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1 CATEGORIA - ROMANCE 3º LUGAR TÍTULO DA OBRA: CICATRIZES QUE LIBERTAM ALUNA: GEOVANNA SANTOS CORREIA ESCOLA MUNICIPAL BRIGADEIRO EDUARDO GOMES PROFª ORIENTADORA: ELIANE SOUZA DA SILVA NEVES GR ITAPUÃ PRÓLOGO cordo sentindo todo aquele cansaço matinal, dou uma espreguiçada e vou para o banheiro fazer minha higiene. Troco de roupa, paro em frente ao espelho e fico me observando por um bom tempo. Eu cresci na vida. Consegui conquistar coisas na minha vida, que muitas pessoas pensaram que eu não iria conseguir. Dou um sorriso de lado, eu sou uma mulher forte e independente. E isso ninguém pode tirar de mim. -Você é linda demais, véi digo olhando no espelho. Vou para a janela do meu quarto. Observo o céu azul da cidade de Todos os Santos, minha Salvador! Como eu amo essa cidade! E aqui mesmo, observando essa paisagem eu começo a lembrar do começo. Respire fundo Cristina, e conte como tudo começou... A

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CATEGORIA - ROMANCE

3º LUGAR

TÍTULO DA OBRA: CICATRIZES QUE LIBERTAM

ALUNA: GEOVANNA SANTOS CORREIA

ESCOLA MUNICIPAL BRIGADEIRO EDUARDO GOMES

PROFª ORIENTADORA: ELIANE SOUZA DA SILVA NEVES

GR – ITAPUÃ

PRÓLOGO

cordo sentindo todo aquele cansaço matinal, dou uma espreguiçada e

vou para o banheiro fazer minha higiene.

Troco de roupa, paro em frente ao espelho e fico me

observando por um bom tempo.

Eu cresci na vida.

Consegui conquistar coisas na minha vida, que muitas pessoas pensaram que eu

não iria conseguir.

Dou um sorriso de lado, eu sou uma mulher forte e independente.

E isso ninguém pode tirar de mim.

-Você é linda demais, véi – digo olhando no espelho.

Vou para a janela do meu quarto.

Observo o céu azul da cidade de Todos os Santos, minha Salvador! Como eu

amo essa cidade! E aqui mesmo, observando essa paisagem eu começo a lembrar do

começo.

Respire fundo Cristina, e conte como tudo começou...

A

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CAPÍTULO I

28 anos atrás, 1990.

u corria desesperadamente para me esconder. Sentia a adrenalina em

minhas veias e essa sensação é maravilhosa!

Como estou descalça sinto meu pé arder, porém não ligo e

continuo correndo para o mais longe possível. Ele não pode me achar, sou bastante

competitiva e, se eu perder, fico muito brava.

Paro de correr e subo numa árvore, lá de cima consigo ver Henrique me

procurando. Ah! É um pé de manga, e eu amo manga! Pego uma e jogo perto dele que

logo me vê e faz uma cara de raiva.

- Aí em cima não pode! - Ele grita um pouco bravo.

- E quem disse que não? - Pergunto na mesma intensidade.

- Chata!

- Otário!

- Você perdeu. Desce daí.

- A brincadeira é pega-pega, até agora você não me pegou – faço minha melhor

cara de tipo "vai ter que se virar para me pegar". Ele vem correndo e tenta subir, mas

acaba caindo e cai no chão com tudo.

Dou um grito de desespero e desço da árvore num pulo, abaixo – me ficando ao

seu lado e dou uns tapinhas em seu rosto.

E

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- Mainha não pode sonhar que isso aconteceu – ele diz baixinho.

- Relaxe, homem! Ela não vai saber – ajudo ele levantar me sentindo um pouco

culpada por ter feito ele subir na árvore.

- Ei, vocês esqueceram de mim – Paula aparece gritando e com o cabelo todo

cheio de folhas.

Solto uma risada junto com Henrique. Aqui está o famoso trio parada dura de

Floresta Azul. Nos conhecemos desde sempre e temos uma amizade muito forte.

Digamos que eles são como irmãos para mim.

- Culpe Cristina que subiu na árvore.

Paula me olha com uma cara de quem quer rir, fico confusa mas resolvo deixar

quieto.

- Seu pé está sangrando – ela diz preocupada.

Olho para meu pé esquerdo e percebo um pouquinho de sangue em um corte

profundo. Dessa vez painho me mata de vez. Dou de ombros e vou andando até o rio

que tem ali perto, sei que eles estão vindo atrás de mim por isso nem olho para conferir.

Pulo no rio de roupa e tudo. É tão bom tomar um banho assim! Meus amigos se

jogam também e começamos a nadar como sempre fazemos ao chegar o final da tarde.

-Você viu quem está na cidade? – Henrique pergunta.

Eu e Paula balançamos a cabeça negativamente.

-Alan. Ele voltou e seu pai está retado.

Basta ouvir esse nome para fazer meu coração disparar. Alan voltou! Ele está

aqui! Quero tanto vê-lo, mas não posso. Estou proibida de falar com ele ou qualquer

pessoa da sua família. Tudo isso por causa de uma briguinha ridícula de nossos pais.

Vou deixar essa história para depois.

- Não ligo – dou de ombros.

- Até parece... eu vi como seu rosto mudou quando Henrique falou o nome dele

– Paula diz como se fosse óbvio.

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- Eu não gosto dele, ok? Deixe de onda.

- Acho bom mesmo Cristina, você sabe que seu pai não gosta daquele menino e

muito menos eu. Fique longe dele ou então já sabe – reviro os olhos com o comentário

de Henrique.

Ele age como se fosse meu pai, e eu odeio isso nele. Por acaso ele acha que

tenho medo dele?

- Não sabia que painho tinha ficado mais novo – digo com deboche, ele logo

fecha a cara.

- Eu não estou brincando.

- Muito menos eu... pelo o que eu saiba meu pai é José, não você.

- Ele mandou eu ficar de olho em você, então...

- Eu mereço.

-Vamos deixar isso de lado crianças, já está tarde. – Paula até tenta amenizar as

coisas, mas eu continuo de cara fechada.

Saio da água, mando beijo para eles e faço meu caminho até minha casa. Abro a

porta e sinto o cheiro de comida. Automaticamente minha barriga ronca.

Minha irmã aparece com um pano de prato no ombro e uma aparência de

cansaço, desde que mainha morreu ela assumiu o papel de "mãe" dentro de casa. Ela

largou os estudos para cuidar de mim e painho. Eu admiro muito isso.

- Chegou tarde, minha linda – ela fala dando um beijo na minha testa.

- Perdi a noção do tempo. Sabe quem chegou na cidade, né? – Sigo ela para

cozinha e me sento na mesa pegando uma maçã.

- Óbvio, cidade pequena faz com que as notícias se espalhem rápido – ela fala

enquanto mexe na panela no fogão.

- Painho, cadê?

- Chegou faz um tempo, todo virado aí. Disse que iria resolver umas coisas.

- Já sei até com quem foi – reviro os olhos.

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- Vai tomar um banho. Está fedendo.

Mostro língua para ela e vou para o meu quarto, tomo banho e visto uma roupa

confortável. A noite caiu e com ela chegou um clima agradável de fresca. Limpo a

ferida no meu pé e coloco uma meia para esconder isso de painho.

Ele se reta quando eu me machuco.

Volto para cozinha e Cláudia está sentada com as mãos na cabeça.

- Aconteceu alguma coisa? - Pergunto e ela me olha com os olhos vermelhos.

- Nada, apenas estou cansada.

- Eu posso te ajudar aqui em casa – pego em sua mão e sorrio.

- Painho não gosta quando você faz isso e também tem seus estudos. Não pode

largar seu futuro.

Bufo impaciente.

- Eu não quero um futuro diferente do que o de vocês.

- Quer sim! Você precisa ter um futuro diferente do que o meu, quer ser o quê

Cristina? Uma mulher que só serve para cozinhar e cuidar da casa?

- Você não serve só para isso.

- É o que todos eles pensam. A gente nasceu para cozinhar, cuidar da casa e dos

filhos. Eu não quero isso para você e mainha também não iria querer.

- Mas... - tento protestar.

- Eu já falei, Cristina. Você vai estudar e ser uma mulher bem diferente de mim

ou de qualquer pessoa daqui.

- Eu não acredito nisso.

- Pois comece a acreditar – ela se levanta e pega dois pratos. – Vamos comer?

Pego meu prato ainda pensativa no que ela disse.

“É o que todos eles pensam. A gente nasceu para cozinhar, cuidar da casa e dos

filhos."

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Será que nós mulheres nascemos só para isso mesmo? E eu posso ser diferente?

Afasto esses pensamentos e começo a colocar minha comida.

CAPÍTULO II

- Eu não vou pegar a bola – digo um pouco ofegante.

- Bora logo, você que vai pegar – Luís fala limpando seu suor.

Olho para o grupo de meninos, sou a única menina que joga futebol e eles

sempre me colocam para pegar essa maldita bola.

E para piorar, ela sempre cai no quintal da dona Flor. Uma senhora não muito

legal, que reclama de tudo e de todos aqui.

- O que eu ganho com isso? - Cruzo os braços.

- Um pirulito – nego. – Dois – continuo de braços cruzados e uma carranca.

- Você é tão bestinha – falo sem ânimo algum.

- Você ganhou, Cristina. Quatro pirulitos.

Me dou por vencida e vou em direção ao quintal de dona Flor, pulo o muro e um

medo me consome quando vejo aquele matagal.

- Oxente! Onde essa bola se meteu?

Continuo procurando, até que ouço os latidos do cachorro dela e me assusto.

Solto um grito ao sentir um líquido quente na minha cabeça, começo a correr e sinto

uma ardência no braço, mas não me importo.

- Saia daqui, sua fia da peste! – Grita dona Flor.

Pulo o muro e encontro os meninos.

- Corre que deu ruim, fi! – Grito correndo.

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Paramos embaixo de uma árvore, sentamos todos ofegantes e do nada

começamos a rir.

- Ela jogou xixi em você. – Henrique diz rindo.

- E ainda soltou o cachorro para pegar você. – Luís fala.

Recupero o fôlego e assinto ainda rindo da minha situação.

- Foi, véi. Velha doida! – Digo prendendo meu cabelo. – Vou me picar, amanhã

tem aula e não posso ficar até tarde.

- Oxe, bora ficar brincando lá na minha rua? – Luís pergunta, mas eu nego.

- Não posso, foi mal. Beijos meninos!

Faço meu caminho para casa, porém antes de chegar eu acho um pé de goiaba.

Automaticamente minha barriga ronca.

Subo no pé e pego duas goiabas. Eita delícia!

- Você não muda mesmo, né? – Com o susto, acabo me engasgando.

- Quer me matar de susto, peste! – Jogo minha goiaba em Alan, que solta uma

risada, sentando-se ao meu lado.

- Eu voltei. – Diz, pegando na minha mão.

- Nossa, eu nem tinha percebido. – Tiro minha mão da sua meio incomodada.

- Sentiu saudade?

- Um pouco. Digamos que a última vez que eu te vi não foi uma experiência

muito boa.

- Eu sinto muito por isso, mas você sabe como painho é. – Encaro aqueles olhos

negros como a noite.

Nos conhecemos quando ainda tínhamos 3 anos, desde então éramos quatro. Eu,

Alan, Henrique e Paula!

Porém, meu pai arrumou uma briga com a família de Alan. É apenas uma

disputa idiota, que custou a nossa amizade e agora nossas famílias vivem em pé de

guerra e painho me proibiu de falar com Alan.

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Mas eu continuei brincando com ele escondido, e quando meu pai descobriu...

foi a primeira vez que eu apanhei e o pior na frente de todo mundo.

Para amenizar as coisas, o pai de Alan, seu Zé, mandou ele para capital ficar um

tempinho por lá. Esse tempo durou dois anos e. agora, ele finalmente está de volta.

- A briga continua a mesma?

- Que nada. – Limpo minha boca. – Só piorou. E se painho descobrir que eu

estou aqui com você...

- Relaxe, mulher. Ninguém precisa saber. Que cheiro é esse?

- Dona Flor jogou xixi em mim. – Dou de ombros.

- Eca! Você precisa de um banho.

- Verdade, por isso, vou para casa. – Levanto-me do chão e ele também.

- Foi um prazer te rever.

- Não vai contar para ninguém do nosso encontro?

- Jamais!

- Jura de mindinho? – Ele assente e cruzamos os dedos.

Agora sim eu sei que ele não vai falar, dou uma última olhada nele e vou para

casa.

Chegando lá encontro painho sentado na sala enquanto Luiza fazia crochê.

- Estava aonde uma hora dessa? – Ele pergunta.

- Brincando com os meninos.

- Já falei para não brincar com eles – seu tom é rude.

- E com quem vou brincar? As meninas são chatas!

- Brinca sozinha!

- Ok – digo chateada.

Dou um beijo na minha irmã e vou para meu quarto, não posso contrariar

painho, afinal ele é meu pai! Devo ter respeito e obediência, essa é a ordem aqui.

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Depois que termino meu banho vou para sala de jantar, painho e Luiza estão

sentados comendo já.

- E a escola, filha? – Painho pergunta.

- Vai bem. – Digo ainda sem ânimo.

- Você sabe que aquele pobrezinho voltou?

- Sei sim e por favor não o chame assim.

- Escute aqui, garota! – Ele bate na mesa fazendo-me assustar e minha irmã

também. – Fique longe dele! E daquela família maldita também, ouviu?

- Eu já sei disso. – falo encarando seus olhos que não tem nenhum brilho.

- Está avisada, não chega perto daquela peste.

Afirmo com a cabeça e volto a comer, ele se levanta e sai da cozinha,

provavelmente irá para o bar.

Luiza começa a rir e logo depois eu a acompanho.

- Sua besta, para de rir! – Jogo um pano nela.

- Ele acha que você vai ficar longe mesmo? Parece que já está escrito, Cris.

Vocês nasceram para ficar juntos.

- E quem disse que eu vou casar com ele? – Faço-me de desentendida.

- Ahahah! Está apaixonada e fica tirando onda.

- Eu vou ficar longe dele até eu fazer 18 anos, aí vamos fugir para a capital e

ficaremos juntos.

- Oh doida, você só tem 12 anos ainda, vai demorar muito.

- Não importa o tempo, eu o amo e é isso que verdadeiramente importa.

- Eu torço por vocês – ela pega na minha mão e sorri.

- E eu também torço por você minha irmã.

- Se saia com esses papos errados aí.

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- Não adianta fugir, você vai arranjar alguém e vai me abandonar – faço uma

cara de choro.

- Eu nunca irei te abandonar, sua doida. Somos irmãs, lembra?

- E isso basta?

- Para mim sim.

Levanto da cadeira e vou correndo abraçá-la.

CAPÍTULO III

1994!

- Amiga, nós precisamos ir nessa festa!

Paula chega gritando no meu quarto. Termino de arrumar meu cabelo e solto um

suspiro de cansaço.

- Eu já disse que não vou.

- Mas o Henrique vai.

Digamos que Paula tem uma mini paixão por Henrique, e eu quero muito os dois

juntos.

- Então vai, ué.

- Se você não for, eu não vou. - reviro os olhos impaciente. – Alan vai estar lá.

-Ok, agora eu vou.

Ela solta uma risada e saímos juntas da minha casa, vejo Luiza chegando cheia

de sacola da feira.

- Luh, nós vamos na festa da pracinha. – Eu digo quando ela chega perto.

- Não demora, minha linda, se não painho vai ficar bravo.

Afirmo com a cabeça e dou um beijo em sua bochecha. Eu e Paulo apostamos

uma corrida até a praça.

Chegando lá, já era possível ouvir o som de Legião Urbana e vários jovens

dançando.

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Todos os dias quando acordo

Não tenho mais

O tempo que passou

Mas tenho muito tempo

Temos todo o tempo do mundo...

- Ouuuuuuuuuuu – gritamos juntas e começamos a dançar como se não houvesse

amanhã.

Se passaram 4 anos e muita coisa mudou, Luiza se casou! Isso mesmo, minha

irmã mais velha que eu considero uma mãe se casou com Fernando. Ele teve que viajar

e por isso ela está na minha casa ainda, confesso que fiquei triste e feliz ao mesmo

tempo com essa notícia.

Luiza merece ser feliz e achou alguém que lhe dará muito amor.

Painho quer que eu me case com Henrique, eu sempre nego seu pedido porque

sei que a minha melhor amiga gosta dele e isso seria muito errado.

Porém, Henrique é rico e meu pai gosta dele. Bem diferente de Alan, que é

pobre e meu pai o odeia e a sua família também.

Falando em Alan, eu e ele começamos a namorar quando eu fiz quinze anos. Os

únicos que sabem do nosso namoro é minha irmã e Paula, o resto pensa que nos

odiamos.

Ele é um fofo, me respeita muito e sempre está preocupado com a nossa

situação.

- E selvagem! Selvagem!

Selvagem! – Paula grita, me tirando dos meus pensamentos.

-“Veja o sol, dessa manhã tão cinza, a tempestade que chega é da cor dos teus

olhos” – canto essa parte um pouco baixo.

- CASTANHOS – todos que estavam ali gritam.

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E do nada começa a chover. Oxente! Estava um sol danado e agora chove, vai

entender o clima da Bahia.

Sinto que estou sendo observada e nossos olhares se cruzam em meio à

multidão, Alan está ali, com um copo na mão e me observando sem nem disfarçar.

Sorrio para ele que retribui.

- “Então me abraça forte, e diz mais uma vez que já estamos, distantes de tudo”

– ele meche os lábios no tempo da música.

Quem dera eu e ele distante disso aqui e juntos sem ninguém para nos rotular.

-Temos nosso próprio tempo

Temos nosso próprio tempo

Temos nosso próprio tempo

Não tenho medo do escuro

Mas deixe as luzes

Acesas agora

O que foi escondido

É o que se escondeu

E o que foi prometido

Ninguém prometeu

Nem foi tempo perdido

Somos tão jovens

Tão jovens! Tão jovens!

A música acaba e eu estou só o pó da rabiola, vejo que Henrique está

conversando com Paula e nem me dirige a palavra. É melhor assim, não quero que ele

crie esperanças comigo.

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Alan mexe na ponta da orelha, esse é o nosso sinal secreto para nos

encontrarmos. Mexo na orelha também e ele sai primeiro, um tempo depois eu saio da

festa indo em direção ao matagal que tem ali perto.

A chuva caía cada vez mais forte, me deixando totalmente encharcada. Alan está

de costas para mim, então tampo seus olhos com a minha mão e solto uma risada.

-Toda besta. – Ele diz rindo e me puxa colando nossos corpos.

-Tentei te assustar. – Digo passando a mão no seu rosto.

- Eu não me assusto fácil, morena. – Ele dá um sorriso de lado e me beija.

Seus lábios são quentes e os meus frios, é uma mistura única e perfeita e a chuva

caindo sobre nós deixa tudo mais romântico.

Eu estou vivendo meu próprio conto de fadas e espero que dure para sempre.

- Eu estava pensando... eu deveria conversar com seu pai.

- Está doido! – Eu grito desesperada. - Ele vai te matar e proibir nosso namoro!

- É o certo Cristina, não posso namorar você escondido. Isso não é coisa que se

faça!

- Mas, meu amor, ele vai proibir... – ele me cala com um selinho.

- Eu não posso continuar com isso em segredo. – Ele diz colando as nossas

testas. Começo a chorar de desespero.

- Ele não vai deixar eu te ver, nós vamos nos separar e seguir caminhos

diferentes. Não podemos! Você não pode falar com ele, não agora. – Abraço ele como

se minha vida dependesse disso.

Não chora, morena. Mas eu ainda acho que devemos falar com ele...

- Xiiii! – Coloco meu dedo indicador no seu lábio. – Vamos dar um jeito, eu não

quero perder você.

Passo a mão em seu cabelo preto e sorrio em meio as lágrimas.

- Você não vai. Ficaremos juntos para sempre!

- Você promete? – Pergunto com um pingo de esperança.

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- Sim, eu prometo.

Ele tira um pedaço de barbante do bolso e amarra no meu dedo. Sorrio boba com

aquele gesto de amor. Pego o outro pedaço e amarro no seu dedo, ele também sorri e

nos beijamos.

-Agora estamos juntos e nada vai nos separar. – Ele diz me abraçando.

-Vamos fazer o seguinte, me encontra aqui às oito.

- É muito perigoso...

- Relaxe, homem. – Seguro em sua mão. – Eu achei uma solução para nós.

- Jura?

- Sim. Vou ver se vai dar certo e te falo hoje à noite.

-Tome cuidado e eu te...

Ele congela, afinal nós nunca falamos isso um para o outro.

- Eu também, Alan.

Sei que ele entendeu o que eu quis dizer, dou meu último beijo nele e saio

correndo para chamar Paula.

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CAPÍTULO IV

ermino de arrumar minha mochila, tem tudo que é necessário para

nossa fuga e talvez um pouco mais.

- Cris, pensa com carinho... – Paula diz com uma voz de choro.

- Eu já pensei, é a nossa única saída amiga – coloco a mochila no meu ombro.

- Eu estou com um pressentimento ruim. Por favor não vá.

- Isso é impressão sua. Tudo vai dar certo.

Nos abraçamos bem forte, Paula é minha melhor amiga e tudo que eu mais quero

é seu bem. Eu, fugindo com Alan, seria melhor para todo mundo. Paula poderia se casar

com Henrique e eu deixaria de ser um peso morto para minha irmã.

E o melhor de tudo, eu poderia ficar junto com o amor da minha vida para

sempre!

- Que Deus te acompanhe, minha amiga, e que dê tudo certo! – Paula beija

minha cabeça.

- Que você seja feliz, amiga! – Nos abraçamos novamente e eu saio de sua casa.

A noite está fria e uma sensação ruim me atinge em cheio. Tenho vontade de

voltar para casa, mas eu continuo andando. Não tem uma pessoa na rua e é melhor

assim, ninguém irá desconfiar de nada.

T

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Chego no matagal onde é o nosso ponto de encontro, sinto que estou sendo

observada e o medo percorre meu corpo por completo.

- Alan? É você? – Pergunto e ninguém responde. Dou de ombros e sento no chão

esperando ele chegar.

Escuto o barulho de uma bicicleta e sorrio ao ver Alan vindo na minha direção.

Ele deixa a bicicleta no chão e vem ao meu encontro.

- Eu preciso te falar uma coisa. – Ele diz, sentando-se ao meu lado.

Mesmo estando um pouco escuro, consigo ver seu olho roxo e seu lábio um

pouco cortado.

- O que aconteceu?! – Pergunto desesperada. Toco na sua bochecha e ele geme

de dor. – Alan, quem fez isso com você?

- Ninguém, ninguém fez isso comigo. – Cruzo os braços, encarando seus olhos.

- Você não sabe mentir.

Vou beijá-lo, mas ele desvia. Ok... isso foi meu estranho.

- Precisamos conversar – ele diz me afastando.

- Nós devemos fu... – ele me interrompe.

- Quero terminar com você.

Essas palavras me atingiram em cheio e eu fiquei intacta, meus olhos encheram

de lágrimas e eu comecei a chorar.

-Você está brincando comigo – digo indignada.

- Nós não podemos continuar com isso... – dou um tapa em sua cara.

-Você jurou Alan! JUROU QUE ÍAMOS FICAR JUNTOS! – Grito batendo em

seu peito. Ele segura firme meus pulsos.

- Nada dura para sempre, Cristina! Saia desse conto de fadas que você vive!

-Você me enganou!

- Nós dois sabíamos desde o início que não ia dar certo, você mesma se enganou.

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- Você me fez te amar! Te querer o tempo todo e agora termina comigo do nada!

- Não foi do nada, ok? Deixe de onda e preste atenção! Está doendo mais em

mim do que em você.

-Então vamos ficar juntos, Alan! Fugimos agora e vamos ficar juntos para

sempre!

Ele balança a cabeça negativamente me deixando desesperada.

- Eu sou pobre, Cristina. Você cresceu em berço de ouro e está acostumada com

tudo do bom e do melhor. Como eu posso cuidar de você, se não cuido nem de mim

mesmo?

- E quem disse que eu preciso de alguém para cuidar de mim?

- Você sabe que precisa, princesinha do papai.

- Então é isso? Você acha que não tem a capacidade de crescer na vida e por isso

está terminando comigo?

- Case com Henrique e seja feliz – ele diz de cabeça baixa.

- Fale isso olhando nos meus olhos, Alan.

Ele continua de cabeça baixa e consigo ouvir seu choro, então ficamos ali

chorando juntos sem falar nada.

Estou sentindo meu coração sendo despedaçado e uma necessidade enorme de

gritar.

- Eu não posso ser feliz ao lado de um homem que eu não amo – digo, limpando

minhas lágrimas.

- Você vai ser mais rica do que já é, isso não é suficiente?

- Para mim não.

Ele tenta tocar na minha mão, porém eu me afasto bruscamente.

- Sai daqui, Alan! Eu te odeio! Te odeio!

Começo gritar e chorar ainda mais, ele se levanta e pega sua bicicleta.

- É perigoso ficar aqui sozinha – ele diz com a voz falha.

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- SAI DAQUI! – Grito em resposta.

Então ele vai embora, deixando-me de coração partido e com uma vontade

imensa de bater nele.

Alguns minutos atrás eu estava feliz achando que ia dar tudo certo, e agora olha

para mim.

Já chorei tanto que minha cabeça começa a doer. Decido ir para casa e dizer para

Paula que deu tudo errado.

Pego minha mochila e começo a caminhar lentamente, novamente aquela

sensação ruim me atinge e eu começo a correr.

Mas fui pega pelo braço, o susto faz com que eu solte um grito e o homem

tampa minha boca me levando para dentro do matagal.

Começo a me debater e tentar me soltar, mas é em vão. Ele me joga no chão

bruscamente e deita em cima de mim.

- SOCORRO! - Grito desesperada, mas logo sinto um tapa forte em meu rosto,

que me faz perder o sentido por alguns segundos.

Ele rasga meu vestido e amarra minha boca com um pedaço de pano, lágrimas

começam a cair pelo meu rosto e a todo momento tento sair dali.

Mas ele é muito mais forte do que eu e quando seu rosto é iluminado pela luz da

lua, consigo reconhecê-lo.

Henrique.

Henrique é o meu agressor, meu amigo e aquele que não só eu, mas a minha

família confia está me estuprando agora.

O medo me consome e eu só quero morrer ao invés de passar por isso, mas meu

pedido não é atendido.

Por favor Deus, faça ele parar!

Olho em seus olhos e vejo pura maldade e um sorriso assustador. Não sei quanto

tempo durou aquela sessão de terror, mas quando ele saiu de dentro de mim eu senti

uma coisa gelada na minha barriga que me fez paralisar.

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-Você vai morrer sua vadia! Ou você fica comigo ou então morre! – Ele diz no

meu ouvido.

Ele começa a me bater com a arma, era soco e coronhada, e também tinha suas

palavras sujas e suas humilhações.

Cadê Alan?

Cadê Paula?

Cadê painho?

Cadê Luiza?

Onde está Deus nesse exato momento?

Ninguém vem me salvar, eu estou aqui sozinha com esse monstro e não tenho

como me salvar dele.

Para, para por favor!

Eu quero gritar isso para ele, mas o pano na minha boca me impede de fazer

isso.

E então, como um passe de mágica eu sinto todos os meus sonhos sendo

interrompidos e minha vida também.

Ele tirou isso de mim nesse exato momento. Minha vida e meus sonhos eu não

tenho mais graças a ele.

- Se você falar com alguém sobre isso, eu te mato! – Ele diz e bate em meu

rosto.

Ouço seus passos se afastando e dou graças a Deus, não consigo me mexer

porque meu corpo inteiro está doendo.

Eu não acredito que isso acabou de acontecer comigo, eu não acredito...

Depois de muitas tentativas consigo ficar de pé, pego o resto do vestido e cubro

meu corpo. Saio dali em pânico, ele pode vir atrás de mim e me matar!

A rua está deserta e não tem ninguém para me ajudar, então eu corro, corro

bastante ignorando a dor até chegar na minha casa.

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Abro a porta e não encontro ninguém, vou para meu quarto e me permito

desabar ali mesmo.

Eu sinto nojo, nojo de mim mesma e tenho vontade de vomitar.

Ainda consigo sentir suas mãos pelo meu corpo e começo a entrar em pânico,

tranco a porta e as janelas e vou para o banheiro tomar um banho para tirar aquela

nojeira de mim.

Me esfrego tanto, mas mesmo assim me sinto suja, e ainda tenho nojo de mim.

Será esse o preço que se paga por ter nascido mulher?

CAPÍTULO V

á se passaram 3 meses e eu continuo do mesmo jeito, me sinto suja e

angustiada. O medo dele vir me matar me consome a cada dia e eu não

consigo falar com ninguém.

O silêncio e a solidão se tornaram meus melhores amigos.

Paula tenta conversar comigo junto com Luiza, mas nenhuma palavra sai da

minha boca. Estou com tanto medo dele, que resolvi me calar por um tempo para que eu

não acabe soltando tudo que aconteceu naquela maldita noite.

Alan veio me ver também, mas eu continuei encolhida na cama e chorando sem

dizer uma palavra.

Ultimamente está sendo assim, lembranças daquela noite voltam a me assombrar

e então eu vou para debaixo do chuveiro, e fico ali por horas.

Feridas estão por todo o meu corpo, de tanto que eu me esfrego até me sentir

limpa o suficiente para voltar para cama. Também tem as feridas dentro de mim, tenho

certeza que essas nunca irão cicatrizar.

Henrique fez isso comigo, ele arrancou a minha inocência da pior forma

possível, meus sonhos não existem mais e muito menos a minha vontade de viver.

J

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Mas o que mais me assombra, é que durante esses meses minha regra não desceu

e eu tenho medo de estar carregando uma semente do mal dentro de mim.

Isso faz com que eu sinta mais nojo de mim mesma.

Saio da cama e vou escovar os dentes, enquanto estou escovando me olho no

espelho e tomo um susto com a minha aparência.

Meus olhos estão fundos e sem aquele brilho que eu costumava ter, meu lábio

está seco e com um tom meio branco demais. O cabelo está preso em um coque frouxo,

e muito acabado pois não cuido mais dele.

Fora as feridas que estão por toda parte, eu não sou mais a mesma e isso graças a

aquele verme nojento.

Pela primeira vez eu saio do quarto, eu precisava comer alguma coisa e ter uma

conversa séria com painho.

Que Deus possa me ajudar com isso, amém.

- Finalmente saio daquele quarto. – Luiza sorri e me abraça, porém eu não

retribuo e fico nervosa com seu toque. – Ainda na greve de silêncio?

Não consigo responder, pois tenho medo. Eu poderia ter um surto e dizer tudo

que aconteceu e eu realmente não posso fazer isso.

- Tudo bem, eu vou esperar o seu tempo.

Ela sorri de forma tão doce que me deixa com vontade de chorar, mas seguro as

minhas lágrimas e sento na mesa. Luiza coloca um prato de comida, minha barriga

ronca e eu começo a comer desesperadamente.

- Minha irmã, eu não sei o que aconteceu para você ficar assim. – Ela diz

preocupada. – Mas quero que você saiba, que estou aqui para tudo que precisar.

Quando eu penso em responder, a comida volta com tudo e eu saio correndo.

Coloco tudo para fora, meu estômago começa a doer e mesmo assim não paro de

vomitar.

Sinto as mãos de Luiza passando na minha costa, e as lembranças da mão dele

passando pelo meu corpo faz eu vomitar mais.

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-Vai ficar tudo bem. – Ela diz, quando eu sento no chão e começo a chorar. – Eu

estou aqui, Cristina, vai ficar tudo bem.

Não vai ficar nada bem, por mais que o tempo passe... eu sei que ninguém pode

mudar o que aconteceu.

Ela me ajuda a ficar de pé, lavo minha boca e vou deitar na cama.

- Por favor, diga que não é isso que eu estou pensando. – Ela diz, sentando-se na

cama.

Meu corpo treme, será que ela sabe de alguma coisa? Meu Deus! Henrique pode

fazer alguma coisa com ela, e isso eu tenho certeza que não irei suportar.

- Não me diga que Alan te engravidou e picou o pé, te deixando sozinha.

Eu começo a rir, pela primeira vez eu estou rindo! Que ideia ridícula, nunca que

Alan faria isso! Mas então eu lembro do que aconteceu, e as lágrimas começam a cair.

- Eu vou matar aquele desgraçado! – Ela fala e se levanta, mas eu seguro seu

braço.

Balanço a cabeça negativamente, limpo minhas lágrimas e faço um gesto para

ela se deitar comigo.

- Não foi isso que aconteceu? – Eu faço que não com o dedo. – Então o que

aconteceu?

Fico em silêncio, só sentindo suas mãos acariciando meu cabelo.

- Não fique chorando por qualquer coisa, Cris. Nós mulheres somos fortes e não

devemos chorar pelos homens.

Acontece Luiza, que não estou chorando por qualquer coisa e muito menos por

causa de homem.

Estou chorando, pois sinto uma dor, mas não é a dor física e sim a dor da alma.

Eu sinto como se pudesse passar vinte anos, essa dor não irá passar... Sabe por quê?

Porque eterna é a dor na alma violentada.

- Eu estou aqui para tudo que você precisar, eu te amo, Cris! – Ela beija minha

cabeça.

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Minhas pálpebras vão se fechando lentamente, e pela primeira vez em meses eu

consigo realmente dormir.

CAPÍTULO VI

stou suando frio e a ansiedade percorre meu corpo, esperando painho

chegar para ter aquela conversa.

Luiza já voltou para sua casa com seu marido, estou sozinha em

casa e já fechei todas as entradas possíveis e tenho uma faca comigo caso precise.

Coloco um vestido branco e deixo meu cabelo solto, estou na frente do espelho e

meus olhos param diretamente na minha barriga.

Como sou bem magrinha, a barriga já começou a aparecer. Não sinto amor e

muito menos carinho, eu sinto é nojo e minha vontade é que essa coisa morra antes

mesmo de nascer.

Escuto o barulho da porta se abrindo e corro para a sala. Vejo painho vestido

com sua roupa de trabalho e meu coração acelera.

- Filha, que bom te ver fora desse quarto. – Ele beija minha testa e eu estremeço

com tanta aproximação.

E

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- Precisamos conversar.

Ok, foi meio estranho falar depois de tanto tempo na "greve do silêncio ". Ele se

senta no sofá, eu fico em pé pois estou tão nervosa que não consigo ficar parada.

- Eu não sei como te falar isso... – minhas mãos começam a suar. – Estou

grávida!

O sorriso que tinha em seu rosto desaparece, ele fica paralisado com a cara nada

boa. Por um momento eu fecho os olhos, esperando seus gritos.

Ao invés disso, eu sinto um tapa na minha cara que me faz cair no chão. Coloco

a mão no rosto sentindo uma ardência nada legal.

- Eu falei para ele ficar longe de você! – Ele grita e puxa meu cabelo, me

colocando de pé. – Eu vou matar aquele fi da peste!

- Painho... – paro de falar ao sentir outro tapa em meu rosto.

- Eu te proibi de ficar perto daquele pobrezinho e você me desobedeceu, e agora

olhe só para você! É uma kenga igual a sua mãe!

Começo a chorar, ele nunca disse nada da minha mãe.

- Ela para você ter se casado com Henrique logo! – Começo a sentir o pânico

percorrer meu corpo.

- Não é do Alan. – Digo baixo, mas ele não ouve e puxa meu cabelo novamente.

- Nessa casa você não fica mais!

Eu sou arrastada para fora de casa, enquanto começo a gritar chamando a

atenção dos vizinhos.

- Painho, eu vou abortar! – Grito desesperada.

- Tu é uma vergonha para essa família!

Ele me joga no chão bruscamente, sinto uma dor na barriga, mas ignoro.

- Por favor, não me deixe! – Pego no seu braço.

- Não foi você que engravidou? Agora te vira!

- Painho...

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-Você não é mais minha filha, FORA DAQUI!

Olho bem em seus olhos, estão vermelhos e cheios de lágrimas. Meu coração

está despedaçado novamente, meu próprio pai não me quer mais.

Continuo chorando baixinho, até que vejo muitas pessoas ali, vendo minha

humilhação. E no meio daquela multidão eu o vejo, Henrique está ali, com seu sorriso

nojento.

Ele está se divertindo com a minha própria tristeza, esse gostinho eu não darei a

ele.

Levanto do chão com a mão na barriga, sentindo uma dor chata me incomodar.

Escuto os murmúrios de todo mundo ali:

"É uma kenga mesmo"

"Seguiu os passos da mãe "

"Quem deve ser o pai?"

"Coitada, tão nova e passando por tudo isso!"

Ignoro todo mundo e tento entrar em casa, mas painho me impede.

- Daqui você não leva nada. – Diz frio.

Eu não acredito que isso está acontecendo comigo, ouvi-lo dizer que não sou

mais sua filha foi como uma facada.

-Por favor, painho, deixa eu me explicar!

- Saia daqui! SAIA! – Dito isso, ele bate a porta na minha cara.

Seguro as lágrimas, eu não irei chorar na frente de todo mundo, não vou dar esse

gostinho a Henrique.

- Ninguém aqui tem o que fazer?! – Grito e saio correndo.

Mas sou puxada por Henrique, sinto meu corpo tremer de medo.

- Seja uma boa menina e não fale nada, ok?

Afirmo com a cabeça, ainda paralisada pelo medo.

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-Você deveria me agradecer. Eu fiz isso por você.

Sinto nojo de ouvir sua voz.

- Você não é nada, ninguém nunca irá te amar.

Começo a sentir o peso das suas palavras sobre mim.

- Ninguém nunca irá te ouvir, ninguém vai acreditar em você.

As lágrimas começam a cair, ele me abraça e eu começo a me debater, mas ele

não me solta.

-Você vai morrer se abrir essa maldita boca. Silêncio, minha menina. – Sinto sua

mão em meu cabelo.

- Por que está chorando? Não achou divertido?

Tenho vontade de gritar, mas minha boca não me obedece.

- Você é minha, e de mais ninguém.

Ele me solta, então eu corro para casa da única pessoa que pode me ajudar. Bato

na porta desesperadamente, Paula abre a porta e eu me jogo em seus braços.

Entramos e sentamos no chão, eu choro como uma criança e sou consolada por

minha melhor amiga.

Eu perdi tudo! Minha inocência, minha paz, meu pai, minha casa, meus sonhos e

ainda por cima carrego um monstro que vai me assombrar pelo resto da minha vida!

Eu não desejo isso nem para minha pior inimiga, nenhuma mulher merece passar

por isso e muito menos um homem deve achar que tem o direito de fazer isso.

- Chora amiga! Coloca tudo para fora.

Ao lembrar das palavras de painho choro ainda mais, começo a soluçar e sentir

uma dor em meu peito.

Minha vida virou de cabeça para baixo, a partir do momento que aquele verme

fez aquilo comigo.

E agora eu não sei o que fazer! Para onde eu vou? Estou sozinha e desamparada!

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Não quero ficar nessa cidade, vou dar um jeito de ir o mais longe possível daqui

e nunca mais ver a cara daquele verme nojento.

Mas de uma coisa eu estou certa, já sofri demais e eu garanto que nunca mais

irei chorar.

A partir de agora tentarei ser forte, para enfrentar tudo que vem pela frente...

CAPÍTULO VII

-Você me traiu. – Alan se lamenta.

Mantenho a cabeça baixa e ouço suas lamentações. Depois que eu parei de

chorar, ele chegou aqui e não para de repetir essa frase.

- Não, Alan. Eu nunca fiz isso. – Tento pegar na sua mão, mas ele não deixa.

- Nós nunca tivemos nada e como essa gravidez aconteceu?

Fico quieta, não posso falar o que aconteceu e também não tenho nenhuma

desculpa para isso.

- Você não é o pai. – Digo para quebrar aquele silêncio constrangedor.

- Isso é óbvio, quero saber quem é o pai.

-Ninguém. – Dou de ombros e sento no sofá.

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Ele continua em pé, andando de um lado para o outro me deixando tonta. Ele

sempre faz isso quando está nervoso, confesso que acho bonitinho esse jeito dele.

- O que você vai fazer agora? – Pergunta sem jeito.

Não teria como eu responder essa pergunta, eu não faço a mínima ideia do que

realmente posso fazer. Se eu for embora, irei para onde? Como vou me virar? E essa

coisa dentro de mim, até nascer eu irei precisar de ajuda!

Ficar aqui eu não posso, Henrique estaria por perto e agora tem painho que não

quer olhar na minha cara. Não tenho dinheiro para comprar uma passagem e muito

menos me sustentar, estou perdida e sem saber o que fazer.

- Eu não sei. – Fecho os olhos sentindo o cansaço.

Estou exausta e só quero que esse pesadelo acabe logo.

- Eu... eu... – ele suspira. – Sinto muito.

- Tudo bem, isso tudo não é culpa sua.

-É minha culpa da gente ter terminado. – Ele senta no chão. – Seu pai foi falar

comigo e aquilo foi um choque de realidade, eu não posso te oferecer nada Cristina.

Você não sabe como é passar fome, ter aquela preocupação e não conseguir dormir

ouvindo a barriga roncar de fome.

- Alan... – tento falar, mas ele não deixa.

- Eu não consigo suportar a ideia de ver você com fome, frio ou medo. Não

poderia te oferecer essa vida, e você sabe disso.

- Eu poderia trabalhar! Minha irmã tem dinheiro, ela iria ajudar!

- Essa é a questão. Cristina, eu é que tenho que cuidar de você. Seria humilhante

para mim se acontecesse ao contrário.

- Você está com o pensamento igual aos nossos pais...

- E eu não estou certo? Você é rica, sempre teve tudo ao seu redor e seu destino

é se casar com um homem rico. Você merece alguém muito melhor que eu.

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- E onde fica o amor? Alan, eu não quero casar por dinheiro e muito menos

obrigação, quero casar por amor! Podemos casar agora mesmo, basta você dizer que

sim! – Toco em seu peito, mas rapidamente tiro sentindo o medo tomar meu corpo.

- Não.

- O quê?

- Não.

Aquela palavra foi como um tapa na cara.

-Alan?

- Não quero que você seja igual a mim, não posso fazer isso com você.

Estava levando uma passada para trás pela segunda vez, e novamente sinto meu

coração apertar. Antes que eu pudesse pedir que ele retirasse o que havia dito, Alan já

estava na porta.

- Eu quero te poupar disso – ele sussurrou.

- Tudo bem – sussurro, sentindo meus olhos arderem.

- Boa sorte.

Eu não respondo, então escuto a porta bater me deixando sozinha com meus

pensamentos. Pensa Cristina, vamos logo com isso.

Eu não tenho outra opção, terei que sair da cidade hoje mesmo. Não posso ficar

no mesmo lugar que Henrique, quero ele o mais longe possível de mim.

Paula abre a porta do quarto e sorri para mim, eu continuo com a cara fechada

sem emoção alguma.

- Um menino veio entregar isso para você – ela diz com uma mochila na mão.

-Quem mandou?

- Sua irmã.

Luiza estava longe, mas mesmo assim cuidava de mim como se eu fosse sua

filha. Abro a mochila que está com algumas peças de roupas, alguns cruzeiros e um

bilhete.

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“Venha para minha casa, eu cuidarei de você e do seu bebê. Estarei te esperando,

te amo!"

- Eu não posso – sussurro.

- Não pode o quê?

- Ser um peso morto na vida da minha irmã, ela merece ser feliz e ter sua própria

família. Eu não posso tirar isso dela.

- A família dela é você.

- A família dela é o Gabriel.

Vou para cozinha e coloco algumas comidas na mochila, calço minha sandália,

prendo meu cabelo em um coque e coloco a mochila na costa.

- Eu vou embora – digo decidida.

- Cristina, pensa com calma. É tão perigoso.

- Oxente! Tenho medo não, minha filha.

- Você precisa parar de ser impulsiva.

- Paula – pego no seu braço – tanta coisa já aconteceu de ruim na minha vida que

eu nem ligo mais.

- Então eu vou com você.

Balanço a cabeça negativamente.

- Não, eu vou sozinha. Você pode ir até a rodoviária.

E assim fizemos, chegando lá eu comprei uma passagem para capital e Paula

começou a chorar querendo ir.

- Por favor... – pede pela décima vez.

- Sua mãe me mataria! É melhor você ficar.

Ela confirma e ficamos em silêncio, depois de um tempo vejo meu ônibus

chegar e eu levanto.

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- Eu sei que você vai entrar nesse ônibus e vai embora sem olhar para trás, eu sei

disso. – Ela me abraça. – Mas nós somos amigas! Somos amigas de verdade e isso

significa que não importa quanto tempo vai levar, mas quando você decidir finalmente

olhar para trás eu vou estar aqui.

Abraço-a fortemente, sentindo suas lágrimas molharem meu ombro nu. Eu odeio

despedidas e não quero ficar longe dela, mas é a vida e não tenho outra opção.

- Sabe por que eu te amo? – Pergunto passando a mão no seu cabelo. – Porque

no momento que eu mais precisei, foi você que ficou do meu lado!

- Eu também te amo, sua filhote de jaca azeda.

Solto uma risada do seu apelido.

- Preciso ir. – Digo.

Ela beija me barriga, eu estremeço com esse gesto mas fico quieta.

- Ela não tem culpa de nada, amiga. Não deixe essa criança pagar pelos erros dos

outros.

-Ela? Está dizendo que é uma menina?

-Vamos dizer que sim.

Fico sem jeito, então resolvo mudar de assunto:

- Cuidado com Henrique. – Dou meu último aviso e subo no ônibus.

Paula tem uma expressão confusa no rosto, ela nem imagina o monstro que

Henrique é. Espero que ela seja feliz e fique bem longe dele.

Sento na cadeira do ônibus e uma moça senta ao meu lado, aceno para Paula e

mando beijos. Ela retribui, limpando as lágrimas.

No fundo, bem lá no fundo consigo ver Alan sentado no chão me olhando com

os olhos vermelhos de tanto chorar e o cabelo todo bagunçado.

Minha vontade é de correr para abraçá-lo, mas não posso. Ele fez a sua escolha e

agora terá que lidar com as consequências.

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O ônibus começa a sair da rodoviária, deixando para trás todo o meu passado,

meus amigos, meu amor...

Agora é o começo de uma nova história. Pretendo recomeçar tudo do zero e

esquecer tudo que ficou para trás.

CAPÍTULO VIII

epois de longas horas de viagem, o ônibus para em um lugar

totalmente diferente de onde estávamos.

Saio do ônibus, sentindo meu corpo todo doer, minha barriga

ronca de tanta fome. Observo bem onde estou, Salvador é realmente linda!

Tudo por aqui está em mudanças, principalmente a rodoviária que parece que

acabou de ser inaugurada.

D

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A noite é fria, e não vejo nenhum lugar que eu possa ficar. Então, só me resta

dormir no chão.

- Que ótimo! – Digo sentando no chão.

Abro a mochila e pego algumas comidas que eu trouxe e começo a comer, as

pessoas passam e me olham com nojo e desprezo.

Bom, elas acham que eu sou uma sem teto?

Eu preciso arranjar um lugar logo, não posso viver na rua para sempre!

Termino de comer, coloco a mochila como travesseiro e deito no chão mesmo

para dormir. Minha primeira noite fora de casa não está sendo fácil, espero que tudo

melhore.

Sinto minha cabeça bater em algo duro e abro os olhos, vejo um cara correndo

com a minha mochila. Sem pensar duas vezes, eu começo a correr.

- Ei! Você não pode levar isso! – Grito correndo.

- Seja bem-vinda a cidade, boneca! – Gritou de volta.

Paro de correr quando vejo que é inútil, ótimo! Estou sem casa e agora sem

meus mantimentos, será que pode ficar pior?

E começou a chover...

- Nãoooooooo! – Digo, sentindo as gotas geladas sobre a minha pele.

Sento na calçada, pelo menos embaixo desse edifício a chuva não vai me

molhar. Mas não tenho nada para me cobrir. Então fico sentindo o frio.

- Quando perguntarem quem é a pessoa mais azarada do mundo, com certeza é

você. – Sussurro baixinho.

Vejo vários carros passarem e ninguém me ajuda, como pode? Está vendo uma

pessoa desabrigada, toda molhada e ninguém pergunta se eu quero alguma coisa.

Um prato de comida.

Um lar.

Alguns cruzeiros.

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No meu estado atual, até com um abraço eu ficaria feliz.

- Por quê? – Pergunto para mim mesma. – Por que, meu Deus?

Eu era feliz, mesmo crescendo sem mainha ao meu lado eu era feliz. Eu lembro

de painho falando que eu não deveria fazer nada dentro de casa, que deveria curtir

minha infância.

E assim eu fiz. Tenho muita pena de Luiza.... Aos oito anos teve que assumir

aquela casa. Cuidar de mim e do nosso pai, dos porcos, da casa e ainda fazer geladinho

para vender na porta da escola.

Parou de estudar cedo. Enquanto eu estava nem aí para os estudos, ela só queria

voltar a estudar e ser uma adolescente normal. Porém, eu e painho tiramos esse direito

dela.

E olha como estamos hoje, a filha perfeita do papai, que foi criada para casar-se

com um homem rico está na rua. E a filha que sempre foi uma empregada dentro de

casa, está casada e feliz!

Mas deixando essa parte triste de lado, eu lembro quando ficávamos brincando

na rua até tarde, painho nunca gostava e sempre se retava!

Porém, eu era uma criança e precisava ser feliz. Então depois de muito brigar ele

acabava entendendo.

- Ei! – Digo passando a mão no cachorro que acabou de chegar.

Ele lambe meu rosto, fazendo eu sorrir e passar a mão pelo seu corpo fofinho.

- O que está fazendo aqui sozinho?

Espero ele responder e ele continua com cara de tacho para mim.

- Oxente, Cris! Ele é um cachorro. Óbvio que não vai responder.

Ele coloca a cabeça no meu colo, fico fazendo carinho nele e sorrio boba.

- Pelo menos agora eu não estou sozinha.

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Observo a chuva cair, o vento frio não para e em questão de minutos eu estou

tossindo sem parar. Novamente sinto minha barriga doer, será que está acontecendo

alguma coisa com o monstrinho?

- Espero que você morra logo! – Falo com amargura.

Isso que aconteceu foi culpa dele também, se essa coisa não estivesse na minha

barriga painho nunca teria me expulsado de casa.

O cachorro se levanta num pulo, fazendo eu levar um susto e meu coração

acelerar. Ele fica olhando para um ponto fixo do outro lado da rua, atento e preparado

para atacar.

- Está tudo bem, não tem ninguém ali – falo, porém ele continua olhando.

Começo a encarar também, então eu vejo a figura de um homem do outro lado

da rua. Meu corpo estremece, minha cabeça gira e eu sinto minhas pernas tremerem de

medo.

Não pode ser... não pode ser ele...

O cachorro começa a latir quando ele vem em nossa direção, eu preciso correr...

CORRA! CORRA!

Minha mente grita, eu tento correr, mas meu corpo não se mexe e fico paralisada

pelo medo. Esse é o efeito que esse desgraçado causa em mim, o cachorro avança em

sua direção e ele nem liga.

- Olá, minha menina – sua voz nojenta me causa calafrios.

- O que você quer aqui, Henrique?

-Vim ver sua desgraça de perto – ele me analisa por completo – e olha, você está

horrível.

Não mais que você, penso, porém não consigo dizer.

- Agora sim, você está no mesmo nível que aquele seu namoradinho.

Meu coração aperta ao se lembrar de Alan, sinto meus olhos lacrimejarem e meu

nariz arder.

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Eu não vou chorar na frente dele, não vou!

- Puff! Como eu pude me esquecer? Ele não te quis mais, não foi?

Não respondo, Henrique gargalha como se tivesse ouvido algo engraçado.

- Ninguém vai querer uma mulher como você.

Tento ignorar suas palavras, mas é difícil.

- O gato comeu sua língua? – Ele se abaixa e segura meu queixo com força. -

Responde!

- Vá para o inferno! – Grito e cuspo na sua cara.

Sinto o tapa em meu rosto, e tão rápido quanto um raio o cachorro mordeu seu

braço. Henrique solta um grito de dor, sorrio por dentro.

Finalmente eu tenho alguém para me defender.

- Desgraçado! – Henrique enfia a perna na sua barriga, fazendo o cachorro soltar

um gemido de dor e cair no chão.

- Para com isso! – Grito e vou para cima dele.

Não sei como e não sei quando, mas eu estava no chão recebendo vários chutes e

socos. A dor é insuportável, tudo que eu consigo fazer é chorar e pedir com a voz fraca

para ele parar.

Sinto minhas pálpebras pesarem e uma escuridão chegando, mas antes de

desmaiar eu consigo ouvir sua frase.

- Você é minha.

CAPÍTULO IX

cordo sentindo meu corpo dolorido, abro os olhos e vejo que estou

em um quarto branco. Cheio de aparelhos e o ambiente tem cheiro de

álcool, parece que estou em um hospital.

Quem me trouxe aqui?

A

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Cadê meu cachorro?

Será que aqui tem comida?

São tantas perguntas, que minha cabeça começa a doer. Um médico entra na

sala, junto com outro homem que não conheço.

Merda, se eles tentarem fazer alguma coisa contra mim?

- Você dormiu por dias. – O médico diz e sorri, mas mantenho minha expressão

fechada.

- Dias? – Pergunto confusa.

- Seis dias. Foram pancadas muitos fortes e quase perdemos seu bebê.

- Ele não morreu? – Pergunto desapontada.

- Não. Ele é muito forte – sorriu.

Tenho vontade de vomitar. Essa coisa continua aqui e pelo jeito não vai morrer

tão cedo. Lembro-me das agressões de Henrique, meu corpo está novamente cheio de

hematomas e muito dolorido.

"- Você é minha."

Essa frase me causa arrepios e me faz sentir nojo de mim mesma, talvez ele

esteja certo. Ninguém nunca irá me amar, eu nunca irei ser feliz e estou amaldiçoada a

viver o resto da vida solitária e cheia de lembranças para me assombrar.

Lembranças que jamais irei esquecer. Novamente eu fui agredida e não posso

falar com ninguém. Irei morrer... se falar com alguém, irei morrer.

- Eu te achei na rua toda machucada e te trouxe para cá – o homem alto fala, ele

tenta tocar na minha mão, mas eu me encolho.

Como um animal ferido, estou parecendo aqueles animais maltratados pelos

donos que depois é jogado no meio da rua.

- Obrigada! – respondo meio tímida – Onde está meu cachorro?

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- Oh, certo, – ele ajeita os óculos e sorri sem graça pela minha rejeição – ele está

na minha casa, recebendo cuidados especiais.

Sinto um alívio me preencher.

- Precisamos conversar, mocinha. – O médico fala, sentando-se na poltrona. O

homem que não sei o nome continua em pé, encarando-me.

- Quer uma fotografia? Dura mais tempo... – ele fica sem graça e para de

encarar.

- Sua gravidez precisa de acompanhamento médico, seu bebê está correndo

risco.

- Que tipo de risco? Ele pode morrer?

Fico animada com essa possibilidade.

-Sim, ele pode morrer devido ao seu estresse e se não tiver um acompanhamento

médico adequado.

- Não me importo. – Dou de ombros.

Ele suspira, balança a cabeça e segura firme a prancheta em suas mãos.

- Eu estou falando sério.

- Eu também, essa coisa trouxe grandes consequências para mim. Eu quero que

ele morra! – Tento ficar calma ao sentir minha barriga doer.

- Isso acabou de ser uma contração. – Fala olhando no monitor. – Isso não é

normal, pois você está com três meses e algumas semanas.

-Vou sofrer um aborto? – Pergunto, mas ele me ignora.

O médico pega uma injeção e injeta no acesso do meu braço, sinto uma

queimação e logo a dor passa.

- O que você fez?! – Pergunto gritando.

-Isso vai impedir que você perca o bebê.

Arranco a agulha do meu braço com força e tento me levantar.

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- Você não pode fazer isso! – O homem me coloca na cama de novo, me debato

tentando soltar sua mão do meu braço.

- Me solta! – Grito, tentando mordê-lo.

- Você é louca! – Gritou o médico assim que eu mordi sua mão, que segurava

fortemente minha clavícula.

- Você ainda não viu nada!

- Você precisa de um choque de realidade, criança! – Ele diz, olhando em meus

olhos. Paro de me debater e tento ficar calma. – Isso que você está carregando é um

bebê, uma vida que merece viver e não cabe a você decidir isso!

- Essa coisa acabou com a minha vida!

- E merece morrer por isso? O que esse bebê te fez? Ele é inocente, nem nasceu

ainda e já está sendo culpado e condenado à morte. Não acha isso injusto?

- Se você soubesse o que aconteceu comigo... – falo com a voz fraca, as

lembranças voltaram com tudo.

Consigo sentir as mãos dele pelo meu corpo, sua boca nojenta me beijando e

suas palavras sujas de humilhações.

- Então me conta.

"- Você vai morrer, se abrir essa maldita boca. Silêncio, minha menina."

Escuto sua voz na minha cabeça, eu não posso falar...

Fala!

Eu não posso!

Conta tudo logo!

Ele vai me matar. Ele vai me matar. Eu vou morrer. Não posso falar nada.

Ninguém vai acreditar em mim. Todos vão sentir nojo de mim.

- Eu não posso. – Respondo depois de um tempo de silêncio.

- Então, nós te fazemos um pedido – o homem se pronuncia pela primeira vez. –

Tenha esse bebê, ele merece viver e quando nascer, você dá para adoção.

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Penso um pouco, adoção não seria uma má ideia. O monstrinho ficaria bem, eu

não teria que ver a cara dessa coisa e todos ficaremos felizes.

- Pode ser.

Os dois sorriem como se tivessem ganhado algo grandioso.

- Mas, quem vai querer adotar? – Pergunto.

- Eu! – O médico levanta a mão. – Sempre quis um filho e agora Deus me

abençoou.

- Deus? – Solto uma risada debochada.

- Não acredita em Deus?

- Acreditava, mas Ele não estava lá quando eu mais precisei. – Dou de ombros. –

E parece que se esqueceu completamente de mim.

- Deus não se esquece de ninguém, você deve estar equivocada.

Reviro os olhos impaciente, agora vamos ter uma aula sobre religião? Eu

mereço!

- Bom, deixando esse assunto de lado, – o homem fala cortando o clima chato

que reinou entre nós – eu sou Benjamin, qualquer coisa é só ligar para esse número

aqui.

Ele entrega um cartão.

- Você deve ficar no hospital e receber a medicação adequada, depois disso irá

receber alta.

- Obrigada por tudo. – Dou um sorriso sem mostrar os dentes.

Eles balançam a cabeça e saem do quarto. Novamente estou sozinha e não tenho

ninguém para abraçar.

Eu só queria um abraço e voltar a ser quem era antes, uma menina que adoraria

formar uma família e ter um bebê. Uma menina cheia de vida, e com muita fé. Uma

menina que acreditava na bondade das pessoas, uma menina que tinha sonhos e sonhava

em realizá-los.

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Infelizmente, eu não sou mais a mesma.

E nunca mais serei.

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CAPÍTULO X

sfrego o chão com força, passando a mão na testa limpando o suor

que persiste em cair.

Faz quatro meses que eu saí do hospital e tenho ido lá fazer

o pré-natal. Descobri que o monstrinho é uma menina. Paula estava

certa, com certeza ela iria amar acompanhar a gravidez.

Quando eu saí do hospital, consegui um emprego. Em troca do serviço eu recebo

um prato de comida e um quartinho para dormir. Não é muita coisa, mas pelo menos dá

para sobreviver.

Porém, está muito puxado desde que completei sete meses de gravidez. Limpar

esse restaurante enorme todos os dias não é fácil, principalmente para quem está

carregando uma melancia.

- Eu não aguento mais! – Falo sentando no chão, com a respiração ofegante.

Sinto os chutes da peste na minha barriga. Fico passando a mão pela barriga

ainda sentindo seus chutes.

-Você vai ser jogadora de futebol? – Pergunto e isso faz com que ela fique mais

elétrica. – Você vai ser boa, igual a sua mãe aqui.

Do nada brota um sorriso bobo em meus lábios, vejo que ainda estou acariciando

a barriga e paro imediatamente.

Eu não posso gostar desse bebê, não posso amá-lo e muito menos me apegar.

- Eu te odeio! – Falo, ela para de chutar e fica quieta. – Melhor assim,

monstrinha.

Continuo limpando o chão, parece que agora ela resolveu dormir. Quando

termino com o chão, vou lavar a pilha de louças que está na pia.

- Que nojo! – Falo, quando encosto na comida molhada. – “Chorando se foi,

quem um dia só me fez chorar...”

E

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Faço uns movimentos de dança, e continuo lavando a louça ao ritmo da música.

Lembro da vez que as crianças estavam na praça, e começou a tocar essa música. Em

questão de segundos todos estavam dançando no ritmo dessa lambada maravilhosa!

- Eita coisa boa! – Digo rindo.

Termino a louça, limpo todo o balcão e fecho o restaurante. A rua está deserta,

apresso os passos para entrar logo no meu quartinho que ficava atrás do estabelecimento

do senhor Jorge.

Tiro a chave do bolso e abro a porta, sinto meu cachorro lamber meu pé e

balançar o rabo todo feliz.

- Ei, garotão! – Falo, sorrindo. Tranco a porta e coloco a chave pendurada no

prego. Acendo a luz e vejo a bagunça que ele fez. – Menino malcriado.

Faço carinho na sua cabeça, ele fica com a língua para fora o tempo todo.

- Está com sede? – Ele late em resposta.

Pego a sua tigela e coloco um pouco de água, bebo o restante e fico observando

ele beber a água desesperadamente. Vejo a marmitex em cima da cadeira, pego-a,

coloco metade para ele e como o que sobrou.

A monstrinha começa a se movimentar, tento segurar o sorriso, mas é inevitável.

- Você estava com fome, não é? – Ela chuta.

O cachorro vem para o meu lado e começa a lamber minha barriga, ela fica mais

agitada.

- Vocês dois juntos vão dar trabalho. – Sussurro.

Ele me olha atento.

- Você precisa de um nome, o que acha? – Ele late em resposta. – Precisa ser um

nome de uma coisa que eu goste... – penso um pouco. – ACARAJÉ!

Ele fica me olhando com cara de tacho.

- Ah, qual é? Acarajé é muito legal, senhor zangado. PRONTO! Seu nome vai

ser Zangado.

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Ele começa a latir e girar em círculo.

- Vixe! Baixou o santo.

Deito no pedaço de papelão que tem no chão, essa é minha cama improvisada.

Coloco a cabeça no chão mesmo e fecho os olhos sentindo o cansaço. Meu corpo está

doendo de ter que trabalhar o dia todo.

Zangado deita ao meu lado e fica me encarando, ele foi minha única companhia

durante esse tempo todo. Passei as festas do final de ano aqui nesse quartinho mesmo,

com ele ao meu lado sempre, como meu fiel escudeiro.

Não vou negar, eu chorei bastante na noite de Natal. Eu lembrei da ceia que

fazíamos lá em casa, da família toda reunida: primos, tios, tias, minha avó...

Foi meu primeiro Natal longe deles e não consegui conter as lágrimas de

saudade, e muito menos parar de sentir o cheiro da comida das casas ali perto, enquanto

eu sentia fome e sede.

Passar o Ano Novo também não foi fácil, iniciar o ano nessa pobreza para quem

era rico, é uma mudança e tanto.

- Eu preciso fazer algo da minha vida. – Suspiro derrotada. – Tenho que ganhar

algum dinheiro.

Zangado ouvia minhas lamentações bem atento, afinal ele não tinha para onde

correr. Então só lhe faltava ouvir tudo que eu tinha para falar.

- Às vezes eu me sinto tão só.

Zangado late e lambe meu rosto, sinto também a monstrinha se mexer.

- Isso quer dizer que eu não estou só? Eu tenho um cachorro maluco e uma

monstrinha comigo, acho que consegui um ótimo trio parada dura.

Solto uma risada.

- Eu preciso parar de chamá-la de monstrinha. – Digo e passo a mão na barriga,

recebendo um chute em resposta. – Mas eu não posso me apegar a você.

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Alguns meses atrás, eu queria que esse pedacinho de gente morresse... Hoje em

dia eu não sinto amor e muito menos carinho por ela, eu apenas quero que ela viva e

tenha uma vida melhor.

- Não quero que você morra, mas eu ainda não te amo, ok? – Ela se mexe um

pouco. – Eu também não te odeio, como eu disse mais cedo.

Fico um tempo em silêncio, ainda fazendo um carrinho na barriga e com a outra

mão no cachorro.

- Eu não quero um filho. Não que eu esteja te rejeitando, eu comecei a te

respeitar e acho que você merece pais que te querem.

Ela não se mexe, eu fico preocupada com isso. Será que ela ficou chateada com

as minhas palavras?

- Olha, eu só quero dizer que você merece uma mãe muito melhor do que eu.

Não tenho nada para te oferecer e é por isso que você vai para adoção. Ok?

Ela chuta duas vezes.

- Boa garota! – Sorrio boba e fecho os olhos.

Mesmo eu não querendo, acabei me apegando a essa coisa dentro de mim.

Porque graças a ela e ao Zangado, eu não estou mais sozinha e tenho alguém para

conversar.

Sinto seu chute novamente e deixo o cansaço me vencer.

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CAPÍTULO XI

ermino de arrumar as coisas no restaurante e sento no chão, sentindo

dores fortes na barriga.

Desde cedo que não sinto a coisinha mexer, fiquei preocupada,

mas infelizmente não posso fazer nada.

- Fez oito meses e está muito gaiata, não acha mocinha? - Pergunto.

Ela não se mexe e muito menos chuta, meu coração aperta e seguro as lágrimas.

Será que ela morreu? Eu desejei tanto sua morte, que acho que Deus finalmente

resolveu levar.

- Olha aqui, Deus, – tento manter a respiração calma – eu não estou numa

relação tão boa com o Senhor, mas não deixe a coisinha morrer! – Fecho os olhos,

sentindo a dor. – Por favor.

Depois de várias tentativas consigo ficar em pé, vou me apoiando nas mesas até

chegar na porta do restaurante. Abro a mesma e tento sair, mas acabo escorregando

numa poça de água e caio no chão com tudo.

- Ai! – Grito, sinto a dor em minha barriga aumentar – Ajuda, eu preciso de

alguém!

Não tinha uma pessoa na rua, já passara de uma da manhã e geralmente as

pessoas não ficam na rua depois desse horário.

Sinto uma queimação na coluna, e logo essa dor aumenta parecendo que todos

os meus ossos estão se abrindo.

- Ai, meu Deus!

Seguro firme em meus joelhos esperando a dor passar, mas só aumentava!

Respira fundo, Cristina. Você não pode perder o controle justo agora.

- Isso dói muito! – Falo, chorando.

T

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Eu queria alguém aqui para segurar minha mão, falar que vai ficar tudo bem e

que logo a dor irá passar. Porém, estou na completa solidão, sinto a escuridão me

preencher a cada dia e sinto que não irei achar minha luz novamente.

Meus pensamentos são interrompidos por uma pontada na barriga, tento manter

a respiração calma, mas é impossível!

- Socorro! Socorro! Ajuda aqui! – Grito quando vejo uma pessoa passar.

Congelo quando vejo um homem desconhecido, as lembranças voltam e começo

a me desesperar.

- Não toca em mim! – Digo quando o mesmo tenta se aproximar.

- Calma, moça, eu só quero ajudar. – Diz sincero.

Observo o moço à minha frente, sua pele negra brilha com muito suor. Seus

olhos são verdes e o cabelo cheio de trancinhas, por algum motivo ele me passava

confiança.

Eu não via maldade em seus olhos e sim um olhar sincero, que me olhava com

bastante curiosidade e compaixão.

- Está doendo tanto. - Choraminguei.

-Tudo bem, sou médico e vou te ajudar. – Assinto. – Meu nome é Felipe.

Solto um grito de dor, Felipe me olha preocupado e logo se abaixa ficando ao

meu lado.

- Eu preciso tirar. – Fala, apontando para o meu vestido.

Faço que não.

-Você pode estar entrando em trabalho de parto. – Seguro um grito, quando sinto

outra pontada. – Preciso te examinar.

Meu corpo treme, meu coração acelera e sinto tudo girar. Eu preciso confiar

nele, mas a questão é ficar praticamente nua na sua frente.

NA FRENTE DE UM HOMEM!

Se ele for igual a Henrique?

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Se ele me estuprar?

Se ele tentar me matar?

Deixo essas dúvidas de lado, a dor que estou sentindo faz com que eu queira que

isso acabe logo.

Com sua ajuda consigo tirar o vestido, ficando apenas de calcinha e sutiã. Ele

nem sequer olha para o meu corpo, apenas se levanta e vai pegar algo na cozinha.

-Você é diferente. – Digo baixo, sentindo minha boca seca.

Ele volta e sorri, tentando me passar confiança. Em suas mãos estão algumas

toalhas brancas, uma tesoura e água.

- Beba um pouco. – Ele me entrega um copo, bebo tudo rapidamente. – Coloca

isso na boca e morde se doer.

Ele me entrega um pano, olha para mim e aponta para minha calcinha pedindo

permissão. Concordo, morrendo de medo. O pânico aumenta, quando sinto suas mãos

tirando minha calcinha.

Ele não é o Henrique!

Confie nele Cristina, apenas confie!

- Não dá tempo de ir para o hospital, seu bebê está vindo. – Ele fala. Concordo

meio grogue.

Sinto a fraqueza e uma terrível vontade de fechar os olhos.

-Você está perdendo muito sangue, vamos logo com isso. Confia em mim?

Confirmo com os olhos fechados.

- Ei, abre os olhos. – Abro, mas estou enxergando quase tudo preto. – Você

precisa fazer força, muita força.

E então começamos, eu fazia tanta força como nunca tinha feito em toda minha

maldita vida. A dor não passava e nada da coisinha sair, isso já estava me agoniando.

- Eu não aguento mais – falo fraca.

- Está quase lá, só mais um pouco.

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- Me prometa uma coisa? – Ele para de olhar para minha parte de baixo e olha

para mim. – Se algo der errado, não se importe comigo, apenas salve a coisinha!

- Nada vai dar errado. – Sorri, mas seu sorriso não foi muito convincente.

- Salve meu bebê. Minha filha é a única coisa que eu tenho.

Pela primeira vez eu não chamo ela de “monstrinha”, e nem de “coisinha”. “Meu

bebê”, “minha filha”, é isso que ela é e só agora eu pude aceitar e falar isso em voz alta.

- Me prometa. – Digo entre dentes.

- Eu vou salvar vocês duas, agora faça mais força.

Faço força, me assusto com tanto sangue que ele limpa com as toalhas. Estou

perdendo tanto sangue, acho que vou morrer. Pouco me importo, contanto que meu

bebê fique vivo... já é um lucro.

- Eu não consigo – digo, chorando. – Eu queria minha irmã aqui para segurar

minha mão, eu estou sozinha – soluço.

Então sinto sua mão apertando a minha bem forte, ele olha em meus olhos e por

um segundo me perco naquela imensidão de verde.

- Você não está sozinha – aperta firme minha mão.

- Me ajuda Deus! Por favor, me ajuda! – Suplico.

- Estou vendo a cabeça! – Solto um suspiro de alívio. – Vamos! Mais um pouco.

Respiro fundo, empurro mais uma vez com toda a minha força, solto um grito

sentindo a dor.

Mas logo essa dor passa e escuto um choro, um chorinho tão fino que fez meu

coração parar por um segundo.

Vejo um corpinho pequenino nos braços de Felipe, e como um passe de mágica,

toda a dor que tinha dentro de mim passou e deu lugar para um sentimento que eu não

conhecia.

Sorrio em meio as lágrimas, Felipe coloca ela em meus braços.

Automaticamente ela para de chorar, seguro sua mãozinha e minha filha aperta com

força.

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Choro mais ainda com essa demonstração de amor. Ela reconhece que sou sua

mãe e já está acostumada comigo.

Ela está suja de sangue, mas mesmo assim é linda. A coisa mais linda que eu já

vi na vida! Como pode isso?

Quando eu descobri que estava grávida, pensei que toda vez que eu olhasse para

o seu rosto, iria ver como um fruto de estupro que acabou com a minha vida.

Mas, ao invés disso, ao olhar para o seu rosto, eu estou sentindo um amor que

nunca senti por ninguém.

Cubro ela com um pano que Felipe me dá, tiro meu peito para fora e coloco para

ela mamar.

Passo a mão em seu rosto, totalmente encantada com ela. Deposito um beijo em

sua testa e digo:

- Minha filha!

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CAPÍTULO XII

olto um suspiro de cansada, balanço Vitória de um lado para o outro e

nada dela parar de chorar.

Já se passaram quatro dias desde o seu nascimento, ainda estou

no hospital pois ela nasceu prematura. Mas os médicos não acharam necessário colocá-

la na incubadora, até por que faltavam poucos dias para completar nove meses.

Acredita que Felipe, não é médico? Ele é apenas um ajudante de pedreiro, que

mentiu para me passar confiança e confesso que ele conseguiu.

O mesmo quando sai do trabalho, vem direto para o hospital vê a gente.

- Calma, filha! – Digo, colocando-a no peito. Vitória para de chorar e fecha os

olhos. – Meus ouvidos agradecem.

Benjamin abre a porta com muitos presentes, logo atrás está Eduardo (médico

que me atendeu quando eu tive um quase aborto) com alguns ursos de pelúcia.

- Shiiii! - Faço sinal de silêncio.

Eles deixam os presentes na mesa e sentam na cama, observando Vitória dormir.

Encosto a cabeça no ombro de Eduardo, dou um suspiro de cansaço e sinto meus olhos

pesarem de sono.

- Ela é linda! – Benjamin fala baixo. – Tem cara de joelho, mas é bonita.

Bato no seu braço, ele solta uma risada que faz Vitória se mexer.

- Respeita minha filha, seu peito de peru mal assado.

Ele bagunça meu cabelo e eu mostro língua para o mesmo, coloco minha filha

no berço e sento novamente na cama.

- Você realmente não está chateado? – Pergunto para Eduardo.

- Eu sabia que você não teria coragem de dar sua filha para mim. Você estava

assustada e com raiva. Sabia que quando visse o rostinho desse anjinho, mudaria de

ideia. – Ele responde.

S

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- E funcionou. Eu senti um amor que nunca tinha sentindo por ninguém. – Digo,

prendendo meu cabelo.

- Isso se chama ser mãe. – Benjamin diz.

Dou um sorriso, e um bocejo logo em seguida. Cuidar de criança não é fácil e

quando você está sozinha ... só piora.

- Vamos embora Ben. – Eduardo fala se levantando. – Ela está cansada.

Assinto. Ben beija minha testa e vai olhar Vitória no berço.

- Você tem muita sorte de ter um anjo desse. – Ele fala sorrindo.

- Vitória foi minha luz em meio à escuridão, ela me salvou e realmente é meu

anjo da guarda.

- Eles crescem tão rápido. – Eduardo fala, limpando uma lágrima imaginária. –

Amadureceu em tão pouco tempo, meu bebê!

- Olha aqui você me respeita! – Jogo meu travesseiro nele.

Ele dá risada e sai do quarto, Benjamin manda um beijo e sai também. Deito na

cama quentinha e confortável. Depois de tanto tempo, tenho onde dormir!

Fecho os olhos, finalmente vou dormir!

Escuto o choro de bebê:

- Não acredito! – Reclamando me levanto, Vitória praticamente berra em meu

ouvido. – “A roda do ônibus roda, roda...”

Balanço-a bem suavemente, mas mesmo assim ela não para de berrar no meu

ouvido.

- Acontece o que depois? O ônibus bate e todo mundo morre? – Pergunto para

mim mesma, não fazia a mínima ideia do que cantar para acalmá-la.

Eu sou uma péssima mãe!

-Tá bom, filha. Seus pulmões funcionam! Eu já entendi, agora pode parar de

chorar.

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Depois de um tempo, estou chorando junto com ela por não saber fazê-la parar

de chorar.

-Cheguei! - Felipe diz entrando no quarto. Seu sorriso desmancha ao me ver

chorando.

- Ela não para de chorar. – Digo, chorando também.

- Me dá ela aqui, oxe! – Ele pega ela e eu deito na cama.

Estou tão exausta! Fecho os olhos por um tempo, abro eles assustada, quando

não escuto mais seu chorinho chato. Ela dormia tranquilamente no colo de Felipe, coisa

que eu não conseguia fazer.

- Judas. – Sussurro, limpando as lágrimas.

Ele coloca Vitória no berço e deita ao meu lado.

- Eu não sei o que fazer. – Digo baixinho, ainda chorando.

- Primeiro, você não pode chorar junto com ela. Precisa ser forte. – Assinto,

escutando tudo atentamente.

- Eu sou uma péssima mãe! – Digo e limpo as lágrimas. – Não consigo nem

fazê-la parar de chorar, imagina quando eu tiver que fazer outras coisas?

-Você não é uma péssima mãe, apenas está aprendendo. Tem quantos anos

mesmo?

- Dezesseis. – Falo com um pouco de vergonha.

- Uma criança ainda, tem muito do que aprender.

- E você, senhor adulto, tem quantos anos?

- Vinte e dois.

- Pensei que fosse quarenta e oito. – Ele rir, empurrando-me de leve.

- Você acha que eu consigo? Criar, dar uma boa educação e protegê-la?

Pergunto com medo, acho que não sou capaz de fazer isso. É muito difícil para

mim!

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-Eu tenho certeza que você consegue. Já passou por poucas e boas, não está viva

até agora? Então você consegue se virar, e será uma boa mãe.

- Espero. – Suspiro – eu pensei na sua proposta.

Felipe me chamou para morar com ele. De primeira eu fiquei louca, afinal mal

nos conhecemos! Mas eu não podia morar naquele quarto com Vitória, ali não dá nem

para mim, imagine para ela!

E ele também mora com sua mãe e seu filho de um ano, então eu não ficaria

sozinha com um homem.

- Eu vou morar com você, até eu arranjar um cantinho para mim.

Ele bate palmas fraquinho.

- Boa escolha, você não podia voltar para lá com uma recém-nascida.

- Eu sei. Falando nisso, Zangado está bem lá na sua casa?

- Davi adorou o cachorro, vive correndo atrás dele.

- Fofos.

- Vai dormir, criança, você está cansada.

Fecho os olhos, mas logo me lembro que Vitória pode acordar a qualquer

momento.

- Se ela acordar, eu olho – ele fala sentando-se na poltrona ao lado do berço.

- Fala para mim que eu não estou sonhando e que você realmente é real. – Digo

sorrindo.

- Se saia! Vai dormir logo. Amanhã vocês recebem alta.

Sem questionar, deixo o cansaço me vencer e acabo dormindo.

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CAPÍTULO XIII

eguro firme Vitória em meus braços, Felipe está com a bolsa dela e

juntos vamos para o carro. Ela ganhou muitos presentes, e tudo que eu

não pude comprar, ela ganhou em dobro.

Ela dormia tranquilamente no meu colo, quem vê pensa que é uma santa.

Quando está acordada não para de berrar no meu ouvido.

- “Pau que nasce torto nunca se endireita”... – Felipe canta, enquanto está

dirigindo.

- “Menina que requebra a mãe pega na cabeça”... – continuo a música.

Deito a cabeça no vidro e observo a paisagem, estamos passando pelo mar e é a

primeira vez que eu o vejo. Como isso tudo é lindo! Vontade que eu tenho é de entrar lá

e nunca mais sair.

- Você mora em frente à praia? – Pergunto, quando estaciona o carro em frente à

uma casa simples, mas muito bonita.

- Isso mesmo. Mainha vende acarajé aqui na Barra. – Ele diz e abre a porta para

mim.

Saio com bastante cuidado, logo sinto uma lambida no meu pé e sorrio animada.

- Meu amor! – Digo rindo. Ele não para de lamber e latir. – Mamãe também

estava com saudades!

Entrego Vitória para Felipe e me abaixo, deixando Zangado lamber meu rosto

enquanto eu acaricio seu rosto também. Ele começa a latir mais e eu faço sinal de

silêncio.

-Vitória está dormindo! – Reclamo com ele. Zangado para de latir e abaixa a

cabeça. – Vem aqui, bebê da mamãe.

Chamo, ele se alegra e pula em cima de mim.

- Ele realmente gosta de você. – Escuto uma voz de uma mulher, olho para ela

que tinha um menino nos braços.

S

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O garoto me olhava com curiosidade e ao mesmo tempo timidez, percebo que

ele é filho de Felipe. Seus olhos são verdes como o do pai, a pele dele é uma cor negra

tão bonita e seus cabelos tem mini cachinhos.

Já a mulher tinha olhos cor de mel, cabelo meio grisalho e sua pele também é

negra. Ela sorri de forma materna, sinto que também posso confiar nela.

- Ele também gostou dele. – Vou em sua direção. – Prazer, sou a Cristina.

Estendo minha mão para ela.

- Meu nome é Irene. – Ela aperta minha mão. – E esse aqui é o Davi.

O menino se encolhe mais no colo da vó, fico meio sem jeito.

- Oi. – Digo tímida.

- Oi. – Responde baixinho.

- Vamos entrar! – Felipe fala, eles entram primeiro e eu logo atrás, com Zangado

ao meu lado.

Observo atentamente a casa onde estamos. Ela é simples, mas muito

aconchegante. Tem a sala, cozinha, um banheiro e três quartos.

Entramos no terceiro quarto do corredor, ele tinha uma cama e um berço ao lado.

Um pequeno guarda roupa e também uma janela que tinha vista para o mar, acabo

ficando emocionada e tento segurar minhas lágrimas.

- Oh, minha querida. Isso tudo é tão simples, não precisa ficar emocionada.

Irene fala sorrindo, concordo com a cabeça, mas mesmo assim estou chorando.

- Para mim, isso aqui é luxo. – Digo e ela solta uma risada.

Felipe coloca Vitória no berço, fico observando-a dormir tão tranquilamente.

Uma pessoa inocente, em um mundo tão cruel.

- Vá tomar um banho, eu fico de olho nela. – Ela fala. Fico meio sem jeito, as

roupas que eu tinha não servem mais em mim. – Tem roupas para você no banheiro.

- Obrigada! – Dou meu melhor sorriso.

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Vou para o banheiro, tiro minha roupa e ligo o chuveiro. Enquanto passo sabão

pelo meu corpo, consigo ver de forma nítida todas as marcas que Henrique deixou.

Ainda me sinto suja, ainda sinto nojo de mim e tenho certeza que isso nunca vai

mudar.

Esfrego com força todo meu corpo, sentindo toda aquela sujeira em mim.

- Sai de mim, coisa ruim! – Falo, esfregando.

Sinto minha pele arder, mas continuo limpando, pois ainda me sinto suja. Não

choro, e muito menos me desespero como antigamente. Meu único sentimento,

enquanto faço isso, é puro ódio e rancor.

- Você me paga, Henrique! – Falo, termino meu banho e visto o vestido que

estava em cima do vaso.

Deixo meu cabelo solto mesmo. Vou para a frente do espelho e consigo ver as

feridas no meu corpo. Dou de ombros e saio do banheiro, sentindo o cheirinho de

comida.

Meu estômago ronca quase que automaticamente.

- Venha comer. – Felipe fala comigo, quando eu saio do banheiro.

Ele olha para os meus braços e não fala nada, melhor assim. Não estou

preparada para contar tudo que aconteceu comigo.

Sento na mesa e fico muito feliz ao ver um prato de comida. Dona Irene percebe

minha alegria e sorri.

- Pode colocar seu prato.

Coloco o feijão, arroz, salada e o bife. Felipe me entrega um copo de suco, como

tudo rapidamente com medo da Vitória acordar.

E foi dito e certo, quando tomo meu último gole de suco, escuto seu chorinho

fino. Peço licença e saio da mesa, abro a porta do quarto e pego Vitória do berço,

colocando-a na cama.

Enquanto ela mama, fico passando a mão no seu cabelinho.

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- Ela é linda! – Davi fala, com a bola na mão e todo suado.

-Você também é. – digo e ele solta um sorriso. Percebo que nem todos os seus

dentes nasceram ainda.

- Você é a mamãe dela? – Ele pergunta, sentando-se na cama.

- Sou sim.

- E o papai dela, cadê? – Fico nervosa com essa pergunta. Ele me encara,

esperando uma resposta e eu não faço a mínima ideia do que responder.

- Eu sou o papai dela. – Falo depois de um tempo.

Ele faz uma cara de confuso. Acho isso fofo. Quando ele está confuso sua testa

enruga, e seus lábios formam um biquinho fofinho.

- Você é muito novo para entender. – Passo a mão no seu rosto.

- Eu queria uma mamãe.

- Onde a sua está?

- Painho disse que ela foi morar lá no céu. – Ele aponta para a janela.

- Posso te contar um segredo? – Ele confirma animado. – Não vai contar para

ninguém? – Davi nega. – Jura de mindinho?

Selamos nossos dedos.

- A minha mamãe também está lá no céu. – Falo baixinho, só para ele ouvir.

Seus olhos brilham e ele abre um sorriso muito fofo.

- Será que elas estão juntas? – Ele pergunta animado.

Sinto meu nariz arder, ele não faz a mínima ideia que a mãe morreu e fica feliz

com a possibilidade dela estar junto com a minha. A inocência de uma criança é tão

bonita, queria que isso durasse para sempre.

- Eu acho que sim. – Falo e ele sorri mais.

- Isso é massa! Assim ela não fica sozinha lá!

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- Verdade. – Digo e tiro o peito de Vitória. Pego ela no colo e levanto-a,

colocando- a para arrotar.

- Será que um dia eu vou poder abraçar ela? – Ele pergunta, ficando em pé ao

meu lado.

- Eu não sei, meu amor. Talvez um dia.

- Eu queria muito isso.

É Davi, eu também queria abraçar mainha fortemente agora. Mas, infelizmente,

não podemos, e nunca vamos fazer isso.

- Eu também. – Digo em um sussurro.

Olho para a porta e vejo Felipe nos observando. Acabo ficando sem jeito e dou

de ombros quando Davi abraça minha perna.

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CAPÍTULO XIV

1998

- Volta aqui suas pestes! – Escuto dona Irene gritar com as crianças.

Continuo batendo a massa do acarajé e deixo a casa pegar fogo, vejo Davi

correndo com a mão toda suja e Vitória logo atrás.

Seguro a risada ao ver Vitória com a calcinha de Irene na cabeça, e outras roupas

completamente sujas na sua mão.

-Vocês vão limpar tudo isso! – Ela diz, correndo atrás dos meninos, que

apressam os passos deixando-a para trás.

Limpo o suor e continuo batendo a massa. Quando termino, deixo em um canto

e vou arrumar a barraca do outro lado da rua.

Passaram-se três anos e meio, posso dizer que a convivência com eles é muito

boa e somos praticamente uma família! Comecei a ajudar dona Irene na barraca do

acarajé e desde então as coisas só melhoram para nós.

Digamos que estou na minha maré da sorte, tenho até medo de quanto tempo

isso irá durar.

Eu e Felipe nos tornamos grandes amigos, um dia ele tentou me beijar e eu

deixei bem claro que não queria um relacionamento. Ele ficou sem graça, mas depois de

um tempo esquecemos o ocorrido.

Hoje em dia minha vida é Vitória, preciso cuidar dela vinte e quatro horas por

dia e isso não é nada fácil.

Um anjinho quando bebê e hoje em dia é uma atentada. Tento coloca-la na linha,

mas a mesma é muito sapeca.

- No dia que eu sair pelo mundo e largar vocês tudim aí, não quero ouvir

reclamações! – Paro de arrumar e vejo os dois voltando correndo para abraçá-la.

-Povo azuado. – Falo comigo mesma.

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Felipe chega na barraca todo suado, entrego água para ele que bebe como se

estivesse em um deserto.

- Estava onde? – Pergunto, colocando o acarajé para fritar.

- No baba e depois fui comer água com uns amigos aí. – Fala, limpando o suor

com a blusa.

- Amigos? Sei... – dou meu sorriso malicioso.

- Não presta atenção no que você está fazendo não, oh água de salsicha, vai ficar

tudo igual sua cara. – Ele joga a camisa suada em mim e jogo de volta para ele com

semblante de nojo.

- Então vai ficar maravilhosa, meu bem.

- Crendospai – diz, fazendo o sinal de cruz. Fico sem entender, mas logo vejo

Amanda se aproximar. – Vá de retro, Satanás!

Seguro a risada, Amanda vivia correndo atrás dele, mas ele não queria nada. Ela

não se toca e continua rondando, enquanto ele corre para longe dela igual diabo corre da

cruz.

- Boa noite! – Ela fala, sorrindo.

- Boa. – Digo, porém ela ignora minha presença e já começa a se jogar para

Felipe.

- Vamos sair qualquer dia desses. – Fala, passando a mão no seu braço, ele tira

ficando sem graça.

- Não posso. – Responde. Continuo fritando o acarajé, me fingindo de sonsa.

- E por que não?

Felipe olha para mim pedindo ajuda, apenas dou de ombros e ele me fuzila com

o olhar.

- Preciso cuidar do... Davi!

- Ele está bem grandinho, não acha não?

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- Olha você se saia e vai cortando essas liberdades que eu nunca te dei. Quem

decide se Davi é grandinho ou não sou eu.

- Calma rapaz, também não precisa ficar retado.

Ele revira os olhos, tiro os acarajés e coloco tudo numa tigela.

- Ó seu buzão aí, tchau!

Ela finalmente sai, quando vejo que Amanda está longe caio na gargalhada.

- É, neguin, ela se apaixonou. – Falo, ainda rindo.

- Para de se amostrar vá!

Dona Irene chega. Davi, quando vê o pai, corre para abraçá-lo e Vitória fica com

cara de tacho.

- Quero conversar com você. – Aponto para ela, que arregala os olhos, negando.

- Eu juro que não fui eu quem roubou as galinhas do vizinho. – Ela diz

desesperada. Fecho o semblante e me aproximo dela de braços cruzados.

- Eu já não falei que não pode ficar atentando os outros? – Pergunto e ela fica

calada. – Hein, sua gaiata? Pois agora a senhora está de castigo!

- Não, mainha, por favor! – Diz, chorando. Nem ligo, pois sei que é encenação.

- Engole o choro! Bora, Vitória! Para de chorar! – Ela vai parando aos poucos.

Faço sinal para ela passar na minha frente, ela passa correndo com medo de eu

bater na sua bunda. Balanço a cabeça e volto para a barraca, atendo dois clientes,

sentindo seu olhar em mim.

Dou uma olhada para trás, Vitória está sentada em um banco, observando uma

menina com o pai e a mãe. Ela abaixa a cabeça e continua balançando os pés.

Isso faz meu coração despedaçar, ela sempre quis um pai e vive pedindo um.

Porém, isso não é uma coisa que posso escolher da noite para o dia. E também não

consigo ter um relacionamento depois de tudo que eu passei, esse trauma irei levar para

o resto da minha vida.

Vou em sua direção, me abaixo ficando da sua altura.

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- Fui muito dura com você? – Ela continua de cabeça baixa. – Mas você precisa

entender que dona Irene nos acolheu lá, você não pode pegar as roupas dela e sujar. Isso

é errado! E muito feio.

- Desculpa, mamãe! – Diz baixinho.

- Não faça mais isso. – Digo e abro os braços, ela se joga em mim e abraça bem

forte.

- Olha lá. – Apontou para a família, fico quieta observando. – Onde painho está?

- Viajando por aí. – Foi a melhor coisa que eu pensei para falar.

- Ele vai voltar? – Pergunta com aqueles olhinhos fofos cheios de lágrimas.

- Eu não sei, meu amor. Mas eu não sirvo para você?

Ela dá de ombros.

- Vai lá brincar um pouco. – Digo e ela abre um sorriso. – Nada de roubar as

galinhas do vizinho, e nem de se jogar na lama...

Grito, mas ela já estava bem longe. Seguro as lágrimas, fico firme e tento

colocar um sorriso no rosto.

Não posso ficar mentindo para ela, e também não posso dizer a verdade.

- O que eu faço? – Suspiro e passo a mão no rosto.

- Você sabe que segurar as lágrimas não adianta nada, né? – Felipe fala surgindo

do nada.

- Eu não posso desabar na frente dela.

Ele me puxa para sentar na beira do mar, olho para trás e vejo Irene nos

observando. Ela faz sinal de joinha e devolvo com um sorriso.

- Me diga o que aconteceu, você vive assim no canto. Eu não sei como agir, o

que pensar! – Ele tenta tocar no meu rosto, mas eu me afasto.

- Eu tenho medo. – Sussurro. – Você vai ter nojo de mim.

- Nunca teria nojo de você, Cristina.

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- Então por que eu sinto? Ele fez aquilo comigo, Felipe, tirou tudo de mim e

ainda ria da minha cara. Às vezes, eu acordo no meio da noite tendo pesadelos, e

novamente eu me sinto suja, e não posso fazer nada para mudar isso.

- Eu posso te ajudar.

- Vai trazer minha adolescência de volta? – Pergunto e ele fica calado.

- Não se pode mudar o passado.

- Eu sei, mas ainda dói!

Paro de olhar para ele e olho para o mar, sinto aquela brisa bater em meu rosto.

- Que tal tentar esquecer?

- Não vou conseguir.

Ele se levanta e estende a mão.

- Podemos tentar! – Ele me puxa e coloca no seu ombro.

Começo a gritar enquanto ele gargalhava, vejo ele correr em direção ao mar.

- Deve estar gelada! – Grito.

- Só um banho de mar, para esquecer todas as coisas!

Dito isso, sinto a água gelada bater em meu corpo.

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CAPÍTULO XV

2005

bro os braços para receber os abraços dos meninos, mas sou ignorada

completamente por eles. Fecho o semblante e encaro os dois, que

fazem cara de paisagem.

- Fedendo a leite ainda, e estão se achando. – Cruzo os braços.

- Você sempre faz a gente passar vergonha. – Davi fala. Vejo que todos os

alunos estão saindo da escola e sorrio sapeca.

- Bebês de mainha! Senti tanta saudade de vocês! – Grito, abraçando os dois.

- Credo, mainha, que nojo! – Vitória limpa o beijo que eu dei na sua bochecha.

Parece que foi ontem que ela fazia um escândalo para entrar na escola, hoje em

dia tudo que eu faço, ela diz isso:

- Credo, mainha, que nojo! – Repito o que ela disse com uma voz fina.

- Está parecendo uma taquara rachada – ela diz séria.

- Me respeita, filhote de cobra! – Falo dando um tapa na sua cabeça.

- Está se xingando? Oxente! – Davi pergunta.

- E quem disse que ela é minha filha? – Vitória coloca a mão no peito ofendida.

- Sabia que eu não era sua filha, me devolva para Madonna – ela joga o cabelo

cacheado para o lado.

- Vou te devolver para o lixão, de onde eu não deveria ter te tirado.

Vitória me dá língua e fecha o semblante, olho para Davi que segurava o riso.

A

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- Se você der risada, eu te quebro. – Ela fala com ele. Davi rapidamente fica

sério.

Balanço a cabeça, esses dois ainda vão ficar juntos. Pego a mochila deles e

vamos andando até nossa casa. Eu consegui um emprego como empregada doméstica.

Queria sair da casa de Felipe, mas dona Irene negou, dizendo que somos uma família e

que não devemos ficar separados.

Felipe abriu um restaurante junto com sua mãe, esse sempre foi o sonho deles e

eu fiquei tão feliz com essa conquista!

Ano passado conseguimos fazer o aniversário de Davi e Vitória, que por uma

coincidência cai no mesmo dia. Nunca vou me esquecer o sorriso dela ao ver aquela

festa, tudo muito simples, mas de coração.

Hoje ela tem dez anos e Davi onze, os dois juntos são duas pestes que gostam de

testar o juízo de todo mundo. Teve um dia que eu peguei eles trocando Zangado por

duas coxinhas na feira, deu muita pena de ver meu cachorro com uma plaquinha:

"Vende-se cachorro por duas coxinhas, preço único!"

Aquele dia não só Vitória, mas Davi também apanhou e ficaram dois meses de

castigo. Acha que adiantou alguma coisa? Quando eles tiveram a tão sonhada liberdade,

pegaram os pintinhos do vizinho e venderam por cinco centavos.

Nunca tinha visto nosso vizinho bravo, e naquele dia foi a gota d'água. Irene

ficou brava também e quando o vizinho tentou bater nos meninos, ela pegou a vassoura

e saiu dando paulada no mesmo.

É só mais um dia normal da família brasileira...

Durante esse tempo, eu fico em casa e vou para o trabalho. Nunca saio para

nada. Não namoro e muito menos penso em me divertir. Minha vida é totalmente

dedicada à Vitória, eu amo ser mãe e não abro mão disso.

Abro o portão de casa, os meninos entram correndo e se esbarram na namorada

do Felipe. Não gostava dela e ela também não gostava de mim, então era cada uma no

seu canto.

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Passo por ela que tromba no meu ombro de propósito, respiro fundo e entro

dentro de casa. A Cristina barraqueira ficou em Floresta Azul, eu amadureci e não brigo

mais.

Coloco a mochila dos meninos no quarto e vou para cozinha, encontrando todo

mundo sentado na mesa.

- Acho que vou jogar água benta nessa casa – dona Irene fala, assim que eu sento

na mesa.

- Ué, por quê? – Perguntou Felipe.

- Tem demônio rondando essa casa.

Felipe fecha o semblante, eu e os meninos caímos na gargalhada. Ninguém

gostava da Juliana, namorada do Felipe.

- Bora vê se afasta essa coisa ruim daqui. – Vitória diz e dá risada.

- É melhor chamar o pastor de uma vez. – Davi fala.

- Para a gente, ela é legal – digo séria, Felipe me encara surpreso. – Mentira, não

é não. Pode continuar!

Felipe joga uma batata frita em mim, quando penso em jogar, Vitória já havia

feito por mim.

- Não joga nada na minha mãe! - Diz ela brava, Felipe levanta as mãos em sinal

de rendição.

Comemos enquanto Davi e Vitória conversavam animadamente sobre a escola,

nem presto atenção até ouvir a seguinte frase:

- Ela vive me chamando de macaco – Vitória fala chateada.

Paro de comer e presto atenção na conversa.

- Outro dia me chamou de cabelo de Bombril. Você acredita nisso?! – Ela bate

no ombro de Davi, que nega. – Eu vou pegar aquela coalhada azeda e esfregar a cara

dela no chão.

- Ei mini terrorista! – Felipe chama a atenção dela. – Nada de usar a violência,

isso não resolve nada.

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- Mas eu não fiz nada! Ela começou a me xingar! – Ela fala nervosa, Davi segura

sua mão e ela se acalma. – Eu não fiz nada, mainha.

- Eu sei, filha. Ela tem inveja de você. – Digo e bebo um pouco do suco.

- Ela disse que minha cor é feia. Por que eu não nasci branca?

Não faço a mínima ideia do que falar, olho para Irene pedindo ajuda através do

olhar.

- Sua cor é linda, seu cabelo é bonito e não deixe ninguém mudar isso em você.

– Irene fala enquanto Vitória presta atenção em suas palavras.

- Então, por que ninguém me aceita do jeito que eu sou? Eu odeio todas essas

pessoas!

- Não sinta ódio, isso é um sentimento tão ruim! Você deveria sentir pena.

- Pena? – Eu e Vitória perguntamos juntas.

- São pessoas infelizes, meninas. Que precisam diminuir os outros para se

sentirem melhor.

- São apenas crianças, não entendem nada disso. – Felipe se pronuncia, pela

primeira vez.

-Aí é que tá, a educação deveria começar desde já. Pode ser apenas uma

brincadeira, mas a partir que começa a ofender... os pais deveriam se preocupar com

isso, mas hoje em dia estão ocupados demais tentando subir na vida.

- Portanto, lição de hoje: Você é linda do jeito que é, ame seu cabelo, sua cor e

principalmente seu corpo. Não tente se encaixar no padrão imposto pela sociedade, você

é muito mais que isso.

Falo isso e saio da mesa. Doeu muito ver que minha filha foi vítima de racismo.

Meu Deus, apenas uma criança!

Dona Irene pega sua bolsa para sair, mas eu a puxo para o quarto e tranco a

porta.

- Você tem sempre lições maravilhosas e preciso de um conselho. – Falo e me

sento na cama. Ela senta na minha frente.

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- Pode falar.

- Você conseguiria perdoar uma pessoa que fez muito mal a você?

- Que tipo de maldade?

Fico em silêncio, sentindo a vergonha e o medo de falar.

- Não sou burra. Acho que eu sei o que aconteceu com você. – Olho para ela

assustada. – Foi realmente isso que aconteceu?

- Eu não posso falar. Ele vai matar a mim e a minha filha. – Digo, entrando em

pânico.

- Ele nunca vai saber, minha filha. Só confirme para sua velha aqui. Foi isso?

Assinto chorando, permito-me liberar tudo que eu carreguei durante esses anos,

tentando ser forte.

- É tão bom tirar isso de dentro de mim. – Digo, chorando. – Eu vivi em silêncio

por anos, com medo dele vir atrás de mim.

- Você está segura aqui. Vitória foi fruto desse abuso? – Confirmo, mordendo

meu lábio.

- Não conte para ninguém. Acho que nunca vou conseguir perdoá-lo por tudo

que me fez passar.

- Não faço a mínima ideia do que aconteceu, do que você passou para chegar até

aqui e tudo que você perdeu graças a ele. Mas o perdão, Cristina, é uma arma poderosa.

Não é só para outra pessoa se sentir bem, mas para curar você.

- Então, eu preciso perdoar?

- Se você quiser seguir em frente e esquecer tudo... precisa se curar e se libertar.

Então perdoe-o e acabe com isso. Você não precisa gostar dele e muito menos ser

amiga, mas perdoe, perdoe para poder seguir em frente e tirar esse peso de suas costas.

- Não é fácil. – Digo me lembrando da noite do meu estupro.

- Sei que não é. Ao longo do tempo você pode conseguir isso. – Ela sorri de

forma materna e me abraça. – Bom, vou encontrar umas irmãs da igreja.

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- Pastor – finjo uma tosse.

- Se feche, menina! – Ela bate no meu braço.

Dou um sorriso de lado e deito na cama. Tudo que eu preciso fazer é perdoá-lo...

Mas isso é praticamente impossível.

CAPÍTULO XVI

- Mainha, Davi deu seu primeiro beijo. – Vitória fala e fico surpresa, Felipe solta

uma risada.

- Esse é meu garoto. – Diz rindo, dou um tapa no seu braço e mando ele calar a

boca.

- Mas não fala para ele que eu disse.

Davi chega com o semblante fechado, olha para Vitória que estava com uma

cara de cínica.

- Você já contou? Fofoqueira! – Ele pergunta, ela balança a cabeça, negando.

- Contou o quê? – Felipe pergunta. Ele arregala os olhos e nega.

- Nada, painho!

Seguro a risada e continuamos assistindo TV. Vitória forçava Davi a brincar de

boneca e ele negava. Mas bastou ela olhar para ele com raiva, que o bichinho logo

aceitou brincar de boa.

Volto a prestar atenção na reportagem:

- A morte de João de Jesus, 8 anos, motivou os protestos de moradores do Bairro

da Paz na tarde desta quinta-feira (30). Segundo moradores, ele voltava da escola

quando foi baleado em frente à sua casa, na tarde de hoje. – Falou a jornalista na

televisão.

Coloco a mão na boca chocada. Felipe me olha estranho.

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- Moradores contaram que um grupo com cerca de 5 homens chegou ao local já

atirando. "Não houve troca de tiros", diz uma vizinha, que prefere não se identificar.

"Eles já chegaram atirando". A Polícia Militar suspeita que traficantes sejam

responsáveis pelos disparos, que teriam o efeito de intimidar a população. – Ela falava,

rapidamente. Olho para Davi, que brincava com uma boneca.

Senti um mal pressentimento e eu não gosto disso.

- Infelizmente, João não resistiu aos ferimentos.

Desligo a TV, totalmente chocada. Uma criança de apenas oito anos de idade foi

vítima de uma violência. Onde está o mundo tranquilo que vivíamos antigamente?

Felipe chama Davi para o quarto, me deixando sozinha com Vitória.

- Filha, vem aqui! – Ela senta do meu lado. Abraço Vitória fortemente, me

colocando no lugar daquela mãe que acabou de perder seu filho. Sem perceber começo

a chorar, e Vitória se afasta, limpando minhas lágrimas.

- Credo, mãe, chorando por quê?

- Coisas de adulto, filha. – Sorrio e coloco uma mecha do seu cabelo atrás da

orelha.

- Coisa estranha. – Ela deita no meu colo e fico fazendo carinho na sua cabeça.

Espero Vitória dormir e vou para o quarto, ajudar Felipe na difícil conversa que

ele deve ter com Davi. Ontem eu, Irene e Felipe sentamos e decidimos que é hora de

conversar com Davi sobre alguns assuntos difíceis.

Dois jovens já foram mortos, acidentalmente por policiais e os dois eram negros.

Um tinha quinze anos e voltava do trabalho, já o outro tinha esquecido a chave de casa e

pulou o muro da casa dele. E ele foi confundindo com um ladrão, recebendo uma chuva

de tiros.

Bato na porta e entro no quarto, vejo Davi sentado na cama e Felipe em pé

calado.

- Cheguei. – Digo e pego na mão do meu amigo, lhe passando confiança.

- Repita para sua tia o que eu acabei de te ensinar.

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Davi coloca as mãos na cabeça e fala calmamente:

- Meu nome é Davi Santos da Silva. Tenho onze anos e não tenho nada que os

machuque. – Fala olhando firme para nós dois.

- Muito bem! Sempre mostre suas mãos à polícia e diga o que vai fazer antes de

fazer. – Felipe diz e Davi presta atenção em tudo.

- Controle suas emoções, seja educado e respeitoso. – Passo a mão pelo seu

cabelo.

- Não responda e não faça movimentos rápidos demais. Lembre-se de que seu

único objetivo é chegar em casa bem.

- Se for detido, não assine nada até um de nós chegarmos até a delegacia.

Percebo o pânico em seu olhar, sorrio e me abaixo ficando um pouco menor que

ele.

- Se seus amigos brancos tiveram respondendo e sendo brincalhões, saiba que

você não pode fazer o mesmo. Você não pode pular o muro da sua casa e brincar com

armas de brinquedo e nunca pode correr deles.

- Nunca, nunca corra deles. – Digo segurando em seu queixo, olhando no fundo

daqueles olhos verdes. – Não importa o quanto você estiver com medo, nunca corra!

- Tudo que estamos dizendo, é porque queremos que você volte para casa bem.

Queremos que você cresça e seja tudo que quiser ser. – Felipe se abaixa também, e

segura a mão do filho.

- Você é incrível! Você é perfeito, está me ouvindo?

Ele assente ainda em pânico.

- E queremos que você continue sendo assim.

Olho para Felipe, que estava se segurando para não chorar. Dou um sinal para

Davi, que abraça o pai. Sorrio meio boba com essa cena.

Sinto os braços fortes de Felipe me puxando para esse abraço coletivo. Logo

sinto os braços de Vitória em meu pescoço, então ficamos assim, os quatros abraçados

ouvindo o choro de Felipe.

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- Eu te amo, filho. – Ele fala limpando as lágrimas.

- Eu também te amo. – Davi responde e os dois se abraçam novamente.

- Isso por acaso é uma despedida? – Vitória pergunta e faço que não.

- Apenas uma demonstração de carinho, sua chata. – Davi fala.

Ele se aproxima dela e diz algo em seu ouvido. Ela nega sorrindo e levanta.

- Está com você! – Vitória diz e sai correndo.

- Foi tu que falou sim, Vitória... – Davi diz indo atrás dela.

Abraço Felipe por alguns segundos e logo me afasto, sentindo um incômodo.

- Eu me senti como se estivesse preparando ele para a guerra. – Ele fala. Saímos

do quarto e vamos para a porta.

Vejo os dois brincando na chuva de pega-pega. Eles estão sorrindo, escuto o

grito de Vitória quando Davi joga ela na poça de lama. Solto uma risada e logo fico

séria, lembrando que a rua não está sendo um lugar seguro para eles brincarem.

- De certa forma, você está. – Digo, cruzando os braços.

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CAPÍTULO XVII

hego do trabalho cansada e me jogo no sofá, Felipe pega meu pé e

começa a fazer uma massagem.

- Onde estão os meninos? – Pergunto, quase dormindo.

- Brincando na rua – respondeu ainda fazendo a massagem.

- Eu não gosto disso – abro meus olhos e o encaro.

- Relaxe, a rua está tranquila – dito isso, escuto uma confusão do lado de fora.

A curiosidade bate e eu vou para janela ver o que está acontecendo, olho para

Davi que estava com a bola em baixo do braço e Vitória ao seu lado com a cara fechada,

encarando um grupinho de meninos.

- Para de ser chato, João! – Vitória fala.

- Não aguenta perder e quer levar a bola para casa! – Davi diz, percebo que João

fica irritado.

- Só porque está perdendo para uma menina. – Minha filha diz orgulhosa. Sorrio

lembrando de quando eu jogava bola com os meninos. – Não aguenta a pressão,

fraquinha?

C

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João vai para cima dela. Quando penso em ir lá, Davi coloca Vitória atrás dele e

empurra João que cai no chão.

- Na minha amiga ninguém toca! – Davi falou. Dou um sorriso de lado.

- É isso aí!

João levanta cheio de raiva e vai para cima dos meninos. Como Davi sabia lutar,

não fica atrás e também o enfrenta. Logo formou uma roda e começaram a gritar:

- BRIGA! BRIGA! BRIGA!

Pego meus chinelos para ir separar a briga, porém, Felipe segura meu braço.

- São crianças, se resolvem sozinhas. – Ele diz calmo.

- É o seu filho que está brigando – aponto para a briga. Vitória já tinha montado

uma mesa de apostas e estava cheia de dinheiro. – Essa menina não tem jeito.

- Davi precisa aprender a se defender sozinho, nem sempre eu vou poder estar lá

para resolver.

- Mas... – sou interrompida por Vitória.

- Façam suas apostas, pessoal! Quem vota no João? – Dois meninos levantam o

braço, entregando o dinheiro para ela. – E no Davi? – Quatro meninos levantam a mão.

Balanço a cabeça, quando vejo ela cheirar o dinheiro e sorri feliz da vida. Os

meninos finalmente separam e Vitória levanta a mão de Davi.

- É campeão! – Gritou ela e os meninos acompanharam.

- Olha quem está chegando. – Felipe fala. Vejo dona Irene chegando com cautela

por trás deles.

- Quem está brigando aqui? – Perguntou ela, fazendo todo mundo arregalar os

olhos.

- Ninguém, vó. – Davi fala, Irene se abaixa e pega um pedaço de madeira.

- Corre, merda, a veia achou madeira! – João gritou, e em questão de segundos

todo mundo já estava correndo.

- Eles não tomam jeito – digo e solto uma risada.

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- Daqui a pouco estão se falando de novo.

- Ai, vó! – Vitória grita, quando Irene bate nas costas dela. João volta e puxa ela

pela mão correndo para longe.

- Os dias passam, as pessoas mudam, mas dona Irene sempre vai ter essa

agilidade nas pernas. – Felipe fala, observando a mãe que corria atrás dos meninos.

Meu sorriso desmancha ao ver uns homens correndo com a arma na mão, e uma

viatura da Polícia entrar rasgando, fazendo todo mundo se assustar. Foi tão rápido, que

quando me assustei já era possível ouvir os barulhos dos tiros.

Meu coração se aperta e olho para Felipe, que sem pensar duas vezes corre na

direção que Vitória e Davi foram. Corro atrás dele e, quando nos aproximamos, vimos

uma muvuca e os gritos histéricos de Vitória.

Paro de andar com a cena que eu vejo. Meus olhos se enchem de lágrimas e fico

sem reação alguma.

- Não! Você prometeu! – Vitória gritava em cima de Davi, que estava no chão

cheio de sangue.

Olho para Felipe que saiu empurrando todo mundo e se jogou ao lado do filho.

- Chama algum carro! – Gritei desesperada.

- Você disse que a gente ia ficar juntos! Você prometeu, Davi! Não desista tão

fácil assim! – Vitória gritava e balançava o corpo de Davi, sujando-se de sangue.

Vou na sua direção e tiro ela de cima dele, Vitória abraça meu corpo e percebo

que ela está tremendo e chorando desesperadamente.

- Ele prometeu que nunca ia me deixar... – Ela fala soluçando. Tampo seu rosto

para ela não ver a poça de sangue que se formou ali.

- Shiii! Ele vai ficar bem – respondo, passando a mão no seu cabelo.

- Eu não fiz nada, painho – consigo ouvir a voz de Davi bem fraca, conversando

com Felipe que tentava estancar o sangue na sua barriga. - A polícia chegou atirando e

foi tudo muito rápido...

- Fica quieto, moleque! Você está perdendo muito sangue, falar é pior.

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Percebo o nervosismo de Felipe, olho para João e entrego Vitória para ele que

abraça forte o amigo. Tiro Felipe de cima de Davi, e coloco minha mão tentando

estancar o sangue.

Olho nos olhos verdes de Davi, estão cheios de lágrimas e é possível ver que ele

está sentindo muita dor.

- Eu não fiz nada, tia – ele sussurra baixinho.

- Eu sei, meu amor, eu sei... – Sussurro baixo e tento segurar as lágrimas. –

Ninguém achou um carro?!

Felipe finalmente sai do seu transe e corre gritando por ajuda.

- Você disse... – ele se contorce de dor – que as nossas mães estavam no céu.

Será que eu vou poder ver as duas?

Meu coração aperta e começo a chorar.

- Você não morre hoje, está me ouvindo? – Ele assente e sorri, um sorriso tão

puro e verdadeiro. - Hoje não é o dia da sua morte! Vai ficar tudo bem.

Ele começa a gritar de dor e segura minha mão.

- Cuide de painho, ele não vai suportar mais essa perda. Não permita que Vitória

deixe de ser quem ela é, e peça desculpas por eu não poder cumprir as promessas de

ficarmos juntos. Cuida da minha vó, ela também não vai suportar.

Concordo com a cabeça e beijo sua testa, deixando minhas lágrimas molharem

seu rosto.

- Eu amo todos vocês.

- Nós também te amamos – sussurro, coloco sua cabeça no meu colo e fico

fazendo carinho.

- Pode cantar para mim? – Seguro firme em sua mão e começo a cantar.

- Se essa rua, se essa rua fosse minha...

Canto baixinho sentindo os olhares curiosos do povo, uma mão estava na ferida

que não parava de sangrar e a outra fazia carinho no seu cabelo.

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- É porque, é porque te quero bem – digo e vejo que seus olhos estão abertos,

mas infelizmente ele não respirava mais.

Dou um beijo na sua testa e fecho seus olhos, seu rosto que há alguns segundos

estava com um semblante de dor, agora está com uma cara de paz.

- Consegui um carro! – Felipe disse e pegou seu filho no colo.

- Não adianta, ele já se foi! – Digo e seguro o braço dele. – Você não pode fazer

mais nada.

Sinto Vitória abraçar minha cintura, não faço carinho nela pois minhas mãos

estão sujas de sangue.

Sangue de uma pessoa inocente.

Sangue de uma criança.

Sangue de um ser humano de onze anos, que acabou de perder sua vida para

violência.

Sangue de um filho de um pai, que não tinha absolutamente nada a ver com a

situação e acabou pagando o preço.

Esse é o preço da paz? Vidas são tiradas como se não fosse nada, mulheres são

estupradas diariamente por aí, pessoas são assaltadas a todo momento e crianças são

mortas a preço de nada!

Onde está o sistema de segurança que devemos confiar? Onde está a segurança

do povo? Devemos todo dia sair de casa esperando o pior? Viver como animais

escondidos em suas casas, só para não correr o risco de acontecer nada com você...

- Não! - Felipe gritava, agarrado ao corpo do filho completamente morto.

- Felipe... – tento tocar nele, mas ele se afasta.

- Eu quero meu filho de volta! Eu quero ele de volta! – Gritava. Limpo as

lágrimas e acabo sujando meu rosto de sangue.

Eu não consigo ver isso, não consigo...

Puxo Vitória pelo braço e saio correndo para dentro de casa. Entro no banheiro

com ela e ligo o chuveiro limpando o sangue do seu corpo.

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- É minha culpa – fala, abraçando seu próprio corpo e chorando. – Eu me

assustei, saí correndo, ele foi atrás, porém a bala pegou nele.

- Você não tem culpa, meu amor...

- Não, mainha. A senhora não entende? A bala vinha na minha direção, mas ele

entrou na frente.

Sempre protetor... penso e dou um sorriso fraco, abraço-a sentindo a água me

molhar.

- Eu quero justiça – Vitória falou.

- E vamos conseguir, custe o que custar.

Beijo sua testa e permito chorar, agradecendo a Deus pela minha filha está viva e

pedindo para ele receber Davi no céu com os braços abertos.

Hoje, mais um anjinho foi para o céu...

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CAPÍTULO XVIII

oloco a sopa no prato e vou para o quarto de Felipe, encontrando o

mesmo deitado na cama com uma camisa de Davi.

Solto um suspiro e me aproximo, já se passaram três semanas

desde o acontecimento e ele não sai do quarto para nada e Vitória também não. Dona

Irene conseguiu sair ontem, mas mesmo assim não diz uma palavra.

- Você precisa comer – digo, coloco o prato na cama e sento na sua frente.

- Não quero! – Diz bravo, limpando uma lágrima que cai e abaixando a cabeça.

Pego a colher e faço um barulho de avião:

- Zummmm! O avião quer entrar na garagem – digo, tentando enfiar a colher na

boca dele.

- Não tem espaço – falou. Reviro os olhos e coloco o prato de sopa na mesa.

- Davi iria ficar muito triste de te ver assim – digo, colocando minha cabeça no

seu ombro.

- Tiraram a coisa mais preciosa da minha vida, como você quer que eu fique? –

Fico em silêncio e apenas seguro sua mão. – Ele era a única motivação para me levantar

de manhã...

Ele para de falar e deita no meu colo, fico sem reação com tanta aproximação,

mas deixo meu medo de lado e beijo sua testa.

- Você ainda tem uma motivação – falo, Felipe abre os olhos e me encara.

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- Que é?

- Justiça! Você pode denunciar tudo isso que aconteceu e ...

- Acha que realmente vai funcionar? Isso duraria anos, e esse processo seria

contra a polícia, eles são praticamente a lei.

- Mas isso não dá o direito de saírem atirando por aí. Três jovens já morreram,

Felipe, e até agora nada foi resolvido.

- Óbvio que não. Três jovens negros mortos e você acha que alguém iria se

importar? Só por Deus.

Continuo em silêncio, apenas acariciando seu cabelo e olhando para a cama de

Davi, que agora está vazia. Ele se foi e devemos aceitar isso.

Felipe me encara. Por mais que eu queira não consigo cortar esse contato visual.

Ele desce o olhar para meus lábios, fico sem jeito quando o mesmo senta na minha

frente e toca no meu rosto.

Felipe vai se aproximando, sem cortar o contato visual porém, como um passe

de mágica eu lembro de tudo.

Aquela boca nojenta me beijando, pronunciando palavras sujas e sempre dizendo

que eu iria morrer se não ficasse com ele. Aquelas mãos passeando pelo meu corpo

bruscamente, as agressões e os palavrões.

Sem pensar duas vezes dou um tapa na cara de Felipe, fazendo ele se afastar.

- Desculpe eu... agi no impulso – digo atordoada.

- Eu que peço desculpa – ele tenta pegar minha mão.

- Fica longe de mim! – Grito e saio correndo do seu quarto.

Novamente eu sinto a sujeira preencher meu corpo, esbarro na dona Irene, mas

não paro para pedir desculpas. Entro no banheiro e ligo o chuveiro, entrando em baixo

dele de roupa e tudo.

Sento no chão, pego a bucha e começo a esfregar fortemente meu corpo.

Você não será feliz.

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Ninguém vai te amar.

Se contar para alguém, eu te mato.

Por que está chorando? Não achou divertido?

Ninguém vai acreditar em você.

Você é minha.

- Sai da minha cabeça – puxo meu cabelo, ainda escutando a voz de Henrique. -

Sai da minha cabeça, por favor sai...

Começo a chorar, continuo puxando meu cabelo e batendo na minha própria

cabeça na tentativa de tirar aquela voz nojenta da minha cabeça. Logo sinto o chuveiro

ser desligado e sou envolvida em um abraço.

- Ele não sai da minha cabeça – sussurro baixinho.

- Um dia ele vai embora, tenha fé – escuto a voz mansa da dona Irene.

- Eu que deveria estar consolando você, pelo que aconteceu.

- Você não está bem no momento para consolar ninguém.

- Eu estou bem – minto.

-Não precisa se fingir de forte na minha frente – saio de seu abraço, encarando

seus olhos.

- Como você encontra a força? – Pergunto. Depois de tudo que ela passou, Irene

continua sendo a pessoa mais forte que eu já conheci.

- Nós somos mulheres, querida. A força nos encontra.

- Será que um dia ela vai me encontrar?

- Ela já encontrou a partir do momento em que você se tornou mãe. Você sempre

foi forte por sua filha e eu admiro isso em você.

- Eu não me considero uma pessoa forte – abaixo a cabeça envergonhada.

- Passar pelo que você passou e mesmo assim continuar de pé, não é para

qualquer um.

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Dou um sorriso de lado, ela era a primeira pessoa que dizia que eu era forte.

- Você é como se fosse minha mãe, mesmo não sendo de sangue – dou um beijo

na sua bochecha.

- Família é onde existe amor e não o mesmo sobrenome – ela diz e pisca para

mim. – Agora vamos, preciso cuidar dos seus machucados.

- Acho que Felipe ficou chateado.

- Você precisa entender que ele não é Henrique, pelo que eu vejo, meu filho

gosta muito de você.

- Não consigo ter um relacionamento, pelo menos, ainda não – dou de ombros.

- Tenho certeza que quando você estiver pronta, Felipe ficará muito feliz em ser

seu namorado.

- Até que ele é um pitelzinho – digo e escuto sua risada.

Fico de pé, sento no vaso e dona Irene começa a limpar as feridas no meu corpo.

Olho para o espelho, e dou um sorriso de lado sentindo orgulho de mim mesma.

Eu perdi minha mãe quando ainda era um bebê, fui estuprada pelo meu melhor

amigo, tive minha inocência roubada de mim da pior maneira possível, fiquei grávida e

fui expulsa de casa. Morei na rua por meses, completamente sozinha, tive minha filha e

criei-a com meu próprio suor. Estou tentando a cada dia ser feliz, por minha filha e por

mim mesma. Eu conheci a dor, e ela fez de mim mais forte.

Eu sou forte, não sou mais aquela menina besta que eu era a onze anos atrás. Eu

sou uma mulher independente de vinte e seis anos. Posso ter muitos traumas me

assombrando, porém, eu consegui fazer tudo aquilo que Henrique falou que eu não iria

conseguir.

Sou feliz.

Tenho pessoas que me amam.

Uma mulher independente.

Tenho uma família.

E isso, Henrique nunca vai conseguir tirar de mim.

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CAPÍTULO XIX

ias atuais:

- Oh mainha, eu te amo tanto – Vitória me acorda,

beijando minha bochecha.

- Não tenho dinheiro – digo ainda sonolenta.

- Está vendo? O mal é esse. Você tenta ser carinhosa e é isso que recebe em

troca – reviro os olhos com seu drama matinal.

Escuto a risada de Felipe, viro para o seu lado da cama e dou um tapa no seu

braço.

- O que você quer, Vitória? – Ele pergunta, ela abre um sorriso do tamanho do

mundo e começa a pular na cama.

- Vai quebrar, sua baleia – digo tacando o travesseiro nela.

- Não quebra com vocês nela, então por que vai quebrar comigo? Mas mudando

de assunto... Enzo vai vir jantar aqui hoje e vai trazer o pai dele.

- Finalmente né? Vocês estão namorando há dois anos e eu nem conheço o pai

desse menino – digo, saindo da cama, calço meu chinelo e prendo meu cabelo.

- Pois agora vocês vão conhecer! Você faz o jantar?

- Eu faço – Felipe fala – Vitória pula em cima dele animada.

- Obrigada, painho! É hoje que eu laço de vez meu boy!

D

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Solto uma risada e Vitória sai do quarto cantando alguma música estranha. Sinto

Felipe beijar meu pescoço, dou um sorriso de lado e abraço meu namorado.

Isso mesmo, Brasil, depois de muito tempo eu finalmente consegui tirar o medo

de mim e assumir um relacionamento sério com Felipe.

Estamos namorando há quase três anos e, desde então, Vitória chama-o de pai.

No começo achei desnecessário, mas depois acabei me acostumando com a ideia.

O restaurante cresceu e muito, digamos que agora temos bastante dinheiro e

conseguimos pagar um bom advogado para o caso de Davi. Que foi levado para o

Ministério Público. Só estamos esperando uma resposta e, com fé em Deus, vamos

conseguir a justiça que buscamos durante esses treze anos.

Vitória passou anos em depressão, mas logo conheceu Enzo e viraram amigos.

Ele ajudou-a a sair da depressão profunda e sou muito grata por isso. Quando eles

começaram a sair, meu maior medo era que acontecesse com ela o que aconteceu

comigo.

Então, enquanto ela estava curtindo por aí, eu orava por sua proteção e Felipe

sempre ficava ao meu lado. Aí que eu comecei a gostar dele, e então rolou nosso

primeiro beijo. Foi muito estranho, pois em toda a minha vida eu só tinha beijado Alan

e Henrique (este contra a minha vontade).

Falando neles, como eles estão? Eu tenho essa curiosidade de voltar para o meu

interior, mas o medo de reencontrar todas aquelas pessoas é maior.

Dona Irene se tornou uma grande mulher, ela fez um grupo de apoio para

mulheres que sofreram e sofrem alguma violência. De vez em quando eu vou lá dá uma

ajuda, mas ainda tenho medo de dizer tudo que eu passei.

Até hoje, só Irene e Felipe sabem de tudo e eu pedi silêncio total. Mesmo Felipe

falando que eu deveria denunciar, eu não estava pronta e também não valia a pena, já

faz tanto tempo.... Melhor deixar quieto.

- Você é linda – Felipe diz, beijo seus lábios e sorrio entre o beijo.

- Bom dia! - Falo.

- Para quem está na casa dos quarenta, você está bem, hein.

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Dou um tapa na sua cabeça.

- Judas! Para de ficar espalhando minha idade por aí.

- Ué, todo mundo sabe que você está velha – jogo meu creme de cabelo nele. –

Ai!

- Velha é a sua mãe!

- Ela também!

Reviro os olhos e vou tomar meu banho, coloco um vestido e deixo meu cabelo

solto mesmo. Desço para tomar café e vejo Vitória conversando animadamente no

celular, ela nem sequer nota minha presença.

- Essa geração robótica de hoje – digo, chamando sua atenção, ela dá de ombros.

- Na minha época, não tinha isso.

- Há dez mil anos atrás - sussurrou, mas eu escutei.

- Olha aqui, você me respeita! – digo jogando um pedaço de pão nela.

Felipe senta na mesa, com a típica cara de "odeio acordar cedo".

- Vou arrumar a casa – Vitória fala se levantando.

Tomamos o café da manhã em silêncio. Logo começa a tocar uma música nas

alturas. Tampo os ouvidos e bufo, indo para sala e ligando a televisão.

- Abaixa isso! – Grito, mas acho que ela não escutou.

Felipe senta do meu lado e coloca no canal, onde passava o seriado

Supernatural.

- Olha, amor, a série que vai me ajudar a tirar o demônio do seu corpo – ele fala

rindo. Fecho a cara e continuo olhando para a TV que já tinha perdido o volume.

- Eu vou matar essa menina – digo impaciente.

- Sua filha – diz e levanta a mão, percebo que tocava Luan Santana.

Vitória era louca por ele e todas as manhãs ela escutava as músicas dele.

- Ah, qual é? O cara nem está olhando para a gente direito – falo e Felipe ri. –

ABAIXA ISSO OU EU VOU FAZER VOCÊ ENGOLIR ESSE SOM!

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Para fazer pirraça, ela aumenta mais. Bufo e vou em sua direção. Vitória

dançava igual a uma minhoca louca, varrendo a casa e gritando (ela acha que canta

bem). Pego um balde cheio de água e jogo nela, fazendo a mesma parar de dançar.

- Pronto, acabou o fogo – abaixo o som e sento no sofá, enquanto Felipe me

olhava incrédulo.

- QUE SACO! – gritou ela.

- Grita comigo de novo, para você ver se eu não faço você engolir essa vassoura!

– Falo impaciente.

Continuo assistindo minha série, até que dá a hora de ir para o restaurante.

-Vou ficar aqui e adiantar o jantar, ok?

- Tudo bem – respondo e dou um beijo nele.

Subo para o meu quarto e troco de roupa, colocando uma calça jeans e uma

blusa soltinha. Abro a gaveta onde eu guardava algumas coisas, reviro tudo até achar o

cordão em forma de anel que Alan me deu.

Seguro aquela pequena demonstração de amor, e não consigo parar de pensar,

será que ele está bem? Será que ele conseguiu subir na vida? Será que ele está casado?

Pensar nisso faz meu coração acelerar, mesmo depois de vinte e quatro anos eu

ainda amo aquele menino.

Nosso amor era tão lindo e verdadeiro, mas infelizmente foi impedido por uma

briga idiota de nossas famílias.

Guardo o anel de cordão novamente e desço, bagunço o cabelo de Vitória e beijo

Felipe. Entro no restaurante e vejo dona Irene conversando com os funcionários.

- Bom dia! – digo e todos respondem.

- Vitória passou aqui toda azuada, dizendo que o pai do Enzo iria vir jantar aqui

– ela fala, confirmo com a cabeça e começo a arrumar as mesas.

- Pois foi minha filha, a bichinha está toda feliz.

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- Bom, não vou poder ir nesse jantar, tenho um encontro.

- Finalmente decidiu assumir seu relacionamento com o pastor? – Sinto um tapa

em minhas costas e solto um grito.

- Você me respeita! – Solto uma risada.

O expediente começa e novamente muitas pessoas vêm almoçar. Chega o final

do dia e estou exausta. Minha vontade é de cair na cama e dormir por dias!

Subo as escadas, praticamente me arrastando, mas qualquer sombra de cansaço

vai embora quando vejo Vitória sorrindo para mim e vindo me abraçar.

- Eles estão chegando! – diz animada. – Vai tomar logo seu banho!

Subo para o quarto e tomo um banho correndo, coloco um vestido amarelo, que

realça a minha cor, e deixo meu cabelo solto. Passo um perfume e coloco meu chinelo,

ouço as vozes lá em baixo e resolvo descer.

Desço com um sorriso no rosto, que logo vai embora quando eu vejo quem está

lá em baixo ao lado de Enzo.

Fico em choque e quase caio da escada, prendo a minha respiração por um

segundo e todas as lembranças voltam como um filme na minha cabeça.

- Você? – Perguntamos juntos.

- Já se conhecem? – Perguntou Felipe. Ele vem na minha direção e pega minha

mão.

Aproveito para me apoiar, pois não sinto minhas pernas.

- Alan... – sussurro baixo.

Depois de anos, estou encarando novamente aqueles olhos. Reparo que Vitória

tinha uma expressão de confusa, assim como Enzo e Felipe.

Alan abre os braços e sem pensar duas vezes corro para abraçá-lo.

- Todo mundo pensou que você tinha morrido! – Ele diz com a voz rouca

enquanto aperto-o mais contra meu peito.

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- Eu disse para você que não precisava de muito para sobreviver e nem da ajuda

de ninguém – digo e me separo do seu abraço, quando escuto uma tosse forçada de

Felipe.

Fico meio sem graça e vou para o seu lado.

- Nós éramos... – tento explicar.

- Grandes amigos na adolescência – Alan completa para mim.

Sentamos na mesa e começamos a comer.

- Como está minha irmã? Painho? Paula? Conta tudo! – Digo animada.

- Vamos com calma, Luiza nunca parou de procurar por você. Depois de anos,

ela desistiu e todo mundo pensou que você estava morta.

- Eu preciso falar com ela – ele assente.

- Luiza tem dois filhos, Guilherme e Lucas.

Abro um sorriso. Ela conseguiu formar uma família e ser feliz. Era tudo que eu

queria para ela!

- Seu pai se arrependeu muito, e todos dias ia para o bar beber até desmaiar.

- Eu imaginei isso – digo e dou de ombros. – Ele ainda está vivo?

- Apenas virou mais um velho rabugento na região – solto uma risada.

- Paula se casou! – Abro um sorriso. – E adivinha com quem foi?

- Quem?

- Henrique – qualquer sombra de sorriso que tinha no meu rosto se desfez. Felipe

olha para mim preocupado e aperta minha mão.

- Tudo bem, mainha? A senhora ficou pálida. – Vitória pergunta, apenas balanço

a cabeça dizendo que sim.

- Eu posso ligar para eles, tenho certeza que amanhã mesmo todos estarão aqui!

– Alan fala animado.

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Chegou a hora, eu não posso fugir do meu destino. Da minha história. Eu teria

que enfrentar meu pior pesadelo, mas dessa vez eu não estou sozinha, agora eu tenho

uma família e principalmente sou forte e irei enfrentá-lo.

Olho para Felipe, ele sorri me passando confiança.

- Ligue para eles o mais rápido possível – digo e dou um suspiro.

Não adianta ir contra o destino, de novo a vida está unindo todos nós.

CAPÍTULO XX

ansiedade percorre meu corpo, começo a roer minhas unhas de

tão nervosa que eu estou. Vejo o carro luxuoso de Alan chegar,

e logo atrás o carro de Enzo.

Não aguento esperar e corro na direção deles, as primeiras a saírem é Paula

e Luiza. Pulo nelas, abraçando as duas bem forte.

- Eu pensei que você tinha morrido – Luiza diz chorando, abraço ela tão

forte que fico sem respirar.

- Te garanto que eu sei me cuidar muito bem sozinha – dou um sorriso.

Logo solto um grito quando abraço Paula, acabamos perdendo o equilíbrio

e caímos no chão.

- Que doença meu Deus! – Escuto a voz de Vitória.

- Olha o respeito, coisa ruim – escuto a voz de Felipe repreendendo-a.

Levanto do chão e vejo painho, me olhando com os olhos cheios de

lágrimas. Reparo que ele está usando muletas e bem mais velho do que já era. Abre os

braços e corro para abraçá-lo.

A

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- Minha filha! – Sinto suas lágrimas molharem meu ombro. – Me perdoe

por favor, me perdoe...

- Tudo bem, painho – digo, chorando também. - Já passou.

- Eu me arrependi tanto... – coloco meu dedo no seu lábio, fazendo ele

calar a boca. – Como você cresceu!

Abraço ele novamente e logo sinto Paula e Luiza nos abraçarem também.

- Quanto abraço, Jesus! - Falo rindo, mas logo meu sorriso some quando

vejo Henrique com a maior cara de cínico.

Felipe tenta ir para cima dele, mas eu seguro seu braço e dou um sorriso

para disfarçar. Ignoro completamente o sorriso nojento daquele babaca e chamo Vitória

para ficar do meu lado.

- Lembrou que eu existo - ela fala, dou língua para a mesma.

- Bom, gente! Essa aqui é a minha filha, Vitória – digo toda orgulhosa.

Percebo Henrique analisando-a e dando um sorriso de lado. – Esse é meu namorado,

Felipe e essa aqui é Irene, a mãe dele.

Luiza chama Gabriel e mais dois meninos.

- Esses são meus filhos! – Fala toda orgulhosa também.

Percebo que Paula fica sem graça, aparentemente ela não teve filhos.

Depois que todo mundo se cumprimentou, Felipe leva-os para dentro da nossa casa.

Seguro o braço de Henrique, impedindo-o de entrar e sentindo o medo percorrer meu

corpo.

Eu preciso ser forte!

- Já com saudades, amor? – Perguntou sorrindo, dou um soco na sua cara e

logo sinto uma dor no pulso.

Mas valeu a pena.

- Eu vi como você olhou para minha filha – digo, ignorando seu olhar de

raiva.

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- Nossa filha – dou um chute em sua barriga, ele cai no chão e me olha

assustado.

Valeu a pena os anos de luta que eu fiz.

- Minha, filha – digo e me abaixo ficando da sua altura. – Só vou te dar um

aviso: fique longe dela! Eu não sou a mesma de antes e te digo mais, mexeu com ela,

mexeu comigo. Você não vai querer me ver brava.

- Eu posso fazer o que eu quiser – disse e eu dou outro soco na sua cara,

fazendo-o gemer de dor.

Isso não é nem metade da dor que ele me fez passar.

- Encosta na minha filha para você ver. Recado está dado! - Dou mais um

chute no traste.

Ele geme de dor e me olha com raiva.

- Isso não é nem metade do que eu passei. – Chuto suas partes íntimas. –

Isso que você chama de dor, eu chamo de frescura.

Dou mais um soco, me sentindo satisfeita.

- Passar bem, meu amor – falo e subo as escadas, deixando Henrique

jogado no chão.

Isso foi muito satisfatório! Porém, não é nem metade das coisas que eu

quero fazer com ele. Mas infelizmente, não posso ficar usando a violência sempre, até

por que não resolve nada.

Olho para sala e dou um sorriso satisfeita, minha família toda reunida.

- Oh, mainha, aquela mulher não para de me abraçar – Vitória diz com

medo.

- Ela é sua tia, mais respeito.

- O que aconteceu? – Paula pergunta, olho para trás e vejo Henrique todo

machucado.

- Fui assaltado – respondeu sentando-se no sofá.

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- Bem-vindo à cidade grande – Felipe diz irônico, enquanto seguro o riso

assim como ele.

- Podemos conversar? – Alan pergunta, confirmo e chamo-o para o meu

quarto.

- Diga – falo, fechando a porta.

- Você está realmente namorando aquele cara? – Perguntou indignado.

- Você mandou eu seguir minha vida, e foi isso que eu fiz – dou de ombros.

- Seu pai me ameaçou Cristina, ele disse que iria cortar sua herança, caso

você continuasse comigo. Por isso eu terminei com você.

Fecho os olhos. Não acredito que vamos passar novamente por essa

discussão.

- Você sempre soube que eu não ligava para riqueza – balanço a cabeça.

- Eu era um Zé ninguém e não podia dar a você uma vida digna!

- Se você soubesse como foi minha vida digna...

- Eu errei, está legal? E poxa, nega... eu te quero de volta! – Ele se

aproxima, mas eu me afasto.

- Eu tenho namorado, seu doido! - Digo incrédula.

- Eu sei, mas estou dizendo que você poderia ter um marido.

Prendo a respiração por um momento, eu não acredito que ouvi isso. Não

acredito!

- Você acha mesmo que pode chegar aqui e já querer voltar comigo? Não

somos mais adolescentes!

- Eu sei... – ele passa a mão no cabelo, sinal de que está nervoso. – Eu

cresci na vida e consegui conquistar tudo que eu queria. Agora sim, nós podemos ficar

juntos.

Solto uma risada sem ânimo algum.

- Seu mal é esse, achar que tudo se refere ao dinheiro.

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- E não é? – Perguntou como se fosse óbvio.

- O amor, Alan, ele sim vale mais que o dinheiro.

- Ninguém me amou quando eu era um Zé ninguém – diz e abaixa a

cabeça.

Mordo meu lábio, não acreditando no que eu iria falar:

- Eu te amei – digo e ele levanta a cabeça, me encarando. – Mas acho que

isso não foi o suficiente.

- Eu era apenas uma criança, não sabia das consequências dos meus atos.

Se eu pudesse voltar no tempo...

- Pois é, infelizmente você não pode, vai lá e cresça mais na vida. Não era

isso que você sempre quis?

- Eu vou mesmo! – Dou de ombros e seguro as lágrimas que por algum

motivo, resolveram aparecer.

- Só não venha me procurar quando estiver vazio por dentro – digo fria, ele

para de andar e me encara.

Ficamos assim por um bom tempo, um encarando o outro. Até que resolvo

quebrar o silêncio, com uma pergunta que estava me matando de curiosidade:

- Onde está a mãe do Enzo? Nunca o ouvi falando dela.

- Ele não é meu filho biológico. Encontrei-o abandonado naquele matagal

que a gente se encontrava.

- Uol! – Digo surpresa.

- O amor sempre será um vínculo mais forte que o sangue, lembre-se disso.

Então ele abre a porta, fazendo Paula, Luiza e Vitória caírem. Balanço a

cabeça em forma de negação, as três ouvindo a conversa dos outros atrás da porta.

- Eu estava testando se tinha poderes para passar através da porta – Vitória

diz e sorri, mas percebe o clima tenso.

- Ops! – Paula fala sem graça.

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Alan sorri de lado e sai do quarto.

- Menina, me conta tudo... – Luiza diz e senta na cama.

- Tudo começou quando eu cheguei aqui e não achei nenhum lugar para

ficar...

Conto para elas tudo que aconteceu comigo nesses anos, obviamente

cortando a parte que Henrique apareceu e me bateu até perder a consciência.

Durante toda a conversa, eu não conseguia parar de pensar no seguinte: eu

estava certa que ficaria com Felipe pelo resto da minha vida, e agora surge Alan de

Nárnia para atrapalhar tudo.

E agora, meu Deus? Eu sigo o meu coração ou a minha cabeça?

Meu coração clama pelo Alan, já minha cabeça diz que foi Felipe que ficou

do meu lado todos esses anos e é por isso que devo permanecer com ele.

Eu estou completamente perdida!

CAPÍTULO XXI

uxo Paula e Luiza para sentarem ao meu lado. Passaram-se

praticamente uma semana desde que todos chegaram e eu estou

matando as saudades.

Porém, tenho percebido como Paula fica quieta no seu canto. Henrique

manda e ela obedece, quando vai sair, pede permissão para ele e quando ele levanta a

mão para pegar algo ou gesticular, a mesma se encolhe toda.

Resolvi trazê-la no grupo de apoio para mulheres que sofreram e sofrem

alguma violência, e para dar uma ajuda trouxe Luiza.

- Ainda não entendi por que estamos aqui – Paula fala, reviro os olhos e

aponto para as outras mulheres presentes na sala.

P

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- É um grupo de apoio – digo, ela me encara e logo desvia o olhar.

- E quem precisa de ajuda? – Perguntou.

Cutuco Luiza:

- Aqui podemos desabafar – respondeu minha irmã. – Sendo que nada vai

sair daqui.

Dona Irene entra na sala e sorri cumprimentando todas ali. Faço um joinha

para ela, que devolve com um balançar da cabeça.

Ela se senta, respira fundo e começa a falar.

- Boa noite! - Falou e todas respondemos. – Temos convidadas novas!

- Prazer, Luiza.

- Paula.

- Bom, quero deixar bem claro que ninguém é obrigada a falar. Esse grupo

foi criado, justamente para mulheres que sofreram alguma violência e carregam

traumas. Desabafar é a melhor coisa que você pode fazer, deixe o medo de lado e

comece a dizer tudo que você passou – Irene diz, olho para Paula que mantinha a cabeça

baixa.

- Lembrando que violência contra mulher é crime – falou uma moça que eu

não conheço. – Precisamos denunciar.

- E deixar de lado esse ditado de “briga de marido e mulher, ninguém mete

a colher” – outra moça se pronuncia. – Mete a colher sim! Me meto no meio da briga e

ainda chamo a polícia.

- Nós viemos de uma longa geração, onde as mulheres eram submissas ao

homem. Vários movimentos foram criados, nós mulheres conseguimos conquistar nosso

lugar no mundo.

- Mas infelizmente ainda existe muito machismo – digo.

- E é por isso mesmo, que estamos na época do empoderamento feminino.

- E lutamos a cada dia por um mundo mais justo e a igualdade de gênero.

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- Passando para lembrar os tipos de violência contra mulher: é todo ato que

resulte em morte ou lesão física, sexual – me mexo na cadeira incomodada. –

Psicológica e verbal.

- Qualquer tipo de agressão deve ser denunciado, não se cale por medo do

que o seu agressor possa fazer. Você tem uma voz dentro de si. Não deixe o medo calar

você. Você tem uma voz, use-a e grite para todos o que você passou. Façam com que

todos escutem você. Encontre a sua voz e, quando encontrá-la, preencha o maldito

silêncio.

Aquelas palavras não só me afetaram, mas alcançaram também a Paula e

mais uma mulher. Sem perceber, estou chorando e minha amiga também.

Eu preciso encontrar minha voz, eu preciso perder o medo de falar para as

pessoas o que passei e preencher esse maldito silêncio.

Sinto a mão de Luiza segurar a minha. Quando Dona Irene pergunta quem

quer contar uma experiência eu levanto minha mão.

- A palavra está com você, minha filha.

Respiro fundo. Ele não tem mais poder sobre você, Cristina. Você é uma

mulher livre e independente, não deixe o medo calar você.

Você precisa ser forte...

- Quando eu tinha dezesseis anos, – começo a falar, recebendo os olhares

de todos – meu namorado tinha acabado de terminar comigo, eu fiquei arrasada e não

percebi que alguém estava ali me observando. Quando ele me deixou sozinha, levantei

para ir para casa, mas fui puxada para um matagal e fui estuprada.

Seguro as lágrimas, Luiza e Paula me olham assustada.

- Eu só não sabia que através desse abuso ficaria grávida! Fui expulsa de

casa pelo meu próprio pai, peguei um pouco de dinheiro que eu tinha e fugi para

Salvador. Tudo que eu queria era que meu bebê morresse, afinal ele era culpado de tudo

que me aconteceu. Morei na rua um bom tempo, e tive minha filha no meio do

restaurante onde eu trabalhava...

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Conto toda minha história para elas, em nenhum momento consegui olhar

para minha irmã e minha amiga. Eu não sabia se elas iam me julgar ou ter nojo de mim.

- As lembranças daquela noite me perseguiram por anos. Ele dizia que eu

nunca seria feliz e que eu era dele – dou um sorriso de deboche. – Eu fui dele durante

anos, mas quando eu finalmente me libertei das algemas que ele colocou em mim, eu fui

feliz. Feliz de verdade. E hoje em dia, a coisa que me fez chorar tanto no passado hoje é

o motivo dos meus sorrisos.

- Está falando da sua filha?

- Isso mesmo – abro um sorriso. – Vitória foi a melhor coisa que aconteceu

na minha vida.

Todas aplaudem. Quando dona Irene pergunta quem quer falar, me

surpreendo com Paula levantando a mão e secando algumas lágrimas.

- A palavra está com você, minha filha.

- Tudo começou quando ele ... – ela limpa a garganta e respira fundo. –

Começou a reclamar do tamanho do meu vestido. No começo, eu achei fofo seu ciúme.

Logo depois ele começou a gritar comigo, eu achava que era normal, afinal ele estava

nervoso. Aconteceu tudo tão devagar, eu comecei a parar de falar com meus amigos e

um tempo depois parei de falar com a minha família também.

Ela para de falar e abaixa a cabeça, seguro na sua mão lhe passando

confiança.

- Meu ciclo foi se fechando, se fechando até que só me restou ele. Meu

marido sempre dizia que eu estava errada e, por Deus, eu passei a acreditar nisso. Ele

dizia que eu estava louca e eu sempre acreditava! Ele me conhece tão bem, pega a

insegurança, cria um bom argumento e muda tudo! E é sempre minha culpa, minha

culpa, eu sou sempre a culpada!

Ela balança negativamente, uma mulher entrega um copo d'água para ela

que bebe tudo rapidamente.

- Quando ele começou a me bater não foi nenhuma surpresa, novamente ele

disse que era minha culpa. E eu realmente acreditei nele, por Deus! Como eu pude me

apaixonar por esse homem?

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- Porque ele era bom para você no começo – dona Irene responde. – Paula,

não somos idiotas, não nos apaixonamos por quem nos bate. Nos apaixonamos pelo

homem que te faz se sentir bem, que te trata como única e te faz sorrir. O bom

compensa o mau, até parar de compensar.

- Ele dizia que ia mudar, sempre me fez acreditar que mudaria, por isso eu

nunca fui embora. Mas eu já estou cansada disso, cansei das suas agressões, cansei das

suas palavras que me colocam para baixo. Eu cansei!

- Você vai denunciar? – Perguntei, ela me olha e nega.

- Sou incapaz de fazer isso, apenas quero a separação.

- Denunciar é um passo importante – digo, sentindo a raiva me consumir,

Henrique me fez sofrer e não satisfeito fez a mesma coisa com a minha amiga. – Se

você denunciar, eu denuncio.

- Eu ainda não estou pronta – concordo com a cabeça e deixo esse assunto

de lado.

- Não abaixe a cabeça, querida – dona Irene fala, quando Paula abaixou a

cabeça envergonhada. – Você lutou, foi forte e conseguiu colocar tudo para fora. Não se

sinta com vergonha de tudo que você passou, isso que aconteceu contigo, só a faz mais

forte e mostra o quanto você é guerreira.

Abraço Paula, que começa a chorar, logo sinto os braços de Luiza abraçar

nós duas.

- Não devemos ter vergonha de quem nós somos, temos que manter a

cabeça erguida e dizer: eu venci!

- Eu venci! – Digo sorrindo.

- Eu venci! – Paula fala.

- Nós vencemos – Luiza diz, beijando nossas testas.

Respiro fundo, sentindo que finamente estava livre de todas as coisas que

eu carreguei durante esses anos. Hoje eu pude perceber, que a verdadeira violência, a

violência que eu percebi ser imperdoável, é a violência que fazemos com nós mesma

quando nos calamos e temos medo de denunciar.

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Não deixe o medo calar você!

Não se limite ao seu próprio silêncio!

Não se feche para o mundo!

Violência contra a mulher é crime e temos que denunciar!

CAPÍTULO XXII

- Eu não sei, mainha, tenho uma necessidade enorme de ficar com ele o

tempo todo. Tem aquelas borboletas no estômago e tal, mas não quero ser a primeira a

dizer "eu te amo " – Vitória fala, estamos na praia conversando sozinha sobre seu

relacionamento com Enzo.

Olho para o mar azulzinho na minha frente, sinto a brisa bater no meu rosto

e penso um pouco. Nunca fui especialista no amor, e agora tenho que dá conselhos

amorosos.

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O que eu fiz para merecer isso?

- Se você ama alguém, diga. Mesmo que tenha medo de que não seja a

coisa certa – digo e passo a mão na minha testa, limpando o suor. – E você também não

pode matar seus sentimentos, como se fosse uma criatura maligna.

- E não é? O amor só serve para destruir as pessoas.

- De certa forma sim, eu acho que ele gosta de você.

- Jura? – Pergunta e me olha com curiosidade.

- Sim, ele te ajudou quando você estava na depressão por causa do... Davi –

Vitória para de sorrir e fica triste.

- Eu sinto falta dele – falou, olhando para o céu. – Será que ele foi para um

lugar melhor?

- Eu creio que sim... eu espero que sim.

Ficamos em silêncio, apenas ouvindo o barulho das ondas e sentindo

aquela deliciosa maresia. Logo escuto uns gritinhos, olho para trás e vejo Paula

correndo na nossa direção com um papel na mão.

- Eu consegui! – Gritou pulando. – Eu estou livre!

- O papel do divórcio? – Pergunto, ela assente e me puxa para pular com

ela.

- Parabéns, tia! – Vitória disse, olho para ela e grito quando um homem

bate na sua cabeça fazendo-a desmaiar.

Sinto uma pancada na cabeça e tudo se apaga!

Acordo em um lugar escuro, com cheiro de mofo e totalmente úmido. Sinto

uma ardência nos meus pulsos, tento soltar minha mão, mas eu não consigo.

Olho para o lado e vejo Paula e Vitória desacordadas e amarradas, começo

a gritar por socorro e logo elas acordam e começam a gritar também.

- Alguém me ajuda! – Gritou Vitória.

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A porta se abre e Henrique entra com aquele sorriso nojento. Vejo que tem

uma arma na sua mão, ele está com cara de quem vai aprontar. Tento soltar minha mão

mais rápido, sinto a ardência e uma dor, não ligo e continuo puxando.

- Sentiram saudades? – Ele disse, passando a mão no meu rosto.

- De você? Nem um pouco – respondo, dando um sorriso irônico. – Não

sabia que o portão do inferno estava aberto para o demônio está aqui em pessoa.

- Eu ainda vou cortar essa sua língua – falou, apertando meu queixo. Cuspo

em sua cara.

- Imundo! – Grito e recebo um tapa na cara.

- Solta a minha mãe! – Vitória gritou desesperada.

- Tudo bem filha, ele é covarde assim mesmo – digo e sinto um soco na

minha cara, cuspo o sangue no chão e encaro esse ser humano.

- Melhor calar a boca, pois de onde veio esse tem muito mais! – Fala e vai

até Vitória. Tento ir para cima dele, mas não consigo porque estou amarrada.

- Sai de perto dela, inseto! – Falo entre os dentes.

- Calma, amor, eu não vou fazer nada com a nossa filha – disse e me

encara. Seu olhar me causa arrepios, mas não deixo isso me intimidar.

- Nossa filha? – Paula pergunta olhando para mim.

- Sua filha? – Vitória perguntou com uma cara de nojo – Preferia continuar

órfã por parte de pai.

- Tão debochada, parece sua mãe na adolescência – ele passa a mão no

cabelo de Vitória, consigo folgar o aperto da corda e continuo quieta.

- Foi você? Você que estuprou minha amiga?

- Finalmente você usou seu cérebro, Paula – ele diz com desdém.

- Eu sou fruto de um estupro? – Minha filha pergunta em um sussurro, ela

me encara com os olhos cheios de lágrimas. – Fala que é mentira!

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- Eu sinto muito - digo e o que eu mais quero é abraçá-la bem forte. –

Tentei esconder isso de você. Sempre soube que uma hora ou outra iria descobrir.

- Você não tem culpa – falou e olhou para Henrique. – Não toca em mim,

seu doente da mão podre!

- Cala boca, menina malcriada! – Gritou e deu um tapa nela.

- Para com isso, Henrique – Paula disse e ele faz sinal de silêncio.

- Eu vou acabar logo com isso, vocês são minhas e de mais ninguém! Estão

ouvindo?

- Prefiro morrer, do que ser alguma coisa sua – falo com nojo.

- Vamos resolver isso mais tarde, agora eu vou me divertir! – disse,

rasgando a blusa de Vitória.

Começo a me desesperar, ele não pode fazer isso com a minha filha. Paula

tenta chutá-lo, mas é em vão.

- Me solta, seu velho babão! – Vitória grita.

Num impulso consigo soltar minhas mãos, fico na cautela e quando ele fica

de costa para mim eu avanço em cima dele e pego sua arma que estava no chão, aponto

para o mesmo e grito:

- Eu mandei você ficar longe dela! – Ele para de passar a mão nela e me

encara sorrindo.

Eu odeio esse sorrisinho nojento dele.

- Você não sabe usar essa arma – destravo a pistola, ele arregala os olhos. –

Você não teria coragem...

- Experimenta para ver. Mexeu comigo está de boa. Agora não toca na

minha filha que eu viro um bicho e faço qualquer coisa por ela! – Digo ainda apontando

a arma para ele.

- Você não era assim – disse incrédulo.

- Eu mudei e te garanto que foi para melhor. Agora, onde está aquele

Henrique doce e gentil que eu conheci na infância?

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Percebo que fica triste e abaixa a cabeça, mas ele logo levanta e me encara

com um olhar frio e sem expressão alguma no rosto.

- Morreu a partir do momento em que eu vi mainha apanhar de painho –

falou frio. – Ele dizia que isso era normal, que a mulher deveria ser submissa ao homem

e que se ela não quisesse – deu de ombros – Era só pegá-la à força.

Sinto um arrepio percorrer meu corpo.

- Eu cresci vendo isso dentro de casa, eu cresci achando que isso era

normal e por isso sou o que sou!

- Você ainda pode mudar, Henrique, não faça nada contra a gente. Tente

mudar, recomece do zero, você tem uma filha e...

- Eu não sou filha dele! – Vitória diz, rolando os olhos.

- Fica quieta, coisa ruim! – Paula repreende minha filha.

- Você acredita que eu posso mudar?

- É claro que sim, todos nós merecemos uma segunda chance e...

Ele me interrompe:

- Pois eu não! – dito isso, vi ele tirar a faca do bolso e avançar em cima da

Vitória.

A adrenalina pulsava nas minhas veias, em um ato de desespero começo a

atirar contra seu corpo, fazendo o infeliz cair no chão e sangue esguichar para todo

canto.

Era ele ou minha filha, eu precisei fazer isso.

- Ahhh! Grito, ainda disparando tiros contra seu corpo, a munição acaba e

então finalmente encaro as meninas.

- Mainha... – Vitória diz sem reação.

Foi aí que a ficha caiu: eu acabara de matar um homem. Me jogo no chão,

ficando ao lado do corpo ensanguentado de Henrique.

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- Eu não queria fazer isso – digo, chorando, toco no rosto gelado dele e

choro ainda mais. – Eu mandei você ficar longe, por que não obedeceu?

- Cristina, você fez o certo – escuto a voz de Paula. – Era ele ou a Vitória...

vai ficar tudo bem.

- Não vai não, eu sou um monstro!

- Claro que não, mainha. A senhora é a minha heroína! – Olho para minha

filha.

A única coisa boa que aconteceu na minha vida. Levanto do chão e solto as

duas que me abraçam.

- Eu estou toda suja de sangue – digo.

- Vamos dar um jeito nisso, temos que chamar a polícia.

- Eu vou ser presa! – Falo com medo.

- Óbvio que não, foi em legítima defesa.

Olho novamente para o corpo de Henrique, o arrependimento bateu de ter

matado ele. O bichinho era apenas uma vítima, se ele tivesse recebido a educação

adequada..., mas ele cresceu pensando que tudo isso era normal.

Henrique, assim como eu e Paula, era uma vítima. Ele não merecia morrer

por isso, mas foi um ato de desespero e eu realmente precisei fazer isso.

- Vamos sair daqui – pego na mão de Vitória ainda tremendo, deixo a arma

no chão e saímos do galpão abandonado.

Às vezes, nós fazemos coisas inesperadas pelas pessoas que amamos.

E foi isso que eu tive que fazer hoje...

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CAPÍTULO XXIII

- OLHA O PASTELLLLL! – berra Vitória do meu lado. Olho para ela

irritada.

- Eu vou enfiar esse pastel na sua boca!

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Ela para de gritar e come quieta, enquanto continuo tentando fazer uma

toalha e crochê. Estão todos aqui em casa ainda, Alan novamente quis ter uma

reaproximação comigo, mas deixei bem claro que somos apenas amigos e nada mais

que isso.

Apenas Felipe, painho e dona Irene sabem o que aconteceu no galpão.

Fomos na delegacia, como foi em legítima defesa não fui presa, mas eles disseram que

iriam investigar o caso.

Nessas últimas semanas, eu parei para pensar na minha vida, em como eu

queria vive-la o máximo possível.

Só temos uma vida e devemos vivê-la sem limites!

Agora que eu estou completamente livre, sem nenhuma preocupação,

Vitória já está grandinha, eu finalmente posso pensar em mim. E a primeira coisa que eu

fiz foi me matricular em uma escola.

Quando engravidei, larguei a escola, e agora é hora de voltar para concluir

o ensino médio. Também vou começar uma campanha de combate a violência contra a

mulher. Tentarei ao máximo mudar essa situação.

Mas não adianta muito, pois enquanto eu estou ajudando uma mulher, outra

é assassinada.

Fui pesquisar esses dias sobre esse assunto, e tudo que eu lia me assustou

bastante. O Brasil registra 1 estupro a cada onze minutos e cerca de 70% das vítimas são

CRIANÇAS ou ADOLESCENTES. Na maioria das vezes, seu agressor é um homem

próximo e isso torna a denúncia difícil.

Há em média 10 estupros coletivos por dia, conforme dados do Ministério

da Saúde. 30% dos municípios não fornecem esses dados ao Ministério, ou seja, esse

número ainda não representa a totalidade.

Apenas 15,7% dos acusados foram presos, o resto continua por aí,

cometendo outros crimes.

A cada 7.2 segundos, uma mulher é vítima de violência física. Em 2013,

treze mulheres morreram todos os dias vítimas de feminicídio, isto é, assassinato em

função do seu gênero.

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Cerca de 30% foram mortas por PARCEIRO ou EX.

Esse número representa um aumento de 20% em relação a década passada.

Ou seja, temos indicadores de que a morte de mulheres está aumentando.

O assassinato de mulheres NEGRAS aumentou (54%) enquanto o das

BRANCAS diminuiu (9,8%).

A quase totalidade da população (96%) acredita que é preciso ensinar os

homens a respeitar as mulheres e não as mulheres a terem medo.

90% concordam que quem presencia ou fica sabendo de um estupro e fica

calado também é culpado.

54% conhecem uma mulher que já foi agredida pelo parceiro. Em todas as

classes econômicas.

Pelo mesmo levantamento, a maior parcela da população (85%) acredita

que mulheres que denunciam seus parceiros correm mais riscos de sofrer assassinato.

Vergonha e medo de ser assassinada são percebidas como as principais

razões para a mulher não se separar do agressor e metade da população considera que a

forma como a Justiça pune não reduz a violência contra a mulher.

Os dados são muitos, é necessário tempo para digeri-los. E depois disso, é

preciso ação. Já basta de violência contra a mulher!

Se esses dados não fazem você parar para refletir, nem que seja por um

segundo, eu não sei o que posso fazer para você refletir sobre tudo isso.

Temos visto mulheres sendo estupradas, espancadas e mortas a cada dia.

Não adianta ficar só falando, temos que entrar em ação.

Em briga de marido e mulher eu meto a colher sim!

Viu alguma violência? Denuncie e ligue para 180. Sua identidade

continuará sendo anônima.

Chega de violência! Chega de machismo! Somos mulheres e queremos

respeito!

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- Podemos conversar? – Felipe perguntou, me tirando do meu pequeno

transe.

- É claro que sim.

Vitória sai do quarto, ficando só eu e ele. Ele senta na cama e fica me

encarando por alguns segundos.

- Tem alguma coisa suja na minha cara? – Pergunto depois de um tempo,

ele dá risada e faz que não.

- Não... eu só estou pensando em como te perguntar uma coisa.

Fico curiosa.

- Pergunte logo, você sabe que eu não gosto de esperar.

Ele respira fundo e pergunta:

- Você ainda quer continuar comigo?

Paro e penso por um tempo, ficar com Felipe era legal, mas mesmo assim

eu sentia um vazio dentro de mim. Ele me fazia uma mulher muito feliz, me ajudou

quando eu mais precisei e sempre esteve ao meu lado.

Porém, eu sinto que não posso continuar com ele. Isso seria ilusão, e eu não

gosto de iludir os outros.

Mas não vai pensando que eu vou ficar com Alan, não preciso escolher um

dos dois e muito menos dependo de homem para ser feliz.

Entre Alan ou Felipe? Eu escolho a mim mesma, e a partir de agora eu vou

viver minha vida sem ninguém para rotular.

- Você sempre ficou ao meu lado, sou muito grata por isso...

- Sinto cheiro de um pé na bunda – ele disse brincalhão.

- Não é um pé na bunda, apenas um “tchau, tchau, amore” – falo e ele dá

risada.

E isso me surpreende, pensei que ele ficaria chateado ou algo do tipo.

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- No fundo eu sempre soube que não daria certo – ele diz e eu concordo

com a cabeça. – Você vai voltar para ele?

- Alan? – Pergunto e ele assente. – Óbvio que não, eu estou completamente

apaixonada por outra pessoa.

- Quem é ele? – Seguro o riso ao ver seu desespero.

- Essa é a questão, não é ele – digo. Filipe arregala os olhos e me encara

incrédulo. – É ela.

- Você lésbica?!

Não aguento e caio na gargalhada, enquanto Felipe me encarava sério.

- Estou completamente apaixonada por mim mesma! E eu estou assumindo

um relacionamento sério.

- Com você mesma? – Confirmo, rindo. – Cuidado para não perder seu

verdadeiro amor.

- Infelizmente meu único e verdadeiro amor vai continuar sendo eu mesma.

- Assim você não precisa se preocupar com a rejeição.

- Algumas vezes, eu posso terminar comigo mesma, só para deixar as

coisas mais interessantes.

- Você é tão irônica.

- Ué – dou de ombros. – Uso a ironia para não usar a violência.

- Não está mais aqui quem falou – se levantou rindo e foi até a porta.

- Ei, peste? – Ele para e me encara, aproximo-me e o abraço. - Obrigada

por nunca desistir de mim.

- E obrigada por estar ao meu lado, no momento mais difícil da minha – diz

e fica meio triste.

Sobre Davi, ele não conseguiu superar sua morte ainda, e acho que nunca

vai superar.

- Vamos conseguir justiça, seja na terra ou no céu, a justiça sempre vem.

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Ele assente e sai do quarto.

- OLHA O PASTELLLLLL! – Escuto Vitória gritar de novo.

- CACHORRO, AU! AU! – Dessa vez escuto a voz de Enzo.

- Eu vou bater em vocês! – Grito e fica tudo quieto.

Não demora muito e eu escuto as gargalhadas deles.

Pego o cabo da vassoura e desço a escada. Vitória, assim que me vê, dá um

pulo e puxa Enzo.

- Baixou a vó Irene em você, mainha?

- Corre, merda! Não quero apanhar de vassoura!

Os dois saem correndo e eu vou logo atrás.

- Ô diga aonde você vai, que eu vou varrendo...” – cantarolou Enzo.

- “Vou varrendo, vou varrendo...” – dou uma paulada nela, que para de

cantar.

- Oxente, mainha, isso dói!

- Então para de ficar gritando! – Grito.

- Você acabou de gritar.

- Eu posso – digo com um ar de superioridade.

- Isso não é justo!

E então ela começa a reclamar, reviro os olhos e volto para dentro de casa.

CAPÍTULO XXIV

ermino de fazer a salada e coloco na mesa, hoje resolvemos fazer

um churrasco da despedida. Já que minha irmã e painho vão

voltar, Paula resolveu ficar o que me deixou muito feliz.

- Desculpa, amor- Enzo disse entrando na cozinha com Vitória. -Eu tinha

que pegar aquele pedaço de carne.

T

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-E precisava me jogar no chão? - Perguntou com os braços cruzados,

seguro a risada e continuo arrumando a mesa.

- Se o tio Felipe pegasse, não ia sobrar nada- se defendeu.

- Eu ouvi isso! - Escuto a voz de Felipe do lado de fora.

- O mal é esse, está vendo? Se fosse eu que tivesse ouvindo a conversa dos

outros.

- Respeite os mais velhos, seu acarajé sem dendê – digo e ele me encara

incrédulo.

- Se continuar assim, seu asilo não vai ter piscina – disse apontando o dedo

na minha direção.

- Se continuar assim, vai ficar sem essa língua e esse dedo – falo e aponto a

faca na sua direção, ele levanta as mãos em sinal de rendição.

- Perigosa – falou, rindo.

- Vamos mainha, não se misture com essa gentalha! - Vitória falou e pegou

na minha mão.

- Eu já pedi desculpa por ter te derrubado no chão para pegar a carne –

Enzo reclamou, vindo na minha direção.

- Parece que passa fome – digo e sento na cadeira ao lado de Paula.

- É seco de ruim, passa nada aí – Vitória falou ainda brava.

- Oh preta, faz isso comigo não – choramingou Enzo. Paro de prestar

atenção nos dois e foco em painho.

- Os dois estão bem juntos, hein – Paula disse. Vejo que ele e dona Irene

estão conversando no maior entusiasmo.

- Painho merece ser feliz, mulher. Eu fico contente se for com dona Irene.

Pego seu copo de suco e bebo um pouco, logo Luiza chega e senta do meu

lado toda animada.

- Eu vou viajar! – Disse, sorrindo.

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- Para onde?

- Fortaleza!

- E os meninos? – Perguntei, lembrando de seus filhos.

- Tão grandinhos já, sabem se virar – disse, fazendo-me rir.

- Todo mundo desencalhando e a gente nada – Paula disse.

- Você que acha meu, amor. Olha como Felipe está te encarando – ela olha

em sua direção. Ele comia carne enquanto não tirava os olhos dela.

- Isso é meio errado, vocês eram namorados – disse receosa.

- Vai lá curtir um pouco, mulher – dou um tapinha no seu ombro.

- E se ele for igual a Henrique?

- Posso te garantir que ele não é.

Ela me encara por uns segundos e levanta, indo ao encontro de Felipe. Dou

um sorriso de lado, totalmente feliz pela minha amiga.

- E você minha irmã, como vai ficar?

- Vou ficar bem, eu sempre fico – dou de ombros. – Vitória vai terminar a

faculdade e, ao que parece, vai morar com Enzo. Eu vou ficar sozinha, mas muito bem

acompanhada.

- De quem?

- Eu mesma. Olha quanta beleza numa pessoa só – digo fazendo carão.

- Quem está te iludindo, criança? – Perguntou e deu risada.

- O espelho do meu quarto – digo e acompanho-a na risada. Vejo que

painho vinha na nossa direção.

- E aí, minhas meninas – disse. Levanto e dou um abraço apertado nele.

- Isso tudo é saudade? – Luiza perguntou, com ciúmes.

- Pode vir também, sua ciumenta – falo e ela se junta a esse abraço

coletivo.

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Logo sinto que todos estão nesse abraço, dou um sorriso sentindo todo

aquele amor e união.

- Minha grande família – falo emocionada.

- Eu senti tanta falta de você - painho disse e concordo com a cabeça.

- O que importa é que estamos juntos, e quando der eu vou lá ver vocês.

Vamos todos para mesa e sentamos. Fazemos uma pequena oração,

agradecendo pelo alimento e começamos a comer.

Felipe como sempre, esfomeado, ficou brigando com Enzo que não ficava

para trás na questão da comida.

- Enzo, meu filho, tem um monte de carne aí – disse Alan, eu nem tinha

visto ele chegar.

- Parem de brigar os dois, senão eu coloco vocês ajoelhados no milho –

falou dona Irene, eles se calam e começam a comer em silêncio. – Tenho uma confissão

a fazer.

- Tenho até medo – falei, ela pega na mão de painho e sorri.

- Eu vou para Floresta Azul com ele – disse.

- E eu?! – Felipe perguntou indignado.

- Que é que tem? – Respondeu dona Irene.

- Vou ficar sozinho?

- Te vira.

- O bebezinho da mamãe vai ficar sozinho – digo e ele me olha irritado.

- Deixe painho quieto, oxente! – Vitória defende.

- Não está mais aqui quem falou – digo e volto a comer.

- Você pode assumir as coisas no grupo de apoio, Cristina?

- É claro que sim! – Abro um grande sorriso.

- Ótimo! – Ela sorri orgulhosa.

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Terminamos de comer e Luiza coloca um axé, começando a dançar com

seu marido, Fernando. Paula e Felipe vão dançar também, dona Irene e painho vão para

a cozinha, Vitória e Enzo entram para o quarto. Fico sozinha, na verdade com Alan.

- Oi – digo para ele.

- Topa pegar uma praia? – Perguntou. Eu observo que todos estão tão

ocupados que nem notariam nossa ausência.

- É claro que sim.

Descemos a escada e atravessamos a rua, a praia ficava do outro lado e

confesso que eu amava isso. Tiro meu chinelo e jogo em qualquer lugar, Alan faz o

mesmo.

Começo a correr pela areia, sem motivo nenhum, apenas para brincar um

pouco.

Eu ainda acho que tem uma Cristina dentro de mim, uma Cristina criança

que tem uma vontade enorme de ter uma infância de novo.

Agora eu sou adulta, e é terrível ser adulto. Mas infelizmente o carrossel

nunca para de girar, não se pode sair.

- Por que estamos correndo? – Perguntou Alan ofegante.

- Eu sei lá! Deu vontade!

Alan me pega no colo e me gira, solto alguns gritinhos misturados com

gargalhadas. Ele para e me coloca no chão, fico um pouco tonta e sento na areia.

- Lembra daquela vez que você foi pegar a bola no quintal da dona Flor e

ela jogou xixi em você? – Perguntou do nada, começo a rir, lembrando de tudo.

- E teve aquela vez, que você foi subir no pé de goiaba para pegar uma para

mim e foi mordido por um maribondo.

Ele faz uma careta de dor.

- Doeu muito véi, Deus é mais.

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Solto uma gargalhada.

- Para mim, o melhor dia foi quando a gente foi brincar com aquele boi e

ele saiu perseguindo a gente – falo ainda rindo.

- A gente teve que subir na árvore e você cortou o pé.

- Eu sempre cortava o pé, era incrível isso.

Paramos de rir e nos entreolhamos, sabe aquele momento bem

constrangedor que você não sabe o que fazer? Esse era um deles, Alan ainda me olhava

com a mesma intensidade de antigamente.

Seria sim um bom momento para recomeçarmos tudo, porém, não somos

mais adolescentes e a nossa época já passou.

- Não vai rolar né? – Ele perguntou, quebrando o silêncio constrangedor.

- Não – olho para o mar, quebrando o contato visual. – Somos apenas

amigos.

- Lembra quando você disse que eu estava vazio por dentro? – Faço que

sim. – Só fui perceber, depois de muito tempo, que dinheiro não é tudo na vida.

- Eu sempre te falava isso e você pensava que eu era besta.

- Fiquei muito preocupado com status e talvez seja por isso que eu perdi

você.

- Você nunca me teve de verdade, para me perder – digo e dou de ombros.

- Será que podemos recomeçar? Estou querendo falar da nossa amizade.

- Claro que podemos – digo e tiro meu vestido, ele me encara com os olhos

arregalados. – Acordo de paz, vamos nadar para esquecer tudo isso.

- Sério? – Perguntou tirando sua blusa e seu short.

- Sim, uma pessoa muito especial me disse que devemos tomar um bom

banho de mar para esquecer tudo.

- Só mais uma coisa, foi você que contou o Enzo que eu era atentado na

infância?

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Faço cara de paisagem e balaço a cabeça negando.

- Foi tu sim, Cristina – disse, correndo comigo até o mar.

Dou um mergulho, sentindo todas as minhas impurezas indo embora e

minhas forças sendo renovadas.

CAPÍTULO XXV

cordo sentindo todo aquele cansaço matinal, dou uma

espreguiçada e vou para o banheiro fazer minha higiene.

Troco de roupa, paro em frente ao espelho e fico A

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me observando por um bom tempo.

Eu cresci na vida.

Consegui conquistar coisas na minha vida, que muitas pessoas pensaram

que eu não ia conseguir.

Dou um sorriso de lado, eu sou uma mulher forte e independente.

E isso ninguém pode tirar de mim.

- Você é linda demais, véi – digo, olhando no espelho.

Vou para a janela do meu quarto.

Observo o céu azul da cidade de Todos os Santos, minha Salvador! Como

eu amo essa cidade! E aqui mesmo, observando essa paisagem eu começo a lembrar do

começo.

Respire fundo, Cristina, e conte como tudo começou...

E eu contei para vocês tudo que aconteceu comigo durante essa longa

caminhada.

Não foi fácil, várias vezes pensei em desistir, mas continuei firme. Não

quero nem pensar em como seria, se naquela época eu tivesse abortado Vitória...

Eu iria me arrepender para o resto da minha vida.

Porém, depois de tudo que eu passei, de todas as minhas decisões, todos os

meus atos, eu não me arrependo de nada!

Faria tudo exatamente igual, e também não mudaria nada. Tudo que

aconteceu comigo, apenas serviu para que eu me tornasse mais forte.

Eu me lembro quando Henrique fez aquilo comigo... caí numa completa

solidão e coloquei algemas do silêncio e do medo em mim. Todos falam que, quando

você cai, precisa aprender a se levantar, mas ninguém nunca me disse que depois de se

levantar, você precisa andar como se não sentisse nenhuma dor.

Eu andei por aí, aprendi, errei, chorei, caí novamente, e com o passar do

tempo, eu pude perceber a minha evolução.

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Não segurava as lágrimas, como eu prometi que faria. Eu deixei-as caírem

livremente. Afinal, segurar as lágrimas não torna você mais forte. Você apenas está

sufocando a sua dor.

Que possamos ser sábios como dona Irene. Acreditar como Luiza. Ser doce

como a Paula. E ser forte como eu.

Isso é quem somos, isso faz parte de nós. Viva a sua vida sem limites. Se

quer viajar? Aproveite! Quer se divertir por aí? Se joga, amiga! Quer ser você mesma?

Seja sem medo algum!

Não liga para o que os outros pensam a seu respeito. Ninguém sabe o que

você passou. Então não deixe ninguém rotular você.

- “Não calo minha voz para defender uma mulher” – canto a parte de uma

música que eu ouvi por aí.

Desço a escada, vou para a cozinha e pego um copo de café. A casa está

vazia, então aproveito e coloco uma música para tocar e começo a dançar igual uma

doida pela casa.

- “Chorando se foi quem um dia só me fez chorar...” – canto e danço ao

mesmo tempo.

Subo no sofá e pego o controle, fazendo o mesmo de microfone.

Se ame, seja seu próprio amor. Mulher seja o que você quiser!

Quem soube de mim em outros tempos, já não sabe de mim agora. Pois

quando me quebraram, meus pedaços foram se arrumando e achando lugares mais

lindos e mais fortes para se encaixar nessa mulher que hoje escreve com punhos fortes

sua própria história.

Sem limites.

Sem medo.

E com muita vontade de viver tudo que não viveu durante todos esses

anos.

Tenha mais amor próprio e espalhe amor por aí. O mundo está precisando

de mais compaixão.

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E até hoje, eu acredito que na maior parte do tempo, o amor é uma questão

de escolha. Cabe a você tirar as adagas e os venenos do seu caminho e começar a

escrever seu próprio final feliz!

Fim...

"Esse texto foi um dos vencedores do Concurso Municipal de Literatura Prêmio Jorge Amado - 2018, promovido pela Prefeitura do Município do Salvador".