os cidadãos, seja em

grupos específicos de interesses, seja em organizações da sociedade civil

destinadas a fazerem valer tais premissas. O poder administrativo associa-se ao

poder social para a obtenção de eficiência e de legitimidade, o que tem um valor

demasiado em um Estado marcado por uma administração burocrática e

ineficiente, que sofria sucessivas crises de legitimidade.

No marco de uma administração concertada, vale novamente lembrar o

recente exemplo da criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e

Social, órgão de consulta da Presidência à sociedade civil, que estabelece um

canal paralelo de ligação entre a administração pública e os interessados, que não

se subsume à relação destes com o Legislativo. A relação que se estabelece no

plano desse Conselho é mais íntima, ultrapassando a democracia representativa

em prol de uma democracia participativa, garantindo aquilo que Sônia Fleury

denominou de “governabilidade democrática”: “(...)pactos sociais sustentáveis

que viabilizem, para além das reformas necessárias, a reconstituição do esgarçado

tecido social e a conformação de uma comunidade política nacional”48.

As exigências de audiências públicas e coletas de opinião, previstas nas

leis instituidoras das agências reguladoras, exprimem uma preocupação de se

assegurar esferas públicas de discussão no âmbito administrativo. São

mecanismos, que, assim como a presença nos colegiados dirigentes de

representantes da sociedade civil, a exemplo do que se dá no Conselho Nacional

do Meio Ambiente – CONAMA (Decreto 99274/90, artigo 5º), e na Comissão

Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio (Decreto 1752/95, artigo 1º),

buscam suprir eventual deficit democrático.

De fato, essa previsão de participação busca suprir eventual deficit

democrático co-natural a todas as agências reguladoras que, além de vastos

poderes normativos, têm seus dirigentes resguardados da livre exoneração pelos

poderes democraticamente eleitos. Assim é que a realização dessas participações

é condição de validade dos atos e normas a serem editados pelas agências,

cabendo a estas, no caso de recusa das opiniões ofertadas por estes instrumentos

de participação, motivar a decisão. Isso porque, ainda que existam mecanismos

prevendo a participação pública no processo regulatório, a Administração Pública

48 FLEURY, Sônia. “O Conselho e a Democracia”. O Globo, 06/03/03.

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continua com a última palavra na matéria, desde que o faça motivadamente e

dentro dos quadros estabelecidos pela lei. 49

O princípio da participação e do consenso requerem que, pela via da

negociação, o interesse geral possa ser definido, ressaltando-se, neste ponto, a

atuação do agente regulador como ponderador dos interesses em pauta. Isso

porque, como já assinalado, as normas reguladoras, por força da abertura que lhes

é inerente, não pré-define o interesse público especificamente visado, o que

somente pode ser conseguido no caso concreto mediante o uso da

discricionariedade técnica. É por meio desta, portanto, que se legitima a tutela de

interesses setoriais, uma vez que, não obstante desprovidos da legitimidade

política exercida via eleição, atende a valores relevantes, como a eficiência,

visando o desenvolvimento de cada um dos segmentos da sociedade.50

Moreira Neto, aprofundando o tema, destaca que a participação

administrativa espraia-se em três institutos afins: a coleta de opinião, o debate

público e a audiência pública. Segundo o autor,

A coleta de opinião é um processo de participação administrativa aberto a grupossociais determinados, identificados por certos interesses coletivos ou difusos,visando à legitimidade da ação administrativa pertinente a esses interesses,formalmente disciplinado, pelo qual o administrado exerce o direito de manifestarsua opção, orientadora ou vinculativa, com vistas à melhor decisão do PoderPúblico. O debate público, por sua vez, é um processo de participaçãoadministrativa, aberto a indivíduos e grupos sociais determinados, visando àlegitimidade da ação administrativa, formalmente disciplinado, pelo qual oadministrado tem o direito de confrontar seus pontos de vista, tendências,opiniões, razões e opções com os de outros administrados e com os do próprioPoder Público, com o objetivo de contribuir para a melhor decisão administrativa.A audiência pública (...) acresce às características dos dois institutos anterioresum maior rigor formal de seu procedimento, tendo em vista a produção de umaespecífica eficácia vinculatória, seja ela absoluta, obrigando a Administração aatuar de acordo com o resultado do proceso, seja relativa, obrigando aAdministração a motivar suficientemente uma decisão que contrarie aqueleresultado.51

Deve-se ressaltar ainda a figura do ouvidor, nomeado pelo Chefe do Poder

Executivo, para receber pedidos de informações, esclarecimentos e reclamações,

bem como responder a tais pedidos. Também insere-se em sua incumbência a de

representar a Agência junto aos órgãos de defesa do consumidor. Contudo, vale

49 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 441.50 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 216.51 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Audiências Públicas. Apud SOUTO, Marcos JuruenaVillela. Op. Cit., p. 204-205.

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notar que a figura de um Ouvidor Geral (artigo 37, § 3, CR), pode chocar-se com

as atribuição de substituição processual cometida ao Ministério Público, nos

termos do artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor e artigo 129, III, da

Constituição. Souto entende que a vantagem do ouvidor, além da especialização

técnica e de menor volume de assuntos pendentes, consiste na facilidade do

acesso, o que, no entanto, é neutralizado face à ausência de legitimidade

processual ativa, bem como ausência de sede constitucional. Decerto, a existência

de um órgão como o Ministério Público torna desnecessária a criação da figura do

Ouvidor para os fins que já se incluem em suas atribuições.

Segundo Souto, a elaboração de atos normativos das agências tem exigido

a prévia consulta pública52 sobre a minuta, conforme disposto em lei. Assim, por

exemplo, o artigo 42 da Lei n. 9472/97, relativa à ANATEL – Agência Nacional

de Telecomunicações. Essa participação não se limita a indivíduos isolados, mas

estende-se a coletividades ou a grupos de interesses, que “passam a exercer

influência no modo de vida da sociedade e na formação do próprio

Direito(...)”.Tais grupos, por sua vez, podem ser organizados – manifestados

principalmente por estruturas específicas de lobby, acionando grupos de pressão –

ou episódicos, constituídos para uma ação limitada no tempo.53

Para o autor supra-mencionado, além das implicações processuais que traz

a participação social, não se deve descurar das contribuições substanciais, “pois

que o resultado material respectivo(...), ao ser obrigatoriamente levado em conta,

limita a margem de liberdade administrativa”.54 Foi o sentido do disposto acima,

já que, ainda que não tenha prevalecido a opinião pública na tomada de decisão

pela agência, o só fato desta ter de levá-la em conta, traduz uma responsabilidade

muito maior no resultado advindo de suas decisões, o que requer, por certo, uma

motivação mais profunda.

52 Para Alexandre Santos de Aragão, a consulta pública consiste na confirmação da opiniãopública mediante a manifestação firmada através de peças formais, a serem juntadas no processoadministrativo. A audiência pública é modalidade de consulta, mas consubstanciadafundamentalmente através de debates orais em sessão previamente designada para esse fim.53 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 80.

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4.2.3Os Instrumentos participativos nas Leis Instituidoras das Agências

A primeira agência reguladora surgida no cenário brasileiro foi a Agência

Nacional de Energia Elétrica, criada pela Lei n. 9427 de 26 de dezembro de 1996.

Já nesta lei, há a previsão da figura do Ouvidor, cuja função encontra-se expressa

no artigo 4º, § 1o: “(...)zelar pela qualidade do serviço público de energia elétrica,

receber, apurar e solucionar as reclamações dos usuários”. O Ouvidor serve como

uma espécie de intermediário entre a agência, a empresa e os usuários, devendo

equilibrar os seus interesses da forma mais ponderada possível, centralizando

“(...)as sugestões, pedidos de informação e reclamações dos usuários, provendo as

informações, ou diligenciando para que estas cheguem ao destinatário, além de

iniciar o procedimento cabível para apuração das denúncias”. 55

A previsão de uma decisão reguladora participativa encontra-se expressa

nos incisos VI e VII do artigo 3º, bem como no §3o deste dispositivo, onde se

prevê a realização de audiência pública no processo decisório que implicar em

afetação dos direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos

consumidores, ou mediante iniciativa de projeto de lei nos mesmos casos. O

processo decisório que admite a figura da audiência pública é de cunho

administrativo, cabendo à sociedade emitir seu parecer, por meio de

representantes, sobre o assunto em pauta. O instituto da audiência pública atua

“(...) como forma de recolhimento de subsídios aos processos de fiscalização e

regulação da Agência”. Diogo de Figueiredo Moreira Neto assinala ser esse

instituto:

(...)um processo administrativo de participação aberto a indivíduos e a grupossociais determinados, visando ao aperfeiçoamento da legitimidade das decisõesda Administração Pública, criado por lei, que lhe preceitua a forma e a eficáciavinculatória, pela qual os administrados exercem o direito de expor tendências,preferências e opções que possam conduzir o Poder Público a decisões de maioraceitação consensual.56

Por outro lado, o artigo 7o, § 2o, da Lei estabelece aquilo que Moreira Neto

chamou de processualidade aberta, prevendo que “além de estabelecer parâmetros

54 Idem, p. 82.55 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit., p. 300.56 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Audiências Públicas, p. 7. Apud SOUTO, MarcosJuruena Villela. Op. Cit., p. 84.

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para a administração interna da autarquia, os procedimentos administrativos,

inclusive para efeito do disposto no inciso V do artigo 3o, o contrato de gestão

deve estabelecer(...), indicadores que permitam quantificar, de forma objetiva, a

avaliação do seu desempenho”.

Uma forma de parceria é ainda prevista no artigo 14, III, ao dispor sobre:

“a participação do consumidor no capital da concessionária, mediante

contribuição financeira para execução de obras de interesse mútuo, conforme

definido em regulamento”.

Segundo Moreira Neto, a Lei instituidora da ANEEL peca pela ausência de

dispositivo que garanta uma processualidade satisfatoriamente aberta, bem como

pela ausência de dispositivo que garanta a ampla publicidade de seus atos, o que,

no entanto, é suprido pela Lei n. 8987/95.

Atenta a tais questões, a Lei n 9472 de 16 de julho de 1997, criadora da

Agência Nacional de Telecomunicações, a ANATEL, prevê, já em seu artigo 5o,

diversos princípios regedores das relações econômicas no setor das

telecomunicações, dentre eles o da defesa do consumidor, o da repressão ao abuso

do poder econômico e da continuidade dos serviços prestados no regime público,

princípios que, em que pese assegurados explícita ou implicitamente pela

Constituição, não pecam pela redundância em sua previsão.

A ampla publicidade de seus atos é garantida pelo disposto no artigo 3o,

IV, o qual prevê ao usuário de serviços de telecomunicações o direito “à

informação adequada sobre as condições de prestação dos serviços, suas tarifas e

preços”. Por outro lado, a previsão de processualidade aberta encontra previsão no

mesmo dispositivo, desta feita no inciso X, quando assegura ao usuário o direito

“de resposta às suas reclamações pela prestadora de serviços”. Finalmente, a

decisão participativa encontra eco no inciso XI, ainda do mesmo dispositivo,

assegurando ao usuário “o direito de peticionar contra a prestadora do serviço

perante o órgão regulador e os organismos de defesa do consumidor”.

O artigo 8º, §1º, da mesma lei, prevê ainda a existência de dois órgãos que

se inserem num contexto mais participativo: o Conselho Consultivo e a Ouvidoria.

O Conselho Consultivo é o “(...)órgão de participação institucionalizada da

sociedade na Agência”, sendo formado por “(...) representantes indicados pelo

Senado Federal, pela Câmara dos Deputados, pelo Poder Executivo, pelas

entidades de classe das prestadoras de serviços de telecomunicações, por

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entidades representativas dos usuários e por entidades representativas da

sociedade, nos termos do regulamento”.57 Por sua vez, o Ouvidor, previsto no

artigo 45, será nomeado pelo Presidente da República para mandato de dois anos e

terá acesso a todos os assuntos, sendo certo que a ele compete produzir

apreciações críticas sobre a atuação da agência semestralmente, bem como

encaminhá-las ao Conselho Diretor, ao Conselho Consultivo, ao Ministério das

Comunicações, a outros órgãos do Poder Executivo e ao Congresso Nacional,

fazendo publicá-las para conhecimento geral.

Preocupado com a questão da captura das agências, o legislador instituiu,

no artigo 30 da Lei 9472/97, a proibição de o ex-conselheiro representar qualquer

pessoa ou interesse perante a Agência até um ano após deixar o cargo. Também

lhe é vedado, nos termos do parágrafo único deste dispositivo, utilizar-se de

informações privilegiadas obtidas em decorrência do cargo exercido.

O artigo 42 da Lei dispõe ainda sobre a necessidade de consulta pública

para as minutas de atos normativos.

No artigo 21 há a previsão de as sessões do Conselho Diretor serem

registradas em ata para arquivamento em Biblioteca disponível para o público em

geral. Por outro lado, as sessões deliberativas que se destinarem à resolução de

pendências entre agentes econômicos e entre estes e consumidores e usuários de

bens e serviços de telecomunicações serão públicas.

Pode-se perceber que a lei que instituiu a ANATEL é a mais completa,

prevendo mecanismos participativos muito mais sólidos que as demais agências.

No entanto, seu modelo não foi seguido pelas outras agências que se lhe

sucederam. Basta observar as leis que as criaram.

Na Lei n. 9478 de 06 de agosto de 1997, criadora da Agência Nacional do

Petróleo, o artigo 17 estabelece que “o processo decisório da ANP obedecerá aos

princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade”, asseverando

no artigo 18 que as sessões deliberativas da Diretoria da ANP relativas à resolução

de pendências entre agentes econômicos e entre estes e os consumidores serão

públicas.

Por outro lado, a decisão participativa fica a cargo do artigo 19, que prevê

a realização de audiências públicas prévias às iniciativas de projetos de lei ou de

57 Artigos 33 e 34 da Lei n. 9472/97.

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alteração de normas administrativas que afetem direito dos agentes econômicos ou

de consumidores e usuários de bens e serviços.

Lamentavelmente, sem seguir os rumos da Lei instituidora da ANATEL, a

Lei criadora da ANP não previu expressamente a processualidade aberta, o que

gera debilidade na participação em seus atos, eis que, como assinalado, a

legitimação pelo processo é algo que se vem consolidando cada vez mais. Por

outro lado, a ausência de legitimidade ou a fraca legitimidade do ente regulador

coloca em risco a própria eficiência das suas atividades, e, com isso, a própria

razão de ser do ente regulador pode cair por terra.

Por sua vez, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a ANVISA,

criada pela Lei n. 9782, de 26 de janeiro de 1999, não prevê qualquer instrumento

de participação regulatória, o que resulta na deficiência de suas atividades e na

duvidosa legitimidade de suas decisões.

A Lei n. 9961, de 28 de janeiro de 2000, instituidora da Agência Nacional

de Saúde Suplementar, a ANS, não tem dispositivo assegurando a ampla

publicidade. Porém, a processualidade aberta é prevista no artigo 10, VI, dispondo

que compete à Diretoria “julgar, em grau de recurso, as decisões dos Diretores,

mediante provocação dos interessados”. Por outro lado, a decisão participativa

encontra-se prevista no artigo 13 da Lei.

Finalmente, a Agência Nacional de Águas, ANA, instituída pela Lei n.

9984, de 17 de julho de 2000, tem a ampla publicidade assegurada no artigo 8o,

cuja redação dispõe que “a ANA dará publicidade aos pedidos de outorga do

direito de uso dos recursos hídricos de domínio da União, bem como atos

administrativos que dele resultarem, por meio da publicação na imprensa oficial e

em pelo menos um jornal de grande circulação na respectiva região”. Por sua vez,

a decisão participativa tem previsão no artigo 4o, quando prevê que “a atuação da

ANA obedecerá aos fundamentos, objetivos, diretrizes e instrumentos da Política

Nacional de Recursos Hídricos e será desenvolvida em articulação com órgãos e

entidades públicas e privadas, integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento

de Recursos Hídricos(...)”. Apenas a processualidade aberta não encontra previsão

expressa, cabendo aqui as mesmas observações feitas para a Lei que instituiu a

ANP.

Cumpre frisar, por último, que a Agência Nacional do Cinema – a

ANCINE, criada pela Medida Provisória n. 2228-1, de 06 de setembro de 2001,

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não apresenta características suficientes que permitem apontá-la como uma

autêntica agência reguladora. Ademais, é de duvidosa idoneidade constitucional a

criação de uma agência reguladora via Medida Provisória.58

De toda essa exposição, o que se nota é a absoluta falta de coesão entre as

leis criadoras das agências. Sem dúvida, a Lei da ANATEL é a mais completa,

dispondo de forma mais ampla e aprofundada sobre todos os importantes aspectos

da agência, dentre eles os referentes à competência regulatória, à independência

regulatória, bem como à participação regulatória. Contudo, as leis posteriores não

a tomaram como exemplo, do que resultou a criação de agências extremamente

débeis, notadamente na questão da participação regulatória. E isso gera reflexos

na legitimidade de suas decisões, bem como na eficiência das medidas adotadas.

Toda a vantagem que poderia advir com a adoção do modelo regulador parece

esvaziar-se pela ausência de requisitos mínimos de participação, seja na questão

da publicidade de suas decisões, seja na questão da participação na decisão, bem

como na abertura processual que deve garantir aos interessados.

Deve-se atentar que, uma das formas de evitar tal esvaziamento está no

controle de tais entes, seja o controle social, seja o judicial, apenas para citar

alguns exemplos, pois que o Poder Judiciário pode anular uma decisão reguladora

para a qual não tenha concorrido efetivamente a participação dos interessados.

4.4Formas de Controle da Participação

Não obstante possuírem uma autonomia reforçada, as agências reguladoras

têm seus atos sujeitos tanto a um controle externo, que pode ser político, judicial,

financeiro-orçamentário, bem como administrativo intersetorial e social, como a

um controle interno, de natureza administrativa.59

O controle político, exercido pelo Legislativo e Executivo, tem início na

própria inspiração do projeto de lei que dá origem à agência, pois que estabelece a

que estrutura da administração direta ficará vinculada, o valor da taxa de

regulação e do critério de nomeação e exoneração, organização e remuneração

58 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 192.59 Nesse sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto.

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dos seus agentes, passando, em seguida, à definição e aprovação dos seus

dirigentes.60

O controle judicial, por sua vez, não pode ser afastado em virtude de

aplicação expressa de preceito constitucional consagrado no artigo 5o, inciso

XXXV, da Constituição, que garante a inafastabilidade do acesso ao Poder

Judiciário, estendendo-se, por conseguinte, tal controle sobre todo o espectro

regulatório. Deve-se notar que as decisões das agências são elaboradas com base

numa discricionariedade técnica, que não se confunde, conforme já anotado, com

a discricionariedade política, eis que aquela envolve “a valoração de fatos

opináveis segundo pautas técnico-administrativas”.61 Daí porque os atos que dela

derivem podem ser amplamente revistos pelo Judiciário, que deve, contudo,

observar a conduta do agente público quando se encontre dentre as variáveis da

razoabilidade. Apenas se admitirá a substituição da conduta do agente público

quando ilegal ou manifestamente irrazoável. A esse respeito, vale transcrever as

palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem

haverá indevida intromissão judicial na discricionariedade administrativa se ojuiz se propuser a sobrepor seu critério pessoal a outro critério, igualmenteadmissível e razoável, adotado pelo administrador. Não haverá indevidaintromissão judicial na correção do ato administrativo se o critério ou opção doadministrador houverem sido logicamente insustentáveis, desarrazoados,manifestamente impróprios ante o plexo de circunstâncias reais envolvidas,resultando por isso na eleição de providência encontrada com a finalidade legal aque o ato deveria seguir.62

Para Marino Pazzaglini Filho, trata-se de um poder-dever que tem o Poder

Judiciário “(...) de examinar e anular todas as ações, atos e contratos

administrativos imorais, ineficientes, irrazoáveis e desproporcionais em relação ao

resultado prático ou fim público que a Administração Pública pretendeu

alcançar”.63

60 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit, p. 381. Alexandre Santos de Aragão ressalta que oproblema do deficit democrático das agências reguladoras é suprido pela ingerência do PoderLegislativo sobre a sua criação, manutenção e extinção; pela fixação das políticas públicas setoriaspela Administração central; pela ponderação necessariamente razoável dos diversos interesses emseus processos decisórios individuais e normativos; e pela necessidade da existência no Estadopluralista contemporâneo de entidades técnicas tendencialmente neutras do ponto de vista político-eleitoral61 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 399.62 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Controle Judicial dos Atos Administrativos. RDP- 65, p.37.63 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Princípios Constitucionais Reguladores da AdministraçãoPública, p. 117.

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Cumpre frisar que muitas vezes, esse controle do Judiciário centra-se em

verificar a ocorrência da participação efetiva dos cidadãos na elaboração de

normas e na tomada de decisões. Nesse sentido, Marcos Juruena Villela Souto

assevera que

as cortes passaram a controlar a razoabilidade das decisões regulatórias sob asleis do processo administrativo, exigindo que as agências demonstrassem não sóo critério adotado como a escolha entre diversas opções, o que exige que tenhaouvido muitos grupos – o que representa aplicação do controle social.(...). Oobjetivo dominante do controle deixou de ser a prevenção das intromissões nãoautorizadas na autonomia privada para se destinar a assegurar justarepresentatividade para todos os interesses envolvidos no exercício do podernormativo atribuído às agências; isso não inclui apenas os grupos econômicosinteressados mas as novas formas de organização política que não receberiamatenção não fosse o controle judicial64

A instituição dessa forma de controle, inserida no modelo regulatório,

permite o fortalecimento de um espaço público determinado a garantir a

discussão de interesses pertinentes à atividade pública desenvolvida, através de

uma ponderação eficaz entre os custos e os benefícios de qualquer medida a ser

implementada pela agência. Ou seja, publiciza-se o debate, ajudando na

construção e consolidação de uma sociedade civil consciente de seu papel de

autora, destinatária e fiscalizadora das políticas públicas projetadas pelo

legislador, democraticamente eleito como seu legítimo representante.

Cumpre frisar que, no comando constitucional de guardião da ordem

jurídica, do regime democrático e dos interesse sociais e individuais indisponíveis,

o Ministério Público deve exercer uma atuação fiscalizadora sobre toda a gestão

administrativa. Ainda que sujeitas a um prévio juízo discricionário65, as atividades

da administração pública sujeitam-se ao seu controle, exercido notadamente

através de ações judiciais, como as ações civis públicas, destinadas a assegurar a

plena eficácia dos princípios constitucionais expressos e implícitos. Para Marino

Pazzaglini Filho, o Ministério Público deve “(...) zelar pelo dever de eficiência

razoável ou adequada da gestão administrativa (...)”.66

Por outro lado, há a possibilidade ainda de um controle financeiro-

orçamentário, que deve ser feito pelo Pode Legislativo, auxiliado pelo Tribunal de

64 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 40865 Marino Pazzaglino Filho entende não haver ato discricionário ou vinculado, mas sim um préviojuízo discricionário em alguns casos, a que se chama erradamente de ato administrativodiscricionário.66 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Op. Cit., p. 108.

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Contas, nos termos do artigo 70, caput e parágrafo único, da Constituição ,

vedando-se-lhes, todavia, a ingerência no ‘mérito’67 dos atos regulatórios

praticados.

O controle intersetorial origina-se da necessidade de coordenar as

atividades regulatórias das diversas agências “quando atuem em setores tão

próximos que possam suscitar conflitos de competência”. Segundo Moreira Neto,

para a questão, cabe a instituição, pelas agências, de instrumentos de deliberação

ou negociação, bem como a criação de órgão intersetoriais, ou ainda, a criação,

mediante lei, de uma agência intersetorial que tenha competência para dirimir tais

conflitos.68

Nesse sentido, deve-se ressaltar a importância do CADE – Conselho

Administrativo de Defesa Econômica –, atuar junto às agências reguladoras,

tornando imperiosa, nesse modelo, uma articulação inter-institucional efetivada

através de convênios de cooperação. O desejável, postula Gomes, “é que se

estabeleça um mecanismo de cooperação entre os diversos agentes reguladores,

permitindo a troca de informações e buscando a serenidade da atuação das

agências de regulação envolvidas e dos órgãos de defesa da concorrência (...)”.69

O controle social liga-se à idéia de a sociedade, em conjunto ou

isoladamente, ter participação nas ações de controle. Segundo Souto, tal

participação “(...)pode se dar tanto pelo estímulo à formação de associações de

usuários e consumidores(...), como pela participação de representantes dessas

entidades nos conselhos definidores da política pública, nas comissões

parlamentares e/ou das agências reguladoras(...)”.Ressalte-se, contudo, que os

conselhos têm função meramente consultiva, o que não lhes retira a importância, 67 Como foi anotado acima, na discricionariedade técnica, por não envolver juízo de conveniênciae oportunidade, não há própriamente mérito, daí a colocação do termo entre parênteses, mais paraindicar o conteúdo do ato praticado.68 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 202. Alexandre Santos deAragão ressalta a importante questão, que diz respeito à submissão de setores específicosregulados por agências reguladoras ao sistema de proteção de concorrência (SDE, SAE e CADE),gerando o que se pode chamar de conflitos intersetoriais. Para o autor, a questão se resolve nosseguintes termos: se a própria lei não compuser a maneira como deve ser solucionado o conflito,em se tratando de agência reguladora de atividade econômica, prevalecerá, em princípio, acompetência do CADE, facultada a celebração de convênio ou a edição de ato normativo conjuntopara dissipar o conflito. Em se tratando, por sua vez, de agência reguladora de serviços públicos,em razão de outros interesses em jogo, que amenizam a importância da concorrência no setor,entende-se que a última palavra deve ser a da agência reguladora, assegurada a existência dedispositivo legal em contrário.

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já que a participação nas deliberações, bem como a atribuição de legitimidade

para questionamento judicial, permitem moralizar a atuação dos administradores,

no sentido de que, ao elaborarem as normas, terão maior cuidado em fazê-las de

boa fé. Ademais, a participação da sociedade engendra uma “expectativa de

motivação” quando as decisões forem de encontro às deliberações, o que

proporciona também maior possibilidade de controle externo via judiciário.70

Introduzida inicialmente sobre o plano da decisão judicial, a motivação das

decisões, imperativo das sociedades democráticas que clamam pela transparência

dos atos dos agentes públicos, estende-se para o campo do direito administrativo,

cujo paradigma regulatório vai assumindo suas feições, e cujas imperfeições estão

nascendo com a própria prática.

Esta modalidade de controle, por encontrar-se difundida na Constituição,

não precisa vir expressa na lei instituidora da agência, dirigindo-se ao controle da

legalidade e da legitimidade dos atos das agências reguladoras. Porém, ressalta

Moreira Neto, “tanto a lei instituidora como o regime de cada uma dessas

entidades deverá prever o acesso dos interessados e definir os processos

participativos, para que se realize o mais amplamente possível esta saudável

modalidade difusa de controle”.71

Finalmente, o controle interno72 tem natureza administrativa e decorre do

exercício do poder de autotutela da administração. Como órgãos integrantes da

administração indireta, os entes regulatórios independentes sujeitam-se ao

controle ministerial, embora não caiba o chamado recurso hierárquico impróprio.

Sua autonomia deve ser entendida face ao chefe do Poder Executivo e não face ao

Poder Executivo em si, o qual integra.73 Por outro lado, a fim de que sejam

observadas as diretrizes estabelecidas pelo governo para o setor, prevê-se “a

celebração de contrato de gestão contendo diretrizes de atuação administrativa do

ente regulado de acordo com as políticas do Poder Público, servindo de

69 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit, p. 312.70 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit., p. 384.71 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Administrativo Regulatório, p. 203.72 Segundo Alexandre Santos de Aragão “existe, de fato, um controle, não-hierárquico, exercidosobre as agências reguladoras, controle este que poderá ser de legalidade, gerenciais e finalísticos,implementados através da verificação do atendimento de metas e diretrizes preestabelecidas. Issoporque as agências reguladoras inserem-se num modelo misto de Estado: se de um lado, nãosubordinam-se ao controle hieráquico, pois não seriam autônomos, por outro lado, se nãoestivessem sujeitos a nenhuma subordinação, ainda que de direção, sequer integrariam aAdministração Pública Indireta”. Agências Reguladoras, p.73 Também nesse sentido, ver José Maria Machado Gomes. Op. Cit.

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instrumento de controle da atuação administrativa da autarquia e da avaliação do

seu desempenho”.74 Em suma, pode-se dizer que a Administração Pública exerce

o controle sobre tais entidades, seja diretamente, através do Ministério do setor

concernido, seja indiretamente, através Chefe do Poder Executivo, pois é quem,

em última instância, traça as políticas públicas a serem implementadas, cabendo

aqui lembrar as palavras de Luís Roberto Barroso, no sentido de que:

(...)se couber às agências a determinação integral das políticas públicas do setorregulado, pouco restará ao chefe do Executivo em termos de competênciadecisória, valendo lembrar que é ele quem detém a legitimidade democrática,recebida nas eleições, para exercer a função administrativa.75

O acima exposto deixa claro que as agências reguladoras não se encontram

livres para implementarem as políticas públicas da forma que melhor lhes

aprouver. Pelo contrário, encontram-se, como entidades integrantes da

administração indireta, adstritas aos princípios administrativos, sobretudo os da

legalidade, legitimidade, participação e razoabilidade. Por outro lado, por

representarem um espaço de mediação social, requerem não apenas o

consentimento do governo, representado pelos órgãos integrantes da

administração direta, como também da sociedade, incluindo aqui os interesses dos

usuários e dos empresários. Em suma, os entes reguladores encontram-se

amarrados aos princípios administrativos e muito particularmente à participação

social, cuja concretização garantirá a probabilidade de resultados legítimos de sua

atuação.

4.5Efeitos da Implantação do Modelo Regulador: Via Aberta àArgumentação

Moreira Neto ressalta que um dos pontos de convergência entre os autores

que trabalham a matéria é o otimismo em relação a essa nova forma de atuação do

Estado.76 Contudo, embora a implementação desse modelo possa trazer sementes

para uma administração pública mais legítima e ética, alguns problemas vem

74 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit, p. 304.75 BARROSO, Luís Roberto. Introdução ao livro de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, DireitoRegulatório, p. 49.76 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 211.

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sendo encontrados neste percalço. Gomes relata as dificuldades para a

implementação do modelo regulatório no Brasil, que têm sido basicamente a falta

de uma cultura de agências regulatórias, ingerências políticas por parte do próprio

governo e a falta de quadros funcionais tecnicamente competentes. 77

Ao lado da ausência de uma cultura de agências reguladoras independentes,

que restam assim “(...)infensas a pressões do próprio governo e a falta de

excelência técnica do corpo funcional”, Gomes assinala ainda a falta de uma

cultura de participação social, pois, o Brasil não goza de “(...) uma cultura

democrática de conquista pela cidadania, bem como não há qualquer

compromisso por parte da população com formas associativistas. (...) O que se

espera de um órgão regulador, quais são as suas funções e de que forma os

usuários podem participar do processo são alguns aspectos que devem ser

mencionados”.78

José Baraf79 atenta para um “risco de desmoralização das concessões pela

criação de desvios e canais paralelos de pressão”. O que se assiste, segundo o

economista, é a uma “esculhambação” dos mecanismos institucionais e formas de

utilização mais racional dos fatores de produção escassos na sociedade. O papel

das agências reguladoras consiste em preservar, em benefício dos usuários, os

objetivos da regulação, a saber: a promoção do funcionamento eficiente dos

serviços com tarifas e qualidade adequadas, e o alcance das metas estipuladas em

contrato quanto à chamada universalização dos serviços, dentre outros. Quando o

que se nota é que esses objetivos estão sendo desvirtuados sob o manto protetor

do Poder Executivo, então há uma evidente tentativa de desmoralizar o instituto

das concessões e, por via de conseqüência, o próprio paradigma regulador.

O perigo de que fala Baraf insere-se nos riscos de captura das agências

reguladoras não apenas pelas empresas, como também pelo próprio Governo, o

que esvazia sobremaneira os motivos que levaram à implantação do modelo

regulatório no Brasil, retornando à velha e duradoura confusão entre governo e

administração, já apontada, desde meados do século XIX, pelo Visconde do

Uruguai.

77 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit.78 Idem, p. 336-337.79 Em artigo publicado no Jornal O Globo, intitulado “Concessões e regulação: maus presságios?

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Contudo, a compreensão da matéria não deve ficar apartada de uma análise

da conjuntura política em que surgiram os entes reguladores, e, com eles, a

administração pública reguladora. O fato é que, apesar de prevista desde a

promulgação da Constituição da República de 1988, a administração pública

regulatória apenas foi implementada e concretizada nos últimos anos de gestão do

Governo Fernando Henrique Cardoso, que teve oito anos de duração, somados os

dois mandatos. O momento político acenava para uma mudança sem precedentes

na história do país: a “esquerda” aproximava-se do poder com uma força

crescente, e a intensa insatisfação social com o Governo FHC parecia não oferecer

alternativas. Esse quadro foi decisivo para a aceleração dos processos de reforma

do Estado brasileiro, fazendo crescer vultosamente o número de agências

reguladoras, que teriam como dirigentes pessoas nomeadas pelo então Presidente

da Repúiblica, Fernando Henrique Cardoso.

O processo que se prenunciava concretizou-se: eleito Luís Inácio de Lula

Presidente da República, encontrou-se este amarrado ao modelo implantado

precariamente pelo seu antecessor, principalmente pelo fato de os dirigentes das

agências reguladoras não poderem ser exonerados ad nutum pelo chefe do Poder

Executivo, devendo-se lembrar aqui a alternativa oferecida por Celso Antônio

Bandeira de Mello no sentido de que a vedação para a exoneração deveria ficar

adstrita ao presidente que o tivesse nomeado. Os dirigentes nomeados, com

mandatos por vezes superiores ao do próprio Presidente da República, sentem-se

intocáveis e acima de qualquer prerrogativa presidencial. Inobstante, deve-se

lembrar que as agências reguladoras tem por função implementar as políticas

públicas, cujas diretrizes mais gerais são ou devem ser fixadas pelo Poder

Executivo. Contudo, a velha confusão entre Governo e Administração não se

apagou, pelo contrário, parece aprofundar-se quando o que se discute é o poder

normativo atribuído às agências reguladoras a título de discricionariedade técnica.

Nesse sentido, a confusão é generalizada: não apenas aqueles que dela se

beneficiam – os dirigentes comprometidos com interesses escusos de empresários

ou de grupos de pressão -, como também os que criticam o “excessivo” poder

conferido às agências. O que ocorre é que a prática tem distorcido bastante o papel

das agências e do próprio governo, pois em algum momento este falhou: ou na

falta de diretrizes públicas ou na falta da necessária supervisão ministerial.

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Toda essa celeuma vem engendrando uma ampla discussão sobre o papel

das agências reguladoras e a possibilidade de exoneração ad nutum de seus

dirigentes. Conforme ressaltado, tais questões não suscitariam tantos problemas se

de fato não houvesse no país uma forte confusão entre as esferas política e

administrativa. A tentativa de separar-se a administração pública de pressões

políticas parece que não surtiu o efeito esperado desde a implantação do regime

regulatório. Equivocadamente discute-se o poder normativo das agências, quando

na verdade o que distorce o processo é o seu não uso ou o seu uso equivocado. A

falta de normatização das agências em prol de interesses de grupos econômicos ou

de pressões políticas é que vêm deslegitimando o Estado pretensamente regulador

– “que o diga o vexame do apagão, produzido menos por falta de chuvas e mais

por falta de regras”80.

Assim, a captura do órgão regulador assume formas sutis de dominação

política, baseada na ausência de regulamentação do setor, facilitando a ação de

grupos de interesses, que se beneficiam da falta de normalização e,

principalmente, de clareza sobre a função desses órgãos. Por outro lado, as

diretrizes gerais que deveriam ficar a cargo do poder público não são definidas

satisfatoriamente, deixando em aberto questões políticas da maior relevância. Foi

assim também no caso paradigmático da crise energética:

O problema que está ocorrendo no Brasil (...) é que a lei que criou as agênciasdetermina que elas seriam aplicadoras da política energética. Só que quandoforam criadas, em fins da década de 90, o governo deixou de formular as políticaspara o setor(...) Elas foram aos poucos tomando decisões políticas, porque ogoverno não fazia. O grande problema delas é que começaram a operar sem teruma orientação de política(...)81

A discussão em relação ao controle do governo sobre as agências gerou

um projeto de lei da deputada Telma Souza (PT-SP)82, da base parlamentar do

governo, que visa conferir ao governo a prerrogativa de fixar os preços de tarifas

públicas e acabar com a estabilidade de seus diretores, através da possibilidade de

exoneração pelo Presidente da República. Contudo, esta solução, por demais

radical, não parece ser a mais adequada para uma gestão pública mais ética,

devendo adotar-se, por mais consentânea com a realidade, a solução apontada por

Bandeira de Mello. 80 BASTIDE, Juliano. “Neo-intervencionismo?”. O Globo, 02/03/03.81 ORDOÑEZ, Ramona. “Agências não são independentes”. O Globo, 02/03/03.

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Por outro lado, um decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,

publicado no Diário Oficial da União no dia 24 de março de 2003, determina em

seu artigo 11, que caberá à Secretaria de Telecomunicações fiscalizar a ANATEL.

Segundo artigo publicado no jornal O Globo83, de 25 de março de 2003, a

assessoria do Ministério das Comunicações alertou que não há intenção de

subordinar a agência, tirando sua condição de autarquia especial. Ocorre que a

possibilidade de controle das agências por parte do governo já existe inclusive em

âmbito constitucional, prevendo o artigo 87, parágrafo único, inciso I, dentre as

atribuições de Ministro de Estado, a de supervisionar órgãos e entidades da

administração federal na área de sua competência. Ou seja, a previsão de controle

das agências já existe de há muito, antes mesmo de seu surgimento no cenário

político brasileiro, basta colocá-la em prática.

O que se nota pelo que ficou acima exposto é que existe uma grande

confusão em torno dos postulados regulatórios do Estado brasileiro, que muito se

deve à falta de uma normatização clara sobre a matéria, que seja capaz de garantir

suas características mais gerais. A edição da Lei n. 9986/00 não atendeu aos

anseios de padronização das agências, eis que se restringiu a regular basicamente

a gestão de recursos humanos, o que, aliás, fez de forma precária, tanto é que vem

sendo objeto de uma ação declaratória de inconstitucionalidade, conforme já

exposto.

O fato é que todas essas questões envolvem um aspecto maior do que o

universo das agências reguladoras: a tomada de posições governamentais de

forma transparente. Uma postura política bem definida e delineada com clareza é

essencial para o bom andamento dos postulados regulatórios do Estado, colocados

em prática recentemente. O diálogo entre o governo e os agentes reguladores é

fundamental para a consolidação do modelo e para a consagração de uma

democracia substancial. Insere-se nesse intento a mais recente criação do Governo

de Luís Inácio Lula da Silva: o Conselho de Desenvolvimento Econômico e

Social, que põe em prática os anseios de participação no desenvolvimento de

políticas públicas. No entanto, o órgão consultivo da Presidência vem recebendo

duras críticas, como um potencial fragilizador das instituições democráticas,

“solapando a autoridade do Executivo e/ou concorrendo com as atribuições do

82 Informação publicada no Jornal O Globo de 20 de março de 2003, de Evandro Éboli.83 Artigo publicado no jornal O Globo de Mônica Tavares em 25/03/03.

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Legislativo”84. O caráter antidemocrático da instituição tem sido levantado

também por aqueles que entendem ser esta uma “tentativa do governo de cooptar

a sociedade civil organizada, escolhendo atores-chaves para participar de um

processo de discussão (sedução), cuja intenção seria nada mais que reduzir suas

resistências às reformas”85.

Não obstante, o instituto, importado por Tarso Genro do modelo

constitucional francês, representa uma tentativa de reabilitar o espaço público,

estabelecendo um palco para a relação entre governo e sociedade. Representa,

pela inclusão do outro, uma saída da esfera de indiferença, uma tentativa de

aproximação que informa necessariamente o processo de participação social,

conforme ressaltou Alain Plantey, comentando a experiência francesa. Ao

possibilitar não só ao governo, como também à agência reguladora, tomarem

conhecimento de expectativas da sociedade e da opinião pública, o instituto recém

criado permite um amplo diálogo entre os atores sociais, garantindo ao modelo

regulatório a sua mais ampla legitimidade.

Com isso, equilibra-se os postulados técnicos dos princípios da eficiência

e da especialização através de uma participação fomentada pelo poder público.

Contudo, Plantey assinala que a participação começa pela formação, pois exige do

interlocutor uma certa preparação, que não se esgota no ensinamento

administrativo, cívico e político: publicações, visitas, exposições etc farão melhor

conhecer as leis e regulamentos, os serviços públicos, sua organização, sua

missão, seus meios e sua motivação. Trata-se, em suma, de fazer evoluir a

mentalidade tanto dos agentes públicos como dos cidadãos.

Deve-se notar que o poder de decisão permanece com o Estado. Contudo,

a consulta à sociedade civil permite-lhe partilhar de sua autoridade, ou melhor,

transferir a sua responsabilidade. Este o sentido de participação a que Plantey

atenta. Decerto, conforme ressaltou o autor, se a consolidação desse modelo

favorece a tomada de posições do administrador nos moldes do parecer emitido

coletivamente, quando tal não for conveniente, cabe ao administrador explicitar-

lhe as razões. E isso passa por uma motivação minuciosa, que conduza à

persuasão de todos os interessados e principalmente daqueles que hajam

manifestado opinião discordante em processo de consulta. A assunção de

84 FLEURY, Sônia. “O Conselho e a democracia”. O Globo, 02/03/03.85 FLEURY, Sônia. “O Conselho e a democracia”. O Globo, 02/03/03.

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importância do paradigma argumentativo se fará sentir com toda a sua força: não

se trata de expor conclusões intangíveis, a que todos se dobrariam, mas de indicar,

por argumentos racionais, que a conclusão a que chegou é a melhor para aquela

situação, ainda que incialmente equivocada a opinião pública a respeito. A

revalorização da argumentação como metodologia da razão prática insere-se no

âmbito administrativo, para tanto valendo-se do exemplo fornecido pelos

tribunais, cuja motivação já está mais assente.

Assim é que o alarde inicial com as caracterísitcas mais inovadoras das

agências aos poucos cede espaço para uma conscientização do espaço aberto para

o diálogo nesse modelo. Também a dificuldade dos ministérios em implementar

políticas de forma técnica contribui para uma maior conformação ao modelo em

vias de implantação. Em recente matéria no Jornal O Globo, “Ministérios de

mãos atadas”, Mônica Tavares descreve a discussão:

O governo constatou que não basta apenas criticar as agências reguladoras,argumentando que essas instituições devem se limitar a fiscalizar e regular ossetores aos quais estão vinculadas. Embora já esteja acertado que cabe aoExecutivo estabelecer as diretrizes gerais dos setores, além de ditar políticas depreços, os novos ministros perceberam que seus ministérios estão completamentedesaparelhados e que, por isso, desempenhar essas funções pode ser mais difícildo que se pensou inicialmente. Desde que assumiu, o novo governo colocou asagências reguladoras na berlinda. (...) No entanto, já existe agora nos ministériosligados a esses setores a percepção de que as decisões políticas devem ter aparticipação das agências, devido principalmente à falta de técnicosespecializados. Ao mesmo tempo, a falta de políticas delineadas pelo Executivoatrapalha as agências reguladoras.86

O administrador, cujo discurso deve ser reconhecido como público na

medida em que se afigurar legítimo, tem interesse em motivar suas decisões e em

decidir, na medida do possível, de acordo com a opinião pública. O livre

convencimento dos agentes públicos deve ser motivado, como se dá com o juiz no

exercício de sua função jurisdicional: não se nega a existência de um grau de

subjetivismo aos atos dos agentes públicos, inerente a qualquer atividade humana,

apenas se lhes exige o amparo do interesse público, a que se subordinam. Este o

sentido de moralidade administrativa, que deve permitir aos cidadãos a anulação

de atos e decisões quando desconformes com o interesse público que deveria tê-

los motivado.

86 TAVARES, Mônica. “Ministérios de Mãos Atadas”. O Globo, 02/03/03.

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A consolidação de uma cultura regulatória afigura-se, portanto, essencial

para a concretização do Estado regulador nos moldes desejados pela democracia

substantiva: com independência funcional, evidentemente ponderada com o

exercício do poder político exercido pelo Presidente da República, e poderes

normativos, incluídos na sua mais ampla função de conferir eficiência às pautas

programáticas traçadas pelo Poder Público, para a qual a participação é

imprescindível. Outros objetivos, assegurados pelo uso de tais prerrogativas,

inserem-se nas suas atribuições, como zelar pelos interesses dos usuários de

serviços públicos, assegurar a concorrência e evitar a oligopolização dos

mercados, resolver conflitos administrativamente entre os usuários e as empresas

reguladas, ou entre estas e o Poder Público, especificar o interesse público a ser

perquirido no caso concreto, o que deve ser feito com base em técnicas de

ponderação de interesses que leve em conta os critérios técnicos e a sua eficiência

atual e futura. Para o cumprimento de todos esses objetivos, é fundamental

analisar as contribuições que podem advir de uma teoria do discurso baseada no

uso da racionalidade argumentativa, visando decidir, na prática, os valores que

devem ser levados em conta na operação.

Cumpre frisar ainda que a complexificação das sociedades modernas, que,

segundo Habermas, gerou uma multiplicação de subsistemas que tendem à

autonomia, leva inevitavelmente ao processo de especialização e a uma cultura de

experts distante do grande público, conduzindo ao empobrecimento cultural da

prática cotidiana. A adoção do modelo regulador calcada no princípio da

profissionalização e da especialização tende a se separar da sociedade, juntando-se

às empresas operantes no setor. Decerto, o Estado regulador é o Estado da

especialização, mas também da interdisciplinariedade, pois pretende regular

setores econômicos e sociais através do uso do direito como instituidor de regras

mínimas procedimentais que permitem levar a uma decisão legítima e eficiente.

Assim, a participação, garantida procedimentalmente, deve permitir a formação de

espaços públicos fortes e independentes o suficiente para que possam fazer frente

aos interesses dos experts, evitando os riscos permanentes da captura. Aqui, será

de fundamental importância a função a ser desempenhada pelo Conselho de

Desenvolvimento Econômico e Social, como verdadeira ponte de ligação entre o

governo – entendido no sentido amplo, englobando a administração direta e a

indireta, na qual se inserem as agências, já que visam a cumprir pautas públicas –

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e os atores sociais, representados ou não por comitês representativos de

categorias. Esta exigência decorre do corte no conceito de legitimidade tradicional

relatado por Moreira Neto: ao lado da legitimidade política, a legitimidade social

deve ser alcançada, tendo em vista o potencial deficit democrático que assombra

os entes reguladores independentes.

Assim é que, utilizados de acordo com a sua melhor orientação, os

institutos criados pelas leis das agências reguladoras, que fomentam uma

participação social na formação de normas e tomadas de decisões, permitem uma

ampliação do debate aos mais diversos setores sociais, gerando normas mais

legítimas e decisões mais cuidadosas. Contudo, e isso é extremamente relevante,

quanto mais fundamentadas tiverem de ser as decisões administrativas, mais estas

levarão em conta a opinião pública abarcada: é um mecanismo de fluxo e

contrafluxo, pois, na medida em que ao fundamentarem – e isso é essencial nas

decisões não concertadas da Administração Pública -, os agentes públicos

expõem-se mais ao controle e fiscalização da sociedade e do Judiciário. E tomar

uma decisão reverenciada pela opinião pública é sempre mais facil de sustentar do

que o oposto.

E é disso que cuida o paradigma argumentativo, preocupado em tornar as

decisões racionalmente motivadas, mediante o uso público da razão, calcada num

procedimento discursivo centrado em valores compartilhados por determinada

comunidade histórica. O espaço público, categoria central da obra habermasiana,

arena dos debates, local de ressonância dos problemas sociais, reforçado por uma

sociedade civil consciente e atuante, abrirá mais vias de ação social, colocando na

pauta de debates do legislativo questões cruciais discutidas no bojo da sociedade.

A organização da sociedade civil e o fortalecimento da cidadania ativa,

implementados por processos de tomada de consciência da população, são

fundamentais para que o paradigma argumentativo contribua efetivamente para o

fortalecimento da participação nas agências regulatórias. As técnicas de

convencimento e de persuasão possibilitam aos atores sociais a inserção de suas

idéias e expectativas nas pautas dos poderes públicos, uma vez que, mostrando a

importância de suas contribuições para a implementação de políticas eficientes,

bem como mostrando que suas opiniões são as mais razoáveis, através de

mecanismos argumentativos, asseguram um maior grau de influência nas decisões

e na elaboração de normas. Se, do contrário, vigorar uma fraca organização cívica,

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que, ainda não devidamente consciente de sua condição, não seja capaz de fazer

uso de instrumentos argumentativos eficientes no convencimento da

essencialidade de sua participação, continuará vigendo uma política de vantagens

e privilégios, tal qual ocorria no regime do Estado Patrimonialista, cujo espectro

ainda se faz sentir, uma vez que não se encontram consolidados, como resulta

evidente, os postulados de uma participação efetiva.

Por outro lado, a importância do paradigma argumentativo também se fará

sentir por parte dos administradores, principalmente quando tiverem de decidir

sem o respaldo da opinião pública consultada, quando se fará premente uma

motivação minuciosa que conduza ao convencimento geral da sociedade. Disto

dependerá a legitimidade de sua atuação e a eficiência em seu cumprimento.

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