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54 TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 LINGUAGEM E IDEOLOGIA EM “O OUVIDO(1979) E MEMORIAL DO CONVENTO (1982), DE JOSÉ SARAMAGO Sânderson Reginaldo de Mello Doutorando UNESP/Assis CAPES FUNDEC UNIFADRA (Dracena) Odil José de Oliveira Filho UNESP/Assis RESUMO Através das imbricações conceituais entre Linguagem e Ideologia, visamos tratar das correspondências interartísticas no texto “O ouvido” Poética dos cinco sentidos, bem como os reflexos dessa estratégia interdiscursiva no Memorial do convento de José Saramago. ABSTRACT Through the intrinsic relationships between the concepts of Language and Ideology, we will make some explanations about the interart parallels in the “O ouvido” Poética dos cinco sentidos, and the effects of the interdiscursive rethorical strategy in the Memorial do convento by José Saramago. PALAVRAS-CHAVE Linguagem; ideologia; correspondências interartísticas. KEYWORDS Language, Ideology, Interart Parallels. As letras têm o poder de nos transmitir em silêncio o que dizem aqueles que estão ausentes. (Isidoro de Sevilha, Etymologiae I, 3:1) A publicação de “O ouvido”, texto 1 que integra a obra coletiva Poética dos cinco sentidos (1979), consolida o itinerário que irá nortear os caminhos 1 O termo texto, no presente estudo, será considerado enquanto discurso, compreendendo-se, portanto, todas as categorias da narrativa ficcional. Conforme Roland Barthes, a linguagem narrativa é inteiramente uma composição ficcional: “le Texte ne s’eprouve que dans un travail, une production”, isto é, “ne peut être pris dans hierarchie, ni même un simple découpage des genres. Ce qui le constitute est au contraire (ou precisémente) sa force de subversion a l’egard des classements ancients” (BARTHES, 1971, p. 227). Por essa razão, TRICEVERSA Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro de Estudos Linguísticos e Culturais ISSN 1981 8432 www.assis.unesp.br/cilbelc TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 CILBELC

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TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009

LINGUAGEM E IDEOLOGIA EM “O OUVIDO” (1979) E MEMORIAL DO CONVENTO

(1982), DE JOSÉ SARAMAGO

Sânderson Reginaldo de Mello

Doutorando UNESP/Assis CAPES FUNDEC UNIFADRA (Dracena)

Odil José de Oliveira Filho UNESP/Assis

RESUMO Através das imbricações conceituais entre Linguagem e Ideologia, visamos tratar das correspondências interartísticas no texto “O ouvido” Poética dos cinco sentidos, bem como os reflexos dessa estratégia interdiscursiva no Memorial do convento de José Saramago.

ABSTRACT Through the intrinsic relationships between the concepts of Language and Ideology, we will make some explanations about the interart parallels in the “O ouvido” Poética dos cinco sentidos, and the effects of the interdiscursive rethorical strategy in the Memorial do convento by José Saramago.

PALAVRAS-CHAVE Linguagem; ideologia; correspondências interartísticas.

KEYWORDS Language, Ideology, Interart Parallels.

As letras têm o poder de nos transmitir em silêncio o que dizem aqueles que estão ausentes.

(Isidoro de Sevilha, Etymologiae I, 3:1)

A publicação de “O ouvido”, texto1 que integra a obra coletiva Poética

dos cinco sentidos (1979), consolida o itinerário que irá nortear os caminhos

1 O termo texto, no presente estudo, será considerado enquanto discurso, compreendendo-se, portanto, todas as categorias da narrativa ficcional. Conforme Roland Barthes, a linguagem narrativa é inteiramente uma composição ficcional: “le Texte ne s’eprouve que dans un travail, une production”, isto é, “ne peut être pris dans hierarchie, ni même un simple découpage des genres. Ce qui le constitute est au contraire (ou precisémente) sa force de subversion a l’egard des classements ancients” (BARTHES, 1971, p. 227). Por essa razão,

TRICEVERSA Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro de Estudos Linguísticos e Culturais ISSN 1981 8432 www.assis.unesp.br/cilbelc TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 CILBELC

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da ficção de José Saramago. Como se sabe, a Livraria Bertrand (Lisboa)

solicitou a contribuição de seis autores portugueses para que realizassem uma

leitura de La Dame à la Licorne (séc. XV), série de seis tapeçarias francesas

encontradas no século XIX no castelo de Boussac, e expostas no Musée

National du Moyen Age Thermes et Hôtel de Cluny (Paris) desde 1882. Os

painéis, reproduzidos junto aos textos da Poética dos cinco sentidos, sugerem

representar a alegoria dos sentidos humanos, e cada autor solicitado abordou,

de forma particular, uma das peças. Assim,

consecutivamente, Maria Velho da Costa

escreveu sobre a visão em “A vista”;

enquanto que José Saramago, a audição em

“O ouvido”; Augusto Abelaira o olfato em “O

olfacto”; Nuno Bragança o paladar em “O

gosto”; Ana Hatherly o tato em “O tacto”;

e, por sua vez, Isabel da Nóbrega, em “A

sexta”, tratou sobre “A mon seul désir”,

título dado à tapeçaria que realiza o

fechamento da série, e ilustra a capa do

conjunto de textos da Poética.

É bem provável que os escritores selecionados tivessem consciência

plena do jogo de correspondências estéticas a ser enfrentado no projeto

editorial, que ensejava de início um forte apelo experimental na conjunção

plural das linguagens artísticas. A recepção da Poética dos cinco sentidos

deveria provocar o confronto do leitor não apenas com o simples reflexo de

apropriação lúdica dos processos de construção da arte da tapeçaria na

criação literária, mas com a tendência de superação da tradução da imagem e

seu repertório ideológico. Assim, nessa obra coletiva, os autores portugueses

não se limitaram a descrever suas aventuras de viagem pela trama fabular-

alegórica das “telas”, mas recriaram a própria alegoria (COSTA, 1997), cujo

também manteremos essa terminologia ao se fazer referência ao texto “O ouvido” de Poética dos cinco sentidos (1979), mesmo sendo indicado na categoria genológica do conto, como é possível conferir no volume II das Obras completas de José Saramago, editado pela Lello & Irmão, 1991.

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resultado se encontra na originalidade dos textos, tão autônomos entre si

quanto em relação ao texto ponto de partida.

Todavia, a nota editorial que introduz a Poética deixa suspenso o

processo de distribuição dos painéis aos autores participantes. Sendo assim, é

possível supor que a escolha de José Saramago para o projeto concebido pela

Bertrand tenha se fundamentado não somente pelas contribuições do escritor

na revista Arquitectura (1974) e na Editorial Estúdios Cor (1955-1971), bem

como pela conjunção de atividades paralelas de escrita ficcional, de tradução

e de crítica literária e crítica de arte, atividades que coincidiram com o

momento em que o autor se vê obrigado a deixar as funções jornalísticas,

voltando-se com certa exclusividade à carreira literária, mas

principalmente em razão das obras anteriores à Poética, onde a lírica, a

crônica, os contos e os romances já evocavam na essência de seu conjunto o

dialogismo interartístico. De fato, durante o período de formação da

literatura de José Saramago, que se caracteriza pela presença acentuada do

enfoque experimental, e que corresponde à natureza midiática e

intersemiótica da obra Poética dos cinco sentidos, pode-se constatar

igualmente uma contínua poética visual (enargeia) e uma poética ecfrástica,2

como se pode verificar, por exemplo, na descritividade naturalista do

romance inicial Terra do pecado (1947); nos poemas “Arte poética”, “Retrato

do poeta quando jovem” e “Estudo de nu” de Os poemas possíveis (1966),

“Paisagem com figuras” e “O poema é um cubo de granito”, de

Provavelmente alegria (1970); nas crônicas “A neve preta”, de Deste mundo e

do outro (1971), “Retrato de antepassados”, “A oficina do escultor”, “Criado

em pisa”, “O jardim de Boboli”, “Terra de Siena molhada” e “Com os olhos no

chão”, de A bagagem do viajante (1973); nas imagens-dramas da prosa-

poética O ano de 1993 (1975); nos contos “A cadeira” e “Centauro”, de

Objecto quase (1978); e no romance Manual de pintura e caligrafia (1977),

obra em que José Saramago, mais detidamente e com evidente clareza,

2 Enargeia é a vivacidade retórica que as poéticas verbais possuem para se despertar sensações visuais. Ekphrasis é o modelo poético de descrição de obra de arte visual (pintura, escultura etc.). Cf. AGUIAR E SILVA, 1998, p. 159.

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discutiu as relações homológicas entre a escrita (literatura) e artes visuais

(pintura).

À luz de sucintos esclarecimentos, antes de passarmos a refletir sobre o

texto “O ouvido”, destacamos que La Dame à la Licorne, obra modelar de

Poética dos Cinco Sentidos, é uma composição cujo estilo millefleur (mil-

flores) assinala o fim do período medieval e o princípio da arte renascentista.

A série é um conjunto harmônico e requintado de painéis, comumente

empregados como ornamento decorativo de ambientes de palácios e castelos,

e cuja delicadeza e elegância retratam o gosto da aristocracia e das classes

mais abastadas da Europa Ocidental. Historiando as suposições a respeito da

origem destas tapeçarias, Alain Erlande-Brandenburg (2006) explica que Jean

Le Viste (Jean IV), alto conselheiro da corte de Luis XI, tenha encomendado a

obra em Brussels, o maior centro artístico de tapeçarias na França. Como se

sabe, a família Le Viste exerceu ascendente carreira na Administração Real,

desde que Jean I chegou a Paris (1388), vindo da província de Lyon. Os

membros da família desempenharam importantes funções, como a de

conselheiro do Parlamento, cargo hereditário, que outros herdeiros da família

vieram a ocupar. Os brasões da família Le Viste, que aparecem nos emblemas

de La Dame à la Licorne, foram difundidos por Jean IV, morto em 1500, e

correspondem aproximadamente ao suposto contexto de produção da série

(1457-1500). Nesse aspecto, acredita-se que Jean Le Viste tenha solicitado a

inclusão dos emblemas e armas no corpo temático das tapeçarias,

provavelmente com a finalidade de exaltar a nobre e promissora condição

social que o nome da família Le Viste veio a ocupar.

No entanto, segundo alude a nota editorial de Poética dos cinco

sentidos, La Dame à La Licorne, título atribuído no século XIX, poderia ter

sido encomendada por Jean IV e oferecida como presente de casamento à sua

filha Claude Le Viste, noiva de Jean de Chabannes, Lord de Vendenesse.

Todavia, essa hipótese passou a ser discutida, pois, se na época era muito

comum que as armas e os brasões de duas famílias viessem dispostas lado a

lado, sendo as do marido representadas do lado direito, e do esquerdo as do

pai, pode-se notar porém que em La Dame à la Licorne não há diferenças

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entre as mesmas; logo a hipótese de presente de casamento pareceu

inverossímil, sendo descartada com o tempo (ERLANDE-BRANDENBURG, 2006,

p. 67). Assim, passou-se a desconsiderar as hipóteses românticas acerca da

origem destes painéis, levando-se a crer que tenham sido, de fato,

encomendadas por Jean Le Viste, com o propósito de se comemorar sua

indicação como presidente de um respeitável conselho, que julgava assuntos

referentes aos subsídios financeiros oferecidos pelo Estado.

The Cluny tapestries were therefore executed between 1457, when Jean Le Viste gained the right to bear the full arms of his family after his father’s death, and 1500, the date of his own death. It is impossible to be more precise. We may wonder, however, in view of the pride in his arms expressed by the tapestrys, whether it was not executed either when he became head of his family, or when he was appoited President of the Court of Aids in 1489. It is easy to imagine the pride Jean took in this promotion, which advertised to the world the ascension of the Le Viste’s in the Royal Administration. His tomb bears witness to a glorious carrer, since he was buried before the high altar in the church of the Célestins in Paris, reserved in principle for great servants of the monarchy. A copper slab, stamped with his arms and showing him in his official robe, evokes his memory. (ERLANDE-BRANDENBURG, 2006, p. 68)

De modo geral, na iconografia compositiva de La Dame à la Licorne, há a

figura central de uma jovem dama, ladeada por dois animais um leão (à

direita) e um unicórnio (à esquerda), além de uma aia que aparece em

quatro das seis tapeçarias. O espaço alude a uma ilha, cujo ambiente evoca o

esplendor da natureza, com um formidável emaranhado de diferentes

espécies de flores, e árvores frutíferas que lembram um pomar acolhedor. Nos

vazios da superfície planar de cada obra, como forma de superar a tentativa

de enquadramento em perspectiva da cena através do chão luminosamente

florido, alguns animais foram inseridos entre as ramagens, segundo a

particularidade de cada temática. Ao mesmo tempo, o cromatismo da obra

obedece a um contínuo contraste de tons e sobretons de vermelho e azul, e a

abundante variação de diferentes tonalidades que surgem em menores escalas

e proporções. Cada sentido representado em cada peça foi idealizado e

composto de acordo com uma feitura individual, o que sugere certa

mobilidade dos quadros, pois, nos cinco primeiros painéis, não há nada que

traduza a rigidez de algum programa narrativo específico, mesmo em se

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tratando de uma possível leitura do mito da “caça ao unicórnio”. Porém, a

última peça, A mon seul désir, supõe um gran finale, como se objetivasse

concluir o ciclo alegórico da pretensa sequência. Certamente, La Dame à la

Licorne integra o valioso legado deixado pela iconografia dos limites entre a

arte gótica medieval e a emergente arte renascentista, pois, ao esboçar uma

narrativa que difere, entretanto, do frequente interesse dos motivos

religiosos de outrora, aponta uma tendência que se tornará bastante habitual

na pictografia de Quinhentos: a presença alegórica da cultura clássica

(mitologia) e a densidade humanista nas composições artísticas

(antropocentrismo).

Nesse aspecto, ao explorar os cinco sentidos do gênero humano, La Dame

à la Licorne imprime um contraste velado à ideologia teocêntrica da Igreja,

que aos poucos passou a ser interrogada nas artes do Outono da Idade Média –

e isto nos leva a refletir como sendo um dos presumíveis motivos para se

explicar a poeticidade do embate bélico entre o leão e o unicórnio no enredo

da série. Nessa linha de raciocínio, La Dame à la Licorne é uma exaltação ao

livre arbítrio do imaginário criativo homem, vindo também a repercutir nos

textos da Poética dos cinco sentidos. Portanto, levando-se em consideração os

problemas para se esclarecer a autoria, a encomenda, o fabrico e o objetivo

da feitura de La Dame à la Licorne,3 podemos assentir que a abordagem da

proposta editorial da Poética é bastante precisa, uma vez que “são questões

de pequena ou grande história, que hão-de averiguar-se ou não” (Poética dos

cinco sentidos, 1979, p. 9), pois, coerentemente, visa manter vivo todo o

imaginário que emana dessa imponente e intrigante obra-prima de arte

pictórica europeia.

Do ponto de vista ideológico, La Dame à la Licorne concebe um conjunto

de valores correspondentes à aristocracia ocidental, e igualmente aspirados

por uma burguesia emergente. A hierática e os brasões da nobre família Le

3 Cf. THOMPSON, Francis Paul. Tapestry, mirror of history. New York: Crown Publishers Inc., 1980. ERLANDE-BRANDENBURG, Alain. The lady and the unicorn. Nouvelle édition revue et corigeé. Paris: Editions de la Réunion des musées nationaux, 1989. PELOSI, Solange Maria L. O engenho e a arte na tapeçaria. 1994. 150 fls. Tese (Mestrado em ‘Poéticas Visuais’) FAAC, UNESP, Bauru, 1993.

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Viste remetem a certa atração e ostentação pelo poder, tão obsessivamente

retratados na simbologia cromática, nos animais e no enaltecimento do

padrão de beleza e requinte que compõem as figuras femininas:

curiosamente, no Dicionário da Idade Média, organizado por H. R. Lyon, o

verbete mulheres é ilustrado por uma das peças da Licorne, e apresenta a

seguinte inscrição: “A dama do ócio: de uma tapeçaria do final do século XV,

A mon seul désir” (LYON, 1997, p. 265). Como se sabe, na iconografia

heráldica, o leão e o unicórnio são representados com frequência nos brasões

de famílias e nas armas de diversos países, como na França e na Inglaterra.

Claramente, é possível notar o desejo de querer associar emblematicamente a

força, o poder e a realeza do leão, bem como a dignidade, a honra e a

magnitude do unicórnio à imagem de nobreza e probidade da família Le Viste,

que, por extensão, simboliza a identidade, a virtude e os valores aspirados

por toda uma sociedade, metaforizada no retrato imaginário e fantasioso de

uma dama da aristocracia.

The charm of this proud princess is enheanced by her splendid clothes: shimmering velvets, revealing a glimpse of a magnificent brocaded gown, stamped with abundant pomegranates, wide bands of embroidery, pearls and precious stones around the neckline or bordering the sleeves or slit skirts all this reveals a love of luxury surely prevalant at the time. The very jewels diadems, necklaces, slaps, belts, only emphasise such riches without adding to their brilliance. (ERLANDE-BRANDENBURG, 2006, p. 68, grifo nosso)

De fato, La Licorne é uma “visão de sociedade” (BURKE, 2004), ou seja,

uma imagem idealizada de um contexto peculiar da existência social. Como se

sabe, a vida social se define de acordo com a organização dos indivíduos,

instituições e suas inter-relações. As linguagens formam o repertório de

(inter)mediação entre as diferentes instâncias da vida, e assim o que

denominamos cultura, ou história cultural, nada mais é do que um conjunto

de ideias e valores que são transmitidos entre os indivíduos conforme

inúmeros interesses, dentre os quais os morais e políticos, formando deste

modo um coeso sistema de significação.

Da mesma forma que romancistas, pintores representam a vida social escolhendo indivíduos e pequenos grupos que eles acreditam serem típicos ou representativos de um conjunto maior. A palavra “acreditam”

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deve ser aqui sublinhada. Em outras palavras, como no caso de retratos de indivíduos, representações da sociedade nos dizem algo sobre uma relação, a relação entre o realizador da representação e as pessoas retratadas. [...] As pessoas retratadas podem ser vistas com maior ou menor distância, num enfoque respeitoso, satírico, afetuoso, cômico ou desdenhoso. O que vemos é uma opinião “pintada”, uma “visão de sociedade” num sentido ideológico mas também visual”. (BURKE, 2004, p. 149)

Diante disso, através das linguagens artísticas, é possível mapear as

transformações e as contradições de uma sociedade, e identificar como a

organização das estruturas sociais transcende no tempo e no espaço. Desse

modo, La Dame à la Licorne é um discurso ideológico, compreendendo-se por

ideologia em princípio o fenômeno dos processos sociais, de acordo com o

termo usado pela primeira vez no final do século XVIII por Destutt de Tracy

(WOOLARD, 1998, p. 5). Portanto, se a ideologia revelada no discurso da arte

também pode corresponder como reflexo das práticas da vida em sociedade

(ALTHUSSER, 1998), La Dame à la Licorne parece ser um arquétipo bastante

evidente desse ponto de vista. Isso significa que podemos observar, através da

enfática consagração dos painéis da Licorne pelo Museu de Cluny, o conjunto

de elevados bens culturais da sociedade europeia. Assim, a exposição

descritiva que Alain Erlande-Brandenburg, “ancien conservateur general du

musée national du Moyen Age Thermes de Cluny”, transmite

especificamente sobre L’Ouïe, na edição de La Dame à la Licorne, pela

Réunion des Musées Nationaux, parece assumir uma “language ideology”

(WOOLARD, 1998) sui generis:

There can be no doubt as to the interpretation of this scene: the Lady is playing a portable organ while her maidservant works the bellows. She wears a brocade robe, slit up the side to show the blue underskit. Long, very wide sleeves cover the silken shirt banded at the wrists. The brown veil falling over her shoulders is held in place by two braids of hair which meet high over the forehead to form an aigrette. The maidservant wears a dress of blue moiré, also with very wide sleeves, openning at the side to show a sky-blue underskirt. Her hair is carefully combed, held back by a head-band and partly hidden by a muslin veil. (ERLANDE-BRANDENBURG, 2006, p. 24)

Desse modo, verifica-se na descrição acima uma retórica ideológica

velada em cadenciado discurso informativo, que se revela no suporte

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linguístico de discurso ecfrástico. Se a “ideology is variously discovered in

linguistic practice itself; in explicit talk about language, that is,

metalinguistic or metapragmatic discourse” (WOOLARD, 1998, p. 9), logo, se

compararmos com a ekphrasis discursiva acima, notaremos que o discurso

artístico de transposição intersemiótica, proposta para a Poética dos cinco

sentidos, é o resultado de um conjunto de variações e tensões ideológicas,

proporcionadas pela mudança de contexto e pela liberdade do olhar

interpretativo do enunciador contemporâneo (escritor) sobre um bem cultural

do passado. Assim, “O ouvido”, de José Saramago, configura dialogicamente

questões de homologia genológica (literatura e pintura) através do discurso

metatextual, metadiscursivo e metaliterário, bem como na transposição de

uma “language ideology” de natureza engajada, provocada pelo alargamento

do texto plástico (tapeçaria), segundo a temática do fabrico da peça.

Isso se dá em razão de que a ideologia, diante das várias concepções

atribuídas ao termo, passou também a denotar com o tempo a ideia de crítica

sociológica, isto é, ideologia como instrumento das relações de poder dentro

de uma sociedade, acobertando os verdadeiros processos de legitimação da

ordem social. Dentro dessa concepção, a ideologia dominante impregna

implicitamente todos os níveis de relações sociais (educação, cultura,

linguagem, política, economia, mídia etc.), refletindo-se nas experiências

individuais, nas relações entre sociedades e entre os membros de um grupo

social e suas trocas simbólicas. Assim, ideologia seria como “a particular

organization of signifying practices which goes to constitute human beings as

social subjects, and which produces the lived relations by which such subjects

are connected to the dominant relations of production in society” (EAGLETON

apud WOOLARD, 1998, p. 6). Assim sendo, podemos reconhecer, no discurso

artístico de José Saramago em “O ouvido”, que o som é o princípio pelo qual o

enunciador passa a aventar essas relações de poder, e dentro dessa ótica,

podemos inferir que, tanto “O ouvido” quanto Memorial do convento se

apoiam numa linguagem ideológica ao assumir uma postura de

descortinamento das relações de dominação social. Nesse aspecto, o discurso

literário de José Saramago reflete a ideia de câmera escura, ao representar a

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imagem invertida do mundo, objetivando esclarecer as distorções (erros,

ilusões) da história através da contestação da verdade pré-estabelecida

culturalmente, tornando o discurso literário também parte integrante dessa

veridicidade investigativa (FOUCAULT, 1979; 1981).

Por essa razão, pode-se visualizar com lucidez a gênese do programa

ideológico de José Saramago, circunscrito na atividade literária desde o

trabalho das crônicas, passando também por algumas das obras traduzidas

pelo autor, as quais possuem um importante elo com o pensamento neo-

realista e com o realismo do século XIX. Por exemplo, Ana Paula Ferreira, ao

refletir sobre a ficção de Alves Redol, vê uma intenção revolucionária mundial

no movimento neo-realista, que surgiu em Portugal a partir da década de 30

do século passado. Organizado de acordo com uma proposta ideológica de

cunho marxista, o neo-realismo estruturou-se como arte socialmente

“comprometida”: “discurso literário-padrão a partir do qual se torna possível

representar e interrogar o destino histórico de um povo e das suas margens

silenciadas” (FERREIRA, 1992, p. 284), constituindo um fértil caminho de

resistência ao regime salazarista, e, por outro lado, abrindo as portas para a

retomada do romance português como importante gênero literário instaurado

no Romantismo.

No entanto, Horácio Costa contextualiza que, no final da década de 70,

Portugal experimentava o fluxo das consequências da instauração do regime

de parlamentar democracia, e, por conseguinte, Saramago já se dedicava

expressamente à literatura ficcional e ao processo de renovação escritural

(COSTA, 1997, p. 212). Assim, Costa observa que em “O ouvido” Saramago

retoma o tom digressivo de pulsão lírica e não de participação, se comparado

ao discurso das crônicas. Avalia que, no contexto de escrita de “O ouvido”, as

atividades de Saramago para as mídias editoriais e periódicas já tinham se

esgotado profissionalmente, e, como resultado, aquele teor de criticidade

mais agudo passou a ser superado por uma linguagem mais elaborada

artisticamente. Nesse sentido, o texto de José Saramago na Poética dos cinco

sentidos, segundo Costa, pode ser o limite de uma fase de transição e de

superação dos caminhos percorridos na obra de inauguração, as quais

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certamente produzem certos reflexos nas estratégias textuais de “O ouvido” e

nos textos posteriores do autor (COSTA, 1997, p. 262).

Todavia, como se sabe, José Saramago não se demonstrou muito

aderente aos procedimentos com os quais a social democracia se instaurara

em Portugal. Por essa razão, o autor é levado a restaurar determinados vieses

críticos de outrora na sua correlata escrita ficcional, encontrando

correspondências na proposta ideológica do discurso neo-realista. Deve-se

considerar ainda que o estreito comprometimento social, que o escritor

vivenciou no longo período da ditadura em Portugal, evoluiu posteriormente

para um nível de dimensão analítica mais universalista, delineada por certos

nuances de poética socialmente empenhada.

Em vista disso, na época de sua edição, “O ouvido” e o conjunto de

textos que formam Poética dos cinco sentidos participam de uma conjuntura

social e artística de fundamental importância para a cultura portuguesa. A

elevada sensibilidade artística demonstrada pelos escritores da Poética alude

a uma postura de imaginação e aspiração libertárias, num exato momento da

história social portuguesa em que as artes poderiam se tornar vetores e vozes

de uma comum ansiedade social. A liberdade do tratamento interartístico

dessa iniciativa pode revelar, metaforicamente, o espírito de ação e a

coragem que devem iluminar o homem que busca novos rumos para sua

história. Em outras palavras, a proposta dessa obra coletiva, que nasce da

participação subjetiva de seletos escritores, pode ideologicamente aludir à

aspiração coletiva de participação política e social democrática, que intentará

inferir os novos caminhos no âmbito da sociedade portuguesa.

Diante dessa perspectiva, ao (re)compor a tapeçaria de Cluny (L’Ouïe),

José Saramago também busca (re)compor o modus vivendi do passado sob a

perspectiva ficcional do tempo presente. Uma vez que a tapeçaria se

distancia no tempo e no espaço do escritor, ela passa a simbolizar a

onipotência da imagem da tradição europeia como escrita da história. Por

essa razão, afigura-se no “O ouvido” o perfil do discurso racional de caráter

especulativo, que remonta a beleza plástica da tapeçaria de Cluny, e

transcreve, numa interface textual, o simulacro de um olhar totalizante sobre

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a sociedade e sobre a cultura ocidental, e de maneira associativa, Saramago

se converte também num pintor da vida social.

Com efeito, pode-se constatar que o

enunciador de “O ouvido”, ao discorrer

sobre o sentido da audição, na perspectiva

do fazer artístico, busca

hermeneuticamente o som primitivo, o fiat

que verdadeiramente deu origem à

tapeçaria. Desse ponto de vista, o texto

sugere, num plano de interdiscursividade,

uma aproximação estética com a peça

L’Ouïe, porém, num contraponto

ideológico, difere desta, a exemplo do que

vimos na descrição do “ancien

conservatour général”. Assim, se a imagem

visual e a descrição ecfrástica protagonizam,como efeito modelizador, a

personagem central da Dama a dedilhar um órgão, que por sua vez é

impulsionado pelo fole da aia, há, no entanto, em “O ouvido”, uma recriação

da alegoria visual de L’Ouïe4 sob uma perspectiva invertida da imagem

propriamente dita, no formato de uma (sub)versão ideológica. Assim, partindo

da compreensão lúdica do sentido da audição, liricamente estampada na

representação da tapeçaria, o olhar ficcional circunscrito na escrita literária

de José Saramago traça novas tonalidades e novas tramas na tessitura

dialógica interartes:

O primeiro som, aquele de que todos os outros virão a nascer, filhos, discípulos ou gnomos, ou bagos de romã justapostos, ou favos que se respondem como a luz de uma vela entre espelhos paralelos, o primeiro som, em tão grande silêncio nascido que poderia ser a primeira de todas as vagas quebrada sob os nevoeiros e as sombras do mundo recém-criado, o primeiro som é apenas o da corrente de ar que nos foles do órgão se introduz, ou talvez não,

4 La Dame à la licorne. "L'Ouïe", XVe siècle. Imagem extraída a partir do sítio do Musée National du Moyen Age. Disponível em: http://www.musee-moyenage.fr. Acesso em: 9 fev. 2009.

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o primeiro som será o da respiração necessária para que a donzela aia faça o tão pouco esforço de levantar o punho do fole (SARAMAGO, 1979, p. 21, grifos nossos).

Como toda tapeçaria sempre possui dois lados, um nunca descoberto aos

olhos do espectador, Saramago percorre o lado inverso do tecido/tapeçaria no

tecido/escrita de “O ouvido”. De fato, enquanto escritor, Saramago valoriza o

repertório literário que deriva da composição artística do artesanal, sendo

impelido pelo entrecruzamento de pontos de intersecção através das

ambiguidades intertextuais, paratextuais, metatextuais e arquitextuais

(GENETTE, 1982), como exemplo: linha/escrita, trama/articulação,

cores/palavras, tapeçaria/texto, tear/escrever, visível/lisível. Entretanto, na

hermenêutica do primeiro som, o enunciador-artesão valoriza a homologia

criacionista do verbum divino (vox) e do verbum humano (scripta), justapondo

realidade e imaginação, e assim, levado pelo enquadramento da cena na

tapeçaria, supõe que o primeiro som pudesse ser o do ar que passa pelos

orifícios do fole, porém, de forma incisiva, revela que o som produzido pela

respiração da aia é a força motriz de todo esse universo pictográfico.

Efetivamente, o tom digressivo do discurso opera a palavra, qual um

bisturi a dissecar a natureza íntima da tapeçaria. Ao mesmo tempo, explora-

se ludicamente a visibilidade gráfica da folha de papel e os espaços vazios e

de escrita no início do texto, a aludir à ambiguidade entre os primeiros

movimentos da lançadeira e as primeiras contexturas do discurso verbal. Não

obstante, se o fole de pele do gado nos currais lembra os sons da natureza, de

onde provem a matéria-prima da manufatura, é também pelo trabalho da aia

em mover o fole e pela labuta dos demais trabalhadores e artesãos, co-

participantes do fabrico da peça, que se edifica legitimamente a imagem

tecida-escrita. No entanto, se L’Ouïe é o produto final a representar

estaticamente o exato momento em que a Dama tocará a primeira nota no

órgão; no “O ouvido”, porém, a escrita é dinâmica e progressiva, pois a

leitura abstrai o processo construtivo do texto, discurso a revelar o constante

devir de personagens, objetos, movimentos e sons. Isto é, o enunciador não se

mostra distante do Outro ou estranho à cena que testemunha, mas sugere que

a projeção actancial da Dama subentende uma série de ações de múltiplos

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actantes, que, se não figuram na idealização cenográfica da peça, entretanto,

estão inseridos metaforicamente no lado (in)verso do painel [“Esse, ou este,

ou ambos porque mutuamente se requerem, são o primeiro som [...] todos os

sons estão neste primeiro, e todos são o mesmo silêncio, ou a mesma

demonstração da sua impossibilidade” (SARAMAGO, 1979, p. 21)].

Grosso modo, a imagem, ou opinião pintada do escritor, que passa a

prevalecer no imaginário da leitura, é a da eminente e indefinida massa de

silenciados, muitas vezes humildes sustentadores de uma poderosa e ociosa

elite. O texto demonstra sucintamente o retrato da condição humana, que a

posteriori os romances Levantado do chão e Memorial do convento, de uma

maneira mais aguda, irão traduzir, ao expor a submissão do homem aos

sistemas de dominação e servilismo. Dessa forma, o enunciador de “O

ouvido”, posicionado nos bastidores do tear/escrita, sem perder a densidade

lírica da cena íntima figurada, focaliza a superestrutura das relações sociais.

Esse procedimento se aproxima do sentido marxista de ideologia, pois através

das metáforas sociais e da visão alegórica do mundo, o enunciador, ao se

identificar com a condição do Outro, manipula o julgamento do leitor-

interpretante, o sujeito atualizador da escrita (BAKHTIN, 1997). Assim o leitor

passa também a se reconhecer, dialeticamente, incluso nos sistemas de poder

que condicionam a existência dos indivíduos, uma vez que “leur conaissssance

de l’idéologie les en délivre, que leur théorie, s’appuyant sur la práxis et les

luttes prolétariennes” (REBUL, 1980, p. 19).

Não precisa o debuxador de manter imobilizados diante de si os modelos que vai fixar no cartão. Em folhas soltas começou por figurar o cordeiro e a raposa, a lebre e o coelho, o lobo e o lebreu, e o pato bravo que, livre ainda, já se retorce e arqueja e grasna e cai porque o falcão vem cortando os ares, ele sim detido no vôo por misericórdia do artista, senhor de não querer que num céu coberto de flores façam obra de morte as garras e os bicos. Nenhum mal irá acontecer aqui. Os animais esperam pacientemente a música, e deles não virá rumor. (SARAMAGO, 1979, p. 22, grifos nossos)

Veja-se que, pela palavra escrita, Saramago traça um caminho de leitura

que perpassa o matiz de agudos contrastes, e encena uma verossímil alegoria

social: raposa versus cordeiro, lobo versus coelho, falcão versus pato. Porém,

na tela/texto, menos pela força de certa censura poética e mais pela

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associação interdiscursiva do texto (literatura) com a imagem (tapeçaria), o

sofrimento e o mal não irão ocorrer, antes são amenizados e ironizados nos

enunciados: “o tão pouco esforço em levantar o punho do fole” e “detido no

vôo por misericórdia do artista, senhor de não querer que num céu coberto de

flores façam obra de morte as garras e os bicos”. Entretanto, no dêitico de

“nenhum mal irá acontecer aqui”, há uma inversão a determinar outro locus

de desenvolvimento do esquema actancial, o qual se leva a crer que se trata

do mundo real, ou seja, o teatrum mundi: o espaço onde se torna possível

todo o tipo de animalidade e violência do homem pelo homem: homo homini

lupus.

Dentro do enfoque de suavidade das imagináveis tensões que emanam da

alegoria da natureza de La Dame à la Licorne, o enunciador de Saramago se

fixa na candura das “simples coisas que se fazem as tapeçarias” (SARAMAGO,

1979, 24), isto é, o balir das ovelhas, o ranger da tesoura, o gadanho da foice,

o cantar de um pássaro e o rugir do leão, ou seja: os nomes e os sons dos

seres e dos objetos suspensos na leitura visual, que ilustram a escrita-tear de

“O ouvido”. Dessa forma, a palavra adquire uma dimensão memorialística,

como documento escrito ou registro que historia as coisas e os seres

submersos na história cultural, e, diante dessa vertente, sobrevém certa

afluência ideológica entre o lisível e o visível, uma vez que a escrita de “O

ouvido” se inclina para o mundo real, na tentativa de resistir ao confronto

provocativo do encanto romanesco da peça, detendo-se portanto na

perscrutação metadiscursiva da feitura da obra. A imagem, os sons e as cores

desse outro tecelão são palavras-objetos e sons-objetos, i.e., o manuscrito

(caligrafia) é a sua matéria-prima, e pela leitura se concebe mentalmente a

representação verbovisual:

Eis, portanto, o linho com a sua cor de nascença, os seus fios certos e paralelos. Eis a lã tingida do requerido vermelho, do verde e do azul de chumbo, e de um branco que é leite de ovelha e pele humana, branca de mulher, de homem branca, cor única de diferentes brancos. Eis o cartão pintado, o projecto e os seus limites, e no entanto a liberdade que os recusa a todos. Já o tecelão vindo de longe se sentou a tear. Passa as pontas dos dedos pela urdidura, avalia a tensão dos fios. (SARAMAGO, 1979, p. 25, grifos nossos)

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Paralelamente, cada palavra escrita é nota sonora e fragmento de cor.

Cada ideia-imagem terá a marcação de seu tempo, suas combinações, sua

harmonia, e, conjuntas no simulacro sonoro e irregular do tear

(palavras>linhas>texto), constituirão o tecido, também de lã e de seda

entrelaçadas através da forma imagética da alegoria literária. Cumpre ainda

observar no texto a representação simbólica da mão, cujo gesto de leveza e

delicadeza poderá representar o ato da escrita (escrever/tecer,

manufatura/manuscrito, memória/memorial) de uma pena/ponta-de-prata a

fixar no papel a tapeçaria/molde, ou, outrossim, o símbolo de luta e

resistência, em prol da construção de uma nova consciência de humanidade.

Luminosamente, o traçado das palavras irá compor uma nova trama, um

manifesto singular, construído pela voz e mãos humanas:

A trama cruzou-se com a urdidura: está nascida a tapeçaria. Todos os remates foram concluídos, dados os nós, o tecelão partiu com seu salário. O órgão pode, enfim, tocar. Soa o seu primeiro som, levante-se, alargue-se, expanda-se no espaço, preencha ao menos um pouco deste tempo esquivo. E venham mais os outros sons, música das mãos, quatro são, que correm sobre as teclas ou convocam do céu os ventos calmos. Falta apenas que uma destas mulheres cante, para que uma voz humana diga, por palavras nossas de humanos, o que grandes coisas significam. E, tendo-o dito, olhe para nós em silêncio. (SARAMAGO, 1979, p. 26, grifos nossos)

Não obstante, se “O ouvido” simula o ecrã visual onde se projeta a

trama inversa da tapeçaria, igualmente o Memorial do convento cinzela “o

que a História conta e o que a História não conta” (REIS, 1998, p. 80). Não

porventura, o Memorial imprime uma história oficiosa, como em “O ouvido”,

contada dos seus bastidores; e, dessa forma, José Saramago assemelha-se ao

pintor social, porque anseia (re)visitar o passado com o olhar ab hoc tempore.

Assim, no Memorial não é apenas a imagem arquitetônica que se busca

construir no imaginário da leitura, mas o majestoso edifício é o ponto de

partida para a construção da arquitetura discursiva, ou seja, as memórias que

se entrelaçam na diegese romanesca. Como não há ilustração ou foto que

represente a imediata relação de interface de linguagens, a exemplo de

Poética dos cinco sentidos, sabe-se, contudo, que o convento de Mafra é

evocado semioticamente como bem cultural (monumento), e, de forma

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equivalente, vemos que Saramago aplica no Memorial a estratégia

intertextual de “O ouvido”. De forma aderente, essa intersecção de

identidade ideológica e dialógica do “O ouvido” e do Memorial pode se

resumir do seguinte modo:

sendo real a existência do convento de Mafra, como reais foram as mãos que contribuíram para a sua edificação e para a construção da passarola, é de salientar que, para além da experimentação inusitada em termos formais em relação às obras imediatamente anteriores que esta prosa poética de amplo fôlego permite, também do ponto de vista temático “O ouvido” preludia o Memorial do convento, em especial pelo papel decisivo que atribui às vontades humanas na concepção e criação de obras de arte. Este ponto, que intersecta o da autoria, percorre de resto toda a curta narrativa. (NEVES, 1999, p. 135)

Como se sabe, a tapeçaria de Cluny e o convento de Mafra foram obras

erigidas para se exaltar e preservar a honra de seus grandes realizadores

(Jean Le Vista e D. João V) ou rememorar um acontecimento notável

(aristocracia e natividade), no entanto, em “O ouvido” e no Memorial, José

Saramago valoriza o labor coletivo das forças produtivas desses bens culturais,

ou seja, busca evidenciar o esforço de muitas vontades, de muitas mãos e de

muitas vidas que deram vida a essas incomparáveis realizações. De fato,

Saramago desperta as vozes que se emudeceram na linha do tempo, cuja

distância com o presente tornou-as alheias às memórias da história oficial.

Se em “O ouvido” o enunciador assume uma preferência em destacar a

presença dos servos, desenhistas e artesãos, orientando-se na busca do som

primitivo, ao perscrutar o sopro divino, a respiração da aia, a agitação dos

animais, os passos do homem sobre a terra e o efeito narcisista de escrita

auto-reflexiva; por sua vez, no Memorial, escrutina-se a participação popular

na produção de um memorial-textual, por meio da fixação enunciativa, como

a presença dos provérbios, da polifonia, da paródia, da intertextualidade

(OLIVEIRA FILHO, 1993) e dos nomes dos indivíduos que tornaram possível o

desejo da elite. O narrador do Memorial sente-se sensibilizado a dar voz à

minoria, pinta a condição humana dessa gente, que simboliza toda uma

casta de inferiorizados, e se constitui um porta-voz denunciador das

injustiças e do pesado fardo imposto pelo poder da tirania, como constatamos

na imagem por que se descreve a “entrada triunfal” dos trabalhadores em

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Mafra, após os oito dias que levaram para transportar de Pêro Pinheiro uma

pedra descomunal: “quando entraram no terreiro, foi como se estivessem

chegando duma guerra perdida, sujos, esfarrapados, sem riquezas. Toda a

gente se admirava do tamanho desmedido da pedra, Tão grande” (SARAMAGO,

2005, p. 255, grifo nosso).

Estabelece-se, portanto, a vertente do discurso neo-realista entre as

obras em questão, o que nos remete à literatura como missão, reconhecida

como princípio primordial da Geração de 1870. Em vista disso, José Saramago

mostra-se inteiramente consciente da importância social do papel da palavra

escrita (querer-dizer>fazer-dizer), admite que a verdade unilateral das coisas

não exista em termos de discurso e linguagem [“esse diálogo é falso,

apócrifo, calunioso, e também profundamente imoral, não respeita o trono e

o altar, põe um rei e um tesoureiro a falar como arrieiros em taberna”

(SARAMAGO, 2005, p. 274-5, grifos nossos)], uma vez que também não existe

um sentido único para a incoerência do mundo (ROSENFELD, 1969) e, assim, o

escritor se torna o realizador do memorial que se edifica a partir da

observação e da análise, isto é, narrativa que promove a coerência intelectiva

do mundo (BARTHES, 2003). De fato, a literatura de Saramago não é arte

descompromissada; ao contrário, sua obra interage com o social, com o leitor,

porque é produzida dentro de um horizonte sociológico [“só faltava que os

rodeassem inflamâncias de meritornes, seria um desbocamento completo,

porém, isto que se leu é somente a tradução moderna do português de

sempre” (SARAMAGO, 2005, p. 275)], resultando na presença de juízos de

valor e, principalmente, de questionamentos [(“Deve-se a construção do

convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um

filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e

eles é que pagam o voto, que se lixam com perdão da anacrônica voz”

(SARAMAGO, 2005, p. 248)]. Por conta disso, simbolicamente, a imagem

retentiva dos trabalhadores pretende se perpetrar viva através do registro

dessa escrita fabular, como lançadeira a percorrer ao contrário as tramas do

tear, desfazendo os tecidos do (con)sagrado memorial:

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tudo que é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar das vidas, por tantas serem, ao menos deixaremos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidoro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos, e alguns deles estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e a profissão. (SARAMAGO, 2005, p. 233, grifos nossos)

Curiosamente, tempos antes, Saramago traçara semelhante inventário,

de nomes e de profissões, que vieram inscritos na crônica “Memórias alheias”,

publicada posteriormente na coletânea de A bagagem do viajante. Ao tomar

como mote temático a memória da revolução de 5 de outubro de 1910, dia da

Proclamação da República Portuguesa, após se dedicar por algum tempo a

registrar por escrito nomes e fatos acerca do início do século passado, José

Saramago afirma não haver escrito a verdadeira história da revolução por uma

incógnita informação:

Vou percorrendo os nomes e vejo as profissões: soldados, marinheiros, carpinteiros, tipógrafos, alfaiates, comerciantes, tanoeiros, descarregadores, padeiros, funileiros, tecelões, serralheiros, estudantes, moços de fretes um rosário interminável de ofícios populares. E, neste ler e pensar, encontro de súbito o número 399 da lista com a seguinte menção: “Desconhecido”. Nada mais, além de o ter morto uma arma de fogo e ter recolhido à morgue. Ponho-me a refletir, a olhar a palavra irremediável, e digo a mim mesmo, enfim, que se não escrevi a verdadeira história da revolução de 5 de outubro foi apenas porque nunca conseguiria saber quem havia sido aquele homem: 399, morto com um tiro e transportado para a morgue. Anônimo português. (SARAMAGO, 1991, p. 876, grifos nossos)

Dessa forma, Saramago cogita sobre a verdadeira natureza dos

acontecimentos, e canta, camonianamente, “aqueles que por obras

valerosas/ Se vão da lei da morte libertando” (Os Lusíadas, Canto I). É a

epopeia humana que José Saramago perscruta, narrativa que também não

dispensa o engenho e a arte, pois, de forma correspondente a “O ouvido”,

“forçoso é juntar tudo quanto apareceu disperso, ressuscitar, reunir o que é

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material ao que com outros nomes também o é, e, pensando, encontrar o

meio de chegar a uma coisa só” (SARAMAGO, 1979, p. 25).

Assim, se nos painéis de La Dame à la Licorne há um mundo colorido e

fantástico, centrado na figura adorada da grande dame, por sua vez, na

história cultural, vislumbra-se o convento de Mafra (palácio, basílica, museu)

como sublimação ao monumento histórico. Ambos denotam ainda hoje o

reflexo de seus valores e elevados ideais. Evidentemente, são símbolos do

poder, do requinte e do luxo de seus benfeitores, que, no Memorial, parecem

ironizados na evocação camoniana ao Velho do Restelo: “Ó glória de mandar,

ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem justiça” (SARAMAGO, 2005, p. 284).

Contudo, através de uma linguagem ideológica que estabelece vínculos com o

ideário neo-realista, a arte literária de José Saramago produz a revelação e o

desmascaramento das estruturas de dominação do outro. Em ambos, “O

Ouvido” e o Memorial, Saramago expõe sua visão crítica sobre o fenômeno

artístico e social, e comunica a necessária importância dos homens em

compreender o estado das coisas no mundo, vindo a ser considerado,

utopicamente, “un escritor que se ha convertido en la consciencia lúcida de

una época cegada por los mecanismos del poder”.5

Como se pode remeter, na construção da passarola, a escrita registra o

resultado arrebatador das vontades humanas, que se desprendem do

reprimido anonimato. Nesse sentido, o Memorial se caracteriza como análise

sócio-histórica em hermenêutica de profundidade, considerando-se que

“interpretar a ideologia é explicar a conexão entre o sentido mobilizado pelas

formas simbólicas e as relações de dominação que esse sentido mantém”

(THOMPSON, 2000, p. 35). Sendo assim, veja-se o produto final, o convento,

como objeto de desejo do poder, que se corporifica na força produtiva dos

trabalhadores, mas, sobretudo, veja-se esse outro produto, esse outro desejo:

o repertório memorial das palavras, a voz e as vozes no memorial discursivo

de José Saramago. Assim, o romance laureado com o Nobel de Literatura

5 Trecho extraído da nota de apresentação (contracapa) da publicação espanhola do romance Ensaio sobre a lucidez (Ensyo sobre la lucidez), Santillana Ediciones Generales Suma de Letras, Madri, 2004, coleção Punto de lectura. Tradução de Pilar Del Rio.

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(1998) busca desprender uma força densa e expressiva de histórias, registros,

memórias, apontamentos e crônicas, em princípio, daquilo que Portugal

outrora foi, mas do que o mundo social mimeticamente é. O Memorial é o

testemunho da palavra-pedra: adversamente bruta, porque é dramaticamente

pesada, e melodiosa, porque é humanamente viva. A palavra escrita é a pedra

lapidada com a qual se constrói o verdadeiro e justo memorial. Segundo

Seixo, o Memorial do convento é:

a voz de um povo suspenso entre a epopeia e o mito, entre a construção e o sentido, a voz da personagem que vibra entre a elevação e a queda, entre a vida e a morte [...], a voz da memória pessoa e colectiva entrecruzadas, a voz que justamente prolonga na mesma comunicação todos os sentidos “deste mundo e do outro”. Marca poética de uma mundividência, hino de consagração ao humano, este processo estilístico aviva, na obra de José Saramago, e por sobre o mundo de recorte mítico de um descritivismo pormenorizado, radicado, historicamente fiel e efervescente de realismo no delineamento perfeitamente contornado do objecto social e cultural que nos comunica, um desprendimento ideológico e estético que não implica uma visão desenquadrada mas uma sensibilização à ressonância dos fatos, è energia das coisas [...], à comunicação incessantemente desdobrada entre os seres que constitui a vastidão do mundo ou, mais adequadamente dizendo, o vasto tempo dos mundos sucessivos. (SEIXO, 1987, p. 70-71)

Finalmente, verificamos que linguagem e ideologia se intersectam no

discurso artístico do escritor, sendo evidente o diálogo entre a gênese e a

maturidade da sua escrita literária. É importante destacar que, em colóquio

com Carlos Reis (1998), Saramago já confirmara a presença embrionária de

personagens, temas, entre outros tópicos, abordados na fase formativa de sua

obra, e que vieram a ecoar posteriormente na sua ficção mais tardia. Desse

modo, o texto “O ouvido” é o avesso do bordado, ou seja, o avesso perfeito

que nos mostra, como no Memorial, a vox populi, i.e., os esquecidos da

História. Curiosamente, vale notar que ouïe (francês) denota audição, e a

expressão l’ouïe: a audição. No âmbito musical, audição (português) quer

dizer concerto, ou seja, exibição instrumental. Já a expressão audição

colorida, por sua vez, implica na sensação cromática despertada pelo som

(cromestesia). E, por outro lado, o termo olvido (espanhol) é traduzido para a

língua portuguesa como esquecido, sendo que olvido (português) denota

esquecimento, e, por extensão, ouvido (português), entre outras acepções,

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significa escutado. Aliás, é possível considerar a hipótese de que o influxo das

imbricações ortográficas e semânticas do vocábulo ouvido também

(co)participe do contorno embrionário e dialógico entre o texto “O ouvido” e

o romance Memorial do convento.

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