3 luciano lima

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Anais do II Simpósio de Violão da Embap, 2008 34 RADAMÉS GNATTALI: Os Quatro Concer tos pa ra Violão Solo e Orquestr a 1  Luciano Chagas Lima 2  RESUMO:  este artigo é um resumo de minha dissertação de doutorado defendida em setembro de 2007 na Université de Montréal , Canadá. Tendo em vista o espaço disponível, fez-se necessário excluir aqui uma série de detalhes relevantes, mas o conteúdo integral desta pesquisa resultará em uma futura publicação. Palavras-chave:  Radamés Gnattali; Concerto; Violão Presente em inúmeras manifestações culturais do Brasil, o violão certamente se institui como um dos símbolos nacionais, sugerindo o contorno de uma identidade musical diversa e intrigante: emanando das serestas, das rodas de choro e samba onde representa o papel de instrumento acompanhador até o universo do violão solista. Esse contraste, ou ainda, essa contradição de espaços é um dilema típico da música brasileira, e a obra de Radamés Gnattali é um retrato inegável desse contexto. Compositor, pianista, regente e arranjador, Radamés Gnattali é um dos músicos mais completos da história da música brasileira. Suas obras possuem um distinto refinamento e um intenso caráter nacionalista, combinando todo o charme e a sina presentes em ambas as linguagens da música “popular” e “de concerto”. 3  Dentro da sua vasta produção, seus quatro concertos para violão solo e orquestra são considerados por muitos como uma das mais importantes 1  Palestra proferida ao II Simpósio Acadêmico de Violão da Embap, de 6 a 11 de outubro de 2008. 2  Doutor pela Universidade de Montreal, Canadá. 3  Gnattali preferia empregar a terminologia dessa forma, classificando os estilos de música como “popular” e “de concerto”, ao invés do usual “popular” e ”erudito”.

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    Anais do II Simpsio de Violo da Embap, 2008

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    RADAMS GNATTALI: Os Quatro Concertos para VioloSolo e Orquestra1

    Luciano Chagas Lima2

    RESUMO: este artigo um resumo de minha dissertao de doutoradodefendida em setembro de 2007 na Universit de Montral, Canad. Tendo emvista o espao disponvel, fez-se necessrio excluir aqui uma srie de detalhesrelevantes, mas o contedo integral desta pesquisa resultar em uma futurapublicao.

    Palavras-chave: Radams Gnattali; Concerto; Violo

    Presente em inmeras manifestaes culturais do Brasil, o violo

    certamente se institui como um dos smbolos nacionais, sugerindo o contorno

    de uma identidade musical diversa e intrigante: emanando das serestas, das

    rodas de choro e samba onde representa o papel de instrumento

    acompanhador at o universo do violo solista. Esse contraste, ou ainda, essa

    contradio de espaos um dilema tpico da msica brasileira, e a obra de

    Radams Gnattali um retrato inegvel desse contexto.

    Compositor, pianista, regente e arranjador, Radams Gnattali um dos

    msicos mais completos da histria da msica brasileira. Suas obras possuem

    um distinto refinamento e um intenso carter nacionalista, combinando todo o

    charme e a sina presentes em ambas as linguagens da msica popular e de

    concerto.3Dentro da sua vasta produo, seus quatro concertos para violo

    solo e orquestra so considerados por muitos como uma das mais importantes

    1Palestra proferida ao II Simpsio Acadmico de Violo da Embap, de 6 a 11 de outubro de 2008.2Doutor pela Universidade de Montreal, Canad.3Gnattali preferia empregar a terminologia dessa forma, classificando os estilos de msica como popular

    e de concerto, ao invs do usual popular e erudito.

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    obras do gnero compostas no Brasil.

    Forma

    Conforme descrito por Tovey, concerto e ria confrontam o indivduo

    contra massa, solo contra tutti; esta a essncia em ambas as formas.4Dada

    esta desigualdade inerente, a estrutura precisa ser organizada de uma maneira

    que permita o solista competir eficazmente com a massa orquestral, mas isso

    sem que o papel da orquestra seja reduzido a uma mera funo de

    acompanhamento. Atravs do desenvolvimento da forma concerto no sculo

    XVIII, vrias tcnicas de composio foram adotadas para equilibrar este

    contraste: a orquestra estabeleceria ento sua importncia provendo uma

    moldura para o incio e o fim do movimento, onde passagens executadas pela

    orquestra (chamadas de ritornello) alternariam com passagens tocadas pelo

    solista. Mais tarde, a forma concerto tambm incorporou funes associadas

    forma sonata (exposio, desenvolvimento e re-exposio). No entanto,

    segundo William Caplin:

    Este entendimento do concerto como sonata tem seus atrativos mas equivocado em uma srie de aspectos. Em particular, ignora odesenvolvimento histrico do concerto clssico fora de origens distintasdaquelas da sonata... Assim, uma concepo alternativa da forma concerto av composta de seis sees principais: (1) um ritornello inicial para a orquestra,(2) uma seo solo (com acompanhamento orquestral) que funciona como uma

    exposio de sonata por modular da tonalidade principal para uma tonalidadesubordinada, (3) um ritornello orquestral na nova tonalidade reforando amodulao, (4) uma seo solo funcionando como um desenvolvimento desonata, (5) uma seo solo funcionando como uma re-exposio de sonata, e(6) um ritornello final para a orquestra (geralmente interrompido por umacadncia do solista) que completa a moldura estrutural. A partir destaperspectiva, o concerto visto como uma forma independente que no umavariante do ritornello barroco nem da sonata clssica mas que incorporaelementos formais e funcionais associados a ambos.5

    4 Donald Francis Tovey em Charles Rosen, Sonata Forms(New York: W.W.Norton, 1988), p. 71. Minhatraduo.

    5 William Caplin, Classical Form(New York: Oxford University Press, 1998), p. 243. Minha traduo.

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    Mas uma tentativa de adequar os concertos para violo de Gnattali a tal

    forma no seria muito apropriada, uma vez que eles diferem radicalmente dos

    modelos barroco ou clssico no s em estilo, mas tambm no conceito formal.

    Nos concertos para violo, por exemplo, as estruturas temticas no

    correspondem a uma organizao convencional; na verdade elas so mais

    unidades com caractersticas temticas do que um tema autntico com funes

    de incio, meio e fim. Igualmente, a estrutura como um todo caracterizada por

    instabilidade harmnica e tonal (modulaes, cromatismo), grupos estruturais

    assimtricos, extenses de frase e estruturais, funes formais redundantes, e

    uma diversidade de materiais motvicos e meldicos.

    Outra qualidade relacionada forma como alcanado o equilbrio

    entre o indivduo (solista) e a massa (orquestra). Mas, primeiramente, crucial

    considerar o contexto em que os concertos para violo de Gnattali foram

    concebidos. Naturalmente, o violo no um instrumento que possa competir

    com os atributos de um violino ou um piano e a viabilidade de amplificao no

    incio dos anos 50 no era exatamente ideal; ainda mais, isso tambm era

    relativamente problemtico j que envolvia um instrumento encarado com

    desdm pela severa comunidade da msica clssica. Assim, o compositor

    precisaria criar uma estrutura que favorecesse estas disparidades acsticas,

    permitindo maior flexibilidade de expresso para ambos o solista e a orquestra

    dentro dos limites da forma. Desde o incio Gnattali consegue solucionar estes

    problemas organizando uma estrutura onde uma textura orquestral mais densa

    e o violo raramente ocorrem ao mesmo tempo. Desta maneira a orquestra e o

    solista complementam suas sonoridades, sustentando um dilogo absoluto e

    transparente. Geralmente, o violo combinado com alguns instrumentos,

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    criando um carter que conserva uma qualidade mais intimista de msica de

    cmara. Por estas razes, os concertos para violo de Gnattali so

    perfeitamente viveis sem que haja necessidade de amplificao.

    A tarefa de escrever para o violo no das mais simples. O padro de

    afinao baseado em quartas, somado ao nmero de cordas e tessitura

    prtica do instrumento, resulta em um labirinto de combinaes que somente

    quem conhece o instrumento capaz de solucionar de maneira funcional.

    Muitas das peas escritas por compositores no violonistas tornam-se verses

    elaboradas por um revisor instrumentista; em contrapartida, vrias peas de

    compositores-violonistas acabam sacrificando o propsito musical pelo excesso

    de truques idiomticos. Gnattali, apesar de no ser violonista, era um

    compositor que tinha uma familiaridade incrvel com o universo intrincado do

    violo. Suas peas exploram uma multiplicidade de recursos que o instrumento

    oferece: paralelismo, campanelas, ligados mecnicos, percusso, harmnicos,

    rasgueos, timbre, etc. Gnattali consegue compor para o violo como poucos,

    elaborando um discurso musical que flui sem amarras atravs de uma

    linguagem extremamente idiomtica.

    Curiosamente, a primeira composio que Gnattali dedicou ao violo

    no foi uma pea solo, mas uma obra de cmara para quarteto de cordas,

    flauta e violo, intitulada Serestas. Composta em 1944, esta obra de seis

    movimentos de certa forma prepara o alicerce para a concepo dos concertos

    para violo, no exatamente no aspecto formal, mas sim no que diz respeito

    textura e como a flauta e o violo compartilham a cena principal.

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    Primeiros Concertos para Violo do Sculo XX

    Segundo Matanya Ophee, o primeiro concerto para violo e orquestra do

    sculo XX foi escrito em 1930 pelo compositor mexicano Rafael Adame.

    Intitulado Concierto Clsico, foi estreado pelo prprio compositor no dia 19 de

    julho de 1930. A importncia histrica desta obra que ela precede por nove

    anos dois dos mais emblemticos concertos para violo do sculo XX: o

    Concerto em R Op.99 do compositor italiano Mario Castelnuovo-Tedesco

    escrito para Andrs Segovia, e o clebre Concierto de Aranjuezdo compositor

    espanhol Joaqun Rodrigo dedicado a Regino Sainz de la Maza. Em 1941 outro

    compositor mexicano, Manuel Maria Ponce, escreveu um concerto para violo:

    o Concierto Del Sur, tambm dedicado a Segovia. No entanto, no h

    evidncia de que Gnattali tivesse conhecimento destas obras nem que elas

    tenham servido como referncia para os seus concertos para violo. Segundo

    o prprio Gnattali, eu sempre escrevi msica para os meus amigos. Quando

    eu compunha uma pea para violoncelo, era para Itiber (Gomes Grosso)

    tocar. Ele tinha muita bossa, muito jeito para msica brasileira.6 Durante o

    processo criativo de uma pea, ele procurava se lembrar das caractersticas do

    msico para quem a pea era dedicada e, como costumava dizer, sempre

    imaginava o intrprete tocando. Assim, a personalidade musical do dedicatrio

    acabava por influenciar consideravelmente o resultado final. Exceto pelo seu

    primeiro concerto para violo que Gnattali dedicou a um concertista

    estrangeiro, os outros trs foram escritos para seus amigos e colegas da rdio

    no Rio de Janeiro, Garoto, Jos Menezes e Laurindo Almeida. Portanto, por

    6 Valdinha Barbosa e Anne Marie Devos, Radams Gnattali: O Eterno Experimentador (Rio de Janeiro:Funarte, 1984), p.65.

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    serem destinados a serem tocados por msicos populares, estes concertos

    revelam um idioma que provm claramente da tradio do violo solista

    brasileiro, em contraste linhagem mais aristocrtica representada por

    Segovia.

    CONCERTINO N.1

    O primeiro concerto para violo de Gnattali foi composto em 1951 e

    dedicado a Maria Teresa Teran e ao violonista cubano Juan Antonio Mercadal.7

    A estria deu-se no dia 31 de maio de 1953 no Rio de Janeiro, no Cine Teatro

    Rex, com Mercadal como solista e a Orquestra Sinfnica Brasileira dirigida por

    Eleazar de Carvalho. Este concerto fez parte de uma programao chamada

    Srie Concertos para a Juventude Escolar. O programa inclua Scheherazade,

    de Rimsky-Korsakov, Concertino n.1 de Radams Gnattali, e o Preldio do

    terceiro ato da pera Lohengrin de Wagner.

    Uma obra de considervel importncia histrica, foi o primeiro concerto

    para violo escrito por um compositor brasileiro. Porm, como o concerto para

    violo de Villa-Lobos data do mesmo ano, cabe aqui esclarecer este detalhe.

    Curiosamente, ambos os concertos trazem a mesma inscrio na partitura: Rio,

    1951. Alm disso, eles compartilham uma orquestrao incrivelmente similar

    (Gnattali: flauta, obo, clarinete, clarone, fagote, trompa, violino, viola,

    violoncelo, contrabaixo, triangulo, e tmpanos. Villa-Lobos: flauta, obo,

    clarinete, fagote, trompa, trombone, violino, viola, violoncelo, e contrabaixo).

    Apesar da manifesta coincidncia e do fato que ambos os compositores

    7 Maria Teresa Teran era a esposa do pianista espanhol Toms Teran a quem Gnattali dedicou o seuConcertino n.1 para Piano, Flauta e Orquestra de Cordas escrito em 1942.

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    residiam na mesma cidade, segundo o maestro Alceo Bocchino (amigo e

    colega de Villa-Lobos e Gnattali), aparentemente eles no eram prximos o

    suficiente para trocar idias sobre projetos profissionais.8

    O concerto de Villa-Lobos foi originalmente intitulado Fantasia

    Concertante para Violo e Pequena Orquestra, conforme consta no

    manuscrito. Encomendado por Andrs Segovia, foi a ltima composio de

    Villa-Lobos para violo. Entretanto, a frustrao de Segovia com o prospecto de

    uma mera Fantasia levou-o a uma insistente campanha para convencer o

    compositor a acrescentar uma cadncia. Escrita alguns anos mais tarde, esta

    cadncia, de acordo com o julgamento de ambos, justificaria ento a mudana

    do ttulo para Concerto.9Quando Segovia estreou o concerto de Villa-Lobos em

    1956, Gnattali j tinha seus dois primeiros concertos para violo executados no

    Brasil. Segundo Alceo Bocchino, o concerto para violo de Villa-Lobos foi

    tocado pela primeira vez no Brasil em 1960 por Maria Lvia So Marcos, no Rio

    de Janeiro, com o prprio Bocchino como regente.

    No tocante incluso do violo em um contexto orquestral, pode-se

    traar ainda algo anterior. Em 1950, Gnattali comps uma obra de considervel

    proporo, ousando justapor dois plos culturais absolutamente distintos: uma

    orquestra sinfnica e uma escola de samba. Intitulada Concerto Carioca n.1

    para Piano, Violo Eltrico e Orquestra,10 esta obra traz em seus quatro

    movimentos (Marcha-Rancho, Cano, Valsa e Samba) uma fuso de vrios

    elementos aparentemente incompatveis que constituem a msica brasileira. O

    Concerto Carioca combina a estrutura de um molde europeu com padres

    8 Informao obtida em uma entrevista feita por telefone com o maestro Alceo Bocchino em agosto de2005.

    9 Gerard Bhague, Heitor Villa-Lobos: The Search for Brazils Musical Soul (Austin: University of Texas atAustin, 1994), pp. 142-144.

    10 O n.1 aps o ttulo foi includo posteriormente por motivos editoriais.

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    rtmicos brasileiros em um caleidoscpio instrumental; envolve uma orquestra

    tradicional acrescida de uma seo de metais tpica de uma big band e um

    instrumentrio de percusso que normalmente s se encontra em uma bateria

    de escola de samba. um exemplo de equilbrio e contraste em uma formao

    instrumental inteiramente nova e desprovida do benefcio de modelos

    anteriores, uma festa sonora que celebra essa identidade diversa,

    improvisada e criativa da msica brasileira. Dedicado ao violonista paulista

    Laurindo de Almeida, esse concerto duplo (piano e violo) vem a ser a

    primeira composio brasileira a incorporar o violo como solista frente de

    uma orquestra.

    Por fim, a execuo do Concertino n.1em 1953 foi no s a estria do

    primeiro concerto brasileiro para violo, mas tambm a primeira vez que um

    violonista tocou com a Orquestra Sinfnica Brasileira, um marco importante

    levando em considerao o cenrio musical da poca. Em uma entrevista na

    revista Guitar and Lute,11 h evidncia de que Mercadal tocou este concerto

    pelo menos duas vezes: a estria em 1953 e com a Orquestra da Philadelphia

    em 1971.

    I Moderato (semnima = 80)

    Diferente dos outros concertos para violo de Gnattali cujos movimentos

    iniciais so mais vigorosos e afirmativos, este concerto se destaca pelo carter

    mais contemplativo de seu primeiro movimento. tambm o mais lento dos

    quatro e o nico comeando em modo menor. A orquestra abre o ritornello

    11 Kip Irvine, Interview: Juan Mercadal, Guitar and Lute n.20(Jan.1982): 26-27.

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    inicial com as madeiras executando o tema principal. Este tema formado

    essencialmente por uma unidade de quatro compassos que ser transformada

    e trabalhada ao longo do movimento. O material temtico dos concertos para

    violo de Gnattali geralmente apresentado pela orquestra e, em seguida,

    desenvolvido pelo solista. No entanto, este concerto difere tambm neste

    aspecto: o ritornello inicial um tanto conciso, tendo mais uma funo de

    introduo, e a seo solo comea com um material temtico totalmente novo,

    explorando uma frmula de arpejo com acordes paralelos.

    Uma nova seo comea no compasso 58 com um segundo tema

    exposto pelas cordas. IntituladaAllegretto Mosso(semnima = 144), esta seo

    possui um carter mais forte salientado pela qualidade insistente do novo tema.

    Trata-se de uma unidade temtica de quatro compassos com um desenho

    peridico onde uma idia bsica de dois compassos seguida de uma idia

    contrastante de dois compassos (antecedente conseqente).

    A partir do compasso 76 o violo introduz o ltimo motivo a ser

    explorado no primeiro movimento. o argumento do solista em um dilogo

    com a orquestra cuja voz representada por um fragmento do segundo tema.

    II Andante (semnima = 66)

    A atmosfera deste movimento criada por alguns elementos derivados

    do choro. Aqui, a cena principal compartilhada pelo violo e pela flauta ao

    passo que as cordas so tratadas praticamente como uma textura de

    acompanhamento. Alguns dos indicadores de estilo do choro so simbolizados

    pela instrumentao, sendo a combinao flauta e violo uma formao tpica

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    do choro; a plasticidade da melodia; a forma como a harmonia conduzida

    pelos baixos do violo; e o estilo de acompanhamento. Com relao a este

    ltimo aspecto, um dos padres tradicionalmente aplicados em um choro

    exatamente o que tocado pelo violo logo no incio. O tapete harmnico

    formado o resultado de uma seqncia cromtica de acordes paralelos

    combinados com a quarta corda solta.

    Aps um episdio como solista o violo retorna funo secundria

    acompanhando um segundo tema que exposto pela flauta. De certa forma,

    este tema remanescente do tema principal do primeiro movimento, mantendo

    uma organizao intervalar bastante similar: uma quarta descendente seguida

    de uma segunda ascendente.

    III Com Espr ito (semnima = 138)

    Este movimento essencialmente um baio. Logo no incio, a levada

    do baio dividida entre o solista e o tmpano. Chamada de tresillo pelos

    cubanos, esta uma figura rtmica onipresente na msica da Amrica Latina e

    do Caribe (3 + 3 + 2). O tringulo completa a sonoridade tpica da msica do

    nordeste.

    No tocante ao elemento meldico, a msica do nordeste

    freqentemente associada ao uso do modo mixoldio. Mas, h ainda um outro

    tipo de escala, uma variao deste modo amplamente explorada que o

    hbrido ldio-mixoldio, ou seja, o modo mixoldio com a quarta aumentada. E

    exatamente esta escala com stima menor e quarta aumentada que Gnattali

    usa para construir o tema principal do terceiro movimento. Vale ainda ressaltar

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    que este tema guarda semelhanas notveis com o tema principal do primeiro

    movimento, mantendo os mesmos intervalos fundamentais.

    Depois de uma curta seo solo, uma nova unidade temtica

    harmonizada por um novo padro de acompanhamento de baio tocado pelo

    violo (compassos 89 a 92). Aqui se observa uma outra referncia ao idioma da

    msica do nordeste: tradicionalmente, este estilo incorpora convenes

    harmnicas muito simples onde acordes do primeiro, quarto e quinto graus so

    particularmente explorados. Muitas vezes, todos estes acordes aparecem com

    a stima menor, assim como ocorre no Blues. Desta forma, o trecho acima

    mencionado ilustra perfeitamente a familiaridade estilstica de Gnattali,

    mostrando uma progresso I IV um tanto cida.

    CONCERTINO N.2

    Dedicado a Annibal Agusto Sardinha, o Garoto, este concerto foi escrito

    pouco depois do Concertino n.1, sendo iniciado ainda em 1951 e completado

    em fevereiro de 1952, conforme consta no manuscrito. A primeira audio deu-

    se na Rdio Nacional, onde ambos Gnattali e Garoto trabalhavam na poca,

    com Garoto como solista e o compositor regendo a orquestra da rdio. Porm,

    a estria oficial aconteceu no dia 31 de maro de 1953 no Teatro Municipal do

    Rio de Janeiro com Garoto e a Orquestra do Teatro Municipal sob a direo de,

    mais uma vez, Eleazar de Carvalho.

    Curiosamente, o Concertino n.2foi estreado exatamente dois meses

    antes do Concertino n.1. Esta foi uma ocasio histrica, marcando a primeira

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    audio de um concerto para violo de um compositor brasileiro. Conforme

    observado por Gennady Zalkowitsch:

    A aparente irreverncia de Gnattali de colocar um violonista popular frente deuma orquestra sinfnica no sagrado Teatro Municipal no Rio foi simplesmenteuma extenso de sua atitude com relao msica em geral: ou o msico erabom o suficiente para dar concertos ou no era.12

    Gnattali deixou trs verses deste concerto: a partitura original para

    violo e orquestra (ainda no publicada); uma reduo para piano (tambm

    conhecida como Sonatina para Violo e Piano); e uma adaptao desta ltima

    para violo de 7-cordas e piano. A orquestrao consiste de: duas flautas

    (piccolo), dois obos, trompa, clarinete, clarone, fagote, seis primeiros violinos,

    seis segundos violinos, quatro violas, quatro violoncelos, dois contrabaixos e

    tmpanos.

    O motivo que deu vazo a este concerto foi bastante informal. Segundo

    Gnattali, um dia a esposa de Garoto lhe disse que o sonho de seu marido era

    tocar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Vale lembrar que naquela poca o

    Rio ainda era a capital do pas e o Municipal uma espcie de santurio da

    msica clssica. De acordo com os registros do teatro, at ento somente trs

    violonistas haviam se apresentado l: Regino Sainz de la Maza (1929), Andrs

    Segovia (1937/1942/1947), e Olga Praguer Coelho (1938/1947/1952/1953).13

    Assim, como prova da admirao de Gnattali, o Concertino n.2 foi de certa

    forma um convite que permitia a Garoto o acesso ao palco do Municipal.

    Conforme dito anteriormente, Gnattali sempre procurava imaginar o intrprete

    para quem dedicava uma obra, mas em nenhum outro dos concertos para

    12 Gennady Zalkowitsch, Radams Gnattali, the Eternal Experimenter, Classical Guitar v.9(October1990): 18-22. Minha traduo.

    13 Informao confirmada via e-mail por Carlos Eduardo Mouro do Teatro Municipal.

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    violo isto se aplica como no Concertino n.2. Mais que uma homenagem, esta

    obra foi feita sob medida para Garoto, sendo que Gnattali incorpora nesta

    composio alguns maneirismos harmnicos e tcnicos tpicos do estilo de

    Garoto.

    I Allegro Moderato (semnima = 126)

    Neste movimento Gnattali explora o mesmo modo utilizado no baio do

    primeiro concerto, o modo hbrido ldio-mixoldio ou escala com stima menor e

    quarta aumentada. Outro elemento importante neste movimento o uso

    sistemtico da nona aumentada, uma tenso caracterstica emprestada do

    jazz. Ambos Gnattali e Garoto eram grandes admiradores da msica

    instrumental norte-americana e a chamada escala blues, amplamente usada

    por msicos de jazz, oferece muitos dos intervalos escolhidos neste

    movimento. Aqui ns temos a nona aumentada (na verdade a tera bemol blue

    note uma oitava acima) assim como tambm a quarta aumentada e a stima

    menor, compartilhando alguns intervalos em comum com o modo ldio-

    mixoldio.

    Conforme mencionado anteriormente, um dos aspectos singulares deste

    concerto que o estilo de tocar de Garoto integrado no discurso musical.

    Uma destas caractersticas o uso dos cinco dedos da mo direita empregado

    em vrias passagens envolvendo acordes com cinco notas.

    II Saudoso (colcheia = 96)

    No manuscrito da partitura orquestral, a seguinte inscrio aparece no

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    canto direito: Sobre Motivos de Annibal A. Sardinha. Este manuscrito parece

    ter sido escrito pelo prprio compositor. Mas h uma segunda cpia feita pela

    sua irm, Ada Gnattali, pianista da primeira formao do Sexteto.14

    Curiosamente, nesta outra cpia no lugar do que foi mostrado acima aparece

    uma outra indicao: Escrito para a maneira de tocar do Garoto com os 5

    dedos da mo direita. Dito isto, temos aqui duas implicaes diferentes:

    enquanto a primeira sugere que este movimento foi baseado em motivos

    derivados da msica de Garoto, a outra restringe a influncia uma

    peculiaridade tcnica. Mas, considerando que o uso do dedo mnimo

    requerido em todos os trs movimentos, no faz muito sentido assinalar este

    detalhe somente no movimento central. Na verdade a impresso digital musical

    de Garoto no poderia estar mais presente. Entretanto, este movimento no

    contm nenhuma citao direta ou motivos facilmente reconhecveis tirados da

    msica de Garoto. Ao invs disto, Gnattali escreve maneira de Garoto,

    incorporando procedimentos harmnicos tipicamente usados por seu amigo

    bem como algumas citaes disfaradas de suas peas. De fato, este

    movimento praticamente uma pea para violo solo que poderia ter sido

    escrita por Garoto e adornada por um sutil acompanhamento orquestral.

    Segundo Gnattali, o segundo movimento um andante expressivo,

    quase uma improvisao. A atmosfera nebulosa da introduo delineada pela

    harmonia adstringente do violo onde, mais uma vez, o uso dos cinco dedos

    indicado. A seguir, o violo completa a introduo com uma longa escala

    descendente de tons inteiros que vem a ser uma referncia ao choro de Garoto

    para violo solo Jorge do Fusa. Esta passagem escalar cadencial marca a

    14 Grupo formado por Radams ao piano, Jos Menezes na guitarra, Chiquinho do Acordeom, LucianoPerrone na bateria, Vidal no baixo e, mais tarde, Larcio de Freitas no lugar de Ada, tambm ao piano.

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    transio da introduo para o carter mais sereno da exposio. Aqui, a

    harmonia escolhida por Gnattali nos transporta ao inconfundvel universo

    criativo de Garoto. Este um tipo de sonoridade comumente associada ao seu

    estilo, um acorde menor com stima menor e nona, algo que nos faz lembrar

    de peas como Duas Contas ou Gente Humilde.

    Dentre outras referncias msica de Garoto encontradas neste

    movimento, figuram:

    - O acorde de dominante no compasso 7, L com nona bemol e dcima

    terceira, semelhante a uma passagem no choro Enigma, de Garoto;

    - Tocada com um acompanhamento tpico de choro, a harmonia nos

    compassos 9 e 10 pode ser associada a um trecho da pea Um Rosto

    de Mulher;

    - Outra caracterstica do estilo de Garoto a forma como ele harmoniza

    uma melodia com acordes intercalados como nos compassos 13 e 68.

    Isto pode ser comparado a um tratamento similar utilizado em Medita-

    o;

    - O acorde arpejado de Bb7 em segunda inverso com nona e dcima

    terceira no compasso 17 tambm aparece em Nosso Choro e Voltarei;

    - O tipo de conduo de vozes no compasso 19 tambm pode ser vista

    em Carioquinha e Improviso;

    - A mudana harmnica que ocorre no compasso 22 exatamente a

    mesma da de Duas Contas;

    - Como pode ser observado no choro Enigma, o crculo de quintas

    incluindo acordes com stima maior que comea no compasso 32

    tambm uma referncia ao estilo de Garoto;

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    - Garoto freqentemente favorecia acordes dominantes mais cidos com

    a adio de extenses como nonas e dcimas primeiras aumentadas.

    Este tipo de harmonia como a do compasso 78 pode ser encontrada,

    por exemplo, no choro Sinal dos Tempos.

    III Allegretto com esprito (semnima = 138)

    Segundo Gnattali, este movimento foi baseado em um ritmo de

    macumba. O ostinato apresentado pelo tmpano logo no incio pode ser

    encarado como um ritmo remanescente de um ritual de candombl. No

    compasso 27 inicia-se uma seo solo onde o material da introduo imitado

    pelo solista. Novamente, observa-se o uso dos cinco dedos da mo direita.

    Estruturalmente este movimento organizado mais ou menos como um

    rond, com o elemento mais pungente da macumba (A) emoldurando duas

    sees lentas mais lricas: (B) Pouco Menos (semnima = 112) e (C) Menos.

    Ambos B e C so essencialmente sees solo com curtas intervenes

    orquestrais. Vale notar que nas gravaes de Garoto, Laurindo Almeida e

    Rabello, o tempo destas sees nitidamente mais lento que 112.

    Uma diferena curiosa que, no manuscrito da partitura com orquestra,

    nos compassos finais consta um acorde de L Menorao passo que na verso

    para violo e piano este acorde alterado para L Maior.

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    CONCERTO N.3

    Composto em 1956, foi dedicado a Jos Menezes. Foi originalmente

    intitulado Concertino n.3 para violo solista, com flauta, bateria, bells e

    orquestra de cordas. Aqui percebe-se que esta orquestrao um tanto

    diferente da partitura publicada que requer flauta, tmpanos e orquestra de

    cordas. Mais tarde, por razes editoriais, ficou conhecido como Concerto de

    Copacabana. Em 1981 Gnattali o arranjou para dois violes, dedicando esta

    verso a Srgio e Odair Assad. Este concerto e o Concertino n.2 so os nicos

    com reduo para violo e piano.

    Este praticamente um concerto duplo. A flauta tem a importncia de

    um solista e, assim como o violo, contrasta com a sonoridade mais aveludada

    das cordas. Tambm, a orquestrao deste concerto difere por ser mais

    transparente e equilibrada em comparao aos concertos anteriores onde uma

    orquestra mais densa exigida. Por outro lado, mais ambicioso no que diz

    respeito complexidade formal, densidade do discurso musical, dificuldade

    tcnica e durao. Com um esprito essencialmente urbano, o elemento

    popular no fica to evidente. tambm o nico que exige a afinao da sexta

    corda em R.15

    I Allegro (semnima = 112)

    O carter virtuosstico deste movimento tem suas razes na tradio do

    choro. O incio da seo solo retrata um dos tpicos indicadores de estilo do

    15 O que interessante que a maioria das peas para violo solo de Gnattali (12 de um total de 20)requer a sexta corda em R.

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    choro, o dilogo constante entre a melodia e o contraponto realizado nos

    baixos.

    II Calmo (semnima = 80) Expressivo

    Enquanto que os movimentos lentos dos dois primeiros concertos

    traziam o feitio melanclico de um choro ou de um samba-cano, aqui

    aparece a nica referncia valsa brasileira nos concertos para violo. A

    harmonia tocada pelas cordas logo no incio de certa forma evoca uma

    atmosfera impressionista, com o Bm7 funcionando como uma dominante

    menor preparando para o Em7. Mas, de repente, somos transportados da

    Frana dos anos 30 para o Rio de Janeiro sendo que a frase inicial executada

    pela flauta tem o mesmo contorno de Pastorinhas, clebre cano de Noel

    Rosa e Joo de Barro.

    Aps a introduo, d-se incio a uma seo solo partir do compasso

    9. A escrita fortemente inspirada no choro, explorando um estilo de

    acompanhamento ornamentado pelas baixarias que caracterstico do gnero.

    Mais tarde, a evocativa valsa de seresta d lugar a uma valsa brilhante. Com a

    indicao Leve em 1e a semnima pontuada a 72, esta seo concebida

    como uma tpica valsa choro em moto contnuo, ao estilo de Desvairada, de

    Garoto, ou O Vo da Mosca,de Jacob do Bandolim.

    III Ritmado (semnima = 120)

    Novamente, o elemento do choro est presente, porm, baseado em

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    uma leitura mais contempornea do gnero. A anacruse com trs

    semicolcheias uma das figuras meldicas mais utilizadas no repertrio do

    choro (como por exemplo em Odeon, Pago, Descendo a Serra, Chorei, entre

    outras). Logo em seguida o violo incorpora esta mesma idia, s que na forma

    de uma baixaria.

    A partir do compasso 108, h um interldio reunindo ambos os solistas

    onde o violo acompanha a flauta usando alguns padres comumente

    encontrados no choro. Com relao estrutura, este movimento de certa

    forma organizado como um rond, mas no inclui uma seo lenta como nos

    movimentos finais dos concertos anteriores.

    CONCERTO N.4

    Aps um hiato de onze anos, o ltimo concerto para violo solo de

    Gnattali foi composto em 1967 e dedicado a Laurindo Almeida. Assim como o

    Concerto n.3, esta obra usualmente conhecida pelo seu ttulo editorial,

    Concerto Brasileira. Foi estreado no dia 6 de junho de 1971 em Los Angeles,

    Estados Unidos, por Laurindo Almeida.

    Formalmente, talvez seja o concerto mais resolvido dos quatro, pois

    tanto a concepo temtica e a estrutura so concisas e convincentes.

    Tambm, vem a ser o mais prtico sendo que exige somente uma orquestra de

    cordas (3 primeiros violinos, 3 segundos violinos, 2 violas, 2 violoncelos e 1

    contrabaixo). A orquestrao bastante transparente, viabilizando um dilogo

    pleno entre o solista e as cordas. Dito isto, interessante notar que ao longo

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    dos anos a orquestrao dos concertos para violo ficou cada vez mais

    simples. Comparando os quatro concertos, observa-se uma inclinao

    formaes de cmara mais sucintas: desde a orquestrao mais complexa dos

    dois primeiros concertos, o terceiro situa-se como que uma transio ao

    formato menos complicado alcanado no quarto concerto.

    I Allegro Moderato (semnima = 116)

    O primeiro aspecto que chama a ateno neste movimento a

    configurao mtrica singular do tema principal, com um grupo de dois

    compassos contendo um 3/4 seguido de um 2/4, formando assim um grande

    5/4. Isolando-se o contedo de cada compasso, observa-se na unidade em 2/4

    um dos motivos rtmicos mais utilizados na msica brasileira. Esta figura,

    remanescente do ritmo da habanera, tpica de maxixes, tangos brasileiros e

    sambas antigos. Com relao unidade em 3/4, uma possvel leitura seria

    considerar o contedo dos dois primeiros tempos como uma verso aumentada

    da conhecida sncope semicolcheia colcheia semicolcheia.

    Enquanto que configuraes mtricas como esta em 5/4 so a norma

    em pases como Bulgria, Romnia ou Turquia, a msica popular da Amrica

    do Sul essencialmente binria (com a exceo da valsa e do merengue

    venezuelano). A partir dos anos 60, a presena de ritmos considerados

    irregulares (de acordo com os padres ocidentais) fica mais evidente nas obras

    de Gnattali. No repertrio para violo podemos citar, por exemplo, a Sonata

    para Violo e Violonceloe o Concerto para Dois Violes, Obo, e Orquestra de

    Cordas.

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    Dando seqncia ao ritornelloinicial, a esperada seo solo comea no

    compasso 21 explorando o material da exposio orquestral. H dois

    elementos rtmicos fundamentais que do unidade a este concerto: a figura do

    maxixe mencionada anteriormente (motivo 1) e uma segunda figura recorrente

    em outras obras (motivo 2 compasso 15), utilizado sistematicamente por

    Gnattali nos seus Dez Estudos para Violo(mais especificamente nos estudos

    2, 6 e 9), escritos no mesmo ano do Concerto n.4.

    Um detalhe que distingue este concerto o fato de ser acrescentado um

    acompanhamento orquestral na re-exposio, criando uma dinmica

    progressiva no final deste movimento.

    II Lento (colcheia = 66 72)

    Este movimento comea com uma introduo de violo solo de 16

    compassos. Logo nas trs primeiras notas, o tema pode ser imediatamente

    associado Summertime, composio de George Gershwin e letra de Ira

    Gershwin. Segundo Roberto Gnattali, professor da Unirio e tambm sobrinho

    do compositor, Radams ficou bastante frustrado com uma crtica sobre este

    concerto que o acusava de plgio. De acordo com Roberto, Radams havia lhe

    dito que este tema no tinha nada em haver com Summertimee que teria sido

    na verdade inspirado no choro Cochichando, de Pixinguinha. Mas, obviamente,

    a comparao inevitvel j que esta msica de Gershwin uma das melodias

    mais famosas de todos os tempos.

    Composto por Pixinguinha nos idos dos anos 40, Cochichando um

    choro tradicional em trs partes. Para os fins deste estudo, somente a primeira

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    parte pertinente. Summertime uma ria da pera Porgy and Bess, escrita

    em por George Gershwin em 1935. Primeiramente, as trs peas possuem

    esquemas harmnicos completamente distintos. Tanto o ostinato la Satie de

    Summertime e as progresses tradicionais de Cochichando no tm

    absolutamente nada em comum com o segundo movimento deste concerto.

    Por esta razo, vamos nos concentrar ento no aspecto meldico.

    Observando-se o incio deste movimento, fica claro que a anacruse cromtica

    descendente caracterstica de Cochichando foi omitida, o que inevitavelmente

    refora os laos com Summertime. No entanto, pode-se constatar que a

    mesma anacruse com a tera maior est presente ao longo do choro de

    Pixinguinha.

    No arranjo de Cochichandoque Gnattali escreveu e gravou com o seu

    Sexteto em 1975, a anacruse cromtica tambm omitida e o tema comea

    precisamente como a segunda frase, ou seja, com a mesma figura sincopada

    com a tera maior usada no concerto. Da mesma forma, em outra obra escrita

    em 1950, a Sonatina Coreogrfica, Gnattali usa o mesmo motivo no segundo

    movimento, Samba Cano. Aqui, a anacruse cromtica aparece mais tarde na

    pea, estabelecendo outra referncia velada aCochichando.

    Ainda, este movimento estaria mais fortemente associado ao choro de

    Pixinguinha pelo fato de no s guardar a mesma proporo do gesto inicial

    (colcheia semicolcheia), como tambm por manter as mesmas notas da

    tonalidade original de Cochichando(R Menor). Mas a verdade que ningum

    pode saber o que se passa na imaginao de um compositor no momento da

    criao. De qualquer forma, seja Gershwin ou Pixinguinha, a companhia

    finssima, e o que importa que este movimento resultou em uma pea que se

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    sustenta e com grande charme e sensibilidade.

    III Ritmado (semnima = 120 126)

    Este movimento traz outro padro de ritmo irregular, porm, com uma

    assimetria mais acentuada do que no primeiro movimento. Enquanto que a

    configurao de 3/4 e 2/4 permitia um pulso regular de semnima, aqui Gnattali

    combina compassos de 2/4 e 3/8, criando uma sncope singular e vibrante. De

    fato, a unidade resultante de dois compassos exatamente o motivo 2

    acrescido de uma colcheia.

    Comeando no compasso 47, as cordas exploram ambos os motivos 2

    (abreviado) e 1 inseridos em um grupo de dois compassos que sero

    sistematicamente repetidos. Alm disso, esta idia ser intercalada por outra

    unidade de dois compassos contendo a mesma configurao rtmica usada no

    acompanhamento do violo no compasso 25 do segundo movimento, formando

    assim um grande grupo de quatro compassos. Na seqncia, uma curta seo

    solo explora um ostinatobaseado em uma verso mais quadrada em 2/4 do

    motivo 2 (compassos 63 e 64).

    A figura rtmica recorrente do compasso 25 do segundo movimento

    reaparece a partir do compasso 136. Desta vez, entretanto, ela acomoda um

    contorno meldico parecido com o do Estudo n.9, sendo tambm uma variao

    do que foi apresentado anteriormente pelas cordas no compasso 47,

    consistindo de uma unidade repetida de dois compassos.

    A re-exposio traz um dilogo entre o solista e a orquestra explorando o

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    motivo inicial. No compasso 186, o violo introduz um ostinato enrgico com

    acordes paralelos usando o ritmo do motivo presente no comeo deste

    movimento. Isto intensificado por um aumento gradual da densidade da

    textura orquestral, levando o movimento a um forte tutti final.

    CONCLUSO

    O nome de Gnattali ainda visto como novidade no circuito violonstico

    internacional, apesar da grande maioria das suas obras para violo estar

    editada nos Estados Unidos e rigorosamente todas as partituras dos concertos

    para violo serem distribudas por editoras norte-americanas. A viabilizao

    dessas peas se deve iniciativa do violonista Laurindo de Almeida que,

    residindo na Califrnia desde 1947, inaugurou sua prpria editora em 1952, a

    Brazilliance Music Publishing.16 Em 1967, ano em que Gnattali comps o

    quarto concerto para violo (dedicado a Laurindo), todos os seus concertos

    para violo solo foram publicados pela Brazilliance, com a exceo da grade

    orquestral do Concertino n.2que ainda se encontra em manuscrito. Poder-se-ia

    de alguma forma at lamentar a impossibilidade de se encontrar tais partituras

    onde seria o lugar mais bvio, no Brasil, onde essas obras foram concebidas e

    estreadas. Mas ao menos este material foi publicado, o que no o caso da

    maior parte da vasta obra de Gnattali, incluindo os demais concertos (piano,

    violoncelo, gaita de boca, acordeom, etc.), sinfonias, duos, trios, quartetos, sem

    mencionar a quantidade espantosa de arranjos e transcries.

    16 Ron Purcell, Laurindo Almeida, Part II, Guitar Reviewno.110 (1997): 18-27.

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    Na dualidade da sua produo musical, a face do universo popular a

    que se mostra mais evidente em termos de uma identidade atual, ou ainda,

    comercial. O nome de Radams Gnattali imediatamente associado sua

    produo artstica como arranjador da Rdio Nacional, compositor e pianista do

    Sexteto e da Camerata Carioca.17Mas a obra de concerto de Gnattali merece

    ser mais amplamente conhecida, tanto pela sua qualidade quanto pela

    importncia que representa na histria da msica brasileira.

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