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3 a ED. DEZEMBRO 2015 Crise da psiquiatria?

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Dezembro 2015

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Page 1: 3ª Edição Jornal APRS

3a ED. DEZEMBRO 2015

Crise dapsiquiatria?

Page 2: 3ª Edição Jornal APRS

Expediente do Jornal – JÁ

Jornal da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul – JÁAv. Ipiranga 5311/20290610-001 – Porto Alegre – RS – Brasilwww.aprs.org.br – [email protected]

DIRETORIA

Gestão 2014/2015

Presidente

Carlos Alberto Iglesias Salgado

Vice-Presidente

Carlos Augusto Ferrari Filho

diretor tesoureiro

Carlos Renato Moreira Maia

diretor tesoureiro Adjunto

Flávio Milman Shansis

diretor secretário Adjunto do exercício ProfissionAl

Carlos Alberto Machado do Nascimento

diretor científico

Rodrigo Grassi Oliveira

diretorA secretáriA de normAs

Patrícia Fuhro Vilas Boas

diretorA de diVulGAção

Anahy Fagundes Dias Fonseca

membros suPlentes

Fernando Lejderman

Madeleine Scop Medeiros

Marcelo Moraes Victor

conselho fiscAl

Hans Ingomar Hermann Albert Schreen

Paulo Henrique Gomes de Seixas

Rafael Gomes Karam

SECRETARIA DA APRS

coordenAdorA AdministrAtiVA finAnceirA

Ana Paula Sarmento Cruz

AnAlistA AdministrAtiVA

Laís Witt Paim

hiGienizAção

Rosilei Carvalho Ferreira

CONSELHO EDITORIAL DO JORNAL

3A edição, noVembro 2015

editor

Flávio Milman Shansis

membros do conselho editoriAl

Bettina Cotliarenko Fichbein

Carla Hervê Moram Bicca

Daniel Tornaim Spritzer

Eneida Iankilevich

Fernanda Lia de Paula Ramos

Gustavo Schastatsky

José Caetano Dell Aglio Junior

Laís Knijnik

Lucas Spanemberg

Luis Guilherme Streb

Mário Tregnago Barcellos

Matias Strassburger

Miréia Fortes Vianna Sulzbach

Roberta Rossi Grudtner

Projeto Gráfico oriGinAl

Marta Castilhos

editorAção 3A edição

YOYO ateliê gráfico

reVisão jornAlísticA

Fernanda Dora Luzzatto

Page 3: 3ª Edição Jornal APRS

A palavra do Presidente / 4

Editorial / 5

Matéria de capa / 6

Casos Clínicos / 24

Drops / 32

Arte dos Psiquiatras / 34

Psiquiatras por aí / 38

Encontro entre gerações / 43

Notícias da APRS / 47

Espaço do sócio / 51

Sumário

Page 4: 3ª Edição Jornal APRS

Prezados Colegas Associados da APRS,

Nossa Associação, originada em 1938 na forma da Sociedade de Neuro-Psiquiatria do Rio Grande do Sul, cursando seus 77 anos, mostra-se sempre jovem. A atual gestão manteve objetivos já bem estabelecidos pelas mais recentes gestões. Nossa Revista, já de novo título, conquistou a indexação plena no MEDLINE. A TRENDS vem ganhando prestígio desde há muito e, desde março deste 2015, atinge a maioridade científica.

Ainda na dimensão editorial, o Jornal APRS, desde dezembro de 2014, vem oferecendo espaço para comunicações diversas, especialmente aquelas re-ferentes à prática clínica, sempre tão atraentes para o dia a dia do psiquia-tra em seu consultório ou prática hospitalar. Convido a todos a oferecer suas contribuições, tanto as clínicas quanto as culturalistas, relacionadas ao campo da Psicopatologia e seus desdobramentos.

A APRS não para. Durante as férias coletivas do verão 2014-2015, a APRS trabalhou duro na reade-quação plena de sua sede. O espaço ganhou em agilidade e conforto, além, é claro, em qualificação estética.

A expansão da APRS continua. Em 2014 éramos 789 sócios. Agora somamos 929 colegas interessa-dos no reconhecimento que pertencer à APRS garante. A propósito, em 11 de junho deste ano, por iniciativa de nosso colega Pedro Abuchaim, foi criada a Seccional da APRS em Pelotas. A seguir, em 15 de agosto, ocorreu uma primeira atividade desta Seccional com o tema “Os desafios da psiquiatria na atualidade”.

Nosso colega da Psiquiatria da Infância e Adolescência, Felipe Picon, estreitou os laços da APRS com a WPA, tornando-se nosso jovem interlocutor nesta, que é nossa maior coirmã internacional.

O volume geral de atividades da APRS ao longo de 2014 e 2015 envolveu 2.250 pessoas. Todos os departamentos e núcleos colaboraram para o sucesso do período.

Como Presidente sexagenário, sinto-me sempre na obrigação de garantir o mais amplo espaço para nossos mais jovens colegas, pois que eles nos garantem o prestígio crescente de nossa especialida-de e, claro, o lugar da APRS como formadora de opinião na grande comunidade acerca das doenças mentais e suas abordagens.

A equipe enxuta de nossas três funcionárias nos tem oferecido dedicação exemplar. Gostaria de que todos os associados pudessem sentir-se à vontade de atestar tal eficiência. O melhor método será sempre criar e se envolver em atividades de seu interesse dentro da APRS. Venham todos, a APRS é dos sócios, protagonistas desta história de 77 anos. Nós diretores somos apenas seus coadjuvantes!

A palavra do PresidenteDr. Carlos Alberto Iglesias Salgado

Presidente da APRS na gestão 2014/2015

Page 5: 3ª Edição Jornal APRS

5

Caros colegas e amigos,

Entregamos aqui, com muita alegria, a última edição do novo formato do Jornal JA. Nesses dois últimos anos publicamos três números, que foram muito bem recebidos pe-los nossos associados. Formamos um Conselho Editorial que muito trabalhou para que esse projeto tivesse sucesso.

Nessa edição, trazemos a vocês um resumo do que aconteceu na XII Jornada da APRS, em setembro último. Em nossa Jornada foi realizada uma importante atividade, elaborada pelo Núcleo de Psiquiatras em Formação da APRS, em colaboração com o nosso Diretor Científico, Rodrigo Grassi. Essa atividade foi tão rica que recebe o destaque de matéria de capa desta edição. Refletimos todos se a Psiquiatria está, de fato, em crise.

Por último, quero agradecer a honra de ter sido o editor do nosso novo Jornal JÁ, a con-vite do atual Presidente, Carlos Salgado, e do Rodrigo, assim como a todos os membros do atual Conselho Editorial (CE).

Tenho certeza de que o novo Editor, querido amigo e colega, Mário Barcellos - membro do atual CE – fará mais e melhor.

A todos, nosso muito obrigado,

Flávio Shansis

Editor do JÁ

EditorialDr. Flávio Shansis

Editor do Jornal da APRS

Page 6: 3ª Edição Jornal APRS

6

Crise na Psiquiatria?Núcleo de psiquiatras em formação da APRS

Nos últimos anos, têm sido publicados, em di-versas revistas de alto impacto, artigos e comen-tários questionando a respeito de uma crise na Psiquiatria. Comenta-se que houve, na última década, uma menor busca, nos países desenvol-vidos, por formação em Psiquiatria e um menor incentivo da indústria farmacêutica para pesqui-sas na área (Jablensky, 2010; Barkil-Oteo, 2012). Contamos com novas teorias para explicar o adoecimento psíquico e uma abordagem diag-nóstica mais ampla trazida pelo novo DSM.

No Brasil, defrontamo-nos com um movimento antimanicomial e com tentativas de remodelar o ensino em Psiquiatria. Além disso, ainda lidamos com uma visão estigmatizada do psiquiatra, con-ceituando-o como um profissional voltado para

um tratamento “pseudocientífico”. É oportuno destacar aqui, que enquanto especialidade nova, ainda pouco claros são seus contornos e já nos deparamos com diversas desconstruções e con-frontos. Estamos frente a uma grande crise?

Na tentativa de responder a inúmeros questiona-mentos sobre o destino e os impasses de nossa especialidade, desenvolveu-se na XII Jornada de Psiquiatria da APRS – em Gramado – um painel digital a cerca do futuro da Psiquiatria. Dando continuidade ao caloroso e estimulante debate, entrevistamos hoje, colegas psiquiatras na tenta-tiva de compreender quão profunda é a aparente crise em nossa profissão e quais fatores determi-nam a mesma.

MATÉRIA DE CAPAMATÉRIA DE CAPA

Page 7: 3ª Edição Jornal APRS

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Lívia Hartmann de Souza

As crises da psiquiatria

Parece-me que existe mais de um foco de crise na psiquiatria atualmente. A começar pelo que vem sendo amplamente discutido na literatura científica, que é a fragilidade do diagnóstico psiquiátrico e, consequentemente, da psiquia-tria como especialidade médica. Essa discus-são tomou força com o lançamento recente do DSM-5 (American Psychiatric Association and American Psychiatric Association, 2013), o manual diagnóstico publicado pela Associação Psiquiátrica Americana, que orienta, da mesma maneira que a CID-10, o diagnóstico dos trans-tornos mentais. O paralelo que tem sido traçado compara o flagrante avanço das outras áreas da medicina, com técnicas diagnósticas sofistica-das e tratamentos cada vez mais específicos e resolutivos, com a psiquiatria que ainda engati-nha às voltas com questões tão iniciais quanto a sua maturidade diagnóstica e fisiopatológica (Schmidt et al., 2011).

A intenção do DSM-III, à época de seu lança-mento, era migrar de uma nosologia até então baseada em teorias psicodinâmicas, para um sistema baseado em critérios diagnósticos des-critivos, o que aumentaria a confiabilidade da avaliação diagnóstica, permitindo que os psi-quiatras e pesquisadores pudessem usar um mesmo “idioma” ao redor do mundo, melhoran-do a comunicação e o intercâmbio de conheci-mento no campo clínico e de pesquisa (Kendler and First, 2010). A partir daí, a ideia era que a fisiopatologia subjacente a cada transtor-no pudesse ser revelada na medida em que o conhecimento científico avançasse para, final-mente, levar à criação de um sistema diagnós-tico baseado na etiologia e fisiopatologia dos transtornos mentais. O último passo seria o de-senvolvimento de tratamentos ancorados nesse desejado sólido conhecimento fisiopatológico.

A psiquiatria neurobiológica evoluiu barbara-mente nos últimos anos, o que permitiu que situássemos alguns dos transtornos mentais como alterações do funcionamento cerebral (Insel and Quirion, 2005). O campo tem um fu-turo promissor: em algum momento talvez seja possível aplicar esse conhecimento de modo mais consistente na prática clínica. No entanto, não podemos nos deixar levar pelo entusiasmo e imaginarmos que estamos além do ponto em que realmente estamos. Infelizmente, apesar dos importantes avanços, nenhum achado foi capaz de explicar de maneira mais definitiva a fisiopatologia dos diferentes transtornos men-tais, não havendo contribuição para o diagnós-tico, tampouco o desenvolvimento de novas drogas baseadas nesses novos conhecimentos (Kendler and First, 2010). Dessa forma, ainda que aspiremos uma melhor compreensão bio-lógica dos nossos transtornos, os fármacos que dispomos ainda se baseiam em teorias tão simplistas e hoje reconhecidamente ingênuas

MATÉRIA DE CAPA

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8

quanto a teoria da deficiência de catecolaminas da depressão.

Além de não ter atingido seu objetivo inicial de criar uma classificação informada pela neuroci-ência, o DSM-5 tem recebido outras duras críti-cas. Entre elas, está a patologização de estados humanos normais, que envolve tanto a inclu-são de condições que não se qualificam como transtornos, quanto o limiar muito baixo para o diagnóstico de transtornos estabelecidos (Maj, 2014), levando a “inflação diagnóstica” (Frances and Nardo, 2013). A sobreposição de sintomas entre os diagnósticos, que gera uma inaceitá-vel taxa de comorbidades e, por outro lado, a grande heterogeneidade dentro do que seria um único transtorno, também tem sido critica-da. Até mesmo a defendida confiabilidade dos sistemas classificatórios foi posta em dúvida no DSM-5, com cinco dos 15 diagnósticos de adulto alcançando índices de confiabilidade questioná-veis ou inaceitáveis (Regier et al., 2013). Alguns autores chegam a sugerir que, diante da debili-dade do DSM, se reconheça de forma mais ex-plícita a importância do julgamento clínico nos diagnósticos psiquiátricos, usando para isso o nível de correspondência com os modelos pro-totípicos dos transtornos, em vez de incorrer em uma pseudoprecisão diagnóstica com o uso do somatório de critérios (Maj, 2014).

Os problemas do DSM-5 se devem não só às suas limitações científicas, mas também ao fato de que o sistema DSM sofre pressões políticas e econômicas. Essas pressões contaminam, ainda que de modo mais escuso, o processo de to-mada de decisão, que deixa de ser puramente científico, e passa a ser um processo político informado pela ciência, em que os construtos são definidos mais por conveniência do que por verdade científica. (Ghaemi, 2014).

O que ocorre é que, mesmo diante de tantas fra-gilidades do sistema DSM e do fato de ainda não termos uma sólida e definida fundamentação

neurobiológica, as bases fenomenológicas e psicopatológicas do diagnóstico psiquiátrico vem sendo progressivamente negligenciadas, como se já fosse possível substituí-las por um novo paradigma. Dessa forma, o diagnóstico psiquiátrico vem sendo reduzido à checagem acrítica de critérios diagnósticos, que podem ser muito mal avaliados quando a base teórica de psicopatologia do avaliador é frágil. O psi-quiatra pode se ver reduzido a um “contador de critérios”, perdendo-se a técnica e o refina-mento do diagnóstico clínico (Jablensky, 2010). A crença de que a adoção de critérios opera-cionais resolveria o problema da confiabilidade no diagnóstico psiquiátrico vem se provando ilusória. Essa realidade pode ser mais evidente na psiquiatria americana, em que o DSM é con-siderado a “bíblia” dos psiquiatras, mas talvez já seja possível perceber os ecos desse efeito ao nosso redor.

Em contrapartida, outro foco de crise se obser-va quando parte-se para o outro extremo, ao negar a importância dos critérios diagnósticos, assim como negar a evolução da fundamenta-ção neurobiológica da psiquiatria. O fenôme-no ocorre em níveis de gravidade, sendo que a política pública de saúde mental no Brasil leva a questão ao extremo, negando a própria psi-quiatria. Para isso, basta ver o conteúdo dos Cadernos de Atenção Básica em Saúde Mental, publicado pelo Ministério da Saúde (Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica., 2013). O conteúdo desse material não lembra em nada os transtornos mentais da forma como os reco-nhecemos em psiquiatria, desde a sua descrição até a nomenclatura utilizada. Parece haver uma homogeneização dos transtornos, dos trata-mentos e dos profissionais envolvidos no aten-dimento dos pacientes, como se as atribuições e competências fossem as mesmas. A origem desse foco de crise parece estar na luta antima-nicomial que acabou se transformando em uma luta antipsiquiatria. Fica difícil imaginar como

MATÉRIA DE CAPAMATÉRIA DE CAPA

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os avanços da psiquiatria vão chegar às políti-cas de saúde pública com tamanha dissociação. No caso em questão parece que o foco de crise envolve a psiquiatria, e não ocorre dentro dela.

Pensemos então que temos diferentes modelos, é bom que se ressalte que são muitos outros além dos que foram aqui mencionados: a inter-face da psiquiatria com questões psicológicas e sociais sempre tornou nossa área mais comple-xa. O fato é que nenhum desses modelos tem

se mostrado robusto o suficiente para expli-car o todo e eliminar os demais. Diante disso, creio que não estamos em posição de ignorar alguma dessas subáreas do conhecimento. Para continuar trabalhando precisamos usar nossos modelos reconhecendo seus limites, ao mesmo tempo em que reconhecemos que a psiquiatria é uma especialidade mais imatura do que gos-taríamos que fosse (Dobbs, 2013).

MATÉRIA DE CAPA

referênciAs

American Psychiatric Association, American

Psychiatric Association (Eds.), 2013. Diagnostic

and statistical manual of mental disorders: DSM-

5, 5th ed. ed. American Psychiatric Association,

Washington, D.C.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à

Saúde. Departamento de Atenção Básica., 2013.

Cadernos de Atenção Básica – Saúde Mental.

Editora MS, Brasília.

Dobbs, D., 2013. Psychiatry: A very sad story. Nature

497, 36–37. doi:10.1038/497036a

Frances, A.J., Nardo, J.M., 2013. ICD-11 should

not repeat the mistakes made by DSM-5. Br. J.

Psychiatry J. Ment. Sci. 203, 1–2. doi:10.1192/bjp.

bp.113.127647

Ghaemi, S.N., 2014. DSM-5 and the miracle that ne-

ver happens. Acta Psychiatr. Scand. 129, 410–412.

doi:10.1111/acps.12263

Insel, T.R., Quirion, R., 2005. Psychiatry as a clinical

neuroscience discipline. JAMA 294, 2221–2224.

doi:10.1001/jama.294.17.2221

Jablensky, A., 2010. Psychiatry in crisis? Back to

fundamentals. World Psychiatry Off. J. World

Psychiatr. Assoc. WPA 9, 29.

Kendler, K.S., First, M.B., 2010. Alternative futures for

the DSM revision process: iteration v. paradigm

shift. Br. J. Psychiatry 197, 263–265. doi:10.1192/

bjp.bp.109.076794

Maj, M., 2014. DSM-5, ICD-11 and “pathologization of

normal conditions”. Aust. N. Z. J. Psychiatry 48,

193–194. doi:10.1177/0004867413518825

Regier, D.A., Narrow, W.E., Clarke, D.E., Kraemer,

H.C., Kuramoto, S.J., Kuhl, E.A., Kupfer, D.J.,

2013. DSM-5 field trials in the United States and

Canada, Part II: test-retest reliability of selected

categorical diagnoses. Am. J. Psychiatry 170, 59–

70. doi:10.1176/appi.ajp.2012.12070999

Schmidt, H.D., Shelton, R.C., Duman, R.S., 2011.

Functional biomarkers of depression: diag-

nosis, treatment, and pathophysiology.

Neuropsychopharmacol. Off. Publ. Am. Coll.

Neuropsychopharmacol. 36, 2375–2394.

doi:10.1038/npp.2011.151

Page 10: 3ª Edição Jornal APRS

10

Mário Barcellos

Crise na psiquiatria

“O diabo desta vida é que, entre 100 caminhos,

temos de escolher apenas um e viver com a nos-

talgia dos outros 99”, escreveu Fernando Sabino

(1956). Talvez por ajudar a consolidar na minha

memória seus significados, a busca pela origem

das palavras sempre me encantou. Quando fui

pesquisar a etimologia de crise, logo me veio à

lembrança a frase de Sabino. Explico: o ancestral

mais antigo de crise é a raiz krei, do indo-euro-

peu (a “língua-mãe”, que deu à luz centenas de

línguas faladas no passado e no presente ao redor

do mundo). Krei significa “separar”, “distinguir”,

“decidir” e foi embrião de muitos vocábulos – en-

tre eles, no idioma grego, krisis. Curiosamente,

krisis tem seu nascedouro na linguagem remeti-

do a Hipócrates, que usou o termo há cerca de

2.500 anos para se referir ao ponto na evolução

de uma doença em que ou haveria uma progres-

são (potencialmente fatal) do processo patológi-

co ou uma regressão para a cura. A latinização

fez krisis transmutar-se em crisis, que manteve

significado estritamente médico até 1627, quando

foi registrado pela primeira vez na língua inglesa

seu uso mais abrangente no sentido de “momento

decisivo”. Como síntese desse preâmbulo, o que

fica é que crise carrega em sua história etimológi-

ca, além da conexão umbilical com a medicina, a

acepção de uma encruzilhada: a altura em que um

caminho se pluraliza em caminhos e nos demanda

fazer escolhas transformadoras.

Diferentemente de qualquer outra especialida-

de médica, a psiquiatria esteve desde sempre

em questionamento. Uma rápida averiguação no

PubMed por artigos com crisis e psychiatry no título

fornece 113 resultados, o mais antigo remetendo

a 1947. Para comparar, fiz pesquisas semelhantes

trocando psychiatry por cardiology, pneumology,

endocrinology e dermatology. Imagino que não

seja necessário descrever aqui os resultados. As

interrogações sobre a psiquiatria surgiram muitas

vezes de forma legítima, como na constante cons-

trução e desconstrução de diferentes hipóteses te-

óricas para explicar fenômenos clinicamente ob-

servados e na procura pela comprovação empírica

de tais hipóteses. Outras tantas vezes, contudo,

despontaram de forma controversa ou, no míni-

mo, infeliz na sua denominação. Reforma psiquiá-

trica e antipsiquiatria me parecem bons exemplos

dessa infelicidade, pois produzem um argumento

(para mim) falacioso partindo da (para mim) falsa

premissa de que as mudanças na psiquiatria hão

de ocorrer de fora para dentro, ao invés de dentro

para fora, como é o natural de qualquer ciência

em permanente evolução.

Na alvorada do século XX, mais de cem anos atrás,

depois de elaborar algumas propostas por conta

própria (particularmente no “Projeto para uma psi-

cologia científica” [1895]), Sigmund Freud (1900),

em “A interpretação dos sonhos”, previu que um

dia descobrir-se-ia a base orgânica dos aconte-

cimentos mentais. Em 1997, Nancy Andreasen,

então editora do American Journal of Psychiatry,

afirmou que “dados convergentes de múltiplas

MATÉRIA DE CAPA

Page 11: 3ª Edição Jornal APRS

11

MATÉRIA DE CAPA

técnicas neurocientíficas indicam que os meca-

nismos neurais das doenças mentais podem ser

entendidos como disfunções em circuitos neurais

específicos e que suas funções e disfunções podem

ser influenciadas por diversos fatores cognitivos e

farmacológicos”, concluindo que “esses avanços

criaram uma era em que uma psicopatologia cien-

tífica que une mente e cérebro tornou-se realida-

de”. Passados quase vinte anos dessa declaração,

no entanto, sinto que uma expressão como “psico-

patologia científica” não corresponde à realidade

clínica. O que vejo como panorama atual é, na ver-

dade, uma atenuação da expectativa de que logo

encontraríamos uma explicação neurofisiológica

dos transtornos mentais (o que nos permitiria fa-

lar mais em doença e menos em transtorno) e de

que, como consequência natural, nos aproximarí-

amos de intervenções terapêuticas mais efetivas

do que aquelas das quais dispomos hoje. Como

frisou Jablensky (2010), “os dramáticos avanços

das ciências biológicas básicas nas últimas duas

décadas transformaram áreas inteiras da medici-

na”, mas “esse tipo de transformação não ocorreu

na psiquiatria: praticamente nenhum dos recentes

avanços na neurociência e na genética molecular

se traduziu em ferramentas clínicas práticas, mar-

cadores de doença, tratamentos ou novos paradig-

mas conceituais dentro da nossa compreensão da

natureza dos transtornos mentais”.

O DSM-5, antes de sua redação final, foi investido

do papel de cavaleiro da esperança da psiquiatria:

finalmente sairíamos do fenomenológico-descriti-

vo e passaríamos a ser vistos como gente grande,

como médicos de verdade, pelos demais ramos

da medicina. Tendo feito parte do grupo de revi-

são técnica da edição brasileira e, assim, tendo

lido boa parte do DSM-5 com atenção redobrada,

posso afirmar que não há ali qualquer sinal de um

novo cânone. Isso não é uma crítica nem neces-

sariamente um problema: nossas classificações

diagnósticas espelham o momento da psiquiatria

como campo de conhecimento e apenas reforçam

a complexidade ao mesmo tempo assustadora e

fascinante da nossa tarefa.

Talvez aqui a acepção original do termo crise

como ponto de inflexão seja particularmente útil.

Um presente que mistura expectativa, frustração e

realidade oportuniza, evocando a raiz etimológica

krei, separações, distinções e decisões. Mais do

que promover apreensão, toda crise pode gerar

reflexão e ação. Kohn et al. (2004), em boletim da

Organização Mundial da Saúde, apontaram a exis-

tência de enormes lacunas no cuidado em saúde

mental ao redor do mundo. Estima-se que mais

de metade dos casos de esquizofrenia, depressão,

transtorno bipolar, transtornos por uso de subs-

tâncias e transtornos de ansiedade permaneça

sem tratamento. Dentre as vinte maiores causas

de anos vividos com incapacidade, sete são trans-

tornos mentais. Não resta dúvida de que, mesmo

na relativa aridez da nossa psiquiatria atual, há

muito por fazer.

Lembro os tempos de residência médica no

Hospital de Clínicas (como toda boa residência,

uma espécie de torre de Babel onde psiquiatras

em formação ouvem línguas completamente dís-

pares e procuram absorver tudo e desenvolver um

jeito próprio de pensar), quando a queixa mais

recorrente da turma quanto ao programa teórico

era a ausência de seminários de psicopatologia –

não a científica, ainda distante, mas a tradicional.

Não desejo generalizar, mas é possível que, em

boa parte das escolas de psiquiatria, a promessa

de bases biológicas mais sólidas tenha causado,

como efeito colateral, uma negligência dos aspec-

tos essenciais da especialidade, como o aprendi-

zado da escuta e dos pormenores semiológicos e

psicopatológicos. Acredito que não seja acaso o

fato de, depois de um período durante o qual se

propalou a moribundez da psicanálise, as socie-

dades psicanalíticas (e aqui conto com a experi-

ência na Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre)

estarem tendo grande procura de psiquiatras pela

formação. Voltando a Jablensky (2010): “O cami-

nho a seguir para nós como profissão aponta para

uma necessidade de recuperar assertivamente a

base de conhecimento da psicopatologia que com-

bina as perspectivas de compreensão e explicação

Page 12: 3ª Edição Jornal APRS

12

dos fenômenos da doença mental e que é capaz de

integrar dinamicamente conceitos novos, dados e

avanços tecnológicos dos campos da neurociência,

da genética e da epidemiologia”.

Algum tempo atrás, a Eneida Iankilevich fez uma

apresentação sobre “modelos de mente em psi-

quiatria” e consultou alguns colegas sobre qual

modelo de mente era pensado por cada um. Ao re-

ceber o contato dela, fui ao Google para ver o que

surgia sobre o tema. Um dos resultados falava da

diferença entre homens e animais: os animais, do-

tados de cérebro, seriam autômatos e os homens,

dotados de mente e cérebro, seriam pensantes.

Então recordei Vinicius de Moraes (1962), que, em

dado momento de um texto em que descreve um

momento de separação de um casal sob o pon-

to de vista do homem, diz: “Sabia que era aquela

a sua amada, por quem esperara desde sempre

e que por muitos anos buscara em cada mulher,

na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também,

que o primeiro passo que desse colocaria em mo-

vimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo

como um autômato, de sair, andar, fazer coisas,

distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais”.

Vinicius usa o termo “autômato” para caracterizar

o homem enlutado, distanciado e privado de um

afeto imenso – um grande amor. Meu pensamen-

to começou a voar e me ocorreu que o conceito

de mente é imprescindível (embora vivamos hoje,

como disse a psicanalista Hanna Segal [2010], em

uma cultura antimente) como espaço para o afeto.

Por mais que se fale de amígdala, hipocampo, cór-

tex pré-frontal e estruturas afins, o cérebro não

me parece ainda suficiente para explicar o mun-

do afetivo. Pensar em cérebro excluindo a men-

te me passa uma ideia de automatismo, de des-

carte da subjetividade e das emoções. O cérebro

pode ser a “máquina de viver”, mas não há senti-

do para esse viver quando ele não inclui o sentir.

Para sentir, para costurar os retalhos e fazer uma

colcha com as informações que o cérebro recebe,

temos algo que chamamos de mente – a “função

geradora de metáforas”, nas palavras de Meltzer

e Williams (1988). Concluí, em resposta à Eneida,

que talvez esse seja meu modelo de mente em

psiquiatria: o modelo dos afetos, das emoções,

dos vínculos, da jornada por uma explicação para

os fenômenos mentais a partir das relações intra

e intersubjetivas. Dentro desse modelo, se entre-

cruzam inconsciente, serotonina, objetos inter-

nos, mecanismos neurais, superego, processo in-

flamatório, fantasia, realidade externa, vivências

infantis, genética, psicanálise, psiquiatria clínica

e todas as demais influências e informações com

as quais já tive contato. Não é um modelo que ex-

plica tudo, mas me parece um prólogo da procura

por alguma explicação e algum sentido em meio

ao caos – ou quem sabe em meio à crise.

Buscando alguma forma de conclusão, sugiro que

observemos a crise na psiquiatria, portanto, pelo

vértice do momento decisivo: como chance e pon-

to de partida para revisar a trajetória dos últimos

anos e começar a preparar o terreno – fundamen-

tando-se em princípios cada vez menos excluden-

tes e mais integrativos – para nossa caminhada

de amanhã. Afinal, lembrando Guimarães Rosa

(1956), aprender a viver é que é o viver mesmo.

referênciAs:Andreasen, N. (1997). Linking mind and brain in the

study of mental illnesses: a project for a scien-tific psychopathology. Science, 275:1586-1593.

Jablensky, A. (2010). Psychiatry in crisis? Back to fundamentals. World Psychiatry, 9(1):29.

Kohn R, Saxena S, Levav I, Saraceno B. (2004). The treatment gap in mental health care. Bulletin of the World Health Organization. 82 (11): 858-66.

Meltzer, D., Williams, MH. (1988). A apreensão do belo: o papel do conflito estético no desenvol-vimento, na violência e na arte. Rio de Janeiro: Imago, 1994.

Moraes, V. (1962). Para viver um grande amor. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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Andréa Poyastro Pinheiro

A psiquiatria está em crise?

Crise – estamos inundados por ela. Crise em nosso estado, o Rio Grande do Sul, afinal, es-tamos falidos. Crise no Brasil, política e econô-mica. Podemos definir crise como um momento difícil na evolução ou em um processo. Com tudo isso acontecendo a nossa volta, também pensamos sobre nosso trabalho como médi-cos e psicoterapeutas, nossos pacientes e no constante questionamento ao longo de nossa vida profissional – estamos mesmo fazendo a diferença para pessoas que nos procuram com sofrimento? Ajudamos mais alguns do que a outros? O que fazer para melhorar a qualidade do nosso trabalho? Lembro bem da minha for-mação como psiquiatra no final dos anos 80 e início dos anos 90, em uma instituição de orien-tação psicanalítica. Ao terminar meu curso de especialização, deparei-me com o lançamento da fluoxetina em nosso meio, a década do cé-rebro se iniciava, e eu, jovem profissional no início da carreira, enchi-me de esperança, pois, finalmente, poderíamos compreender melhor o funcionamento da mente humana, pensando no cérebro como o seu órgão, e utilizar medica-ções mais efetivas, com menos efeitos colate-rais, que poderiam ser grandes auxiliares em nosso trabalho psicoterápico. Hoje olho pra trás e não consigo deixar de sentir um certo desapontamento, e também pensar que talvez tenha sido ingênua. Deste ponto de vista, sinto--me em crise com a psiquiatria.

O psiquiatra americano, Richard Friedman, pu-blicou no New York Times, em julho último, um artigo chamado “Psychiatry’s Identity Crisis”. Nele, Friedman, descreve com clareza a crise da psiquiatria contemporânea, dentre tantas pelas quais passou desde sua criação no século XIX. As palavras de Friedman ecoaram dentro de

mim. Ao mesmo tempo que as pesquisas em neurociência não trouxeram benefícios relevan-tes para a prática clínica em psiquiatria, como era a expectativa, os medicamentos evoluíram muito pouco desde as décadas de 50 e 60 do século passado, quando os primeiros remédios psiquiátricos foram lançados, e continuam ten-do como alvo os mesmos receptores e neuro-transmissores no cérebro que seus precursores (apesar dos medicamentos modernos causa-rem distintos efeitos colaterais em comparação com os mais antigos, seus efeitos terapêuticos continuam basicamente os mesmos, não obs-tante a propaganda da indústria farmacêutica). Portanto, a esperança de que as pesquisas ini-ciadas na “década do cérebro” resultassem em consideráveis avanços para a psiquiatria não alcançou sua ambiciosa meta. Um retorno às psicoterapias poderia representar uma saída para este impasse? Segundo Friedman, sim, pois inúmeros estudos tem apontado para o tratamento psicoterápico como sendo tão efi-caz quanto as medicações psicotrópicas para os transtornos psiquiátricos comuns, como depressão e ansiedade. Além disso, maioria

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dos norte-americanos prefere, claramente, psi-coterapia do que medicação (J Clin Psychiatry 2013 June ; 74(6): 595-602 Patient Preference for Psychological vs. PharmacologicalTreatment of Psychiatric Disorders: A Meta-Analytic ReviewR. Kathryn McHugh, Ph.D. et al). Infelizmente, não temos estudos desta natureza no Brasil e, em nosso meio, assim como em outros países, ob-servamos que as pessoas tem se dedicado cada vez menos aos tratamentos psicoterápicos em função de seus custos, da baixa disponibilidade de profissionais nos ambulatórios, e também talvez na busca do alívo rápido e da dificulda-de de encarar um processo que envolve algo de “sangue, suor e lágrimas” (que o processo de auto-conhecimento requer). Além disso, há, cada vez mais, uma excessiva medicalização dos pacientes, inclusive para sintomas que po-deriam melhorar através de psicoterapia.

Para Friedman, muitos dos pacientes que che-gam nos consultórios psiquiátricos relatam problemas para os quais não há medicação que possa aliviar tais sofrimentos – um histó-rico de trauma, perdas, abuso sexual, pobre-za ou privação, por exemplo. Da mesma for-ma, é um equívoco conceber problemas como a depressão e a ansiedade meramente como disfunções cerebrais passíveis de intervenção medicamentosa. Segundo ele, “o fato de todos os sentimentos, pensamentos e comportamen-tos necessitarem da atividade do cérebro para acontecer não significa que a única ou a melhor forma de mudá-los – ou entendê-los – é com a medicina”. Determinadas medicações podem melhorar consideravelmente o humor e dimi-nuir a frequê ncia e a intensidade de quadros psicóticos de alguns pacientes. No entanto, Friedman afirma que “não existe uma pílula – e provavelmente nunca existirá – para quaisquer dos problemas emocionais dolorosos e pertur-badores a que estamos sujeitos… Muitas vezes não existe nenhum substituto para a auto-com-preensão que vem com a psicoterapia”.

Pelo exposto, a crise da psiquiatria a que esta-mos nos referindo, e reagudizada há dois anos atrás com a nova edição do DSM, em sua quinta versão, coloca-nos diante da seguinte questão: um dia serão reunidos conhecimentos bioló-gicos suficientes para demonstrar de maneira inequívoca a doença física que se expressa no campo mental, de forma semelhante ao que é feito nas demais especialidades médicas?

Mesmo Freud expressou a convicção de que, um dia, diversos conceitos de sua teoria en-contrariam seu correspondente objetivo nas ciências naturais. Contudo, seu legado foi um dos que mais contribuíram para que a psicopa-tologia pudesse ser pensada de forma indepen-dente em relação à ciência médica, embasando, assim, a prática clínica no campo da psiquiatria.

A crise atual, no meu entender, está também em nós, médicos, podermos reconhecer que um fenômeno psicopatológico não pode ser ade-quadamente descrito e compreendido somen-te através da linguagem das ciências naturais/médicas. É viável fazer a descrição de um fato de natureza psicopatológica através de uma lin-guagem estritamente biológica, reduzindo-o à categoria médica de “doença”? Ao tentar elabo-rar um sistema diagnóstico sem se recorrer a qualquer registro da subjetividade do paciente, nem à contextualização histórica e cultural das manifestações clínicas, não se estaria descar-tando justamente o plano psicopatológico do sofrimento psíquico?

A psiquiatria deverá seguir seu curso conflitu-oso na busca pelo avanço neurocientífico, mas também na integração destes conhecimentos dentro da individualidade e realidade de cada ser humano que está em busca de ajuda. Sigo em crise, pensando nela como algo positivo, que nos inquieta, que nos faz questionar e bus-car respostas, pois, nós psiquiatras, escolhe-mos uma especialidade que necessita conquis-tar seu espaço sui generis dentro da medicina.

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Eugênio Grevet

Crise na psiquiatria ou na formação psiquiátrica?

Desde o primeiro dia que ingressei nesta carrei-ra maravilhosa, ouço discussões infindáveis so-bre suas “oscilações pendulares”, sua perda de humanidade e sua “atual” mediocridade (mesmo que repitamos isso há mais de 20 anos). A des-peito das eternas profecias apocalípticas, vejo a psiquiatria mais viva e complexa do que nunca. Muitos desses argumentos são, na verdade, ra-cionalizações que servem para esconder a me-diocridade de nossa formação. Por exemplo, se por um lado o avanço das neurociências propi-ciou à psiquiatria tratamentos altamente efica-zes e uma identidade médica plena, por outro reduziu o interesse de alguns profissionais em se capacitar para lidar com a subjetividade para além do bom senso e da simpatia pessoal (que alguns chamam de arte). O contrário também pode ser observado naqueles que vêm na subje-tividade a única maneira de abordar as doenças mentais (sofrimento psíquicos preferem cha-má-las) e não permitem que seus pacientes se beneficiem de terapêuticas somáticas eficazes. É neste vácuo formativo que vêm se infiltran-do duas pseudociências que realmente podem abalar a psiquiatria. A saber, a antipsiquiatria e o misticismo. Na realidade, o que temos que enfrentar é a complexidade de uma formação que nos permita exercer uma psiquiatria ampla do ponto de vista científico e humano.

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Lucas Spanemberg

A psiquiatria está em crise?

Acredito que a psiquiatria é uma especialidade de vanguarda e por isso atravessa diversas “cri-ses” ao longo de sua história. Essas “crises” não são, entretanto, indesejadas, mas pelo contrá-rio, são inerentes ao processo de construção do conhecimento e superação de produtos histo-ricamente situados (construtos e sínteses). Do ponto de vista científico e epistemológico, o cé-rebro, o psiquismo e o comportamento e suas interações com a cultura, a sociedade e o meio irão produzir sempre fenômenos complexos que desafiam a construção de fronteiras claras entre o que é ou não normal. Nesse sentido um grande desafio da psiquiatria encontra-se vol-tado para a formação de profissionais capazes de ao mesmo tempo estarem apropriados dos acúmulos históricos da disciplina, mas que tam-bém transitem bem com a dúvida, a curiosidade e a inconformidade com dogmas e conhecimen-tos saturados, sempre buscando a finalidade última da especialidade: o alívio do sofrimento dos pacientes.

Existe, entretanto, uma crise atual indesejada na psiquiatria, relacionada ao atendimento de saúde mental gerenciado pelo Estado, onde a especialidade deveria se situar como disciplina fundamental na construção do sistema de assis-tência. Na realidade, o que assistimos é o aban-dono do Estado na construção de um sistema de atendimento em saúde mental que incorpore os progressos e ferramentas desenvolvidas ao longo de décadas. O modelo de desinstitucio-nalização e as ferramentas auxiliares (como os CAPS) não foram capazes de dar conta da de-manda dos psiquicamente enfermos e apenas reproduziram a imposição de um modelo ideo-lógico que resiste a admitir que a existência de transtornos mentais vá além de suas interações

socioculturais. Enquanto isso assistimos pa-cientes com transtornos mentais sem nenhuma assistência adequada, filas de casos que pre-cisariam de medicações, internações e consul-tas com especialistas simplesmente entregues à cronificação e deterioro de suas potenciali-dades psíquicas. Essa crise só será minimiza-da com a inserção do psiquiatra como figura fundamental na assistência em saúde mental, reconhecendo seu papel insubstituível.

Conclusão:

Greenberg afirmou que o maior problema da Psiquiatria pode consistir em uma relutância em admitir sua imaturidade. Somos uma especiali-dade nova e há provavelmente muito ainda por se desenvolver. Além disso, é inerente à história de qualquer construção teórica, o surgimento de impasses e questionamentos. Nesse sentido, como argumentado por Zimmermann (2007), observamos que, por um lado, qualquer crise pode ter um significado positivo quando ela representa a culminância de um processo que

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sugere necessárias transformações profundas, por outro, pode ter um significado negativo quando ela estiver indicando que algo está per-dendo a consistência e a unidade.

Em vista disso, cabe a nós, estudiosos e pra-ticantes da Psiquiatria, escolher de que modo nos colocaremos em relação ao momento atual e como resignificaremos nossa própria identidade.

referênciAs

ZIMERMAN, DE. Fundamentos Psicanaliticos: Teoria,

Técnica e Clínica: uma abordagem didática. Porto

Alegre: Artmed, 2007.

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BARKIL-OTEO A. Psychiatry’s identify crisis. The

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Dr. Rodrigo Grassi e o Núcleo de Psiquiatras em formação da APRS

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Jornada de Psiquiatria da APRS reuniu mais de 400 congressistas

Fórum científico centrou temática na vulnerabilidade, explorando suas inúmeras facetas

O mês de setembro marcou a realização da XII Jornada de Psiquiatria, promovida pela APRS. Mais de 400 profissio-nais, pesquisadores e acadêmi-cos das áreas da Saúde acompa-nharam os debates, ocorridos no Serrano, em Gramado, nos dias 3, a 5. “Caminhos da Vulnerabilidade” foi o título que norteou as 14 mesas redondas e sete conferências, além de seminários, simpósios, fóruns e workshop.

Palestrantes nacionais e inter-nacionais exploraram inúme-ras temas como dependência química, depressão, deficiência psicossocial, TDAH, envelhecimento, Transtorno Bipolar, psicofarmologia, entre outros.

A vulnerabilidade foi analisada não somente sob a ótica das situações vividas pelos pacientes, mas também pelos profissionais. Além de me-sas redondas que abordavam as fragilidades que atingem os psiquiatras dentro do consultório, fo-ram discutidas as fragilidades da Psiquiatria. A análise sobre a existência de uma crise na espe-cialidade encerrou as atividades da Jornada no final da tarde de sábado.

O debate, iniciado pelo diretor científico da APRS e coordenador da Jornada, Rodrigo Grassi de Oliveira, contou com a participação de di-versos profissionais que estavam na plateia. O

microfone circulou entre os congressistas e to-dos tiveram espaço para contar suas experiên-cias clínicas e registrar sua opinião.

Ao final, foram reconhecidos os melhores traba-lhos científicos inscritos na Jornada (confira o re-sultado nas próximas páginas).

Convidados internacionais trouxeram sua visão

A APRS trouxe, pela primeira vez ao Brasil, um dos maiores especialistas mundiais em neuro-biologia dos maus-tratos na infância, o profes-sor Martin H. Teicher. Professor de psiquiatria na Escola de Medicina da Universidade de Harvard, o convidado falou sobre as consequências dos

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maus-tratos em períodos críticos do desenvolvi-mento do indivíduo, com danos permanentes no desenvolvimento e nas funções cerebrais.

O psiquiatra e geneticista norte-america-no Claude Robert Cloninger, da Washington University, falou sobre uma das principais teo-rias da personalidade, de sua autoria, que ‘e o Modelo Tridimensional. Também foi responsável pela conferência intitulada “ Vulnerabilidades Genéticas e Psiquiatria” .

Guillermo Julio Montero, psicanalista membro da International Psychoanalitical Association e diretor da Fundación Travessia, organização uruguaia dedicada à pesquisa e assistência às questões psicológicas decorrentes da transição e crise de meia idade, fez duas conferências sobre o assunto. A holandesa Baudewijntje Kreukels, pesquisadora do Center of Expertise on Gender Dysphoria e do Departmento de Psicologia

Medica da Universidade de Amsterdam, falou sobre “Disforia de Gênero e Transtornos do Desenvolvimento Sexual”.

“Para onde a psicofarmologia está ruman-do” teve como palestrante o norte-americano Klaus Miczek, professor titular de Psicologia, Farmacologia, Psiquiatria e Neurociências da Tufts University (Medford/Boston) e editor do im-portante periódico Psychopharmacology.

O evento marcou, ainda, a realização do I Encontro Sul-Riograndense de Mindfulness, O evento ocorreu na sexta-feira com duas mesas redondas e um workshop, bastante concorrido, no sábado pela manhã.

O coordenador Rodrigo Grassi-Oliveira destacou que a Jornada de Psiquiatria é a devolução da APRS aos seus associados, oferecendo um am-biente de alta qualidade e convidados de renome.

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A Jornada da APRS, mais uma vez, foi um espa-ço de reencontros e novos contatos. O evento reafirmou sua importância também como um momento de confraternização entre colegas. Barbara Santos, residente na área de Psiquiatria, e Alex Vicente Spadini, recém-graduado em Medicina, criaram, ainda quando estudantes, a Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Durante a Jornada, acompanhavam os acadêmicos Thayna Miranda, Matheus Makrakis, Daniel Arenas e Victor Maciel durante as mesas redondas e conferências. Os quatro são responsáveis por dar continuidade à Liga Acadêmica. O grupo foi unânime nos elogios à programação do fórum científico. “Já participei de outras Jornadas e esta edição ofereceu uma abordagem mais acessível, ao mesmo tempo em

que tratou sobre temas de ponta e aplicáveis na prática clínica”, destacou Alex.

Apesar de todos integrarem a Fundação Universitária Mário Martins (FUMM), de Porto Alegre, são raros os momentos onde eles po-dem se reunir de forma presencial por conta dos compromissos profissionais. Por esse motivo, os médicos psiquiatras Carla Aladren Taroncher, Danitsa Rodrigues, Cibele Milagre, Eduardo Felix e a psicóloga Jussara Lerrer aproveitavam os in-tervalos do evento para colocar os assuntos em dia, bem como debater os temas tratados duran-te a programação, tomando como base a expe-riência de cada um. “As redes digitais têm sido a ferramenta mais utilizada para nos comunicar-mos, mas nada substitui esse contato direto”, avaliou Carla, com a concordância do grupo.

Oportunidade para confraternizar

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APRS estimula estudos inovadores em saúde mental durante a Jornada

Pesquisadores tiveram espaço de destaque na progra-

mação da XII Jornada de Psiquiatria. Com um total de

83 trabalhos científicos submetidos e 74 aprovados, a

APRS, mais uma vez, reconheceu estudos inovadores,

estimulando assim a produção acadêmica na área da

saúde mental e a disseminação dos resultados entre

os profissionais.

A lista de resumos aprovados pela comissão científica

está disponibilizada na home page da APRS. Os mais

qualificados estudos ainda foram destacados com as

láureas Professor Paulo Luís Vianna Guedes e Cyro

Martins (leia mais sobre cada trabalho a seguir).

O primeiro premio, que tem por tradição destacar

o melhor artigo sob o tema “Assistência, Ensino ou

Pesquisa em Psiquiatria”, teve como vencedor o es-

tudo “Interação gene-ambiente na depressão em

jovens: replicação da moderação dos efeitos dos

maus-tratos infantis pelo genótipo 5-HTTLPR em uma

amostra brasileira”. Seus autores são Thiago Botter

Maio Rocha, que apresentou o projeto, subscrito

por Mara Helena Hutz , Angélica Salatino-Oliveira,

Júlia Pasqualini Genro, Guilherme Vanoni Polanczyk,

Guilherme Vanoni Polanczyk, João Ricardo Sato,

Fernando Cesar Wehrmeister, Fernando Celso Barros,

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Ana Maria Baptista Menezes, Luis Augusto Rohde,

Luciana Anselmi e Christian Kieling.

Já o reconhecimento Cyro Martins, concedido ao me-

lhor trabalho exposto durante a Jornada, foi para o tra-

balho intitulado “Estresse Precoce Altera a Transcrição

de RNAm de Caderinas Tipos I E II no Hipocampo de

Camundongos”. O autor principal, Lucas Araujo de

Azeredo, contou com o suporte de Thiago Wendt

Viola, Luis Eduardo Wearick da Silva, Anderson

Centeno, Rodrigo Orso e Rodrigo Grassi de Oliveira.

O objetivo é incentivar psiquiatras ou pesquisadores

em início de carreira que estejam desenvolvendo, ou

desejem desenvolver atividades de pesquisa de rele-

vância na área de Psiquiatria.

Os trabalhos foram premiados com inscrições gratui-

tas aos autores principais para a próxima Jornada de

Psiquiatria e certificado de reconhecimento do mérito.

Rodrigo Grassi de Oliveira destaca que foram consi-

deradas somente contribuições inéditas, originais e

enquadradas no escopo do evento, tendo sido vedado

aos autores submeter trabalhos já divulgados e pes-

quisas em fase de planejamento.

MATÉRIA DE CAPA

“Interação gene-ambiente na depressão em jovens:

replicação da moderação dos efeitos dos maus tra-

tos infantis pelo genótipo 5-HTTLPR em uma amos-

tra brasileira” foi o tema da dissertação de mestra-

do no PPG de Psiquiatria da UFRGS de Thiago Rocha

e cujo resultado teve o reconhecimento Paulo Luís

Vianna Guedes na Jornada de Psiquiatria.

O médico psiquiatra explica que o objetivo foi

buscar a replicação dos resultados originalmente

obtidos por Caspi e colaboradores em 2003 em

um dos estudos que geraram mais polêmica acerca

de seus resultados na última década, quando os

autores puderam identificar que a relação entre

maus-tratos infantis e desenvolvimento de depres-

são no início da vida adulta era modificada confor-

me a genética do indivíduo para um polimorfismo

relacionado ao transportador da serotonina.

Thiago lembra que a replicação de achados científi-

cos tem sido apontada como elemento chave para

o desenvolvimento sustentado da ciência de manei-

ra geral, algo que vem sendo cada vez mais busca-

do também na pesquisa em saúde mental. “Nossos

achados reforçaram o conceito de interação entre

fatores genéticos e ambientais, conhecida como

interação gene-ambiente, no surgimento dos trans-

tornos mentais, uma vez que o impacto dos maus

tratos ocorridos na infância foram moderados pelo

genótipo do 5-HTTLPR do indivíduo, alterando o

risco desses maus tratos influenciarem o surgimen-

to da depressão no início da vida adulta”, indica.

Para ele, em tempos de ceticismos e desconfianças

sobre a validade dos resultados obtidos em estu-

dos científicos, identificar resultados similares ao

estudo original, agora em uma amostra de indiví-

duos originários de um contexto sociocultural com-

pletamente diferente, reforça o conceito da exis-

tência de fatores genéticos e ambientais que atuam

de maneira combinada na etiologia dos transtornos

mentais, especificamente a depressão maior.

“O reconhecimento obtido dos pares é sem dúvida

o maior desafio e, ao mesmo tempo, o maior es-

tímulo da área da pesquisa. A APRS está de para-

béns por seguir estimulando o desenvolvimento

da pesquisa em saúde mental no Brasil e auxiliar

na manutenção da psiquiatria do RS em posição de

vanguarda tanto em âmbito nacional como interna-

cional”, declara o profissional.

Os resultados da pesquisa não param por aqui.

O artigo está disponível online e foi publicado na

edição impressa de outubro de 2015 do American

Journal of Psychiatry.

Thiago é médico formado pela UFRGS, Psiquiatria

e Psiquiatria da Infância e Adolescência pelo

Hospital de Clínicas de Porto Alegre/UFRGS, mestre

em Psiquiatria pela UFRGS, doutorando do PPG

Psiquiatria/UFRGS e coordenador do CAPSi do

Hospital de Clinicas de Porto Alegre (HCPA).

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1. EFEITOS DO ESTRESSE PRECOCE NA TRANSCRIÇÃO DE RNAm DE CADERINAS TIPOS I E II NO CÓRTEX PRÉ-

FRONTAL DE CAMUNDONGOS (Rodrigo Orso, Lucas Araujo de Azeredo, Luis Eduardo Wearick da Silva, Thiago

Wendt Viola, Patricia Cruz e Rodrigo Grassi de Oliveira)

2. ASSOCIAÇÃO ENTRE BDNF E DESEMPENHO DE MEMÓRIA VERBAL EM USUÁRIAS DE CRACK (Roithmann, L.G.,

Tractenberg, S. G., VIola, T. W., Kluwe-schiavon B., Levandowski, M. L., Vieira, B. S., Wearick-Silva, L. E., Azeredo,

L. A., Grassi-Oliveira, R.)

3. EFEITOS DA SEPARAÇÃO MATERNA E DO EXERCÍCIO FÍSICO NO COMPORTAMENTO ANSIOSO E NA

TRANSCRIÇÃO DE RNAm DE NF-kB1 EM CAMUNDONGOS FÊMEAS (Emerson dos Santos Hoffmann, Luís Eduardo

Wearick-Silva, Lucas Araújo de Azeredo, Thiago Wendt Viola, Patrícia da Cruz, Bruna Dalcin Baldasso e Rodrigo

Grassi de Oliveira)

4. ALTERAÇÕES EPIGENÉTICAS DECORRENTES DO ESTRESSE PRECOCE EM CAMUNDONGOS MACHOS E FÊMEAS

(Tractenberg, S.G., Azeredo, L.A., Viola, T.W., Wearick-Silva, L.E., Centeno-Silva, A., Grassi-Oliveira, R)

5. ESCALAS DE AVALIAÇÃO DO ESTADO MANÍACO E DE DEPRESSÃO: CONCORDÂNCIA NA RESPOSTA A

MEDICAÇÕES ESTABILIZADORAS DO HUMOR EM UM OPEN-TRIAL RANDOMIZADO EM PACIENTES BIPOLARES

COM SINTOMATOLOGIA MISTA (Shansis, F.M., Reche, M., Capp, E)

MATÉRIA DE CAPA

Inscrito na área “Psiquiatria Biológica e

Neurociências” entre os trabalhos científicos sele-

cionados para a Jornada da APRS, “Estresse Precoce

Altera a Transcrição de RNAm de Caderinas Tipos

I E II no Hipocampo de Camundongos” recebeu o

Premio Cyro Martins. Seu autor, Lucas Araujo de

Azeredo, é biomédico (UFCSPA) com mestrado em

Farmacologia e Terapêutica Clínica (UFCSPA), dou-

torado em Genética e Biologia Molecular (UFRGS) e

pós-doutorando em Neuroimunologia (PUCRS).

Em sua pesquisa, ele concluiu que a exposição

ao estresse nos primeiros anos de vida é capaz

de conferir distintas trajetórias celulares e mole-

culares no desenvolvimento do sistema nervoso

central. Recentemente, moléculas específicas de

adesão celular (sobretudo as Caderinas) foram

elencadas como tendo papel fundamental na

regulação da plasticidade sináptica e no neurode-

senvolvimento. “O estudo mostrou que o estresse

precoce é capaz de desregular o sistema de adesão

de circuitos neuronais, alterando processos adapta-

tivos de redes neuronais em estruturas encefálicas

relacionadas com a memória”, explica.

Para Lucas, o resultado evidencia o papel de mo-

léculas de adesão celular na regulação de redes

neuronais, importantes sobretudo na plasticidade

neuronal. Ele aponta que é possível que eventos

estressores no início da vida promovam alterações

na sequência de vias neuronais, modificando pro-

cessos adaptativos intimamente relacionados com

o desenvolvimento do sistema nervoso central.

Intervenções terapêuticas que promovam ativação

de vias de adesão celular seriam capazes de pro-

mover, em um futuro próximo, distintas trajetórias

estruturais ao longo do desenvolvimento.

Para ele, o reconhecimento do estudo pela APRS

“converge para a importância de estudos pré-clí-

nicos na área de neurociências, sobretudo para a

transposição de conhecimentos para a aplicabilida-

de clínica na Psiquiatria”.

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Renata – em busca de terapia

Coordenação: Dr. Matias Strassburger, Dr. José Caetano Dell Aglio Jr, Dr. Gustavo Schestatsky e Dra. Bettina Fichbein.

CASOS CLÍNICOS

Em uma noite se sexta-feira, Renata, Márcia, Antônio e João reuniram-se em seu bar predi-leto, localizado a algumas quadras da univer-sidade. Após alguns minutos de bate-papo, a conversa ficou séria, quando Renata descreveu uma sensação recente de depressão (vinha as-sim há cerca de três semanas, com tristeza na maior parte dos dias, além de um mau humor notado por seus familiares). Apesar de ser uma estudante competente e confiante, estava com dúvidas quanto à sua capacidade de passar nos exames finais (um dos professores já havia assi-nalado uma queda acentuada em seu desempe-nho nos últimos testes do semestre). Também, disse que precisava se esforçar para ir à aula pela manhã e que aparecer no bar, naquela noi-te, tinha sido difícil pra ela – um ritual que nor-malmente era o ponto alto de sua semana.

Apontando para o sanduíche que acabara de ser servido, mencionou também que não tinha mais vontade de comer. Suas roupas estavam nitidamente mais folgadas, fato que ela até gos-tou. Renata, estudante de Biologia, tinha lido o suficiente sobre os sintomas da depressão para saber que provavelmente estava sofrendo dessa doença, pois apesar dos seus 22 anos, já era a terceira vez que isto acontecia (tendo sido a primeira vez aos 15 anos e a segunda aos 19 anos). Mencionou que havia vários casos semelhantes em parentes seus. No entanto, a leitura não havia esclarecido como escolher o melhor tratamento. Tinha lido em uma das re-vistas científicas, na biblioteca da Universidade, que os profissionais, atualmente, exerciam a Medicina Baseada em Evidências, a qual utiliza-va critérios bem estabelecidos e comprovados para o diagnóstico e tratamento dos transtor-nos. Precisava desesperadamente de conselhos

de seus amigos, em quem confiava muito, so-bre o caminho a ser seguido e a quem procurar.

João falou primeiro, mencionando a atenção que antidepressivos, como o Lexapro, vêm recebendo, sugerindo que, se tantas pessoas estavam usando há um bom tempo, devia fun-cionar. Então, como ele sabia que o médico de sua família havia prescrito antidepressivo para sua tia, que apresentava o mesmo quadro de depressão, sugeriu que Renata simplesmente consultasse o médico da família dela para que pudesse começar a tomar Lexapro.

Márcia, que era estudante de psicologia, colocou a sua preocupação de que um clínico geral, ape-sar de poder receitar medicamentos para doen-ças mentais, tem pouca formação para o diag-nóstico, a manutenção e o tratamento da maioria dessas doenças. Ela havia aprendido que os an-tidepressivos alteram o processo neuroquímico do cérebro e que todos deviam abordar a utiliza-ção desses fármacos com extrema cautela.

Como filho de psicólogo clínico, Antonio suge-riu que Renata falasse com seu pai sobre a tera-pia cognitiva. Disse que seu pai tentava instruir seus pacientes a mudarem a sua perspectiva cognitiva e oferecia-lhes estratégias para desen-volverem uma nova abordagem aos desafios da vida – como os exames semestrais de Renata.

Renata havia lido sobre algumas das terapias “de conversas” usadas por psiquiatras. Alguns deles ainda usavam noções introduzidas por Freud em sua abordagem terapêutica. Seus amigos concordaram que o momento da abor-dagem psicodinâmica, ou freudiana, prova-velmente já havia passado como tratamento. João, o aspirante a médico, falou novamente,

Por José Caetano Dell Aglio Jr

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CASOS CLÍNICOS

declarando que, como a depressão é uma doen-ça cerebral conhecida, seria melhor ir a um mé-dico especialista em cérebro – um neurologista.

Renata disse: “Viram o que eu quero dizer? É di-fícil saber a melhor estratégia de tratamento”. A literatura científica sobre a depressão, que ela havia consultado, consistia principalmente de pesquisas em uma disciplina totalmente dife-rente – neurociência comportamental. Contudo, embora os neurocientistas comportamentais pareçam ter muitas ideias para oferecer com relação ao tratamento de doenças mentais, eles não são clínicos, nem representam uma opção de tratamento.

Renata e seus amigos estavam perplexos com o quão difícil é para os pacientes que experimen-tam depressão verificar todas as informações para selecionar o tratamento mais apropriado.

Fica, então, a dúvida: qual o caminho a seguir?

ENFOQUE DA CLÍNICA PSIQUIÁTRICA: DR. MARCELO MORAES VICTOR

A jovem Renata recorreu à internet e a seus amigos para tentar resolver os sintomas que a estão incomodando. Ela e seus camaradas curiosamente repercutem e representam diver-sos conceitos e preconceitos, aos quais já esta-mos acostumados, a respeito da depressão, da psiquiatria e dos tratamentos disponíveis. Suas opiniões e dúvidas são um espelho das nossas próprias discussões intestinas, refletindo visões de outras áreas médicas e mesmo de profissões afins, embora por vezes concorrentes ou hostis, como a psicologia.

Os sintomas apresentados são típicos de uma síndrome depressiva, envolvendo humor, von-tade, pensamento e funções corporais. Como peritos no assunto, somos sem dúvida capazes de ajudá-la. Teríamos várias sugestões a fazer para Renata se estivéssemos à mesa naquele

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momento. Como primeira recomendação pode-ríamos argumentar que uma abordagem clínica mereceria consideração prioritária: exames fí-sicos e laboratoriais básicos seriam indicados para afastar qualquer surpresa clínica. Logo, um encaminhamento inicial isolado para um psicólogo não pareceria ser primeira opção nes-te caso particular. Da mesma maneira, não há evidência óbvia de conflito psíquico ou perda recente que expliquem seus sintomas e possam ser foco imediato em uma terapia de orientação analítica isoladamente utilizada.

O caso é a princípio para um psiquiatra, con-tudo neurologistas, médicos de família ou clí-nicos gerais experientes poderiam atender Renata, medicá-la e até realizar alguma psicote-rapia no caso, se habilitados a tal. A prevalência da depressão supera a capacidade de apenas psiquiatras a tratarem. Aparentemente não há risco de suicídio, isto poderia ser confirmado na primeira consulta e o tratamento conduzido em nível ambulatorial.

Confirmada uma depressão maior recorrente como hipótese diagnóstica após a avaliação inicial, uma terapia cognitivo-comportamental poderia ser indicada, assim como o uso de me-dicações, ou mesmo uma combinação de am-bas as abordagens. A recorrência do quadro também nos impõe que pensemos a médio e longo prazo. Mesmo uma abordagem dinâmi-ca, se recomendada e do interesse da paciente e do clínico, poderia ser considerada, preferen-cialmente, embora não obrigatoriamente, asso-ciada à medicação. Seria fundamental avaliar a possibilidade da presença de bipolaridade na própria paciente e em seus familiares de primei-ro grau, pelos eventuais riscos de virada (hipo)maníaca com o uso de antidepressivos. Seria interessante também que todas as opções fos-sem apresentadas, respeitando as preferências, a tolerância, a urgência subjetiva e as capaci-dades da paciente. Da mesma forma, o próprio

profissional que a atendesse faria bem em de-clarar sua formação e preferências. Diversas configurações e combinações, tanto de trata-mentos como de profissionais, seriam possíveis no seu caso. Entrariam na equação recursos fi-nanceiros, disponibilidade de acesso a serviços públicos habilitados, crenças em saúde/doença e as preferências da paciente. Um antidepressi-vo poderia ser recomendado entre os mais de 30 disponíveis no mercado. Pelo perfil de eficá-cia e eficiência, baixo risco e efeitos colaterais geralmente suaves, um ISRS ou ISRSN seriam a princípio indicados. Renata seria devidamente informada dos riscos e benefícios do uso das medicações, da necessidade de aguardar algu-mas semanas para a melhora ocorrer e da pos-sibilidade de não haver resposta ou remissão completa, podendo ser também igualmente in-formada dos limites das psicoterapias eventual-mente utilizadas.

As dúvidas de Renata e seus amigos são em grande parte as mesmas com as quais nos de-frontamos na clínica psiquiátrica. Continuam muito vivos na população preconceitos contra a psiquiatria, os transtornos mentais e seus tratamentos. Sofremos pressões e influências de ideologias antipsiquiátricas, de orçamentos magros para a saúde e da mídia. A indústria farmacêutica está presente em congressos, as-sim como em nossos consultórios. Dispomos de diversas concepções sobre os quadros clí-nicos, com vários níveis de comprovação cien-tífica e, especificamente em nosso meio, uma respeitável tradição psicanalítica. Nossa prática acontece em meio a uma mudança de paradig-mas da psicanálise para a biologia e a terapia cognitivo-comportamental como concepções dominantes. Parece pouco inteligente para nós, como clínicos, descartar selvagemente contri-buições óbvias da psicanálise apenas porque é difícil testá-las pelo método científico. A MBE hoje impera, favorecendo e comprovando con-ceitos e práticas mais facilmente mensuráveis,

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CASOS CLÍNICOS

como os fármacos e diversas psicoterapias. Opção robusta porque utiliza a matemática para a produção de conhecimento, a MBE não é imune à manipulação e aos modismos. Já temos história suficiente na psiquiatria para concluir que nossas verdades são, como disse Popper, eternamente provisórias. Há muitos modos de alcançar a verdade. Mesmo em casos em que os medicamentos são absolutamente necessá-rios, conceitos psicanalíticos podem, por exem-plo, auxiliar a compreender situações clínicas complexas subjacentes aos sintomas e melho-rar a adesão e resultado geral do tratamento farmacológico.

A correlação de forças entre as diversas concep-ções sobre a clínica alterou-se, mas não há ver-dades absolutas no horizonte imediato. Manter diversas opções conceituais e terapêuticas à

disposição pode ser uma vantagem sobre o fanatismo conceitual. A chance de um melhor desfecho provavelmente aumentará se os pro-fissionais envolvidos cultivarem duas virtudes básicas: a humildade e a tolerância. Humildade para reconhecer que não dominamos todas as áreas, que nenhuma concepção que pratique-mos dará conta de todas as complexidades em todos os casos. E tolerância para admitir a exis-tência de outras concepções, paralelas ou mes-mo divergentes do nosso sistema de crenças, que podem ser melhores e até mais eficazes, em determinados casos e em determinadas cir-cunstâncias, do que aquilo que frequentemen-te fazemos. De qualquer modo, será benéfico para Renata que o profissional que finalmen-te a atenda seja alguém livre de preconceitos. Alguém habituado a construir pontes, ao invés de cavar trincheiras.

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ENFOQUE COGNITIVO-COMPORTAMENTAL: DRA. DANIELA ZIPPIN KNIJNIK

Qual o caminho a seguir no caso de Renata?

Em se tratando de uma depressão recorrente e buscando a remissão dos sintomas, melhora em qualidade de vida, bem como prevenção de recaída, o caminho a seguir, em minha opinião, é o tratamento combinado (farmacológico mais Terapia Cognitivo Comportamental(TCC)).

Por que uma intervenção farmacológica?

Devido à intensidade dos sintomas (tristeza, mau humor, maior esforço para realizar tarefas rotineiras, sensação de incapacidade, perda de apetite e peso), história familiar de depressão e episódios depressivos anteriores (aos 15 e 19 anos), inicialmente uma intervenção farmacoló-gica seria importante para diminuir os sintomas mais incapacitantes e desconforto físico, além de

melhorar qualidade de vida e funções cognitivas, com consequente benefício nas sessões de TCC.

Por que TCC?

Beck e colaboradores (1987) propõem a hipó-tese da especificidade de conteúdo, onde cada transtorno mental possui o seu conteúdo cog-nitivo específico, ou seja, um modelo cognitivo próprio. Nesse sentido, a TCC, modalidade de terapia de curta duração, com protocolos espe-cíficos para cada transtorno vem se mostrando bastante promissora, em especial quando com-binadas ao tratamento farmacológico.

Aspectos Cognitivos da Depressão de Renata

Nas depressões, o cerne do conteúdo cognitivo é composto pela tríade cognitiva: três padrões cognitivos maiores que induzem o paciente a considerar a si mesmo, seu futuro e suas ex-periências de uma forma idiossincrásica. O

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primeiro componente da tríade consiste em uma visão negativa sobre si própria (no caso de Renata – dúvidas quanto à sua capacidade de passar nos exames finais). Em última análise o indivíduo subestima-se ou critica-se e acredita carecer de atributos que considere essenciais para alcançar felicidade e satisfação. O segun-do componente da tríade cognitiva consiste em uma tendência a interpretar suas experiências atuais de forma negativa (no caso de Renata – dificuldade em aparecer no bar com amigos naquela noite). O terceiro componente da tría-de consiste em uma visão negativa do futuro, uma sensação de fracasso eminente (no caso de Renata – precisava se esforçar para ir à aula de manhã).

Como eu estruturaria um protocolo de TCC para Renata?

• Avaliação cognitiva, comportamental e in-terpessoal: visa elucidar os eventos ativado-res de cognições disfuncionais, as temáticas mais recorrentes em conteúdo cognitivo, possíveis distorções cognitivas e estraté-gias compensatórias.

• Avaliação clínica: visa confirmar o diagnós-tico, mensurar gravidade do episódio de-pressivo, incluindo a avaliação de risco de suicídio e definir a escolha da modalidade terapêutica (considerando motivação, capa-cidade e preferência da paciente).

• Estabelecimento de objetivos e metas: de acordo com as distorções cognitivas de Renata, é elaborada uma lista de problemas bastante específica e “sob medida” (taylo-red) para essa paciente com possíveis so-luções em curto (se alimentar devidamente, ver alguns amigos durante o dia), médio (realizar atividade física, ver alguns amigos final de tarde, estudar matérias mais fáceis, procurar acordar com despertador para ir à aula) e longo (sair à noite com amigos, estu-dar todas as matérias).

• Familiarização com o modelo cognitivo (es-truturação e psicoeducação): a partir do primeiro encontro, o terapeuta, de forma colaborativa com o paciente, apresenta o modelo cognitivo da depressão e estrutura o tratamento ao revisar os objetivos e metas do mesmo, além de estabelecer a agenda da sessão, checar sintomas, dar e receber feedbacks, e preparar e conferir as tarefas de casa. Nos moldes do diálogo Socrático, o terapeuta ministra mini-aulas, sugere lei-turas, e pode utilizar métodos mais moder-nos e inovadores como a TCC computado-rizada. Técnicas de estruturação efetivas aumentam o aprendizado por manterem o tratamento organizado, eficiente e no foco. Boas intervenções de psicoeducação, como exercícios de tarefa de casa e uso de um bloco de notas, são elementos importan-tes para a estrutura da TCC. Os objetivos gerais da psicoeducação são familiarizar o paciente com o transtorno, gerar esperan-ça, aumentar o processo de aprendizado e a eficácia da terapia, e auxiliar os pacientes a construir estratégias de enfrentamento efe-tivas. Em alguns casos, e importante incluir no tratamento a família e/ou professores como parte do processo de psicoeducação.

• Conceituação cognitiva: efetivamente, o cerne da TCC é a conceituação cognitiva: processo no qual os níveis de pensamento disfuncional são identificados e a compre-ensão dos efeitos da distorção é estudada para que a melhor intervenção seja imple-mentada. No acompanhamento clínico, a formulação cognitiva revela a relação entre os três níveis de pensamento: 1) pensamen-to automático, que ocorre em diversas si-tuações diárias, surge espontaneamente e não se relaciona com reflexão ou delibera-ção; 2) crença condicional, nível de cognição ativado quando a pessoa faz previsões so-bre as consequências de seu comportamen-to ou se comporta de acordo com regras,

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obrigações e pressupostos; e 3) crença nu-clear, em que estão presentes pensamentos absolutos ou rígidos. A conceituação cog-nitiva vai sendo aprimorada ao longo das sessões por paciente e terapeuta.

• Intervenções cognitivas e comportamen-tais: a TCC ensina ao paciente que existe mais de uma maneira de ver uma situação e que o seu ponto de vista é uma questão de escolha. Os pacientes praticam as técnicas de reestruturação cognitiva e experimentos comportamentais nas sessões e fora delas.

Embora tenhamos uma grande variedade de intervenções, existem vários métodos que permeiam o processo terapêutico na TCC. Nesse sentido, no caso de Renata, de-vemos considerar determinada intervenção terapêutica para cada sintoma alvo (eventos vitais negativos, inatividade, tristeza, dimi-nuição de apetite, autocrítica exagerada, in-decisão, isolamento social).

De acordo com as TCC s argumentativas, ou de segunda onda, que focam nos elementos cognitivos, sabemos que modificar crenças condicionais (pressupostos, regras e deve-res) é mais desafiante do que modificar pen-samentos automáticos. Nessa perspectiva, uma intervenção no plano comportamental, no caso de Renata, buscaria, sobretudo, al-cançar mudanças no plano cognitivo capa-zes de propiciar mudanças emocionais.

As crenças nucleares não saudáveis (no caso de Renata – Eu necessito de esforço para ir à aula de manha) poderiam ser rees-truturadas em crenças nucleares saudáveis (no caso de Renata – Quando eu estou bem eu sou capaz de fazer as minhas atividades normalmente; as pessoas têm dificuldades assim como eu tenho). Sabemos que, em diversas situações, ao ser questionado so-bre o que está passando por sua cabeça,

o paciente apresenta pensamentos auto-máticos em forma de crença condicional ou crença nuclear.

Na depressão, a identificação das crenças condicionais que mantêm os sintomas e a sua consequente reestruturação auxiliam na amenização do comprometimento ocasio-nado pelos mesmos. A maioria dos pacien-tes portadores de depressão se comporta de acordo com as suas suposições positi-vas. Porém, em momentos de aflição, a sua suposição negativa vem à tona. Nesse sen-tido, as estratégias comportamentais de-senvolvidas para enfrentar a aflitiva crença nuclear devem ser identificadas.

Ainda, de acordo com modelos mais inte-grativos e conceituais, que se valem dos pressupostos das TCC s e que definem a terceira onda, práticas meditacionais como Mindfulness, Terapia Metacognitiva e Terapia de Aceitação e Compromisso po-dem ser opções terapêuticas alternativas no caso de Renata.

• Término do tratamento e prevenção de re-caída: por fim, o término do tratamento e prevenção de recaída, bem como as respec-tivas cognições associadas devem ser devi-damente abordados.

ENFOQUE PSICODINÂMICO/PSICANALÍTICO: DR. JAIR KNIJNIK

Por que a psicanálise e a psicoterapia de orientação analítica na depressão:

A paciente deprimida está sofrendo muito, em parte porque seu psiquismo não está dando conta de sustentar sua autoestima. O psicana-lista ou o psicoterapeuta de orientação analítica que recebe esta paciente deprimida a escuta. Dependendo do quadro clínico pode ser neces-sário usar concomitantemente medicações an-tidepressivas, mas o psicoterapeuta não abrirá

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mão de conversar com a sua paciente, com tempo e lugar. Aliás, escutar e conversar são atividades que estão em falta na sociedade contemporânea, onde se tem muita pressa e pouco tempo, onde são valo-rizadas principalmente a efi-ciência e produtividade. Mas desde que “o mundo é mun-do”, o homem frente à dor emocional lança mão de algo que é exclusivamente huma-no, que o diferencia de todos os demais seres na terra: a simbolização, a palavra, e isto requer tempo para tecer!

Mas esta arte de escutar e con-versar com o paciente, que o psicanalista e o psicoterapeuta de orientação psicanalítica exercem, tem uma especificidade, pois parte do pressuposto teórico de que as co-municações do paciente se dão em dois níveis simultâneos: um nível manifesto, que apresen-ta o sentido mais objetivo daquilo que ele está dizendo, e outro nível menos aparente, que revela e oculta as marcas de conflitos emocio-nais intrapsíquicos: a vida mental inconsciente. A imagem que me ocorre para tentar elucidar isto que estou dizendo é a da execução de uma peça musical, que é ao mesmo tempo uma or-ganização temporal de sons e silêncios, com seu ritmo, harmonia e melodia, mas que tam-bém é algo muito maior que isto, alguma coisa inefável, dada a sua beleza, força, imenso pra-zer e dor que causa. Duas formas de olhar, algo como “figura e fundo”.

Desde o nascimento, o ser humano vai cons-truindo um mundo psíquico que lhe proporcio-na uma sustentação interna frente ao desam-paro. É uma atividade que se inicia nas trocas entre o bebê e sua mãe, que generosamente

investe a sua cria com amor, e através de seu toque, do seu olhar e de suas palavras, vai en-laçando as emoções do bebê, gerando signifi-cados para suas vivências. O desenvolvimento desta função é que permite o ser humano trans-formar a si mesmo e ao seu meio social.

A psicanálise e a psicoterapia de orientação psi-canalítica têm como um de seus objetivos prin-cipais ampliar esta área simbólica da mente, que, como já foi dito, é o que nos protege inter-namente e dá sustentação frente ao desamparo humano, o que nos proporciona auto-estima e vontade de viver. Neste sentido a relação tera-pêutica é fundamental, pois através da lingua-gem nos auxilia a descrever e nomear emoções complexas.

Em meu ponto de vista, a psicanálise e a psi-coterapia de orientação analítica são as únicas que podem proporcionar a ampliação do sen-so de subjetividade do indivíduo. Entendendo subjetividade como o espaço íntimo da pessoa. Proporciona ao paciente a experiência de dar significado às suas emoções e com isso “ser mais quem ele é”, viver menos alienado.

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SÍNDROMES PSIQUIÁTRICAS RARAS

Síndrome de Jerusalém7

Na literatura encontramos uma série de Síndromes Psiquiátricas raras que, embora mencionadas algumas vezes durante nossa for-mação acadêmica, raramente nos deparamos com elas.

Algumas fazem parte de um diagnóstico mais abrangente e outras estão ligadas especialmen-te a aspectos culturais, essas últimas são as chamadas “síndromes ligadas à cultura”.

As apresentações a seguir são destinadas a re-frescar a nossa memória sobre síndromes que

encontramos raramente ou nunca vimos, mas que devemos ser capazes de reconhecer, diag-nosticar e gerenciar.

As condições incluídas abrangem delírios; fe-nômenos mentais que variam de ansiedade aos fenômenos dissociativos e psicose induzida por trauma; reações a experiências traumáticas; e danos neurológicos.

Como essas Síndromes são em um número ra-zoável, publicaremos três delas a cada número do nosso Jornal.

Síndrome de Jerusalém é caracteri-zado por fenômenos mentais que envolvem a presença de ideias de cunho religiosos obsessivos, delírios ou outras experiências psicóticas que são acionados por uma visita à cida-de de Jerusalém. Ela não está restrita a qualquer religião ou denominação.

A condição parece surgir quando as pessoas que tinham um histórico de doença mental, ou que estavam mal antes de vir para a cidade, visitam Jerusalém. Consiste de delírios psi-cóticos geralmente transitórios, os quais tendem a se dissipar dentro de algumas semanas, após terem sido removidos da área.

Devem ser tentadas abordagens baseadas em sintoma ou retirada cuidadosa dos antipsicóti-cos, após a cessação da psicose.

Entretanto a Síndrome de Jerusalém deve ser distinguida de um primeiro ou de um recorrente transtorno psicótico cujo quadro clínico requeira um tratamento antipsicótico de longo prazo.

D R O P S

Coordenação: Dra. Miréia Sulzbach, Dra. Fernanda Lia de Paula Ramos e Dra. Carla Bicca

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Amnésia Dissociativa / Fuga Dissociativa

Síndrome de Paris

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Amnésia dissociativa é uma condição caracterizada pela incapaci-dade de recordar informações autobiográficas, especialmente em torno de um, muitas vezes traumatizante, evento específico.

Anteriormente um diagnóstico independente, fuga dissociativa é – agora no DSM-5 – um subtipo da amnésia dissociativa caracterizada por viagem aparentemente proposital, sem rumo e “errante /desnor-teada”, associada com a amnésia da própria identidade.

As fugas são geralmente precipitadas por um estressor emocional ou físico forte ou episódio estressante e foram observadas no con-texto de um trauma psicológico ou físico grave; na ingestão de subs-tâncias psicotrópicas; em condições médicas gerais; e em condições neuropsiquiátricas, incluindo o transtorno bipolar, depressão, delí-rio e demência.

Abordagens psicoterapêuticas e de suporte devem ser usadas, e co-morbidades devem ser identificadas e tratadas conforme o caso.

Síndrome de Paris é um estado incomum exclusivo a cida-dãos japoneses que sofrem um colapso mental, enquanto visitam a famosa capital francesa, mas também tem sido observada em turistas japoneses que visitam a França ou a Espanha em geral. Síndrome de Paris parece ser uma forma grave de choque cultural que pode expressar-se de muitas formas diferentes, incluindo sintomas físicos e emocionais de ansiedade, desrealização, despersonalização, bem como ideias delirantes, persecutórias e alucinações.

Dos cerca de 6 milhões de turistas japoneses que visitam a cidade todos os anos, cerca de 20 deles sofrem desta do-ença. Normalmente, as pessoas com síndrome de Paris não tem uma história psiquiátrica prévia.

As hipóteses do porquê que os japoneses são afetados in-cluem a sugestionabilidade aparente em relação a uma ima-gem idealizada de Paris, o confronto com diferentes hábitos culturais, uma barreira de linguagem forte e o esgotamento físico e mental. Abordagens psicoterapêuticas e de suporte devem ser usadas e comorbidades devem ser identificadas.

Recentemente, um filme de Wood Allen (Meia Noite me Paris, 2011), nos remete a lembrança dessa Síndrome.

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ARTE DOS PSIQUIATRAS

Comecei a fotografar em 2009 influenciado por uma pro-fessora da faculdade.

Meu primeiro passo foi comprar uma câmera fotográfica e alguns livros sobre técnica.

Inicialmente fotografei situações e fatos cotidianos. Depois, me interessei por paisagens.

Recentemente conheci o trabalho do Sebastião Salgado. Gosto dos temas que ele aborda e como usa da fotografia para registar culturas e grandes movimentos da natureza.

A cada ano, aprendo e amplio minhas áreas de interesse, como se a fotografia acompanhasse as mudanças da mi-nha vida.

“Por do Sol no Guaíba“ é minha primeira fotografia expos-ta publicamente e retrata uma fila que aguardava o show do Roger Waters no Beira-Rio, em 2012. Foi uma foto do momento único que a combinação das pessoas e do Sol se mostraram para uma fotografia.

Sou formado em Medicina na Universidade Federal de Santa Maria e hoje estou no segundo ano de Residência em Psiquiatria do Hospital São Lucas da PUCRS.

[email protected]

Coordenação: Dra. Laís Knijnik e Dra. Eneida Iankilevich

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ARTE DOS PSIQUIATRAS

POR DO SOL NO GUAÍBAGabriel Behr Gomes Jardim

1º lugar na 4ª Mostra Fotográfica da APRS (XII Jornada de Psiquiatria da APRS)

Vencedoresda 4ª Mostra Fotográfica da APRS

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A fotografia, acho, me acompanha desde sempre (como acontece, ali-ás, com quase todo mundo). Me é muito feliz a lembrança do meu pai, por muitas noites, abrindo caixas de camisas recheadas de fotografias antigas de antepassados distantes, de Santa Maria antiga, de familia-res próximos e do nosso crescimento ao longo dos anos. Também, a fotografia esteva presente, na minha juventude, em longas sessões de slides de muitas viagens de família em que repartíamos com os amigos nossas experiências. Então, acho que a fotografia me faz retornar um pouco a esse ambiente tão cheio de imagens e afetos. Logo, a ligação com a imagem e as viagens se fez ao natural.

A fotografia que escolhi para a amostra da APRS é um exemplo dis-so: uma imagem de uma cadeia de montanhas preenchida por mui-tas árvores de vários tons em uma região entre os estados americanos da Califórnia e de Nevada. Escolhi enviar essa foto como uma expres-são do amplo espectro de cores que a natureza é capaz de produzir e nos ofertar. Interessante, no entanto, dizer que, ao mesmo tempo em que valorizo as cores, sou um profundo admirador de imagens em preto-e-branco. Talvez, por isso, admire tanto o belíssimo trabalho de Sebastião Salgado. Ele consegue, de maneira genial, denunciar as in-justiças sociais ou as amplas paisagens desertas do nosso planeta em perfeitas tonalidades preto-e-brancas. Faço parte de um grupo chama-do “Câmera Nova” que é formado por colegas psiquiatras apaixonados por fotografia e, com o qual, já realizamos duas exposições no espaço Itaú Cultural, em Porto Alegre. Fotografar acaba sendo uma tentativa de lidar, eu acho, com a finitude pela fantasia de imortalizar um momento.

Médico pela UFCSPA, Psiquiatra pelo HCPA, Mestre em Bioquímica pela UFRGS, Doutor em Ciências Medicas pela UFRGS.

[email protected]

ARTE DOS PSIQUIATRAS

Coordenação: Dra. Laís Knijnik e Dra. Eneida Iankilevich

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ARTE DOS PSIQUIATRAS

MULTICORESFlavio Milman Shansis

2º lugar na 4ª Mostra Fotográfica da APRS (XII Jornada de Psiquiatria da APRS)

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PSIQUIATRAS POR AÍ

Nasci em Recife, em 1984. Recife não era uma cidade perigosa na época – pelo menos não nas minhas lembranças. Recordo-me com saudade do nosso grupo de nove crianças e de como gos-távamos de inventar brincadeiras. Brincadeiras que ficavam ainda mais divertidas durante os finais de semana. Nossos pais eram muito ami-gos; portanto, aos Domingos, não raro íamos todos ao Parque da Jaqueira ou à praia de Boa Viagem. A maioria de nós seguiu a medicina, in-cluindo meu irmão e eu, provavelmente em vir-tude da admiração e respeito que nossos pais nutriam pela figura do médico.

Como meu pai era do exército, desde cedo tive que me acostumar às transferências de cidade que essa carreira impõe ao militar e aos seus familiares. Aos 8 anos, por conseguinte, deixei Recife e fui morar em Fortaleza. Fui aluno do Colégio Militar dessa cidade e aos 18 anos pas-sei no vestibular para medicina na Universidade Federal do Ceará. Embora estivesse convicto do meu futuro como médico desde criança, a de-cisão de qual especialidade seguir me angustia-va. A essa angústia se somava outra: a vontade de conhecer outras cidades.

SAINDO DE CASA

Não sei se reflexo das mudanças a que meu pai foi submetido durante sua carreira militar, mas sempre me chamava a atenção pessoas que haviam conhecido diversas culturas. Ficava fascinado quando meus pais me contavam his-tórias de quando moraram em Teresina, no Rio de Janeiro ou em Manaus – eu também queria conhecer outros lugares. Lembro de ficar bus-cando informações sobre o carnaval carioca, as rodas de samba, a bossa nova – ou ainda fotos sobre “O Encontro das Águas”, fenômeno que acontece na confluência entre o rio Negro, de água preta, e o rio Solimões, de água barrenta. Interessava-me ouvir os relatos de quando meu pai comandou um setor de armazenamento de gêneros alimentícios em Teresina, em 1976. De alguma forma, eu achava que não poderia vi-venciar experiências semelhantes se tivesse fi-cado em Fortaleza.

A angústia de sair de casa e a incerteza com relação à especialidade médica a seguir foram resolvidas com um único remédio: a viagem para Lyon, na França. Na época, havia acabado de começar o internato em medicina e tive a

Ives Cavalcante Passos:Na estrada desde muito cedo

Coordenação: Dr. Mário Tregnago Barcellos

Foi Antônio Brasileiro

Quem soprou esta toada

Que cobri de redondilhas

Pra seguir minha jornada

E com a vista enevoada

Ver o inferno e maravilhas

Chico Buarque. Paratodos, 1993

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PSIQUIATRAS POR AÍ

oportunidade de reencontrar dois grandes ami-go, ambos da época do colégio. Eles também faziam medicina, também não tinham certeza de qual especialidade seguir e também queriam viajar. Tínhamos muitos obstáculos, desde a saudade da família e namoradas até a burocra-cia que se enfrenta para poder estudar em ou-tro país, porém nossa motivação nos conduziu à Université Claude Bernard Lyon 1. Lá estagiá-mos por cinco meses no serviço de cirurgia ge-ral do Hôpital de la Croix Rousse, sob orientação do professor Jacques Baulieux. Diziam que na-quele hospital havia sido executada a primeira colecistectomia videolaparoscópica. À época, embora gostasse de cirurgia, vislumbrar meu futuro dentro de um centro cirúrgico exploran-do os órgãos humanos não me motivava. Por outro lado, a psiquiatria me fascinava, porém a limitação técnica que minha faculdade de ori-gem apresentava impedia um contato mais pró-ximo com essa especialidade.

Na França, o estudo da saúde mental é bastante valorizado. Boa parte dos internos da Université Claude Bernard cogitava fazer psiquiatria, o que contrastava com a realidade de Fortaleza. Isso me levou a optar por psiquiatria durante o mês optativo de que dispunha no internato. Iniciei, portanto, minhas atividades no serviço de psi-quiatria geral do Centre Hospitalier Le Vinatier, também em Lyon, sob a supervisão do profes-sor Thierry D’Amato e do professor Martin. A figura marcante deste, me fez escolher a psi-quiatria como especialidade. O compromisso e a curiosidade que ele tinha com o estudo das manifestações das doenças mentais construiu a figura do médico que eu iria perseguir. O poder que um professor motivado e fazendo o que gosta tem na mente de um aluno é enorme. As palavras do professor Martin ecoam ainda hoje na minha mente.

Além dos conhecimentos médicos adquiridos durante a estadia em Lyon, tive a oportunidade de conhecer uma cultura bem diferente da qual estava habituado – agora também tinha minhas

histórias para contar para familiares e amigos. Lyon foi fundada em 43 AC ainda durante o Império Romano. Atualmente, é a terceira maior cidade francesa depois de Paris e Marseille, em relação ao número de habitantes. O evento mais famoso da cidade é a “Fête des Lumières”, que ocorre entre os dias 5 e 8 de dezembro. Esta tradição exclusivamente de Lyon dita que cada casa coloque velas nas janelas para produzir um efeito espetacular ao longo das ruas. As origens do festival datam de 1643, quando Lyon foi atin-gida por uma praga. Os conselheiros munici-pais prometeram prestar homenagem à Virgem Maria se a cidade fosse poupada pela praga. Desde então, uma procissão solene faz o seu ca-minho para a Basilique Notre-Dame de Fourvière no alto de Vieu Lyon durante este período. Essa festa me marcou pela quantidade de pessoas que leva às ruas e pelo orgulho que aquele povo tinha da sua história. Um fato interessante era a bebida oferecida durante as comemorações: o vin chaud (em português seria “vinho quente”). Isso chamou atenção porque, três anos após, experimentaria em uma festa junina em Porto Alegre o “quentão”, uma bebida cujo sabor é muito semelhante. Em suma, vivenciei um pe-ríodo muito feliz em Lyon, de muitos encontros com vontades que não sabia que tinha e que provavelmente nunca descobriria se tivesse fica-do em Fortaleza. Ao voltar ao Brasil, sabia qual especialidade seguiria, mas não onde cursá-la.

PORTO ALEGRE

Em 2011, Fortaleza não apresentava uma forte instituição de formação em psiquiatria, o que me levou a prestar prova para residência mé-dica no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). O HCPA oferece uma excelente forma-ção em psiquiatria clínica e psicoterapia, além de incentivar a pesquisa (possui um programa de pós-graduação nota 7 pela CAPES). Tive a oportunidade de ser supervisionado pelos pro-fessores Cláudio Eizirik, Gisele Manfro, Lúcia Helena Freitas e Rogério Aguiar durante a for-mação em psicoterapia de orientação analítica.

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Além disso, também entrei no Laboratório de Psiquiatria Molecular, que é vinculado à UFRGS, em função do interesse em estudar o transtor-no bipolar (foto 1). Tive a sorte de ser orienta-do pela professora Márcia Kauer-Sant’Ana, uma pesquisadora jovem, mas que já havia construí-do uma carreira acadêmica internacional de su-cesso. Sob a supervisão dela, defendi uma tese de doutorado cujo título é “Transtorno Bipolar e Transtorno do Estresse Pós-traumático: Aspectos Clínicos e Biológico”.

Durante esse período, também participei da tra-dução do DSM-5 para o português. À convite da Artmed, trabalhei na revisão técnica desse livro com os psiquiatras Mário Barcellos, Christian Kieling e Cristiano Tschiedel, sob a coordenação do professor Aristides Cordioli (foto 2). Foi um trabalho minucioso e de grande responsabilida-de, pois iria determinar as nomenclaturas em português dos transtornos psiquiátricos que seriam utilizadas nos próximos anos no Brasil. A finalização desse trabalho coincidiu não ape-nas com o término da residência no HCPA, mas também com o emergir da vontade de me apri-morar como pesquisador.

A jornada de pouco mais de quatro anos em Porto Alegre chegou ao fim, portanto, quando fui convidado pelo renomado professor Flávio Kapczinski para fazer pós-doutorado e compor sua equipe na University of Texas em Houston nos Estados Unidos. Seria a oportunidade de estudar os fundamentos biológicos do transtor-no bipolar e conhecer uma nova cultura. Não sabia, entretanto, que encontraria algo tão inte-ressante que estava revolucionando a maneira como se pensa a medicina.

A CIÊNCIA E A ANÁLISE DE BIG DATA NA TERRA DOS SPACE COWBOYS

É difícil fazer um exercício de futurologia na me-dicina. Qual será o papel do médico daqui 10, 30, 70 anos? Qual será a próxima fronteira do conhecimento médico? As ciências vinculadas à saúde são menos flexíveis e mais conservado-ras se comparadas com a agilidade das ciências computacionais, por exemplo. Talvez pela deli-cadeza do nosso objeto de estudo, talvez pela dificuldade de renunciar às nossas certezas. Tudo isso torna difícil a realização de uma previ-são acerca de como será a medicina. Entretanto, é justamente na palavra “previsão” que reside

Foto 1. Equipe do Laboratório de Psiquiatria Molecular da UFRGS.

PSIQUIATRAS POR AÍ

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um campo promissor com potencial para revo-lucionar a maneira como a medicina é exercida.

Passamos por uma era dominada pela medicina baseada em evidências (MBE). MBE foi definida pelo médico e epidemiologista David Sackett como a “integração da melhor evidência de pes-quisa com a expertise clínica e os valores dos pacientes com a finalidade de tomar decisões clínicas”. A partir desse modelo, surgiu uma busca instigante pela descoberta de mecanis-mos biológicos para explicar as manifestações observadas na semiologia, bem como o desen-volvimento de estratégias terapêuticas mais efetivas. A pesquisa de fato bateu na porta dos consultórios. Na verdade, esse modelo regeu, e ainda rege, a relação médico-paciente seja numa internação, seja no consultório. Em linhas gerais, após receber um paciente executamos uma rodada de semiologia e exames laborato-riais; após, um diagnóstico é estabelecido, um tratamento é escolhido e um prognóstico é de-terminado. Tudo é azeitado por uma consulta ao UpToDate ou ao Pubmed. Pode esse modelo que tanto nos fascina mudar? Mais importante:

pode a psiquiatria clínica se beneficiar de uma mudança nesse modelo?

Em agosto de 2014, cheguei à Houston e me encontrei com o professor Kapczinski (foto 3). Tivemos a oportunidade de sermos apresen-tados ao engenheiro de computação Benson Mwangi ,que havia chegado recentemente do Reino Unido. Não existia lugar mais apropria-do para esse encontro do que a terra dos space cowboys, onde o conservador e o futurista con-seguem conviver pacificamente. A partir dessa parceria, fomos apresentados a conceitos que nos levariam a refletir sobre as questões aci-ma. São eles big data, machine learning e P4 medicine.

Big data se refere a dados extremamente grandes que podem ser analisados computa-cionalmente para revelar padrões, tendências e associações, especialmente em relação ao comportamento humano. O termo machine learning, muitas vezes utilizado como sinôni-mo de inteligência artificial, é uma das técni-cas estatísticas utilizadas para análise de big

Foto 2. Equipe de revisão técnica do DSM-5. Da esquerda para direita, encontram-se o psiquiatra Cristiano Tschiedel, a coordenadora editorial Cláudia Bittencourt, Adriana Kiperman, o professor Aristides Cordioli, e os psiquiatras Christian Kieling, Mário Barcellos e eu. Foto de maio de 2014.

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data. Tipicamente, os algoritmos de machine learning são mais aplicados nas situações em que inúmeras variáveis devem ser consideradas simultaneamente para estimar a probabilidade de que um evento ocorra. Você já se questionou, por exemplo, de como o Netflix consegue suge-rir filmes que você provavelmente vai gostar? Ele faz isso identificando padrões após analisar inúmeras variáveis, dentre elas filmes prévios que você já assistiu. Mais intrigante foi descobrir que a polícia de Los Angeles conseguia prever quando e onde um crime iria acontecer, identi-ficando padrões a partir de variáveis como bair-ro, período do ano, etnia de uma região, etc. Essa técnica, entretanto, não é novidade: você já parou para pensar como se fazem as previ-sões de chuva para o dia seguinte? Ou como o Facebook consegue nos sugerir um contato que provavelmente conhecemos? Ou ainda como o Google consegue achar uma determinada infor-mação? A resposta para todas essas perguntas é machine learning. Apesar de já permear as coisas ao nosso redor há algum tempo, só nos últimos anos essa técnica começou a ser explo-rada na medicina, mais contundentemente na oncologia e cardiologia. Entretanto, as ciências relacionadas ao comportamento humano, como a psiquiatria, são provavelmente as que mais vão se beneficiar de tais modelos, uma vez que não existe uma variável isolada que determine um diagnóstico psiquiátrico. Com essa técnica, poderemos construir ferramentas a partir de grandes bancos de dados que poderão prever no nível individual quem cometerá suicídio, quem responderá ao tratamento, quem fará um episódio depressivo, ou ainda quem terá uma recaída no uso de cocaína.

A partir desses dois conceitos, Lee Hood cons-truiu o modelo P4 Medicine. Esse novo paradig-ma médico relata que a medicina será Preditiva, Preventiva, Personalizada e Participatória. A medicina não mais se focará em fazer o diag-nóstico, mas em predizer quem terá a doen-ça; nós não mais priorizaremos as estratégias

terapêuticas, mas sim as estratégias preven-tivas. Tudo isso se dará de maneira persona-lizada com instrumentos capazes de estrati-ficar individualmente o risco de desenvolver uma doença ou de responder a uma interven-ção. Para a construção desses grandes bancos de dados que irão permitir a construção des-sas ferramentas, a participação da população será fundamental. Hoje está na moda o uso de health tracks nos EUA, para monitorizar desde o batimento cardíaco até a qualidade do sono. Já existem alguns projetos de dispositivos para avaliar marcadores no sangue periférico.

Isto foi o que me maravilhou em Houston: bater na porta do futuro, tentar ajudar na sua cons-trução e povoar a imaginação com suposições de como as coisas irão funcionar. Maravilhado fiquei também quando conheci o museu de fi-nas artes de Houston. A arte e a ciência estão muito próximas. Ambas cobram de seus segui-dores curiosidade, criatividade e transpiração. Eles têm que viajar e encontrar caminhos novos para poderem exercê-las. Nessas tortuosas tri-lhas marcadas por saudade de quem se gosta, a busca pelo conhecimento é que nos redime.

PSIQUIATRAS POR AÍ

Foto 3. Com o professor Flávio Kapczinski. Foto de março de 2015.

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Por Mariana Paim Santos, cursista do 2º ano de Psiquiatria da Fundação Universitária Mário Mártins

ESCONTRO ENTRE GERAÇÕES

Formação Psiquiátrica e Expectativas para o Futuro

Questiono o que fascina na Psiquiatria? Fascinam suas peculiaridades em relação às outras áreas da Medicina. Encanta o fato de que cada delí-rio, alucinação, ou angústia entre outros sinto-mas que compõem os quadros nosológicos em Psiquiatria, ser singular. Pois cada paciente é único, com suas histórias, vivências e percep-ções de mundo. Essa subjetividade que não é palpável em um exame físico, não é detectada em um exame laboratorial, fascina. Essa carac-terística que, junto com os avanços em neuro-ciências e da psicofarmacologia, vem a compor a nossa profissão. Essa profissão versátil que permite ao psiquiatra ser terapeuta e/ou clínico.

Vejo a Psiquiatria nas interações humanas, li-dando com afetos, por vezes difíceis, median-do interação de sentimentos e lidando com a caixa de Pandora. É preciso suportar e aceitar a dor do outro com o propósito de ajudá-lo. A Psiquiatria existe a partir de uma troca, a qual permite o vínculo e pode-se, pois, apoiar o pa-ciente na caminhada na qual ele estava sozinho. É participar de sua vida através de uma anam-nese biográfica e imaginar como seria estar no lugar do protagonista do conflito psíquico que o acompanha.

Minha aproximação com a APRS ocorreu a partir do envolvimento com o Núcleo de Psiquiatras em Formação (NPF). Tudo começou quando con-versei com a colega Larissa sobre o desejo de formarmos um grupo de estudos. Dessa forma, falamos com o professor Eduardo Trachtenberg sobre esta ideia. Foi ele que nos falou pela pri-meira vez da existência do NPF. A partir desse

momento, fomos tendo maior contato com a instituição. Conhecemos o Felipe Picon, que se disponibilizou, em um sábado à tarde, para nos falar de seus anos de experiência no Núcleo. Hoje o NPF é composto por residentes e cur-sistas de diferentes instituições: por Larissa Pacheco, colega na Mário Martins; Júlia Frozi e Petra Zignani, da PUCRS; José Bernardo Boeira e Daniel Heidemann, do Conceição; Nadja Dal Ri, da UFRGS; Márcia Freitas, do Abuchaim; Alexandre Kieslich, do São Pedro; e por mim. Já realizamos esse ano as atividades “Tudo que você sempre quis saber sobre consultório e tinha medo de perguntar”, com a presença dos contadores da APRS, Fábio Kuhn e Sérgio Pereira, do advogado do SIMERS, Vitor Dossa, e da psiquiatra Carla Hofmeister; “I Curso de Imersão em Patologia Psiquiátrica: Transtorno de Humor Bipolar”, com os psiquiatras Flávio Shansis, Marcelo Fleck, Márcia Sant’Anna, Lucas Spanemberg, Lúcio Cardon, Eduardo Trachtenberg e Marco Antônio Caldieraro; e “Vivências em Psiquiatria no Exterior” com os psiquiatras Felipe Picon, Cristiane Geyer, Gibsi Rocha e Cristian Zeni. Além desse contato com psiquiatras já experientes, a troca de vivên-cias e aprendizado com os colegas residentes estimula e empolga a estudar Psiquiatria, pois acredito, como já escreveu o psiquiatra David Zimerman, “o ser humano constitui-se sempre a partir de um outro”.

No início de agosto, Rodrigo Grassi, Diretor Científico da APRS, convidou os integrantes do Núcleo para entrevistar psiquiatras e inda-gá-los sobre crise e futuro da Psiquiatria. Foi

Coordenação: Dr. Mário Tregnago Barcellos e Dra. Carla Bicca

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uma atividade da Jornada da APRS deste ano. O resultado foi uma discussão muito rica. Diz-se que o ideograma chinês para “crise” incorpora os ideogramas “perigo” e “oportunidade”. Vejo a crise como um momento oportuno para refle-xão e crescimento. Acredito que para a especia-lidade seguir avançando como ciência precisa-mos manter a compreensão biopsicossocial do paciente. Ainda não conhecemos a etiologia da maioria das doenças que tratamos. Precisamos trabalhar nossa capacidade de permanecer com dúvidas, ter alta capacidade negativa, como conceituou Bion. Voltando ao ideograma chi-nês, outro aspecto da crise é o “perigo”, como a crise nas políticas de saúde pública. Já havia visto de perto esse problema quando, na facul-dade, passei pelos estágios curriculares no SUS: falta de leitos e escassez de medicações. Nos serviços de saúde mental, porém, a situação é ainda pior, uma vez que a cada ano mais lei-tos psiquiátricos são fechados. Nos últimos 14 anos no Brasil, de 120 mil leitos psiquiátricos públicos restaram apenas 32 mil. Precisamos de mais estrutura para melhor atendermos os nossos pacientes tão vulneráveis. Além disso, é necessário mais foco, por parte de nossos governantes, em aspectos técnicos e científi-cos, disponibilizando tratamentos sabidamente mais efetivos do que meramente ideológicos.

Outra importante atividade da Jornada da APRS, foi a supervisão coletiva. Foi apresentado um caso clínico e, depois, feito um debate sobre as possíveis abordagens para cada relato clínico exposto, a visão do clínico, do psicoterapeuta de orientação psicodinâmica e cognitivo com-portamental. Essa atividade resume o que é a Psiquiatria, ter um olhar abrangente sobre o pa-ciente e, desse modo, poder ajudá-lo a diminuir seu sofrimento.

O que podemos esperar da Psiquiatria no futu-ro? Espero que possamos ter métodos de detec-ção precoce dos transtornos mentais devido à elevada morbimortalidade. Dessa forma, pode-remos realizar o tratamento oportuno com limi-tação do dano; utilizar a farmacogenética para prever a resposta a um tratamento, a exemplo da análise de polimorfismos de enzimas do

citocromo P450, e usar os biomarcadores com objetivo de acompanharmos o curso clínico. Espero, contudo, que não se perca a essência do tratamento médico: a busca de vínculo em-pático com o paciente para poder compreender, também, suas subjetividades. José Camargo mencionou em um artigo a importância de con-servarmos a noção de que a personalidade do médico é o primeiro tratamento que se adminis-tra ao paciente.

John Nemiah referiu: “Seria muito mais fácil se pudéssemos evitar o paciente enquanto explo-ramos o reino da psicopatologia; seria muito mais simples se pudéssemos nos limitar ao exa-me da química e da fisiologia de seu cérebro e tratar os eventos mentais como objetos alheios a nossa experiência imediata, ou como meras variáveis de uma fórmula estatística impessoal. Essas abordagens são muito importantes para a compreensão do comportamento humano, mas não podem abranger ou explicar todos os fatos relevantes. A fim de penetrar na mente de outra pessoa, precisamos repetidamente mergulhar no fluxo de suas associações e sentimentos; precisamos, nós mesmos, ser seu instrumento de ressonância”.

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Recebo o amável convite da APRS para escrever sobre o que a psiquiatria significou e significa em minha vida e que conselhos eu daria a um jovem psiquiatra.

De imediato me dou conta de que a psiquiatria e a psicanálise, sempre entrelaçadas, desde on-tem até hoje e até sempre, entraram em minha vida na adolescência, quando fiquei sabendo que um tio muito querido fazia uma tal de psi-coterapia analítica de grupo com um conheci-do psiquiatra, analista e escritor, Cyro Martins. Meus pais, médico e dentista, tinham amigos nesta área, e comentavam com admiração so-bre um grande evento de que haviam participa-do, em Porto Alegre, com a presença de ilustres analistas argentinos. E meu pai, que além de pediatra era jornalista, havia entrevistado vá-rios desses analistas, como Garma, Raskovsky, Grinberg, para jornais da cidade; tenho fotos desses encontros. Quando decidi estudar medi-cina, já estava decidido a ser psiquiatra, depois de ler um livro do Cyro e um trabalho do David Zimmermann. Depois de muitas reviravoltas na-queles turbulentos anos da ditadura, fui de fato fazer residência no Centro Psiquiátrico Melanie Klein, então um dos dois centros de formação mais importantes de Porto Alegre. Desde aquela época, e curiosamente até hoje, minha escolha da psiquiatria e da psicanálise decorreu de uma necessidade de acomodar em minha mente duas tendências igualmente poderosas: uma científi-ca e outra humanística. Para mim, ser médico e ser psiquiatra sempre quis dizer ser capaz de ouvir e dar significado ao sofrimento emocional.

Desde que entrei na residência em psiquiatria, em 1970, e nestes 45 anos em que estou en-volvido com a prática psiquiátrica e psicoterá-pica, participei e/ou testemunhei inúmeros mo-mentos e movimentos de progresso em nossa

especialidade, como a psiquiatria de comunida-de, a comunidade terapêutica, o desenvolvimen-to de drogas efetivas para inúmeras condições clínicas, a maior precisão diagnóstica, o sur-gimento e a expansão da pesquisa nas várias áreas psiquiátricas, os estudos multicêntricos, o surgimento da terapia cognitivo-comporta-mental, maior especificidade nas indicações para as diferentes formas de psicoterapia ou intervenções clínicas, ampliação da capacidade de abordar em psicanálise ou psicoterapia psi-canalítica configurações clinicas mais graves ou complexas, reconhecimento da importância central da mente do analista e de sua interação com o paciente no campo analítico, reconheci-mento mais claro dos alcances e limitações das diversas abordagens e da necessidade de tra-balho conjunto e de intervenções combinadas. Se, no período inicial e nas primeiras décadas de minha prática havia uma certa idealização da psicanálise e de seu alcance, nas últimas ocorre o mesmo fenômeno com as intervenções medi-camentosas ; tanto uma como outra podem difi-cultar uma visão mais realista, que uma vez foi sintetizada por Carlos Drummond: Preciso de todos. Sim, necessitamos de todos os métodos, cada um com suas indicações e especificidades.

Neste longo período, dediquei minha energia e meu entusiasmo, entre tantas coisas e inicia-tivas em muitos âmbitos, para o atendimento de pacientes, o ensino da psiquiatria e da psi-cologia médica para estudantes de medicina, das bases da teoria psicanalítica e da técnica da psicoterapia analítica para residentes de psi-quiatria e alunos dos cursos de especialização em psicoterapia, o ensino de aspectos da teo-ria e da prática da psicanálise para psicanalistas em formação, para a entrada do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal no Hospital de

A psiquiatria e eu: entre o passado e o futuroPor Cláudio Laks Eizirik

ESCONTRO ENTRE GERAÇÕES

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Clínicas de Porto Alegre e o desenvolvimento do Serviço de Psiquiatria, para a criação do progra-ma de pós-graduação em psiquiatria da UFRGS e para o desenvolvimento de uma linha de pes-quisa, que continua bastante ativa, em estudos de efetividade e do processo das psicoterapias analíticas, para a organização, com colegas e amigos de livros sobre o ciclo da vida humana, a contratransferência e a teoria e a prática da psicoterapia de orientação analítica, para a cria-ção da Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, hoje a excelente Trends, e para um traba-lho contínuo, com colegas e alunos, em nosso meio, e em níveis mais amplos, visando uma permanente integração entre as várias aborda-gens, em nível clínico, de ensino, de pesquisa e institucional. Não por acaso, coordeno no mo-mento um comitê da Associação Psicanalítica Internacional destinado a estudar e estimular as relações entre a psicanálise e o campo da saúde mental.

Olhando para esses 45 anos, constato que, de-pois da minha família, a psiquiatria e a psicanáli-se são as principais razões de minha vida. O pri-meiro número da Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, em março de 1979, tinha como tema a família e a saúde mental. Em seu edi-torial, falei da família psiquiátrica gaúcha, que na época era bem menor e muito menos com-plexa e heterogênea do que nos dias de hoje. Nesse longo percurso, sem dúvida houve crises, discordâncias,conflitos,separações dolorosas, perdas por morte ou afastamento. Mas também muito crescimento, trabalho conjunto, muitos momentos de alegria, conquistas, progresso, ampliação do que entendemos e podemos fa-zer para ajudar nossos pacientes em seus per-cursos pelos infernos do sofrimento psíquico, dos paraísos perdidos, e da busca das alegrias e do bem-estar possível. Mas, como diria Freud em sua única gravação de voz e imagem, a luta não terminou, e há muito por fazer, conquistar e desenvolver. Penso que também há muito por recuperar, em especial a noção de que a relação humana entre psiquiatra e paciente necessita de tempo, paciência, escuta empática, e não pode ser reduzida a um mero prescrever de drogas ou a uma classificação simplista de doenças, sem

levar em conta a pessoa que atendemos, com sua história, sua família, sua cultura e seu mun-do interno, tão rico de seres e situações patéti-cas, de novo nas palavras de Drummond.

Se eu fosse dar algum conselho a um jovem psi-quiatra, eu lhe diria que não peça nem acredi-te em conselhos. Não há nenhum conselho que sirva, de fato, a outra pessoa, porque parte do pressuposto de que o aconselhador sabe ou pre-tende saber o que é bom ou recomendável para o outro. Como, para mim, o que pude fazer de melhor decorreu do que escolhi ou me arrisquei a fazer, penso que cada um deve ter a ampla liberdade de experimentar, estudar, conhecer a si mesmo e ao seu mundo interno, e fazer suas escolhas, aceitando o mínimo possível de inter-ferências alheias, seja dos pais, dos professo-res, dos terapeutas ou mesmo da literatura su-postamente científica. Talvez um único cuidado possa ser sugerido, modestamente: que o jovem psiquiatra encontre aquilo em que se sinta me-lhor para fazer, e que lhe dê mais prazer do que sofrimento, mais alegria do que tristeza, e que chegue ao fim do dia sem sentir cansaço, mas a sensação de que esteve fazendo algo de bom para seus pacientes e para si mesmo.

Com muita freqüência me percebo, ainda hoje, sentindo, no trabalho clínico ou de ensino, o mesmo fascínio pela psiquiatria e pela psicaná-lise que senti quando as conheci, no século pas-sado. Desejo que os jovens psiquiatras tenham a mesma sensação em suas carreiras.

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NOTÍCIAS DA APRS

Coordenação: Dra. Anahy Fonseca

Nova Diretoria Eleita Triênio 2016-2018Aconteceu no dia 17 de novembro, a Eleição para a Nova Diretoria da APRS Triênio 2016-2018, com o resultado final de 186 votos a favor dos 190 votos

válidos. A Solenidade de Posse acontecerá no dia 12/01/2016 às 20h no Centro de Eventos da AMRIGS.

DIRETORIA TRIÊNIO 2016-2018

Presidente: Flávio Milman Shansis

Vice-presidente: Matias Strassburger

Diretor Científico: Luciano Rassier Isolan

Diretor de Divulgação: Eduardo Trachtenberg

Diretora Tesoureira: Anahy Fagundes Dias Fonseca

Diretora Tesoureira Adjunta: Fernanda Lia de Paula Ramos

Diretora Secretária Adjunta do Exercício Profissional:Ana Cristina Tietzmann

Diretora Secretária de Normas: Andréia Sandri

CONSELHO FISCAL

Membros Titulares:

Eugenio Horacio Grevet

Jair Rodrigues Escobar

Neusa Knijnik Lucion

Membros Suplentes:

Cláudio Laks Eizirik

Fernando Schneider

Gisele Gus Manfro

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Orgulho Doido: Assembleia Legislativa institui a Parada Gaúcha do Orgulho Louco

Por Roberta Rossi Grudtner

O Projeto de Lei 236/2015, dos deputados Adão

Villaverde (PT) e Stela Farias (PT), que institui a Parada

Gaúcha do Orgulho Louco no último fim de semana

de outubro de cada ano, foi aprovado em 10/11, na

Assembleia Legislativa, por 32 a favor e 8 contra. Os

militantes “do tratamento do sofrimento psíquico com

dignidade e sem grades” comemoraram a aprovação,

manifestando vitória à “luta contra a visão manico-

mial de prisão da pessoa com deficiência que padece

com os métodos violentos e ultrapassados, do encar-

ceramento, do uso de algemas e até da agressão físi-

ca”, conforme afirmação do deputado.

Não se pode deixar enganar, Orgulho Louco no mí-

nimo apresenta uma teoria mirabolante e equivoca-

da. É difícil imaginar orgulho diabético, cardiopata,

leproso... Orgulho negro, orgulho gay não têm em

nada a ver com esta parada excêntrica. Orgulhar- se

das próprias origens, da cor, da opção sexual é uma

coisa. Apologia a loucura é totalmente diferente.

De acordo com o Ministério da Saúde, mais de 49 mi-

lhões de pessoas no Brasil necessitam ou vão precisar

de atendimento em algum tipo de serviço de saúde

mental, 3% da população brasileira padece de trans-

tornos mentais graves. A segunda causa de morte

em adolescentes e adultos jovens no mundo é suicí-

dio, que mata mais que HIV nesta faixa etária, segun-

do a OMS. Doenças como depressão, dependências

químicas e outros transtornos mentais ceifam vidas.

Quando se fala sobre causas de incapacidade funcio-

nal, 11 entre as 20 mais comuns são devidas a trans-

tornos mentais e comportamentais, sendo a segunda

maior causa de afastamento do trabalho.

Vidas podem ser poupadas com prevenção e pro-

moção da saúde mental, diagnóstico precoce, trata-

mento adequado e reabilitação social. Os transtornos

mentais e comportamentais possuem tratamento,

buscando evitar estados crônicos de difícil controle

e possibilitando ao portador destas doenças alivio do

sofrimento, esbatimento de riscos e, inclusive, ausên-

cia completa de sintomas. Exaltar a condição de lou-

co é, no mínimo, desconsiderar a importante tarefa

que se impõe: prevenir doenças e melhorar os indi-

cadores de saúde, pois as doenças mentais sobrecar-

regam muito, mas possuem possibilidades terapêu-

ticas efetivas e eficazes custo-benefício apreciáveis.

Apesar de se alegar que o cenário da marcha é despre-

tensioso e a motivação é combater a exclusão; parece

uma afronta aos que sofrem de transtornos mentais,

a Parada do Orgulho Louco. Promover a ideia de que

transtornos mentais e comportamentais devem ser

encarados com neutralidade e naturalidade, evitan-

do todas as formas de preconceito é fundamental.

Entretanto, marcar os portadores destes transtornos

de loucos significa estigmatizá-los, banalizando do-

enças graves. Isto é um retrocesso. Isto é segregar.

Ao portador de transtorno mental, deve ser assegura-

do o direito ao melhor tratamento de saúde, consen-

tâneo às suas necessidades. Isto implica a intencio-

nalidade da mudança visando alteração da condição

psicopatológica para normalidade. Tal premissa é

contrária aos fundamentos das outras paradas, onde

a diversidade é extasiada e desejada.

Finalmente, é necessário promover uma caminhada

para possibilidade de acesso universal à saúde men-

tal integral, sem preconceito do tratamento especia-

lizado, técnico-científico embasado em evidências. É

preciso mobilizar todos os segmentos sociais, bus-

cando apoio para garantir atendimento psiquiátri-

co essencial. Os psiquiatras tem função singular no

atendimento destes pacientes. Não se faz atenção em

saúde mental sozinho, sobretudo, não há como aten-

der integralmente o portador de transtorno mental

sem o psiquiatra.

NOTÍCIAS DA APRS

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NOTÍCIAS DA APRS

Novas instalações APRS

Você é nosso convidado para conhecer as novas instalações da APRS.

Em nossa casa nova, além da repaginação do ambiente de trabalho, contamos agora com uma sala de reuniões com perfeito isolamento acústico, uma antiga aspiração dos associados.

Venha nos visitar e tomar um café, será um prazer!

A Diretoria

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NOTÍCIAS DA APRS

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ESPAÇO DO SÓCIO

Uma menina, púbere ainda, bochechas rosadas, branquela, míope e desajei-tada na bicicleta, aventura-se pela rua. Entusiasmada com seu desempenho, peda-la fortemente lomba a baixo. Os convida-dos todos empertigados sabem que a noiva aporta junto ao meio fio. O noivo sorri, as amigas se excitam, as idosas têm saudade. Os velhos bufam, sufocados por gravatas pouco usuais na aposentadoria. A atleta avança para a curva da rua sinuosa. A Igreja recende a flores e o sino bate. O padre revi-sa mentalmente o sermão de amigo da noi-va e do sogro aquinhoado. Doações à vista no horizonte das comunhões de domingo. A atleta eventual ri sozinha. A bicicleta não mais a assusta. Lembra da rodinha lateral, faz pouco tempo abandonada, com certo desprezo. Pedala, pedala e pedala. Logo a curva fecha, emocionante! A noiva se de-senreda hábil do Chevrolet Cadillac con-versível. Placa preta do sogrão. Que legal, ela pensa, que legal! Olhos nos olhos, as desconhecidas subitamente, parece inevitável, terão um momento de intimidade inesperada. Bum! Bicicleta, gordinha, noiva enredam-se na cola longa do vestido impecável trazido de Miami. A freada atravessa toda a largura da cauda, todinha. Preto no branco, esfarinhando um tanto toda a largura do tecido chic. PQP! A noiva não lembra de nada mais elegante para o momento. PQP! PQP! Repete sem parar. Papai mia, o sogro ruge! PQP! A bochechas rosadas, com flores na boca e uma amostra do tecido entre os dedos crispados, levanta-se do en-trevero e corre. Corre sem pensar. PQP! Ela repete sem gritar. O sogrão, irado, corre atrás. chega a tocar seu traseiro, mas se lhe escapa a princezinha branquela e cagada de medo. Em casa, vermelha de correr e de vergonha, explica para o pai o ocorrido. Ele vai à cena do crime, cauteloso. Internado do fato, suas consequências estéticas no casamento que se desenrola, volta para casa com o que resta da bicicleta novinha. Já em casa, planeja espancar a gordinha. Chama-a a seu pequeno gabine-te de advogado do bairro. Olhos nos olhos, não se contém. Abraça a branquela e morre de rir. Azar! Azares da vida. Afinal, ninguém morreu e o casamento é um fato.

Alegria curta, curta e longaPor Alberto Iglesias

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