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3. Pós-modernidade e a Tipografia Pós- moderna: Referencial Teórico Pós-modernidade é um conceito bastante amplo, que vem sendo discutido em diversas esferas. Da economia à arquitetura, muitas foram as áreas que se apropriaram deste termo, que pode definir não só um período histórico, uma geração, mas também estratégias e estilos específicos no que tange à arquitetura e ao design. O termo está fortemente associado ao fenômeno da estetização, presente em todas as suas vertentes. Gruszynski (2007) explica que para se indicar um período histórico, usa-se o termo pós-modernidade, enquanto pós-modernismo se refere “a uma forma de cultura contemporânea” (p. 55). Em A condição pós-moderna , Harvey (1989) realiza uma leitura das conexões entre capitalismo e pós- modernismo, apontando que a passagem para a pós- modernidade está ligada a diversos eventos impactantes. São eles: as duas grandes guerras mundiais; a bomba atômica; o fim da crença inabalável da razão; o avanço do aparato tecnológico e seu uso para a destruição; a derrocada dos nacionalismos; a fragilização do estado provedor; a expansão dos meios de comunicação e transporte, com sua influência significativa sobre o mundo como um todo. Aponta como o pós-modernismo permeou todas as instâncias, pois trouxe “uma mudança abissal nas práticas culturais, políticas e econômicas (...) na estrutura do sentimento, da sensibilidade” (p.45), no início dos anos 70, estabelecendo sua ligação com as práticas mais flexíveis, vindas com o capitalismo avançado. Ainda para Harvey, ambas as periodizações estão alinhadas pelo modo de produção capitalista. Este, no entanto, sofre mudança de enfoque: enquanto na modernidade a produção se voltava para o coletivo – possuindo uma função social –, na pós-modernidade, o interesse produtivo passava a contemplar os pequenos grupos sociais – os nichos e suas particularidades. Silva assim define a relação entre o sistema capitalista e o pós-modernismo: (...) podemos observar que, de certa forma, o pós- modernismo, com sua atomização da sociedade, nada mais é senão lógica cultural do capitalismo avançado. Quando a produção da cultura foi inserida na produção das mercadorias em geral, a ânsia de produzir uma nova onda de

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3. Pós-modernidade e a Tipografia Pós-moderna: Referencial Teórico

Pós-modernidade é um conceito bastante amplo, que vem sendo discutido em diversas esferas. Da economia à arquitetura, muitas foram as áreas que se apropriaram deste termo, que pode definir não só um período histórico, uma geração, mas também estratégias e estilos específicos no que tange à arquitetura e ao design. O termo está fortemente associado ao fenômeno da estetização, presente em todas as suas vertentes. Gruszynski (2007) explica que para se indicar um período histórico, usa-se o termo pós-modernidade, enquanto pós-modernismo se refere “a uma forma de cultura contemporânea” (p. 55).

Em A condição pós-moderna, Harvey (1989) realiza uma leitura das conexões entre capitalismo e pós-modernismo, apontando que a passagem para a pós-modernidade está ligada a diversos eventos impactantes. São eles: as duas grandes guerras mundiais; a bomba atômica; o fim da crença inabalável da razão; o avanço do aparato tecnológico e seu uso para a destruição; a derrocada dos nacionalismos; a fragilização do estado provedor; a expansão dos meios de comunicação e transporte, com sua influência significativa sobre o mundo como um todo. Aponta como o pós-modernismo permeou todas as instâncias, pois trouxe “uma mudança abissal nas práticas culturais, políticas e econômicas (...) na estrutura do sentimento, da sensibilidade” (p.45), no início dos anos 70, estabelecendo sua ligação com as práticas mais flexíveis, vindas com o capitalismo avançado. Ainda para Harvey, ambas as periodizações estão alinhadas pelo modo de produção capitalista. Este, no entanto, sofre mudança de enfoque: enquanto na modernidade a produção se voltava para o coletivo – possuindo uma função social –, na pós-modernidade, o interesse produtivo passava a contemplar os pequenos grupos sociais – os nichos e suas particularidades.

Silva assim define a relação entre o sistema capitalista e o pós-modernismo:

(...) podemos observar que, de certa forma, o pós-modernismo, com sua atomização da sociedade, nada mais é senão lógica cultural do capitalismo avançado. Quando a produção da cultura foi inserida na produção das mercadorias em geral, a ânsia de produzir uma nova onda de

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bens com a aparência cada vez mais nova atribuiu uma importante função estrutural à experimentação estética. Os produtores agora possuem um largo interesse em cultivar “apetites imaginários”. O capitalismo se viu forçado a produzir desejos e estimular sensibilidades individuais (Silva, 1994, p. IX-29-30). O trecho que se segue foi destacado, porque realça a

aplicação do termo pós-modernidade para definir as mudanças culturais e também no modus vivendi, em última instância, das sociedades ocidentais contemporâneas:

O que se parece num nível com um último modismo, promoção publicitária e espetáculo vazio é parte de uma lenta transformação cultural, emergente nas sociedades ocidentais, uma mudança da sensibilidade, para a qual, o termo “pós-moderno” é, na verdade, ao menos agora, totalmente adequado. A natureza e a profundidade dessa transformação são discutíveis, mas transformação ela é. Não quero ser entendido erroneamente como se afirmasse haver uma mudança global de paradigma nas ordens cultural, social, e econômica; qualquer alegação dessa natureza seria um exagero. Mas num importante setor da nossa cultura, há uma notável mutação na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas que distinguem um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e pressuposições do período precedente (Huyssen apud Harvey, 1989, p.45). É interessante notar que há divergência entre Huyssen e

Harvey com relação à extensão dessa mudança: este a considera uma “mudança abissal” (p. 45), enquanto Huyssen a entende como “lenta transformação” (p. 45) que não chega a configurar uma alteração total de paradigma. Mas para ambos, as transformações são inegáveis e permeiam todas as esferas da vida humana.

Quando novamente o foco da discussão sobre as transformações no âmbito cultural – entre outras – volta-se para o design gráfico, faz-se mister observar as primeiras manifestações, cujas propostas recaem sobre a transgressão do design funcionalista. Nos Estados Unidos, ainda nos idos da década de 1940, destaca-se o designer e diretor de arte Lester Beall, como expoente da arte comercial, denominada por Heller e Fili (1999) de Late Modern, com uma abordagem bastante particular e inovadora do Estilo Internacional. Seus layouts já apontavam para algumas estratégias que viriam a configurar a desconstrução, cerca de quarenta anos mais tarde, porém, mantendo a tradição do uso de fontes sem-serifa e da assimetria dos layouts modernos.

Outros nomes contemporâneos que, de forma mais flexível abordaram os dogmas modernistas-funcionalistas foram Paul Rand, Alexander Ross e Alexey Brodovitch, todos estabelecidos nos Estados Unidos. Mais tarde, no final

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da década de 50, Herb Lubalin foi outro destaque no que tange à abordagem tipográfica, tratando a tipografia como elemento ilustrativo e retórico em seus layouts inovadores. Uma década depois, uma nova geração de designers americanos libertou-se, através de soluções formais baseadas numa ampla palheta de cores e tipos inusitados, e revivalistas – muitos, inspirados na era Vitoriana, no Art Nouveau e no Art Déco, caracterizando um estilo batizado de Eclectic Modern, por Heller e Fili (1999). Dessa fase, destacam-se os designers do Push Pin Studios: Milton Glaser e Seymour Chwast – os quais assumidamente buscavam uma alternativa para aquilo que descreviam como “a rigidez fria do Estilo Internacional”1 (Heller & Fili, 1999, p. 164).

Victor Moscoso foi outra figura emblemática da estética psicodélica, associada a valores da geração rebelde, que fazia apologia ao “sexo, drogas e rock-and-roll”, em fins dos anos 60. No final da década de 70, na Inglaterra, outro movimento contracultura originado na cena musical, o punk-rock, também com intensa repercussão através de uma linguagem gráfica, análoga a valores do movimento. A revolta, agressividade, espontaneidade e a sujeira foram tangibilizadas pelos elementos visuais, incluindo-se aí a tipografia, que estampava as capas de discos e fanzines associados ao punk, num insulto gráfico aos valores burgueses.

3.1. Aspectos Culturais da Pós-modernidade

Conforme coloca Villas-Boas (1994), a história oficial do design gráfico é, na verdade, a história do design gráfico funcionalista. Esta característica – o foco na função do projeto/objeto – prestou-se perfeitamente aos interesses da esfera produtiva em determinado momento. Desta forma, o design canônico2 foi incorporado pelos meios de produção e comunicação capitalistas, integrando-se perfeitamente ao sistema socioeconômico vigente, passando assim a integrar o status quo. A orientação funcionalista no design, a qual teve seu embrião nas inovadoras vanguardas modernistas, tornou-se o que de mais conservador existia em design até a década de 70, como atesta Silva:

1 Tradução da autora. 2 Os cânones são exatamente aqueles princípios de projeto que se

tornam as “regras” para o exercício da disciplina (Villas-Boas, 1994, p. IX-11). O funcionalismo é o paradigma que o desenho gráfico adotou, ao inserir-se na esfera produtiva. Desenho gráfico canônico e funcionalismo se equivalem: é a prática da atividade regida por princípios que visam prioritariamente a otimização de sua funcionalidade, como pressuposto para sua adequação à lógica da produção (Idem, p. IX-12).

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Ao ser incorporada pela ideologia dominante, a estética modernista do período “alto” estabeleceu uma relação entre modernismo/poder corporativo e imperialismo cultural. Neste contexto, surgiram na década de 60 vários movimentos contraculturais e antimodernistas que exploravam os domínios da auto-realização individualizada em um antagonismo às qualidades opressivas da racionalidade técnico-burocrática, o que acabou por desencadear o pós-modernismo, a partir de 70 (Silva, 1994, p. IX-23). Diferentemente do que ocorreu com movimentos

artísticos da modernidade, o pós-modernismo nas esferas culturais não suscitou qualquer manifesto, ou projeto comum. Sua marca é o pluralismo, a diversidade e o individualismo, ou seja, o oposto da proposta de universalidade característica do design moderno. A rejeição a seus cânones – que preconizavam o racionalismo, a funcionalidade, o rigor e o método – parece ter sido o denominador comum aos designers gráficos que adotaram estratégias visuais pós-modernas em seus trabalhos. Para alguns designers no final dos anos de 1970, o Estilo Internacional como método de abordagem do design gráfico parecia ter-se esgotado, passando a engessar as possibilidades criativas. Fonseca assim define em sua dissertação:

O questionamento da racionalidade do estilo suíço levou a reações no design gráfico – o new wave ou o pós-modernismo – emergentes, desde o final dos anos 70 e instalados a partir dos anos 80: o estilo passa a ser valorizado acima do conteúdo, a ambiguidade acima do significado, a irracionalidade e auto-expressão acima da racionalidade e do distanciamento objetivo (Fonseca, 1996, p.36). Portanto, quando se fala em tipografia pós-moderna

está-se fazendo alusão àquelas soluções, ou melhor, estratégias visuais que vieram desatar os nós deixados pela Escola Suíça moderna, porém, especificamente aplicadas aos tratamentos visuais dispensados aos textos. Aí incluído um amplo espectro de abordagens distintas que variam desde o resgate da herança tipográfica popular dos letreiros e das letras pintadas à mão até o rompimento total com o sistema modular do grid.

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3.2. Contexto Tecnológico da Tipografia Pós-moderna

Fatores tecnológicos foram determinantes para delinear a pós-modernidade. Ou melhor ainda, ao se transformarem, as condições técnicas da comunicação estabeleceram um novo paradigma socioeconômico. Assim coloca Cipiniuk:

Mais recentemente, duas foram, no entanto, as inovações tecnológicas que formaram o eixo das discussões contemporâneas: i) as comunicações que derrubaram as fronteiras de espaço e tempo e ii) os meios eletrônicos e informatizados que dissolveram a necessidade de conjugar produção em massa com repetição em massa (Cipiniuk, 1994, p. IX-19). Os anos 80 corresponderam ao período classificado

como Revolução Tecnológica, por Castells (2001). O desenvolvimento de tecnologias de comunicação e informação – a partir dos anos 70 – estabeleceu um estado de coisas novo, um sistema econômico-ideológico-político caracterizado pela tecnologia como matéria-prima, pela penetrabilidade dos efeitos das recentes técnicas, pela lógica das redes, sua flexibilização e convergência para a criação de um sistema altamente integrado.

A informática popularizou-se através de produtos mais compactos, de baixo custo e fácil usabilidade, sobretudo, pelo foco no design de interface, área do design que vem se desenvolvendo e obtendo importância significativa. O lançamento dos PCs (Personal Computers), pela IBM ocorreu em 1981, e o consequente crescimento de sua produção vem tornando continuamente os micro-computadores acessíveis a um grande número de usuários (Miller, 1989). O computador pessoal chegou às residências da classe média no mundo inteiro, inclusive em países de periferia, como o caso do Brasil.

A década de 80 foi decisiva para a introdução da tecnologia eletrônica no âmbito do design gráfico. E marcada pelo advento dos sistemas de desktop publishing, que se constituíram como instrumentos para a editoração de páginas, e layouts de um modo geral, concentrando etapas de produção através de uma só ferramenta. Esse novo sistema permitiu ao designer gráfico o controle de todas as etapas de produção de um layout: criação, diagramação, visualização e arte-finalização.

Ithiel de Sola Pool, professor do Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT) e defensor do “livre tráfego de ideias” sugeriu, ainda nos anos 80, que a mídia eletrônica estava se tornando “dispersa no uso e abundante na oferta” (Pool apud Briggs & Burke, 2006, p. 259) e proporcionando

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“maior conhecimento, acesso mais fácil e maior liberdade de expressão do que jamais foi permitido” (p. 259). Pool foi um visionário, ao declarar que “no futuro não muito distante, nada será publicado que não tenha sido digitado em um editor de textos ou por um computador” (Pool apud Briggs & Burke, 2006, p. 259).

Em 1984 é lançado pela Apple Computers, na California, o computador Macintosh, primeiro micro-computador doméstico, desenvolvido com o propósito da utilização para editoração eletrônica. A invenção da linguagem PostScript, pela Adobe, em 1985, foi “uma das três mais importantes inovações tecnológicas na história da tipografia, depois do tipo móvel de Gutemberg e da invenção da fotocompositora” (Haley apud Pedersen, 1993, p.15). A combinação da referida linguagem com o software Aldus PageMaker, ambos instalados na plataforma Apple Macintosh, causou revolução de peso no setor gráfico e na atividade do designer gráfico. Baines e Haslam assim descrevem a nova tecnologia:

PostScript é uma linguagem de computador independente. Permite ao usuário utilizar fontes de diferentes fabricantes, em qualquer computador compatível com essa linguagem, em conjunto com outros elementos gráficos e imagens, e imprimir em qualquer impressora compatível com PostScript. Todos os sistemas de composição de textos nos cem anos antecedentes tinham como limitação que as fontes adquiridas por uma determinada empresa só poderiam funcionar no equipamento desta mesma empresa ou de outra empresa que estivesse licenciada. A Linotype adaptou seu equipamento de saída (imagesetters) das Séries 100 e 300 de modo que essas máquinas pudessem interpretar a informação PostScript e formar uma rede com os computadores Apple Macintosh e com as impressoras LaserWriters. Essa tendência foi seguida por outros produtores de fontes (digitais) e acabou por levar a mudanças dramáticas na indústria tipográfica, assim como, no modo de operação da indústria gráfica (Baines & Haslam, 2002, p. 93-94)3. Em 1985 John Black, bibliotecário da Universidade de

Guelf, no Canadá, responsável por classificar novas tecnologias, identificou nove denominações para o ramo: satélites; transmissão a laser; fibras ópticas; sistemas de terminais digitais de microondas; redes locais; outras conexões de banda larga; usos novos das redes telefônicas existentes; rádio celular; e novas formas de distribuição off-line. No intuito de descrever a capacidade de interação entre as novas tecnologias, Black utilizou a palavra “superposição” (Briggs & Burke, 2006, p. 282), enquanto Pool empregou

3 Tradução da autora.

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“convergência” (p. 266), que veio a ser termo mais difundido do que o primeiro.

No final da década de 80, foram lançados os programas Letraset FontStudio e Altsys Fontographer, para o desenvolvimento de fontes digitais através do computador, tornando a criação de fontes muito acessível, do ponto de vista da simplificação do processo. Avaliando-se pelo viés tecnológico apenas, qualquer leigo poderia criar uma fonte que efetivamente funcionasse ao ser instalada tal qual um software. Tem início a era das digital type foundries – ou fundidoras de tipos digitais – termo que traz em si uma ideia paradoxal, porque, tratando-se de tipo digital, a etapa de fundição está excluída do processo.

O sistema de editoração eletrônica trouxe uma qualidade admirável à criação gráfica: tornou possível vislumbrar o layout antes de sua produção efetiva, através do sistema WY SIWY G (What Y ou See Is What Y ou Get). Desta forma, o designer passou a visualizar na tela do computador sua criação, e a poder avaliar com precisão o resultado final antes da impressão. Caso preferisse, poderia ainda alterar o layout antes de realizar a arte-final e a impressão. Por esse novo sistema, a tipografia não mais se configurava como um objeto tridimensional, ou mesmo bidimensional, como na fotocomposição. Passou a ser apenas informação eletrônica ou digital, num primeiro momento. Portanto, não existia mais nenhum tipo de constrangimento que restringisse as possibilidades de formatação de um texto.

Em termos de layout tipográfico, tudo passou a ser possível. Através do computador, as fontes digitais passaram a ser desenhadas, geradas e gerenciadas. Desenhadas agora em um tipo de programa específico para essa tarefa, e que ao final da etapa de design, é capaz de gerar os arquivos necessários para essa fonte ser instalada no computador. E também os softwares chamados de gerenciadores de fontes, proporcionando visualização das fontes, sua instalação e organização dos arquivos na máquina.

Com o advento do desktop publishing, e respectiva disseminação dos computadores pessoais domésticos (os PCs e os Macintoshes), instalou-se uma consequente democratização da atividade de design gráfico. Ou seja, qualquer interessado, de posse das ferramentas digitais passaria a poder realizar projetos gráficos ou desenhar fontes. Esse evento causou mudanças profundas na área, em diversos setores, inclusive na questão da ética profissional. Por outro lado, a proliferação dos computadores estimulou experimentos gráficos na direção de obter o domínio dessa nova ferramenta, e testar suas possibilidades. O processo de desenvolvimento do layout também sofreu interferências. O imediatismo da visualização de soluções permitiu a criação de espaço ao improviso, durante o percurso, mudando o curso

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daquilo que fora estipulado na etapa de planejamento. Portanto, o computador alterou o próprio ato projetual, além da produção gráfica propriamente dita, conforme atesta em depoimento o designer inglês Neville Brody, um dos mais influentes de sua geração:

No início, ao trabalhar com a máquina (o computador), costumávamos ter ideias, fazer esboços e depois usar o Macintosh como ferramenta de produção, para certas coisas que sabíamos que ele podia fazer. Pouco depois, (...) percebi que não fazia mais esboços, ia direto para a máquina e tentava coisas na tela, desenvolvendo, a partir de desenvolvimentos, e tentando criar uma série de opções com isto (Brody apud Igarashi & Burns, 1992, p.14)4.

Em sua dissertação de mestrado, Fonseca observa que

um dos reflexos do uso de computadores, precisamente em relação à linguagem tipográfica, é o designer passar a assumir o papel do tipógrafo. Assim é descrito por ela:

• com a disseminação dos computadores pessoais, dos programas de editoração eletrônica, e dos programas de desenho de fontes, a tipografia adquire a fluidez do contorno físico, a facilidade de manipulação e, potencialmente, a falta de limites conceituais; • consolida-se uma nova matemática na composição tipográfica, já prenunciada pela fotocomposição: as possibilidades de variações de medidas de corpos, espaços e entrelinhas são ilimitadas e, agora, visualizadas imediatamente; • do mesmo modo, o posicionamento do texto adquire mobilidade e a forma da tipografia torna-se maleável; distorções, deformações, texturas, sombras, perspectivas, etc. passam a integrar a linguagem tipográfica usual; • abre-se a possibilidade para um enriquecimento da linguagem tipográfica: o designer pode dedicar uma atenção inusitada ao texto, fazendo comentários gráficos através de troca de fontes, de medidas, uso de símbolos, deformações – variações antes desencorajadas pela divisão técnico-operacional entre a composição do texto e o projeto (Fonseca, 1996, p.32).

3.3. Design Gráfico e Tipografia Pós-moderna

Muitos foram os autores e críticos de design que escreveram acerca do tema do impacto da pós-modernidade sobre o design gráfico, especialmente a partir de meados da década de 90. A discussão tomou corpo através de publicações como o projeto eletrônico Fuse, e as revistas

4 Tradução de Fonseca, 1996.

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Emigre e Eye magazine. Um marco foi o lançamento do livro Typography now: the next wave, de Rick Poynor (editor da Eye magazine) e Edward Booth-Clibborn, em 1991. Trazia um resumo dos exemplares das recentes e desafiadoras tendências pós-modernas em design gráfico e tipografia, tendo disseminado estratégias e influenciado toda uma geração de designers mundo afora. No projeto Fuse, as tipografias disponíveis não apresentam as restrições impostas pelos direitos autorais que acometem normalmente as produções nessa área. Os usuários de fontes Fuse são estimulados a alterar os desenhos, ou seja, a interagir com o que é apresentado:

O ambiente Fuse é também uma tentativa de estabelecer um (novo) patamar para a ideia da “interatividade”. As fontes tipográficas da Fuse não possuem as restrições de copyrights usuais e seus usuários são encorajados a experimentar com os designs, a reinterpretar o que é apresentado no disco (CD) e ver se as ideias podem ser levadas mais adiante. Isso rompe com a preservação do passado e a imagem de preciosidade atrelada à tipografia (Wozencroft, 1994, p. 30)5. A partir dessa extensa discussão, para o presente

trabalho alguns autores foram selecionados de acordo com suas descrições. Steven Heller e Louise Fili, em seu livro Typology: type design from the Victorian era to the digital Age (1999), estabelecem uma relação de estratégias pós-modernas distintas, plurais, classificadas segundo o local de ocorrência e suas respectivas motivações. O que todas as estratégias elencadas têm em comum e as define como pós-modernas é o conjunto de questionamentos que, em primeira instância, dizem respeito a uma mesma geração. Não obstante, todas as estratégias pós-modernas buscaram burlar as regras estabelecidas pela geração anterior e que delinearam o design moderno:

A pós-modernidade definitivamente apresenta a si mesma como antimodernidade. A declaração singular de clareza e simplicidade do design modernista foi destruída pela fascinação pós-moderna por complexidade e contradição, decoração e ornamento. O pós-modernismo é, ao que parece, a nêmesis modernista (Jobling & Crowley, 1996, p.272)6. Pós-modernismo é ainda o argumento para a

diversidade na forma e no estilo, a celebração da individualidade em detrimento da linguagem universal do design, a substituição da objetividade pela subjetividade, da simplicidade pela complexidade. Tudo isso subsidiado pela

5 Tradução da autora. 6 Tradução de Gruszynski, 2007.

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revolução dos computadores nos meios de comunicação, incluindo aí as produções gráficas, em especial o design de fontes digitais (Heller & Fili, 1999).

Desta forma, Heller e Fili (1999) propõem a seguinte relação de estratégias pós-modernas, organizadas de acordo com o país em que ocorreram: • Suíça – Ainda no final da década de 70, o tipógrafo e

professor da Basel Gewerbeschule, Wolfgang Weingart, dá início a experimentos tipográficos complexos, buscando desafiar os dogmas da Escola Suíça moderna. Retículas ampliadas, ilusão de movimento e camadas de significados tornam-se recorrentes e traduzem a Nova Onda suíça no design gráfico. Siegfried Odermatt e Rosmarie Tisi, designers, também foram importantes agentes na revolução tipográfica que se configurava naquele país.

• Rússia – Palavras de ordem na antiga URSS em meados

da década de 80, glasnost, perestroika e demokratia significaram a abertura daquele país para ideias ocidentais exteriores. O contato com a revista suíça Graphis, bem como a influência da tradição de cartazes poloneses, e ainda a tipografia avant-garde, fizeram despertar uma nova abordagem no design russo.

• Inglaterra – A revolução digital teve o efeito de democratizar a produção de desenhos de tipos, que nesse país foi bastante intensa. Fuse, a fundidora e revista digital editada por Neville Brody e Jon Wozencroft, apresentou uma série de experimentos que desafiaram a percepção e a forma das letras, tornando difusa a legibilidade e a leiturabilidade. Novos parâmetros simbólicos foram estabelecidos para a tipografia. Viu-se como resultado uma grande liberdade no uso de fontes não-convencionais ou experimentais.

Figura 3.2 – Tipografia pós-moderna russa em pôster de 1988, designer desconhecido. (Heller & Fili, 1999, p. 171).

Figura 3.1 – Wolfgang Weingart. Capa da revista Typographische Monatsblätter, nº 12. Suiça, 1972. (Poynor, 2003, p. 20).

Figura 3.3 – Poster promocional de Neville Brody para FontShop, 1991. (Poynor & Booth-Clibborn, 1991, p. 113).

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• Estados Unidos: Vernacular – o aproveitamento e inserção de manifestações gráficas populares, tais como os letreiros desenhados à mão, ou o artesanato, tornaram-se recorrentes no design gráfico, a partir de meados dos anos 80, nos EUA. O resgate de estilos populares antigos, identificados como retrô também pode ser considerado uma das manifestações do design vernacular.

• Estados Unidos: New Wave – definido como uma confluência das manifestações visuais e culturais do punk europeu e da Nova Onda suíça (introduzida por Weingart na Basel Gewerbeschule), e que evoluiu de um método experimental para um maneirismo comercial, predominante na década de 90, especialmente. O trabalho da americana April Greiman, aluna de Weingart na Suíça, representou o marco inicial e principal expoente para o New Wave americano.

• Estados Unidos: “Desconstrução” – durante o final dos anos 80, estudantes da graduação em design gráfico da Cranbrook Academy, em Michigan, adotaram a teoria pós-estruturalista do crítico francês Jacques Derrida, como um caminho, ou atitude, para a elaboração do design de impressos. A tradução visual dessa teoria filosófica resultou em layouts complexos, dependentes do engajamento e da interpretação do leitor na busca de significados.

• Estados Unidos: Emigre – os designers Rudy VanderLans e Zuzana Licko fundaram, em 1983, a revista Emigre. Após alguns anos, o foco da revista muda e passa

Figura 3.4 – Tipografia vernacular nos Estados Unidos. (Heller & Fili, 1999, p. 174).

Figura 3.6 – Poster de Katherine McCoy para Cranbrook Academy of Art, Estados Unidos, 1989. (Poynor & Booth-Clibborn, 1991, p. 41).

Figura 3.5 – Poster de April Greiman, Estados Unidos, 1990. (Poynor & Booth-Clibborn, 1991, p. 81).

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a ser apenas um pretexto para introduzir e divulgar não só as fontes digitais produzidas pela dupla como as novas ideias associadas à tipografia. A Emigre então evolui de revista a digital type foundry, e torna-se a pioneira em fontes digitais não-convencionais e inovadoras, influenciando algumas gerações de designers.

• Estados Unidos: Novo Classicismo – refere-se à reprodução de fontes para texto, clássicas, através da tecnologia digital. Abrange não só o redesenho de fontes do passado e seu aperfeiçoamento, mas também o desenho de novas criações que nelas se baseiem. Jonathan Hoefler e Tobias Frere-Jones deram vida nova a fontes

Figura 3.7 – Capa da revista Emigre nº 11, de Rudy Vanderlans, 1989. (Meggs, 1998, p. 492).

Figura 3.8 – Exemplo de Novo Classicismo neste pôster para a Didot de Jonathan Hoefler, 1996. (Heller & Fili, 1999, p. 185).

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como Bodoni e Baskerville, por exemplo. Da mesma forma, o resgate de conceitos clássicos de composição e tipografia implicam ocorrência de layouts de similar inspiração.

• Estados Unidos: Grunge – o termo – emprestado do estilo musical hard-rock e pós-punk, surgido em Seattle, no início dos anos 90 – indica o aspecto “sujinho” ou desarrumado de fontes que parecem vibrar ou tremer sobre a página. Produto emergente de softwares que permitiram ao usuário realizar seus ímpetos

Figura 3.9 – Tipografia grunge (Heller & Fili, 1999, p. 189).

Figura 3.10 – Tipografia experimental. (Heller & Fili, 1999, p. 190).

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individualistas. Teve em David Carson o seu mais pródigo expoente, cujo trabalho na revista de surf culture Ray Gun estabeleceu um novo paradigma na tipografia: – tipografia como arte –.

• Experimental (originalmente não está associado a um só país) – um álibi para erros ou falhas de designers mais interessados em experimentar do que em acertar. Isso resultou numa proliferação de fontes digitais sem rigor ou restrições, distribuídas gratuitamente pela internet. Muitas também passam a ser produzidas apenas para atender a uma demanda do próprio designer e definir a customização de um projeto gráfico. A fonte como marca individual.

• Later modern (originalmente não está associado a um só país) – o resgate da estética modernista do “menos é mais”, como resposta viável às várias experiências

exageradas, produzidas pelo pós-modernismo. No entanto, a modernidade retorna apenas como solução formal, sem a conotação ou conteúdo ideológico que inspirou seus criadores no passado.

Figura 3.11 – Exemplo de Later modern. (Heller & Fili, 1999, p. 193).

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Embora não constem da relação de estratégias descritas por Heller & Fili (1999), outros países europeus apresentaram novas abordagens significativas na área do design gráfico, a partir da década de oitenta. Rick Poynor descreve seu livro Typography now: the next wave como um relato visual das mudanças ocorridas na época (1991). Para documentar suas observações, ele se utiliza de exemplos da produção em design gráfico dos seguintes países: Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e Holanda, que seriam, a seu ver, o foco central da nova onda tipográfica.

3.3.1. Tipografia e “Desconstrução”

“Desconstrução” é termo oriundo dos campos da filosofia, linguística, semiótica e antropologia. Aplicado ao âmbito do design gráfico indica uma tendência estética ou um estilo gráfico, como mostraram as investigações iniciais de elaboração da proposta para o presente trabalho. No entanto, ao ser iniciada a fase de definição do objeto de estudo, no início de 2006, foi possível aprofundar a origem exata do referido termo e, mais ainda, constatar que diz respeito a um determinado questionamento conceitual que eventualmente veio definir produtos que ficaram estigmatizados por possuírem determinado estilo visual.

A corrente investigação remete a um passado não muito distante, os anos 70, que viram despontar, pouco a pouco, alternativas ao Estilo Internacional – ou Suíço – no trabalho de Odermatt & Tissi, em Zurique, Wolfgang Weingart, na Basiléia – ambos na Suíça, entre outros. Weingart, em entrevista concedida a Priscila Farias em 1995, assim explica qual foi sua motivação:

Fazer algo completamente diferente do que as pessoas estavam fazendo naquele momento. Naquele período, o Estilo Internacional reinava na Suíça e em todo o mundo. Eu sentia uma necessidade de mudar, mas não tinha regras específicas para isso. (...) Os tipógrafos da época nunca colocariam as letras em uma curva, nem deixariam tanto espaço entre elas. Era algo proibido. Eu tentei fazer o oposto, porque o desafio de explorar materiais me parecia interessante (Farias, 2001, p. 26). Weingart demonstrou fidelidade à sua premissa: a de

experimentar algo original e explorar as possibilidades da tecnologia disponível. Tanto que em 1984, foi um dos designers gráficos convidados pela Apple Computers a testar as possibilidades do desktop publishing nos primeiros computadores Macintosh, e passou a ser uma das principais influências no design tipográfico, utilizando tal ferramenta.

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Seu nome está totalmente associado ao momento inicial, bem como à atitude desconstrucionista perante a tipografia, embora o termo não fosse ainda corrente e muito menos adotado pelo próprio Weingart.

No intuito de descrever o aspecto formal de tais produtos oriundos da atitude desconstrucionista, argumentam Lupton e Miller:

Desde o surgimento do termo “desconstrução” no jornalismo especializado em design, em meados dos anos (19)80, essa palavra sugestiva tem sido utilizada para designar, seja na arquitetura, no design gráfico, no design de produtos e na moda, a prática cujas formas sejam “retalhadas” apresentem sobreposições ou aspecto fragmentado, frequentemente imbuídas de ambíguas evocações futurísticas (Lupton e Miller, 2000, p.9)7. No entanto, como o vocábulo desconstrucionismo

passasse a ser adotado oficialmente pela mídia, após a inauguração da exposição de 1988, Deconstructivism Architecture, no MOMA, em Nova York, na visão de Mark Wigley, um dos curadores da exposição, a “desconstrução” na arquitetura questionava o modernismo através do reexame de sua linguagem, materiais e processos (Lupton & Miller, 2000). Ao assim nomearem a exposição, Wigley e Johnson, seus dois curadores, ajudaram a estigmatizar os produtos, de um determinado período, que apresentassem distorção da geometria e desalinhamentos, ou que rompessem com os preceitos modernistas de alguma outra forma. Esse conjunto de características estilísticas rapidamente migrou da arquitetura para o design gráfico. O termo passou a ser um cliché para designar as diversas manifestações da quebra do paradigma moderno. Outro vocábulo muito em voga foi new wave, cunhado para designar o movimento oriundo de designers da Califórnia, Estados Unidos (Farias, 2001).

No início dos anos de 80, alunos de design gráfico de várias instituições de ensino nos EUA entraram em contato com a teoria literária, através de disciplinas como fotografia, performance e instalações artísticas. A Cranbrook Academy of Art, em Michigan, foi uma das escolas que mais contribuiu para estabelecer uma relação entre teoria crítica da literatura e a prática do design gráfico, conforme descreve Farias (2001):

A aplicação dos termos “desconstrução” e “pós-estruturalismo” a um certo tipo de experimentalismo tipográfico remonta à década de 80, sendo que a mais célebre tentativa de se fazer uma intersecção entre teoria pós-estruturalista e prática de design tipográfico ocorreu ainda no final da década de 70, quando alguns alunos de design da Cranbrook Academy of Art, sob a coordenação da

7 Tradução da autora.

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designer e diretora da escola Katherine McCoy, produziram um número especial da revista Visible Language, que tinha como tema as novas tendências da crítica literária francesa. A partir deste e de outros trabalhos de designers ligados a esta academia – bem como à Cal Arts –, “design desconstrucionista” passou a ser um sinônimo de layout complexo, empregando elementos posicionados em diversas camadas sobrepostas e formas fragmentadas, em arranjos tipográficos que de algum modo desafiam os padrões racionalistas da leitura, muitas vezes, empregando fontes criadas segundo os mesmos princípios (Farias, 2001, p.30). O número especial da revista Visible Language, ao qual

se refere Farias, foi publicado no verão de 1978 e pode ser considerado o marco do princípio de uma abordagem crítica, ou de certa atitude contestadora no design gráfico. De acordo com Lupton e Miller (2000), o coordenador do programa de Arquitetura da Cranbrook Academy, Daniel Libeskind, organizou um seminário sobre teoria literária que deu aos alunos de design gráfico o respaldo necessário para desenvolverem a estratégia visual apresentada na revista. Entre os autores pós-estruturalistas, os que tiveram maior influência sobre os estudantes de arte e design naquela época, estão: Roland Barthes, Michel Foucault e Jean Baudrillard.

Para a designer e teórica Ellen Lupton, a tipografia passa a ser “um modo de interpretação, e o designer, assim como o leitor, competem com o tradicional autor pelo controle do texto”8 (Lupton, 2005, p.1). A ideia da “morte do autor”, introduzida por Barthes (1967), foi um conceito-chave para aqueles designers desenvolverem trabalhos em que o leitor tivesse papel ativo na construção do sentido, tentando desvendar e estabelecer relações no texto. No entanto, Katherine McCoy deu indícios de que o pós-estruturalismo nunca foi exatamente uma metodologia oficial adotada pela escola, mas sim, parte de uma conjuntura eclética de ideias que circulavam naquele ambiente (McCoy apud Lupton e Miller, 2000).

A tipografia “desconstrucionista” foi um produto daquela época, resultante tanto de uma série de influências de áreas correlatas quanto de áreas afins, como as artes-plásticas e a arquitetura. Entretanto, o termo “desconstrução” não deve ser utilizado para definir o estilo atribuído a um determinado período. Lupton entende a “desconstrução” aplicada ao design gráfico como uma atividade ou atitude crítica e contestadora (Lupton e Miller, 2000)

No contexto do design gráfico, a tipografia, especificamente, aparece como cerne dessa atividade crítica, já que o termo foi cunhado pelo filósofo Jacques Derrida,

8 Tradução da autora.

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justamente para contestar os preceitos da linguística moderna e a relação fala versus escrita.

3.3.2. “Desconstrução”

O conceito “desconstrução” foi introduzido pelo filósofo e semioticista Jacques Derrida, em seu livro De la grammatologie (1967), publicado na França. Elabora uma crítica a Ferdinand de Saussure em Cours de linguistique generale ([1915] 1946). A teoria semiótica saussuriana se dá pelo viés linguístico:

A relação entre a semiologia e a linguística seria, portanto, dupla: primeiro, as leis da semiologia geral são aplicáveis à ciência dos signos linguísticos; segundo, as leis da linguística são um guia heurístico na elaboração da ciência dos signos em geral (Nöth, 1996, p.20). A “desconstrução”, de Derrida, aplica-se a sistemas

linguísticos ou relacionados com a produção de textos. Em sua crítica, o filósofo argumenta que a cultura ocidental, desde Platão, tende a segmentar o mundo em conceitos antagônicos, tais como realidade x representação, interior x exterior, original x cópia, e mente x corpo. Para ele, sendo assim, um conceito é valorizado em detrimento do outro, ou ainda, um é visto como positivo e o outro como negativo.

Do ponto de vista da semiótica de viés linguístico, uma das duplas de conceitos opostos, que veio a ser crucial para a teoria da “desconstrução”, é a fala x escrita. A tradição filosófica ocidental, especialmente na figura de Saussure, denegriria a escrita, colocando-a como uma cópia inferior da palavra falada: a palavra escrita não teria conexão com o ser interior – enquanto a fala teria – e neste caso, a língua seria abandonada e desvinculada do sujeito.

A oposição fala x escrita pode ser mapeada em uma série de pares com conotações ideológicas que pertencem à cultura ocidental moderna: • Fala x escrita; • Natural x artificial; • Espontânea x planejada; • Original x cópia; • Interior da mente x exterior à mente; • Não requer equipamento x requer equipamento; • Intuitiva x apreendida; • Sujeito presente x sujeito ausente.

Já a “desconstrução” propõe que a escrita seja uma

forma ativa de representação: não se resume a uma mera

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cópia da palavra falada. Na verdade, “a escrita invade o pensamento e a fala, transformando os reinos sagrados da memória, conhecimento e espírito” (Lupton e Miller, 2000, p.4).

3.3.3. Estruturalismo

Para Saussure, o significado do signo linguístico não reside nos próprio signo: não existe elo natural entre significante e significado. Em suas palavras:

O laço que une o significante ao significado é arbitrário ou, então, visto que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo linguístico é arbitrário (Saussure apud Nöth, 1996, p.26). Devido ao caráter arbitrário do signo linguístico, seu

significado é alcançado apenas por sua relação com outros signos de um sistema. Esse é o princípio-base do estruturalismo: uma compreensão da língua como sistema gerador de significados, a partir dos padrões produzidos, ao invés de focar no conteúdo de um código ou costume isoladamente. Saussure entendeu que o signo por si só é vazio de significado: não tem “vida” fora do sistema ou “estrutura” da língua que o cerca. Sustentava que a língua não é como uma janela transparente que permite vislumbrar conceitos preexistentes, e sim um sujeito ativo na elaboração de ideias. Ou seja, ao invés de considerar a língua como um código passivo de representação dos pensamentos, Saussure colocava que estes é que são delineados através da língua, sem a qual, seriam apenas esboçados, amorfos. Nas palavras de Nöth:

De acordo com a visão estruturalista da semântica de Saussure, o significado é o valor de um conceito dentro do sistema semiológico como um todo. Estes valores semânticos formam uma rede de relações estruturais, nas quais não os conceitos semânticos em si, mas somente as diferenças ou oposições entre eles são relevantes semioticamente (Nöth, 1996, p. 35). E ainda “as relações estruturais mais fundamentais num

sistema semiológico são as da diferença e da oposição” (Nöth, 1994, p. 45). Segundo a teoria saussureana do valor, “os elementos de um sistema semiótico só existem pelas suas diferenças com outros signos (...)” (Nöth, 1996, p. 45).

Saussure assim desenvolveu, em sua teorização, uma crescente aversão à palavra escrita, defendendo a

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precariedade desta para representar a fala. Para ele, havia várias divergências entre fala e escrita: palavras com sonoridade semelhante, soletradas de modo diverso, e apontava a ocorrência de combinação de letras gerando sons inesperados. Sua teoria é denominada logocentrista, já que considera a supremacia da palavra falada sobre a escrita.

3.3.4. Pós-Estruturalismo

Na década de 60, Derrida veio a questionar o pensamento estruturalista. Para muitos ele é considerado estruturalista, já que suas proposições têm como ponto de partida as ideias de Saussure. Para tantos outros, porém, ele é designado neo-estruturalista, superestruturalista ou mesmo, pós-estruturalista. O termo “desconstrução” insere-se nessa área da crítica literária, o pós-estruturalismo, cujos autores compreendem os meios de representação cultural – a literatura, a fotografia, o design de um modo geral etc. – como poderosas tecnologias que constroem e reconstroem nosso mundo. Os pós-estruturalistas se opõem à neutralidade dos signos isolados, sendo que para Derrida, em particular, o foco está no signo linguístico, já que sua crítica se forma a partir da teoria logocentrista de Saussure. Em outras palavras, os pós-estruturalistas questionam a supremacia do sistema, ou estrutura, como gerador do significado.

Para Derrida (1967), os textos escritos, bem como a tipografia, têm características próprias de representação que não estão necessariamente vinculadas à fala. Um exemplo disso seria a própria determinação ou formatação do texto, através dos espacejamentos – entreletras e entrelinhas, pontuação, escolha da fonte, ou mesmo a variação de estilo numa fonte como o romano, o itálico, e a variação de caixa – alta, baixa ou versalete. Dessa forma, a comunicação escrita não se dá apenas através do sentido das palavras, mas faz uso de todo um repertório próprio que não se traduz em palavras. Tal proposição liberou os designers para a manipulação mais livre dos textos em seus projetos visuais, de modo a trabalhar a tipografia como uma forma independente de representação. Derrida denominou “gramatologia” o estudo da escrita como uma maneira distinta de representação, a qual deu nome à sua obra mais conhecida: De la grammatologie (1967).

Fica então patente que enquanto Saussure acusava a escrita/tipografia de não oferecer transparência ao significado final do texto, Derrida pretendeu realçar o potencial retórico da escrita, por meio da tipografia, e assim valorizar o significante e a “desconstrução” do significado. A ênfase dada à liberdade pelo pós-estruturalismo, ou às múltiplas possibilidades de interpretação, liberou os designers gráficos,

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assim como os leitores, para atuarem de forma espontânea na criação de significados.

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