2º encontro - a ditadura militar em goiás. depoimentos para a história

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A DitADurA militAr em Gois

depoimentos para a histria

antnio pinheiro salles (coordenador)

A DitADurA militAr em Gois:

depoimentos para a histria

Goinia, 2008 Poligrfica Off-set e Digital

Copyright 2008 by Antnio Pinheiro Salles (coord.)

Diagramao: Carlos Augusto Tavares Arte da capa: Carlos Augusto Tavares e Pinheiro Salles Capa: Fotos de representantes da ditadura e de duas pessoas (Ismael Silva de Jesus e Jos Porfrio) que deram a vida em defesa da democracia.

Coordenador: Pinheiro Salles Organizadores: Pinheiro Salles e Joo BertolinoCoordenao Grfica: Poligrfica Off-set e Digital Fone: (62) 3280-2000 www.poligrafica.com.br

CIP. Brasil. Catalogao na Fonte BIBLIOTECRIA PBLICA MUNICIPAL MARIETTA TELLES MACHADO S578d Salles, Antnio Pinheiro - coordenador A ditadura militar em Gois: depoimentos para a histria / Goinia : Poligrfica Off-set e Digital, 2008. 184 p. il. ISBN: 978-85-7766-353-8 1. Ditadura Militar - Gois - histria. 2. Gois - histria poltica. I. Ttulo CDU: 321:64(817.3)

Ressalvando-se as questes legais, este livro pode ser copiado, reproduzido, no todo ou em parte, para contribuir com a informao das pessoas, principalmente dos jovens. Se for possvel, que seja citada a fonte. Impresso no Brasil Printed in Brazil 2008

Para contatos: Gabinete do deputado Mauro Rubem (PT-Gois), presidente da Comisso de Direitos Humanos da Assemblia Legislativa. Fones: (62) 3221-3223 / 3221-3222

SumrioJardel Sebba - Compromisso com a Histria .............................................. 13 Mauro Rubem - Ditadura militar jamais ..................................................... 15 Pinheiro Salles - Recuperar a memria e caminhar para a frente ............ 25

DEPOIMENTOSAbro Marcos da Silva - Foras Armadas exigem demisso ..................... 33 Aguinaldo Lzaro Leo - Morte de Israel e nomes de assassinos ............. 37 Alaor Souza Figueiredo - A necessidade do combate tortura................. 43 Aldo Arantes - Minha atuao foi reconhecida nacionalmente............... 47 Antnio Pinheiro Salles - Meus sonhos sobrevivero nas flores vermelhas ........................................................................ 51 Carlos Alberto Santa Cruz - Ditadura anestesiou gerao atual ..............63 Carmina Castro Marinho e Nlson Pereira Marinho - Represso levou posseiro morte ............................................................................... 67 Dirce Machado da Silva - Terror levado aos camponeses de Trombas e Formoso ............................................................................................. 71 lio Cabral de Souza - Mtodo Paulo Freire foi ao campo....................... 81 Eudes Pacheco - Juventude resiste e tem esperana................................... 87 Hugo Brockes - Que no se permita a volta da ditadura ........................... 91 Joo Silva Neto - Uma sucesso de sofrimentos e martrios .................... 95 Joaquina Ramos de Castro - Mulher, me, revolucionria ...................... 99

Jos Porfrio de Souza - Lendria luta camponesa de Trombas e Formoso .....103 Luiz Antero de Morais - Fiquei com seqelas permanentes ................... 107 Luiz Carlos dos Santos - Carregamos Mauro Borges nos braos ........... 109 Marcantnio Dela Crte - Muitas histrias dentro da Histria .............. 117 Mrcio Beck e Maria Augusta - Chacina de Rio Verde tem autor identificado ................................................................... 127 Marcos Antnio Dias Batista - Menino enfrentou a ditadura ............... 131 Maria de Campos Batista - Me morre procurando o filho desaparecido .................................................................................. 133 Maurcio Samuel Zaccariotti - Movimento estudantil e sindical, priso, socialismo ........................................................... 137 Neso Natal - Militantes levam armas do quartel de Anpolis ............... 141 Sebastio Gabriel Bailo - Uma vida em defesa do socialismo.............. 145 Tarzan de Castro - Repercusso at no FBI.............................................. 149 Valdi Camarcio Bezerra - Prisioneiro de alta periculosidade ................ 153 Valterli Guedes - 1964: Gois no contexto do golpe ................................ 159 Walders Nunes Loureiro - Memria inclui muitos mortos ................... 163 Wilmar Antnio Alves - Wilmar demorou a voltar ................................. 173 Painel de fotos ............................................................................................... 177 Homenagem aos mortos e desaparecidos polticos de Gois ................. 183

As minhas flores, plantadas (vermelhas, preocupadas) L no fundo do quintal, Falam de corpo na maca, Marcado de medo e taca, Na terra do carnaval. Wilmar Alves

Este livro dedicado aos familiares dos mortos e desaparecidos, que tanto sofreram, sofrem e resistem, participando das lutas do nosso povo. Ainda, memria dos sobreviventes que se foram sem oportunidade de nos deixar os seus valiosos depoimentos. Especiais agradecimentos a Ceclia Torres Borges, Fleurymar de Sousa, Salma Saddi, Kennedy Trindade, Jairo Vicente de Melo, Airvlton Machado, Roosevelt Arantes da Rocha, Luiz Signates, Jos Luiz Bittencourt Filho, Renato Dias, Pedro Jnior, Antnio Almeida, Fbio Fazzion, Batista Custdio, Geraldo Fbio de Assuno, Carlos Augusto Tavares, Alziro Zarur, Rodrigo Sanches Gracia e Paulino Alves.

Jardel Sebba

Compromisso com a Histria

or ser um poder democrtico e transparente, que se esfora para se manter em profunda sintonia com a sociedade, a Assemblia Legislativa do Estado de Gois tem um compromisso com a Histria. Compromisso que no se restringe a jogar luzes sobre feitos hericos e momentos de glria. Compromisso que nos obriga, muitas vezes, a tocar em feridas antigas e jamais cicatrizadas. Por esse motivo, a Assemblia Legislativa do Estado de Gois no titubeou ao publicar A ditadura militar em Gois: depoimentos para a Histria. Por mais que fatos dolorosos tenham ocorrido, nunca poderemos relegar ao esquecimento tudo que este Pas viveu sob o regime militar, entre 1964 e 1985. Todos aqueles que exercem uma funo pblica tm o redobrado dever de contribuir para reavivar a memria dos que testemunharam aquele perodo, e apresentar os fatos com coragem e iseno s novas geraes. No porque seja nosso desejo, simplesmente, cultuar a dor e o passado. Mas, principalmente, para que aprendamos com os erros e acertos, jamais esquecendo quanto nos so caros os valores democrticos. No h bem mais valioso que a liberdade. No h caminho mais seguro para a justia e a igualdade do que a Democracia.13

P

No momento em que os cidados demonstram profundo desencanto pela poltica partidria, fundamental lembrar que este Pas teve suas liberdades democrticas resgatadas com sangue e lgrimas. A despeito das sucessivas crises e dos escndalos, somos uma Democracia e devemos nos orgulhar disso. Pagamos um preo muito alto pelo sagrado direito de escolher nossos representantes em eleies livres e diretas. Vidas se perderam para que pudssemos ter liberdade de pensamento, de opinio e de associao poltica. O livro h de cumprir um relevante papel, contribuindo para a preservao da nossa memria. Os depoimentos contidos em A ditadura militar em Gois, editado sob a coordenao da Comisso de Direitos Humanos da Assemblia Legislativa do Estado de Gois, foram prestados por pessoas envolvidas diretamente no processo de resistncia. Todos os personagens estiveram presos e conheceram a brutalidade da tortura. As suas opes partidrias, no presente ou no passado, no foram consideradas pela coordenao dos trabalhos. Se concentramos as informaes nos limites goianos, foi por compreender que o Estado carente de informaes regionalizadas. Que o nosso livro, portanto, v para as ruas, conquiste lugar nas escolas e bibliotecas de Gois, chegando especialmente s pessoas mais jovens. Que todos ns possamos encontrar nesse passado suficiente motivao para lutar com bravura pela construo de um Brasil melhor e mais justo. Goinia, agosto de 2008Jardel Sebba, deputado estadual, presidente da Assemblia Legislativa do Estado de Gois 14

Mauro Rubem

Ditadura militar jamaisditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, causou indescritveis prejuzos ao conjunto da populao de nosso pas, embora as classes dominantes se iludam com o saldo poltico e econmico que conseguiram sombra dos quartis. Ningum deixou de ser direta ou indiretamente atingido pelas malvolas garras do regime militar, todas desenvolvidas a partir do golpe tramado e executado com a assessoria do governo dos Estados Unidos, que calculou os seus efeitos em toda a Amrica Latina. Com reconhecida experincia no desrespeito autodeterminao dos povos, o imperialismo moveu, antes do golpe, uma nefasta campanha ideolgica contra o governo de Joo Goulart. Para isso, houve uma intensa comunicao entre a embaixada norte-americana no Brasil e a Casa Branca, para aperfeioamento dos detalhes do apoio, dentro da Operao Brother Sam, que s foi desmobilizada aps a confirmao do sucesso do movimento. A operao inclua: porta15

A

avies, destrieres, navio para transporte de helicpteros, petroleiros, avies de carga e de abastecimento, caas e um posto de comando aerotransportado, alm de barris de combustveis e 110 toneladas de armas e munies. Assim, o governo dos Estados Unidos monitorou as iniciativas dos militares, dos polticos e empresrios golpistas. Conforme dados levantados por Janana Teles e divulgados no seu livro Os Herdeiros da Memria. A Luta dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Polticos por Verdade e Justia no Brasil, mesmo no estando concluda a radiografia dos atingidos pela represso poltica, j se pode afirmar: Cerca de 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses da ditadura; cerca de 20 mil pessoas foram submetidas a torturas durante a ditadura; e h 356 mortos e desaparecidos polticos indenizados pela Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Politicos da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica. Ainda: 7.367 acusados e 10.034 atingidos na fase de inqurito em 707 processos judiciais, por crimes contra a segurana nacional, que foram estudados no projeto; milhares de presos por motivos polticos; quatro condenaes pena de morte; 130 banidos; 4.862 cassados; 6.592 militares atingidos; grande nmero de exilados; e centenas de camponeses assassinados (esses dados constam, tambm, do livro Direito Memria e Verdade a Ditadura no Brasil, 1964 a 1985). Dentre os primeiros cassados, esto: Joo Goulart, Jnio Quadros, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Lus Carlos Prestes e Celso Furtado.16

To logo o presidente Joo Goulart foi afastado do governo, as perseguies polticas se espalharam pelo pas inteiro. As primeiras denncias de tortura vieram tona no Rio de Janeiro e em Pernambuco, onde o admirado lder comunista Gregrio Bezerra foi preso e entregue ao tenente-coronel Darcy Villocq Viana, que o amarrou e o arrastou (isso mesmo!) pelas ruas de Recife, em cenas mostradas na televiso, para servir de exemplo. Mas o terror absoluto somente se consolidou com a imposio do Ato Institucional n 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968 (certamente Hitler e Mussolini gostariam de assin-lo). Esse tenebroso instrumento puniu, em 10 anos, 1.607 pessoas, incluindo-se a cassao do mandato de seis senadores, 110 deputados federais, 161 deputados estaduais, prefeitos e vereadores. A censura prvia vetou 500 filmes, 450 peas teatrais, 200 livros e 500 canes. Levando diretamente a censura para dentro dos jornais, rdios e televises, o AI-5 somente liberava as matrias de interesse dos militares. A sede da Unio Nacional dos Estudantes, no Rio de Janeiro, foi ocupada e incendiada pelo aparelho repressivo da ditadura. Em Gois, o governador Mauro Borges, filho do ento senador e ex-governador Pedro Ludovico, manifestou seu apoio ao golpe de Estado ( Revoluo). Mas, mesmo assim, intensificou-se a presso sobre ele, ocasionando uma crise que atraa as atenes de todo o pas. Diante das ameaas e da intranqilidade gerada, Mauro Borges, sempre com muita calma e dignidade, procurou respaldo na mobilizao popular. E, cada vez mais, o cerco foi17

apertado, com uma permanente guerra de nervos, sendo fabricados argumentos para desestabilizar o governo e abalar a sua popularidade. Aps um doloroso processo de intimidao, Mauro Borges caiu, verdade, s que saiu do Palcio das Esmeraldas nos braos do povo. A partir da, com maior facilidade se intensificou a represso poltica, repetindo aqui o que acontecia nos demais Estados: medo, insegurana, violncia, priso, tortura, morte, desaparecimento... Tudo isso num clima de conspiraes e disputas do mais baixo nvel, tendo como principais atores os polticos fascistas, militares arrogantes, torturadores que conseguiram assento nos centros de intrigas, arengas, infmias e asquerosas atitudes, como instalao de aparelhos de espionagem no gabinete do prprio governador binico que tinha Hitler como dolo. Os mortos e desaparecidos goianos, ou que tiveram sua histria de vida (ou de morte?) ligada a Gois, so: Arno Preis, Cassemiro Lus de Freitas, Divino Ferreira de Souza, Durvalino de Souza, Honestino Monteiro Guimares, Ismael Silva de Jesus, James Allen Luz, Jeov de Assis, Jos Porfrio de Souza, Mrcio Beck Machado, Marcos Antnio Dias Batista, Maria Augusta Thomaz, Ornalino Cndido, Paulo de Tarso Celestino e Rui Vieira Bebert. Eles foram mortos ou desapareceram, entre 1968 e 1979, porque defendiam a Justia e a Liberdade, no se calando nem se omitindo diante dos crimes que os militares praticavam contra o povo. Em 28 de agosto de 1979, a anistia poltica foi vitoriosa, representando uma destacada conquista democrtica e possibilitando o retorno dos banidos18

e exilados, a abertura dos ferros que mantinham os sobreviventes nos pores do regime e o abandono da clandestinidade por quem ainda palmilhava os tortuosos caminhos no identificados pelos esquemas da represso. Mas os militares tiveram a seu favor a timidez dos polticos vacilantes, conciliadores, sem compromisso para enfrentar os argumentos dos protetores de quem praticou crimes imprescritveis. Ao contrrio do que se fez em pases vizinhos, aqui se assegurou a impunidade dos torturadores, com posicionamentos polticos que inibiram as necessrias iniciativas jurdicas. Os governos que vieram depois no tiveram pulso para repudiar os engodos dos criminosos. E isso, segundo o jornalista profissional, bacharel em Direito e ex-preso poltico Pinheiro Salles, traz uma srie de preocupaes, porque a educativa punio dos algozes fundamental, principalmente para que as novas geraes nunca se intimidem diante das manobras de to alto custo para o povo. Pinheiro Salles adverte: Se os verdugos no so punidos e execrados publicamente, eles se sentiro estimulados a defender regimes autoritrios; a populao no se mobilizar para garantir o aprofundamento das conquistas democrticas; e nada ser feito para concretizar uma definitiva ruptura com o tempo do terror. A Comisso de Direitos Humanos, Cidadania e Legislao Participativa da Assemblia Legislativa do Estado de Gois, que pela segunda vez tenho a honra de presidir, tudo faz no sentido de no permitir qualquer omisso no combate ininterrupto violncia no Estado.19

Assim, com a publicao deste livro reunindo depoimentos de pessoas que enfrentaram as atrocidades da ditadura militar, esperamos contribuir para a conscincia do nosso papel na sociedade de classes em que vivemos. Ningum tem o direito de fechar os olhos, ou lavar as mos, quando a injustia se levanta perto ou longe de ns, porque Gois um importantssimo pedao do mundo. Sado o Legislativo goiano, reconhecendo a fora de sua participao na defesa da democracia e da justia. Aqui se realizaram vigorosos debates, com os inevitveis confrontos ideolgicos e a preocupao de resgatar a memria das lutas do nosso povo. Quem ousa desfraldar a bandeira das transformaes sociais, seguindo em direo a um futuro melhor, no pode fugir da correta interpretao da realidade atual, projetando a edificao de um mundo que valorize a vida. As pessoas que tentam ridicularizar o esforo para divulgao da nossa histria, com o objetivo de levar informaes populao, no sabem ou fingem no saber o que de mais nocivo proporcionou a ditadura militar para o povo brasileiro. O golpe de Estado no Brasil, em 1964, abriu as portas para implantao de outras ditaduras, alcanando ndices alarmantes de crueldade na Argentina, no Uruguai e no Chile, com a presena do Paraguai na cooperao entre os agentes da represso e os interesses das classes dominantes na Amrica do Sul (a Operao Condor, com a ajuda financeira do imperialismo norte-americano, eliminou todas as fronteiras desses pases). Alm disso, imensos prejuzos aconteceram na educao, na cincia e tecnologia etc, com mais intensidade20

no comportamento de grande parte da polcia, que continua desrespeitando os direitos humanos mais elementares. Essas lamentveis constataes muito justificam a edio deste livro, gerido pela Comisso de Direitos Humanos, com apoio da Mesa Diretora da Assemblia Legislativa do Estado de Gois (responsvel pela publicao), sob a presidncia do deputado Jardel Sebba. Os depoimentos de militantes que incomodaram a ditadura possuem um inequvoco valor histrico, que o Legislativo goiano percebeu em boa hora, j que as denncias e outras observaes no devem seguir para o tmulo com os personagens daqueles soturnos tempos. Outros tantos depoimentos poderiam constar do livro, mas ficam de fora em funo das dificuldades de localizar essas pessoas e produzir o material no prazo solicitado, para comemorar os 29 anos da anistia, no dia 28 de agosto (2008). Faltam, tambm, informaes sobre a Guerrilha do Araguaia (1973-1974), encaminhada pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B). Sem dvida, foi uma das altas manifestaes da resistncia ditadura militar. Ali, no norte de Gois (antes da diviso do Estado) e sul do Par, as Foras Armadas praticaram violncias que ferem comezinhos princpios do relacionamento humano. Segundo as prprias pessoas que participaram dessa ttrica represso, nada pode ser comparado s barbaridades que atingiram os simples moradores da regio. Mas nada se fez, desde ento, contra aqueles que violentaram os sonhos dos jovens de todo o pas. Imprescindvel o reconhecimento, na edio deste livro, da contribuio oferecida pela Associao21

dos Anistiados de Gois (Anigo). Ela nos ajudou no levantamento dos dados para os respectivos depoimentos. Este nosso livro comprova a necessidade de outras providncias, trazendo esses camaradas para o centro das discusses polticas e para uma atuao altura do que eles representam. Isso tudo, naturalmente, com o expurgo dos oportunistas de planto, hoje atrelados aos herdeiros do regime militar. Eles informaram que a luta de classes no prev frias e aposentadorias, nem a mudana de lado no processo de emancipao do povo. Parte da imprensa goiana, movida pelo preconceito ou pela ignorncia a respeito do terror implantado em Gois e em todo o restante do Brasil, rene argumentos chulos para desqualificar quem recebe uma reparao econmica e quem a paga, sem levar em considerao os mais relevantes aspectos analisados pela Comisso Nacional de Anistia, vinculada ao Ministrio da Justia. O governo federal s erra em no assumir publicamente, com entusiasmo, essa medida democrtica, patritica, que deveria ser motivo de orgulho para o conjunto da populao brasileira. Do jeito atravessado que se trata a questo, os anistiados at se sentem constrangidos, envergonhados, por receber uma penso, que, alis, oferece as condies mnimas para a dedicao continuidade da luta poltica por uma sociedade verdadeiramente democrtica. Para concluir, fao um especial agradecimento aos familiares dos desaparecidos polticos e lhes recomendo a aceitao da honra de ser quem so. A Assemblia Legislativa de Gois, em sua trajetria, ainda no havia se pronunciado, com tamanha galhardia, sobre o regime22

autoritrio dos militares, nem mesmo quando foram suprimidos mandatos de seus parlamentares. Se ela hoje homenageia os deputados que desafiaram a ditadura, perdendo por isso o mandato e a vida, sabe agora que no mais se calaria em situao semelhante. Muitas informaes chegaram s nossas mos, sobre a resistncia dos perseguidos e sobre o sadismo dos repressores, que hediondos crimes cometeram em nossa terra. Estou convencido de que esse nosso trabalho no vai terminar aqui. Ningum ousaria negar: houve momentos de inconfundvel herosmo na luta em defesa da democracia e da justia; houve lgrimas na hora de alguns depoimentos; e houve, sobretudo, a alegria de verificar que, com mais firmeza, prossegue a nossa marcha democrtica. Ditadura militar jamais.Mauro Rubem, deputado estadual, presidente da Comisso de Direitos Humanos da Assemblia Legislativa do Estado de Gois

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Pinheiro Salles

Recuperar a memria e caminhar para a frente

O

s 21 anos da ditadura militar (1964-1985), que no teve limites na prtica da violncia contra seus opositores, continuam presentes na vida do povo brasileiro. Por isso, quando so comemorados 29 anos da anistia poltica, a Assemblia Legislativa e sua Comisso de Direitos Humanos do uma significativa contribuio a esse debate, editando o livro A ditadura militar em Gois: depoimentos para a Histria. E tudo adquire uma importncia maior porque, pela primeira vez, ministros do governo admitem a punio dos torturadores. At 1973, os agentes da represso procuravam encobrir o assassinato de presos polticos entregando os cadveres s suas famlias e dizendo que eles haviam morrido em tiroteios, atropelamentos, tentativas de fuga ou suicdio. A partir desse ano, sendo consideradas inconsistentes as justificativas, teve incio a predominncia do desaparecimento. Dessa forma, no se reconhecia a priso (o seqestro). E os corpos das vtimas eram jogados em alto mar ou sepultados, clandestinamente, na periferia das grandes cidades ou, ainda, enterrados como indigentes, com nomes falsos.25

Evidentemente, os mesmos mtodos de violncia e opresso foram aplicados aqui em Gois, onde tambm houve perseguio, tortura e morte, num clima de desconfiana que envolvia os militares e todos os que lhes davam sustentao poltica. Em 1964 e 1965, 147 oposicionistas goianos conheceram as prises e os maustratos. Passando pelos aterrorizantes IPMs, eles deveriam, em seguida, ser enviados Auditoria Militar de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Mas muitos foram poupados dessa viagem, medida que no se preocupava com a formalizao dos processos, especialmente durante o governo militar do interventor Emlio Ribas Jnior. Lembre-se, a propsito, que a interveno no Estado de Gois determinou o afastamento do governador Mauro Borges, do Palcio das Esmeraldas, no dia 26 de novembro de 1964. A ditadura, observando o apoio popular recebido pelo filho do Doutor Pedro Ludovico Teixeira (fundador de Goinia, governador, senador), procurou amedrontar a multido aglomerada na Praa Cvica. Mas, aos vos rasantes dos avies, muito barulho e ameaas diversas, as respostas do povo se davam com gritos que expressavam coragem e indignao. O povo dali somente se retirou carregando nos braos o seu governador. Dentre os verdugos goianos, alcanou maior notoridade o capito Marcus de Brito Fleury. Tanto assim que, durante o governo de Irapuan Costa Jnior (binico), ele foi secretrio de Estado, com livre trnsito no Palcio do Planalto. Ao mesmo tempo, coordenou uma equipe de torturadores, composta pelos sargentos Tompson, Garcia Neto e Guido Fontegalnd Ferro. Se nacionalmente foi incentivado o dedodurismo como virtude cvica, em26

Gois essa nojeira ocupou nveis alarmantes, afirmandose como elemento fundamental para o preenchimento de altos postos no regime militar. Destacaram-se com competncia, no degradante ofcio de torturadores, os agentes Jos Xavier Bonfim, depois delegado do Dops; Almiro Cruz, Jos Azevedo Soares e Joveny Aparecido Cndido de Oliveira. Ainda: Jernimo Geraldo de Queiroz, que delatou o reitor Paulo T. Borges e recebeu de presente a Reitoria da UFG. Na abjeta prtica da violncia, no poderiam ser excludos o capito Anbal, capito Albuquerque e o coronel Danilo. Tambm: Saleh Daher, Darci de S da Cunha Mello e o capito Herbert Curado, que chegou a comandar a Secretaria de Segurana Pblica. As acusaes feitas a algum quase sempre tinham em vista o cargo preenchido por esse algum. O engenheiro Irapuan Costa Jnior, por exemplo, no perdia tempo. Conseguiu ser nomeado diretor da Faculdade de Engenharia, que era dirigida por Gabriel Roriz, de quem se fizeram as denncias pertinentes. Ento, quando falamos nos crimes da ditadura, no podemos limitar a nossa exposio s barbries que nos levavam de volta aos primrdios da Idade Mdia. Sem possibilidade de fiscalizao, o povo conviveu com o desperdcio em obras faranicas, socorro a empresas falidas, imorais privatizaes, subornos, corrupo desenfreada... Mas nenhum governo, desde Sarney, assumiu um compromisso democrtico que levasse ao encaminhamento de um debate pblico sobre a punio dos algozes e dos polticos que acobertaram os seus crimes. A falta dessa pedaggica iniciativa oferece aos torturadores, de bandeja, condies para retomar o discurso daquele ttrico27

perodo, acreditando que a impunidade sempre lhes ser assegurada. Desse jeito, as vivas do mal procuram (e acham!) algum espao para espalhar suas calnias e difamaes, com saudade do tempo em que o Palcio das Esmeraldas funcionava como centro de irradiao das concepes e aes nazi-fascistas. O jornalista Clvis Rossi, da Folha de S. Paulo, afirma que a memria da infmia foi convenientemente arquivada, dando-nos a concluso de que, na Amrica Latina, a histria continua sendo contada mais pelos algozes do que pelas suas vtimas. Principalmente por isso, cresce a importncia da edio do livro A ditadura militar em Gois: depoimentos para a Histria. Estou convencido de que a Assemblia Legislativa de Gois d um passo alm das mesquinharias e tapeaes que permeiam a sociedade brasileira. Quanto punio dos torturadores, o que falta no a correta interpretao ou reviso da Lei da Anistia, mas a vontade poltica do governo federal. Se no forem punidos, os repressores se sentiro estimulados para construir outros regimes que valorizem seus mtodos de interrogatrio, silenciando o povo. Pouca gente se mobilizar para garantir o aprofundamento das conquistas democrticas. E nada ser feito para consolidar uma definitiva ruptura com o tempo do terror. O Brasil tem de assumir a sua responsabilidade, para que um dia todos possamos viver em harmonia, sem os riscos de um passado que continue nos ameaando com a possibilidade do seu retorno no futuro. Quando tudo nos parecia sem sada, compreendemos que, sendo imenso o mundo, nele, apesar de todos os desentendimentos, cada um de ns ainda vai viver sem o28

desconforto de ser oprimido ou opressor. A punio dos torturadores continua sendo possvel, porque os seus crimes, hediondos, no podem ser anistiados. Ns vencemos as trevas da ditadura, fizemos o nosso dever de casa. O resto, agora, mais necessita das articulaes polticas, dando prosseguimento luta que, a cada dia, assume caractersticas diferentes, dentro de um objetivo comum. A Assemblia Legislativa do Estado de Gois mostra o caminho para o Legislativo de todos os demais Estados. O nosso descanso confiar nos companheiros. Juntos, ns podemos acender o sol e iluminar os largos horizontes do nosso pas.Pinheiro Salles jornalista profissional (GO 00672 JP)

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Depoimentos

Abro Marcos da Silva

Foras Armadas exigem demissoatural da cidade de Inhumas, 60 anos de idade, mdico psiquiatra por profisso, casado com Maria das Graas Nunes Brasil, tambm perseguida poltica, buscando alternativas eficientes para combater a ditadura imposta em 1964, ingressei no Partido Comunista Brasileiro (PCB) no ano de 1967, com militncia na Organizao de Base (OB) da Faculdade de Medicina da UFG. Devido minha militncia poltica nos movimentos estudantis universitrios, fui indiciado em Inqurito Policial Militar (IPM), no ano de 1968, por ter contribudo na realizao do Congresso da Unio Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibina/SP. No ano de 1971, fui diretor-geral do jornal Esqueleto 21, rgo oficial do Diretrio XXI de Abril, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Gois (UFG), que publicava matrias de cunho tido pelos militares como sendo subversivo. Fui condenado pela primeira vez, em 14 de maio de 1971, com base na Lei de Segurana Nacional (LSN), pena de oito meses de recluso.33

N

Fui arbitrariamente preso, sob forte aparato policial, em pleno centro de Goinia, no dia 3 de julho de 1972, e levado para o 10 Batalho de Caadores, onde sofri torturas fsicas e psicolgicas por cerca de 35 dias. Em seguida, fui transferido para as dependncias da Aeronutica, em Braslia, e depois levado para o PIC (Peloto de Investigaes Criminais), do Exrcito. poca, julho de 1972, era plantonista concursado, lotado no Hospital Psiquitrico Prof. Adauto Botelho, emprego que obviamente perdi ao ser preso pelos militares. Em dezembro de 1972, cursando o 6 ano de medicina, alcanou-me o Decreto-Lei n 477, de 26/02/69, por ato do reitor da UFG, que, em concluses sumrias, resolveu aplicar o referido ato discricionrio, me punindo com a pena de desligamento e proibio de matricular-me em qualquer outro estabelecimento de ensino pelo prazo de trs anos. Em 1973 consegui retornar faculdade e assim concluir o curso. Fui novamente indiciado em IPM instaurado pelo Exrcito para apurar as minhas atividades polticas nas Organizaes de Base do PCB em Gois. Ainda em 1973, fui incorporado, como 2 tenente, na Fora Area Brasileira (FAB), por ser mdico. O fato curioso foi a minha expulso, por incapacidade moral, com apenas trs dias depois de eu ter me apresentado ao Comando, em Braslia, sob a alegao de que a FAB no poderia manter na corporao um elemento comunista e condenado pela Justia Militar.34

No dia 5 de maro de 1974 perdi o cargo de mdico perito do Grupamento de Percias do Inamps, sendo informado que o rgo teria recebido uma circular, do alto comando das Foras Armadas, determinando meu afastamento devido ao indiciamento em IPM. Tal afirmao fora feita pelo mdico Nagib Nehme, ento superintendente de percias, diante de outros colegas, argumentando: ou me despedia ou ele seria demitido. Em 20 de junho de 1975, o Superior Tribunal Militar me condenou pena de dois anos de recluso, como incurso nas sanes do art. 43, do Decreto-Lei n 898/69 (Lei de Segurana Nacional). Cumpri parte da pena no Cepaigo, de maio de 1975 a maro de 1976, quando me concederam a liberdade condicional. O fato que o Brasil no pode sequer pensar na possibilidade da repetio de um regime que contraria todos os interesses do seu povo.

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Aguinaldo Lzaro Leo

Morte de Israel e nomes de assassinosqui em Gois, mais do que se imagina, a ditadura organizou o terrorismo contra todos os movimentos, atingindo at pessoas que nunca haviam tido qualquer militncia poltica. Ainda hoje, esto presentes os resultados, nos mais distintos nveis da vida do povo goiano, da abusiva violncia praticada pelos esquemas da represso. Segundo o Comit Brasileiro da Anistia, em Gois, 284 pessoas foram mortas, entre 1969 e 1981. S que ningum tem demonstrado interesse em desenterrar o assunto e coloc-lo diante dos olhos do povo e da justia (cega!), para que no se faa o jogo dos torturadores a servio do regime militar. Em 1973, eu estava servindo o Exrcito, com lotao no 10 Batalho de Caadores (42 BIM), quando se iniciaram as prises de pessoas ligadas a partidos e organizaes que lutavam pela volta ao estado de direito. Uma dessas pessoas37

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era meu amigo de infncia Ismael Silva de Jesus, que ainda no havia completado a maioridade. Sabendo da priso desse meu companheiro e amigo, procurei descobrir a cela em que ele estava confinado. Com muita dificuldade, isso terminou sendo possvel. E, numa noite em que eu tirava guarda, consegui trocar algumas palavras com ele. Explicou-me sua situao humilhante. A voz era rouca e baixa. Mas pude entender o seu recado: ele me pedia para dizer sua famlia, principalmente ao seu pai, que no se preocupasse, para que no tomasse nenhuma atitude em relao sua priso, com medo de uma possvel represlia. E, a mim, Ismael confidenciou que estava extremamente debilitado, com um brao quebrado. Havia tomado muitos choques e recebido pancadas generalizadas, sendo freqentes as torturas, durante dias e noites, j temendo no sobreviver. Pediu-me para fugir, porque ele no mais agentava segurar as informaes que os torturadores queriam, j que meu nome aparecia em tudo, em todas as atividades polticas e at no relacionamento pessoal. Concordei em fugir, deixando-o liberado para dizer o que fosse necessrio, desde que isso pudesse atenuar seu sofrimento. Entretanto, no fugi, porque poderiam me perseguir, ainda, como desertor e subversivo. Dias depois, fui convidado a acompanhar um oficial na sua ida a Braslia. To logo me apresentei, me conduziram ao alojamento e me avisaram que o pessoal do S-2 me esperava junto ao porto de entrada do batalho.38

A me deram as ltimas instrues sobre a viagem a Braslia. Imediatamente aps, eles me levaram a uma casa junto aos muros do batalho, local conhecido como Vila dos Oficiais. L comeou o interrogatrio sobre minha suposta participao nos movimentos de esquerda. Pior: confessasse ter incorporado s Foras Armadas para colher informaes, roubar armas e outras coisas do gnero. Como no obtiveram sucesso na primeira investida, ameaaram me levar at a Sala da Banda, local das sesses de torturas dos presos polticos. Com ironia, me disseram que ali eu iria colaborar mais. E o melhor era comear logo. J na Sala da Banda, devidamente encapuzado, me disseram para fazer silncio e aguardar. Pouco tempo depois, a porta se abriu e entraram algumas pessoas. Com voz de trovo, algum perguntou: Voc conhece o Aguinaldo? Pode nos dar as suas caractersticas? Demonstrando um pesado cansao, a pessoa respondeu afirmativamente e descreveu a minha pessoa, cautelosamente, como se quisesse me poupar das informaes mais graves. Sobre a minha militncia no Partido Comunista Brasileiro, a sofrida voz confirmou. A seguir, o meu companheirinho Ismael Silva de Jesus no disse mais nada. Recebeu empurres e outras formas de violncia, enquanto eu s pensava na dor do seu brao fraturado... Dos parentes e amigos, acredito ter sido eu a ltima pessoa que esteve com ele. Faleceu no dia 09 de agosto de 1973, nas dependncias do 10 BC, no mais suportando os maus-tratos que os torturadores goianos impingiam aos cidados que ousaram lutar por um Brasil verdadeiramente democrtico.39

As fotografias de Ismael pendurado pelo pescoo, com as pernas encolhidas e o tronco to perto do cho, no convenceram ningum de que ali houve um suicdio, porque ningum idiota como os torturadores queriam que a gente fosse. E os torturadores? E os assassinos de Ismael e de outros honrados jovens goianos que foram luta, mesmo sabendo que a impunidade dos criminosos significava um estmulo bandidagem? bom lembrar que em 1964 e 1965, 147 pessoas foram presas e submetidas aos famigerados IPMs, com acompanhamento do interventor militar Ribas Jnior. Uma das principais acusaes a essas pessoas era de que defendiam o voto do analfabeto e se manifestavam a favor da reforma agrria. O capito Marcus Fleury foi o maior nome da represso em Gois. Por isso mesmo, ocupou a Secretaria de Governo de Irapu Costa Jnior, com ilimitados poderes polticos e administrativos. Marcus Fleury talvez no tenha participado diretamente do processo de torturas, mas comandava a impiedosa equipe de torturadores formada pelos sargentos Guido Fontegald Ferro, Garcia Netto e Tompson. Contribuam com eles e desempenhavam o sinistro papel de dedos-duros: Jos Xavier do Bonfim (foi, depois, delegado do Dops), Almiro Cruz, Jos Azevedo Soares, Joveny Aparecido Cndido de Oliveira e Gernimo Geraldo de Queiroz (ocupou a Reitoria da UFG, conseguindo afastar o digno Paulo Borges). As futricas e conspiraes, uns contra os outros, eram os mtodos utilizados para cassar algum por subverso, e ocupar o lugar dele.40

Especializou-se nessa prtica Saleh Daher, por exemplo, que, temendo alguma represlia, mudou-se para os Estados Unidos e l ficou. Os 147 perseguidos pela ditadura, em Gois, estiveram presos na Escola General Fico, do 10 Batalho de Caadores. Por incrvel que possa parecer, uma escola foi transformada em cadeia, para abrigar mdicos, advogados, engenheiros e estudantes, que ficaram ali sujeitos sanha dos agentes Darci de S da Cunha Mello, capito Marcus Fleury e o capito Hebert Curado, que veio a ser secretrio de Segurana Pblica. A sociedade se renova a cada momento, a vida uma construo permanente, seguindo sempre em direo a um mundo melhor, muito melhor, um mundo sem as trevas que por tanto tempo tentaram obstruir os nossos caminhos.

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Alaor Souza Figueiredo

A necessidade do combate torturalaor Souza Figueiredo, com uma intensa militncia poltica, foi membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, em 1987, filiou-se ao PT, quando Pinheiro Salles estava na presidncia do partido em Goinia ele assumiu, prioritariamente, o trabalho de Organizao e Formao. Sua trajetria comprova o elevado compromisso com o futuro da humanidade, quando as pessoas iro produzir de acordo com sua capacidade e tudo receber segundo a sua necessidade. Por atuar dessa maneira, com dedicao integral, nunca aceitou caminhar ao lado dos oportunistas e carreiristas, daqueles que colocam seus interesses pessoais na frente dos posicionamentos polticos. A presena de Alaor num partido de esquerda e nos movimentos sociais representa uma garantia de que o mundo pode ser diferente, de que todos ns temos motivos para acreditar na possvel superao do dio, da violncia, da desigualdade e de todas as iniciativas que banalizam a vida.43

A

Sendo assim, a ditadura militar decidiu perseguir o Alaor, prender o Alaor, torturar o Alaor. Mas no sabiam os ditadores que Alaor Souza Figueiredo no feito do barro que pouca diferena tem da lama. Esse homem, com mais de 90 anos de idade, no abriga um s momento da sua existncia que possa macular a condio humana. Felizes, portanto, so todas as pessoas que tiveram ou tm a oportunidade de conviver com ele. A Clotilde, sua esposa e companheira h cerca de 60 anos, merecedora da convivncia com Alaor. Ela compreende a importncia das aes dos homens e mulheres que se fortalecem nas decises coletivas. Esse casal no conhece desnimo, nada que no tenha sintonia com a vontade de mudar o mundo. Se ela no participa diretamente dos embates polticos que batem nossa porta, reconhecendo a necessidade de oferecer sustentao s lutas de Alaor, que so as lutas do povo. Depois de passar pelo interior de So Paulo onde nasceu , formou-se no Instituto Estadual de Educao Professor Caetano de Campos e comeou a exercer o magistrio no Instituto Frederico Hozanan, tendo, tambm outras atividades. Em 1940/41, iniciou sua militncia no PCB e, pouco depois, casou-se com Clotilde Mascarenhas Horta. Em 1946, com sua famlia, foi para Apucarana, no Paran, onde administrou uma fazenda de caf e fundou associaes e sindicatos, enraizando a conscincia de classe nos trabalhadores da regio. Com uma prtica poltica libertadora, passou pelo PMDB e pelo Comit Gregrio Bezerra, s depois chegando ao PT, para militar numa corrente poltica de esquerda, marxista, defensora44

do socialismo. Atuou, tambm, no movimento comunitrio, em diversos bairros de Goinia. Quando foi preso pelos militares, conheceu os mais abominveis mtodos de torturas, tanto aqui em Goinia como em Braslia, no PIC. Informou apenas que era comunista, tendo a prtica poltica baseada na teoria marxista-leninista. Deixemos, agora, a palavra com o professor Alaor. Ele que sabe das coisas. A lembrana da tortura di Di muito, ntima e profundamente, ter de falar, de nos lembrar, das prises e torturas, da desumana tentativa ditatorial de nos humilhar, nos aquebrantar, nos acovardar e nos eliminar, por fim. Di muito quando pensamos na misria humana de que se revestem seus agentes executores e os mandantes deles. So pessoas adestradas na prtica da violncia: de qualquer tipo, em qualquer parte do mundo. No queremos pensar nisso, queremos nos livrar disso... Mas preciso enfrentar a questo, denunci-la! Assim, acabrunhados, machucados, ns precisamos participar, nos somando a todos aqueles que, com palavras escritas ou pronunciadas, continuam condenando, denunciando e combatendo, em qualquer tempo, de ontem, de hoje ou de amanh, essa brutalizao da pessoa humana, essa posio covarde contra a liberdade de pensamento e ao, da manifestao militante. dever de cidadania evitar a indiferena e acomodao nas questes da tortura, em nosso cho ou45

em terra longnqua, de outras gentes. H-de se dar por toda parte, a todo tempo, o combate cvico, patritico e democrtico a essa degradao, para que se consolide a corajosa disposio de todos, com uma prtica poltica libertadora: Tortura nunca mais!

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Aldo Arantes

Minha atuao foi reconhecida nacionalmenteasci em Anpolis (Gois), onde iniciei meus estudos. Sendo transferido para Goinia, estudei no Lyceu e comecei a ter participao no movimento estudantil secundarista, nas atividades do Grmio Flix de Bulhes. Mudei-me em seguida para o Rio de Janeiro, ingressei na Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade Catlica (PUC) e, tambm, no movimento estudantil. Fui eleito presidente do Diretrio Central dos Estudantes e me tornei uma liderana estudantil reconhecida nacionalmente. Em 1961, cheguei presidncia da Unio Nacional dos Estudantes (UNE) e procurei desenvolver um trabalho altura da importncia da entidade. Criamos o Centro Popular de Cultura (CPC). Com minha colaborao, a UNE organizou a maior greve estudantil do pas, em defesa da democratizao da universidade brasileira. Percorremos o Brasil com a UNE Volante. A entidade assumia o seu devido47

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lugar na organizao dos estudantes e na mobilizao social. Foi assim que participou da Campanha da Legalidade, tentando impedir o golpe e garantir a posse de Joo Goulart na presidncia da Repblica. Entretanto, o golpe veio, em 1964. Passei a ser perseguido pela represso e tive de viver na clandestinidade. Fugindo dos grandes centros, fui para o interior de Alagoas, l desenvolvendo um trabalho de organizao dos camponeses. J na segunda metade da dcada, fui identificado pelos agentes da polcia repressiva e preso, junto com minha esposa e meus filhos menores. Com a ajuda de companheiros, conseguimos fugir e me desloquei para So Paulo, onde continuei a luta contra a ditadura. Em 75, quando eu participava de uma reunio do Comit Central do PC do B, fui preso e, nessa operao, outros trs dirigentes partidrios Pedro Pomar, ngelo Arroio e Joo Batista Drummond foram brutalmente assassinados. Esse episdio ficou conhecido como a Chacina da Lapa. Em So Paulo, permaneci preso por trs anos, sofrendo as mais cruis torturas fsicas. Alis, tratamento comum dispensado aos presos polticos nos pores da represso. A crueldade dos militares era tamanha que sensibilizou a sociedade e mobilizou as entidades nacionais e internacionais de direitos humanos (igreja catlica progressista, artistas e outros segmentos, que foram decisivos na conquista da Lei da Anistia, em 1979). Ao ser libertado, retornei a Gois e iniciei uma nova fase de militncia poltica. Agora, com os partidos de esquerda fechados pela ditadura, filiei-me ao MDB e, com outros companheiros, formamos o Bloco Popular. Com uma campanha empolgante48

e com a presena em massa da juventude e dos trabalhadores, fui eleito deputado federal em 82. Na Cmara dos Deputados, procurei exercer o mandato de forma combativa, sempre fortalecendo a luta e os interesses do povo brasileiro, especialmente do povo goiano. A minha atuao parlamentar, em sintonia com as aspiraes populares, ofereceu-me a garantia de continuidade da atuao na Assemblia Nacional Constituinte, onde tudo fiz para assegurar a consolidao da democracia em nosso pas. Alm disso, em nenhum momento negligenciei na luta pelos direitos da classe trabalhadora e do povo. A atuao coerente e firme me rendeu importantes manifestaes de reconhecimento ao exerccio parlamentar. Recebi, por exemplo, ttulos do Clube dos Reprteres Polticos do Estado de Gois: Poltico do Ano e Melhor Poltico de Gois, ambos em 1983. Ainda: Melhor Congressita, em 1987. Recebi, tambm, o diploma de Deputado Nota 10 na Constituinte, concedido pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Em 1984, estive em quase todos os municpios goianos, participando de comcios, debates e mobilizaes populares pelas Diretas-J. Essa minha presena constante aconteceu nacionalmente, ao lado de Lula e de outras expressivas lideranas, como Joo Amazonas, Leonel Brizola e Ulisses Guimares. Devo acrescentar que nunca deixei de estar presente no dia-a-dia das lutas populares, enfrentando polcia, jagunos e o poder econmico das49

foras conservadoras. Sete anos de mandato parlamentar me tornaram identificado como inimigo dos latifundirios e gananciosos empresrios, que so representantes de uma classe dominante decadente e reacionria. Quanto ao governo de Lula, devo dizer que ele tem uma importncia extraordinria. Exercendo a presidncia da Repblica por duas oportunidades, Lula contou com total respaldo do PC do B, porque considera as suas vitrias uma conquista histrica do povo brasileiro e dos trabalhadores do mundo, tanto assim que o meu partido lhe levou apoio em todas as suas campanhas. Pela primeira vez, aps a ditadura, os partidos de esquerda esto no governo, com os comunistas participando dos mais altos postos das instituies brasileiras.

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Antnio Pinheiro Salles

Meus sonhos sobrevivero nas flores vermelhas

S

ubstitu, na ltima hora, o texto produzido para este livro por outro que me pareceu reunir mais concretas informaes sobre a ditadura militar. Trata-se de uma carta ao presidente Lula, que agora vai chegar, com minha gratido, tambm populao goiana, no Estado que me acolheu aps a anistia poltica, em 1979. Aqui, minha companheira El e eu tivemos a alegria de assistir ao nascimento do nosso filho Raphael e de nossa filha Clara. Tamanha a generosidade do povo, que tive a honra de receber o ttulo honorfico de Cidado Goiano, proposto pelo deputado Mauro Rubem e aprovado pela unanimidade dos 41 parlamentares da Assemblia Legislativa. Hoje, mantenho uma estreita relao de confiana com esta cidade, podendo afirmar: quando eu morrer, meus sonhos sobrevivero nas flores vermelhas dos flamboyants de Goinia.51

Carta aberta ao presidente da Repblica, sem o tratamento dispensado s autoridades Lula, tenho nas mos o telegrama que voc encaminhou aos familiares da senhora Maria de Campos Batista a Dona Santa , um dia depois da morte dela, apresentando as sinceras condolncias e colocando o governo disposio para continuar a luta at encontrar os restos mortais de seu filho, desaparecido em 1970, quando vigorava a truculncia do general Mdici. Ento, Lula, que as suas palavras possam representar mais que um momentneo lenitivo famlia dessa me. Elas devem significar um compromisso, para que o seu governo fique na histria como o primeiro, desde Sarney, que no aceitou ser cmplice do regime implantado em 1964, principalmente do terrorismo disseminado a partir da edio do Ato Institucional n 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. Maria de Campos Batista procurou, durante 37 anos, o seu filho Marcos Antnio Dias Batista, sumido na ocasio em que era um lder estudantil de apenas 15 anos de idade. Por muito tempo, ela deixou aberta a porta da sua casa, em Goinia, na esperana de que ele pudesse entrar a qualquer momento. E percorreu delegacias, quartis e presdios de todo o pas, na tentativa de localiz-lo. Em 1996, afinal, o governo o reconheceu oficialmente como morto. Mas ela no desistiu de procur-lo. Em setembro de 2005, o juiz federal Waldemar Cludio de Carvalho determinou ao ministro da Defesa, que, em audincia reservada, informasse famlia de Marcos Antnio as52

circunstncias que envolveram sua priso e morte, dando um prazo de 90 dias para entregar os seus restos mortais. Em seguida, no dia 15 de fevereiro de 2006, Maria de Campos e outras pessoas (incluindo os advogados Ricardo Dias Baptista seu filho , Raphael Salles e Edilberto de Castro) se dirigiram ao gabinete do ministro da Defesa e vice-presidente da Repblica, Jos Alencar, em Braslia. Dona Santa foi encontrar o filho Todos choraram durante a audincia, o ministro inclusive. Dona Santa saiu convencida de que no demoraria a sepultar Marcos Antnio, ou o que resta dele, no mesmo tmulo onde seu pai o esperava (Valdomiro Dias Batista faleceu lamentando no rever o seu menino). Retornando capital goiana, Dona Santa teve o carro batido de frente por outro que seguia na contramo, causando-lhe a morte. No dia seguinte, presente no velrio, Jos Alencar, mais uma vez com lgrimas na face, disse que, sendo to grande a vontade dessa mulher de abraar Marcos Antnio, j sem a expectativa de v-lo vivo, decidiu ir ao local em que ele repousa para sempre. E Dona Santa seguiu em direo ao filho, como frisou o vicepresidente da Repblica, mas o corpo dela se encaminhou para o tmulo em que planejava depositar os frgeis ossos da criana que teve de ser eliminada para que os poderosos homens da ditadura se sentissem mais seguros. Tudo isso, Lula, no acontece por acaso. Portanto, precisamos compreender o que realmente significou a ditadura militar na vida do povo brasileiro. Como presidente da Repblica, voc no desconhece o esforo que ainda se faz, cerca de 44 anos aps o golpe de Estado,53

para se garantir o esquecimento desses 21 anos de trevas. que a ditadura militar traz uma srie de incmodos aos polticos que direta ou indiretamente estiveram sua frente e hoje se consideram arautos da democracia. Evitando o aprofundamento da questo, os governos que vieram depois se recusaram a enfrentar esse perodo obscuro, limitando-se a exonerar um ou outro torturador sendo ele identificado no exerccio de um cargo pblico. Ignorncia ou amnsia Sabemos que a ditadura deixou a maioria da populao doente, sem poder falar e com medo at de escutar. terrvel a constatao de que a democracia ainda seja to frgil, to vulnervel, que no permita a recuperao da memria, tornando as pessoas mais doentes, agora de ignorncia ou amnsia, como se o passado nada tivesse a ensinar ao presente. E isso muito perigoso, porque, como disse dom Paulo Evaristo Arns, os povos que no podem ou no querem confrontar-se com seu passado histrico esto condenados a repeti-lo. Os fatos pretritos contm no apenas traos de identidade de um povo, mas tambm lies expressivas que nos ajudam a entender o momento atual e a construir de melhor forma o futuro, evitando-se os riscos da repetio das atrocidades. No demais, Lula, a lembrana de alguns dados sobre a ditadura, insistindo no meu dever de, como Babeuf, morrer denunciando a opresso. Dentro de uma srdida campanha ideolgica, o golpe militar se efetivou com a agressiva presena do governo dos Estados Unidos, que calculou os seus efeitos em toda a Amrica Latina. Houve uma intensa comunicao54

entre o embaixador norte-americano no Brasil e os seus chefes na Casa Branca, aperfeioando os detalhes do apoio ao golpe, com a Operao Brother Sam, que s passou a ser desmobilizada aps a confirmao do sucesso do movimento. A Operao inclua porta-avies, destrieres, navio para transporte de helicpteros, petroleiros, avies de carga e de abastecimento, caas e um posto de comando aerotransportado, alm de barris de combustvel e 110 toneladas de armas e munies. Primeiras denncias de tortura O governo dos generais foi reconhecido enquanto o presidente Joo Goulart ainda se encontrava no Brasil. E as perseguies polticas se estenderam pelo pas inteiro. As primeiras denncias de tortura vieram tona no Rio de Janeiro e em Pernambuco, onde o admirado lder comunista Gregrio Bezerra foi preso e entregue ao tenente-coronel Darcy Villocq Viana, que o amarrou e o arrastou pelas ruas de Recife, para servir de exemplo (a cena que vi na televiso no vou esquecer nunca). O medo corroeu a dignidade de milhares de brasileiros, que, sem alternativas a curto prazo, terminaram optando pela indiferena, calando-se, refugiando-se e tudo fazendo para que as suas famlias no fossem molestadas. Mas, com o tempo, a rebeldia de poucos virou a resistncia de muitos. Apesar da intolerncia em todos os nveis, 100 mil pessoas saram s ruas, em junho de 1968, numa fulgurante manifestao no Rio de Janeiro. O terror absoluto no tardou. A imposio do Ato Institucional n 5, que certamente Hitler e Mussolini gostariam de adotar, representou um golpe dentro do golpe,55

e no deixou pedra sobre pedra. Voc sabe o que vem depois, Lula, mesmo no tendo informaes pormenorizadas a respeito da violncia levada prioritariamente aos militantes polticos de esquerda (a tortura e a morte se transformaram numa prtica rotineira). Entretanto, resistimos. Em 1980, voc foi arrancado do seu sindicato, das suas articulaes partidrias, e colocado atrs das grades por 51 dias, mas j havia sido retirado o sangue dos revolucionrios das paredes e do piso dos cubculos em que voc foi jogado. Era a poca da abertura poltica do general Figueiredo, depois da distenso lenta, gradual e segura do general Geisel, aps a Lei da Anistia. Por quem os sinos dobram Lembre-se que a ditadura militar no Brasil descerrou as portas para outras no cone sul, isto , na Argentina, no Uruguai e Chile, incluindo o Paraguai na cooperao entre os agentes da represso e a atuao fascista na Amrica do Sul (Operao Condor), na dcada de 70, com a ajuda financeira dos Estados Unidos. Assim, Lula, os malefcios da ditadura ainda permanecem nos vrios escales do Estado, e da prpria vida do povo, porque nenhum governo adotou medidas que facilitassem a ruptura com o tempo do terror. Os prejuzos so incalculveis na economia, na poltica, na educao, na cincia e tecnologia, na cultura, na comunicao, nas artes, no judicirio, no esporte e, mais ainda, no comportamento da maioria da polcia, que persiste desrespeitando os direitos humanos mais elementares. Quando acontecem tragdias como a de Dona Santa, Zuzu Angel e outras mes de desaparecidos, devemos nos56

sentir diminudos, porque, como disse um poeta citado por Hemingway, em Por quem os sinos dobram, fazemos parte da espcie humana. Mas no apenas por isso. Seus filhos foram heris e, no sendo egostas, lhes ofereceram a oportunidade de experimentar a grandeza das heronas. nesse momento que somos chamados a refletir sobre o nosso papel na sociedade de classes, sobre as conquistas coletivas, sobre a unio dos oprimidos. E como estou me dirigindo ao presidente da Repblica, devo dizer-lhe, Lula, que hoje voc est no Palcio do Planalto por causa dessas pessoas e dos heris annimos que desafiaram as intempries e compreenderam que ningum tem direito omisso diante da tirania. Completar a anistia poltica Ganhando fora a luta pela anistia poltica, por volta de 1977/1978, os clamores ocuparam as conscincias e praas em todo o territrio nacional. Aqui em Gois, por exemplo, o professor Pedro Wilson Guimares e Joo Divino Dorneles (dentre outros) participaram dessa batalha de forma a colocar o povo goiano num privilegiado patamar de respeito e admirao. Decidindo o governo a encaminhar uma anistia limitada, os protestos se multiplicaram: todos a queriam ampla, geral e irrestrita. Carlos Drummond de Andrade escreveu: Vem completa, vem de tnica imaculada, vem nua, Anistia. E, nua, no dars margem a murmuraes, recriminaes, ressentimentos, vociferaes e lgrimas. Assim te desejo, assim te espero para os que necessitam de ti e os que j no necessitam, pois habitam a manso alm da poltica, das crises sociais e da57

injustia. S que ela no veio assim. Pudemos deixar os pores da ditadura, retornar do exlio, sair da clandestinidade. Mas hoje, cerca de 30 anos depois, muitos ainda so os ressentimentos, as dores, recriminaes e lgrimas. Ao longo desse tempo, os sucessivos governos vm buscando meios legais para remendar a Lei n 6.683, de 28 de agosto de 1979, que teve a preocupao de cercear direitos e garantir a proteo dos algozes, mantendo esprias conciliaes. Apesar dos desgastes e cansaos dos familiares dos mortos e desaparecidos e das prprias vtimas vivas do regime discricionrio, os governos sempre so importunados, porque no resolvem o problema, cedendo s presses dos fascistas e de seus aliados, que mais gostariam de continuar prendendo, torturando, matando os opositores. E, sendo um anistiado, menos ainda voc poder dar as costas para os anistiados. Chegou a hora, Lula, de superar os seus antecessores, no deixar dvida sobre seu compromisso democrtico, enfrentar a extrema direita, o fascismo, os inimigos, completar a anistia poltica, colocar um ponto final nos dissabores e incertezas das pessoas envolvidas nesse processo doloroso, abrir uma nova pgina na histria do Brasil. espera da morte dos sobreviventes No deixe, Lula, que isso fique para depois. Faa-o agora, adquira mais condies de erguer a cabea diante de quem participou da resistncia, ampliando os horizontes da humanidade. Escancare os to mutilados arquivos da represso, assuma a busca dos desaparecidos, encontre alternativas para a Advocacia Geral da Unio no ficar forjando recursos58

protelatrios (ridculos) espera da morte dos sobreviventes que responsabilizam o Estado pelos crimes perpetrados, agilize a apreciao dos requerimentos na Comisso Nacional de Anistia, pague as indenizaes concedidas, no seja (por favor!) conivente com torturadores. Erga no centro da Esplanada dos Ministrios um monumento aos mortos e desaparecidos na luta contra a ditadura militar. Desculpe, Lula, se insisto em acreditar que seu governo pode ser diferente, mesmo depois de tantas frustraes. A morte de Dona Santa me devolveu um pouco da justa indignao dos injustiados. Posso at lhe afirmar que se no Brasil no morreram seis milhes de perseguidos em campos de concentrao, a ditadura conseguiu ultrapassar os nazistas na intensidade da violncia fsica contra os seus adversrios. Sei que a comparao pode causar perplexidade. Entretanto, estou ciente da nossa responsabilidade, inclusive no prosseguimento da luta pelo socialismo, que jamais aceitaria Bush como companheiro . Se sou contundente nessas afirmaes, que os meus nove anos de crcere (1970-1979) me levaram a presenciar o que meus olhos no desejam ver nunca mais. Eu ouvi gritos, berros inumanos, gemidos que me traziam a mesma dor indescritvel das interminveis sesses em que tive a alma dilacerada, a carne rasgada e os ossos partidos. Militante marxista Acrescento, Lula, que o meu corpo e meu sangue testemunharam os horrores que jamais devem vilipendiar qualquer ser humano no mundo. Por isso, como cidado, jornalista profissional, dirigente da Tendncia Marxista (TM-PT) e militante do Partido dos Trabalhadores, no contribuirei com minha omisso para59

tudo continuar como sempre foi. E voc, presidente Luiz Incio Lula da Silva, no deixe que a diferena entre seu governo e os anteriores se restrinja, fundamentalmente, ao assistencialismo levado aos miserveis do nosso pas. Com problemas de sade, agravados como conseqncia das irreversveis seqelas das torturas, minha fala foi comprometida (com uma distonia oromandibular, estou fazendo tratamento na Rede Sarah de Hospitais de Reabilitao, em Braslia). Tenho, portanto, mais razes para repassar, por escrito, estas informaes s geraes mais novas. Se tudo est difcil, mais cresce a nossa responsabilidade, porque a vida s se justifica se ela um instrumento permanentemente utilizado na construo de uma vida melhor, sem as contradies que hoje tanto nos limitam e humilham. Pediria, Lula, que voc refletisse sobre as observaes feitas, considerando a clssica declarao de Ccero, o insupervel tribuno romano: A histria mestra da vida, senhora do tempo e luz da verdade. Um abrao, presidente. Em tempo Condenado a 54 anos e dois meses de recluso, isso no me preocupava muito. Aps nove anos de crcere, em 1979, deixei o Presdio da Justia Militar Federal de So Paulo, com a conquista da anistia poltica. Fui rever a minha pequena cidade de Guaratinga, no sul da Bahia, sem saber que o povo me esperava com uma festa inesquecvel. E, no mesmo ano, vim para Gois, onde residia a famlia da minha companheira El. Com o surgimento do Dirio60

da Manh, em Goinia, passei a trabalhar nesse jornal, ao lado de Marco Antnio Tavares Coelho, Antnio Carlos Moura e Wilmar Antnio Alves, que tambm foram presos polticos. Em companhia de companheiras e companheiros, participei da fundao do Partido dos Trabalhadores (PT) e do ncleo de base Herzog, constitudo por jornalistas e outros profissionais de comunicao (durante vrios anos continuei sendo seguido pelo SNI), como atesta certido expedida pela atual Agncia Brasileira de Inteligncia (Abin). As torturas sofridas durante os dois primeiros anos de cadeia aconteceram no Dops do Rio Grande do Sul, sob o comando do delegado Pedro Carlos Sellig; no DOI-Codi (Oban), em So Paulo, ao longo das sesses coordenadas por Carlos Alberto Brilhante Ustra; e no Deops (SP), onde atuava o chefe do Esquadro da Morte, Srgio Fernando Paranhos Fleury. Sem descabida presuno, mantenho as minhas convices de 10, 20, 30, 40 anos atrs, ficando gradativamente mais radical medida que envelheo. Conseqentemente, repetiria todas as minhas aes, mesmo se os seus erros no pudessem ser corrigidos, acreditando no triunfo do socialismo, da liberdade e da paz.

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Carlos Alberto Santa Cruz Serradourada

Ditadura anestesiou gerao atualm 1964, quando houve a golpe liderado pelos militares, eu era presidente da Unio Goiana dos Estudantes (Uges). E essa poderosa organizao do movimento estudantil seguia a orientao socialista, j que quase todos os membros de sua diretoria pertenciam ao glorioso Partido Comunista Brasileiro (PCB), sonhando com a construo de uma sociedade justa e fraterna. Entre uma cadeia e outra (ao todo, foram nove), eu trabalhei no semanrio Cinco de Maro, passando pela Rdio Riviera e Televiso Anhangera. Com a extino dos partidos polticos pela ditadura militar e imposio das instituies do bipartidarismo, eu exerci durante muito tempo dupla militncia partidria no MDB e PCB. Essa dupla militncia no era aberta, pois o Partido Comunista estava na ilegalidade e a direo do MDB estadual era extremamente conservadora para conviver com os comunistas.63

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Foi assim que nas eleies de 1974 (s para o Legislativo), o PCB me encarregou de escrever um pronunciamento para o candidato a senador, pelo MDB, a ser falado na televiso (nessa poca, a propaganda na TV era ao vivo). E o meu nome foi levado para o candidato, que o refugou de plano, pois no aceitava discurso de comunista, por isso e por aquilo. Foi a que o saudoso lbio de Brito Guimares resolveu o impasse: - O Santa Cruz escreve o pronunciamento e a gente diz para o nosso candidato que foi outro jornalista que fez. Assim aconteceu. Um incndio na televiso. E o candidato do MDB foi eleito. No s por isso, mas tambm por outras razes objetivas: o povo havia se cansado da ditadura militar e o MDB ganhou as eleies para o Senado de ponta a ponta. A democracia poltica restabeleceu-se, mas a ditadura econmica recrudesceu. A explorao do homem pelo homem ficou muito mais sofisticada. E instalou-se no Brasil a repblica do lixo e do luxo. Nunca houve tanta remessa de lucros para o exterior como agora. Os ricos so cada vez mais ricos. E os muito pobres so cada vez mais pobres. A corrupo endmica. E o maior crime da ditadura militar imposta em 64 foi praticado contra a nossa gerao. Ela conseguiu anestesiar a gerao atual, que hoje assiste complacente a todos os assaltos aos valores e honra da coletividade.64

Estudante no faz mais greve. A esquerda est fora de moda. Eu no mudei meu itinerrio e, portanto, considerado na contramo da histria. Com muita honra. E sabendo que tudo uma questo de tempo. A gerao atual, massacrada ideologicamente, no quer nem ouvir falar de nossa luta. A minha biografia poltica no tem importncia nenhuma e pode ser escrita em apenas uma linha: fui socialista na juventude, continuei socialista na maturidade e agora, na velhice, sou socialista com redobrada convico.

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Carmina Castro Marinho e Nlson Pereira Marinho

Represso levou posseiro morteistria contada pela senhora Carmina Castro Marinho, esposa de Nlson Pereira Marinho, ativo militante da luta pela posse da terra na regio de Trombas-Formoso, que foi preso e barbaramente torturado pelo Exrcito na poca da ditadura militar. Nlson Marinho participava da diretoria da Associao dos Posseiros de Trombas e Formoso, que tinha como objetivo defender as terras adquiridas pelos posseiros. Em abril de 1964, logo aps o golpe militar, o deputado Jos Porfrio de Souza, presidente da Associao dos Posseiros, conseguiu informaes em Goinia de que o Exrcito estava preparando uma invaso na regio e conseguiu avisar a tempo. Assim foram organizados vrios grupos que fugiram em debandada por lados diferentes. claro que no tnhamos condies de enfrentar com armas, o truculento esquema, como queria Z Porfrio. E esta foi a sua primeira derrota como lder dos posseiros.67

H

Em abril de 1965, fui abordada por policiais da Dops de Goinia, que me foraram, por meio de torturas e da mira das armas, a dizer-lhes onde se encontrava o meu marido. Logo que ele chegou da roa, recebeu ordem de priso e o levaram para Trombas. L, ele foi algemado e levado para a cadeia de Formoso, onde permaneceu trs dias. Juntaram-se a ele, tambm como prisioneiros, o Jos Ribeiro da Silva, Czar Machado, Onzimo Montesuma, Geraldo Tibrcio e um jornalista. Foram todos transferidos para Goinia e posteriormente para Braslia, ficando nas celas do PIC (Peloto de Investigaes Criminais da Polcia do Exrcito). L, o meu marido sofreu muitas atrocidades, como choque eltrico, corte do couro cabeludo e, segundo ele mesmo, fizeramno beber a prpria urina, puno nas unhas da mo... Apanhou at perder o sentido e perdeu a voz, devido aos espancamentos na garganta, com arame e ferro, isso tudo estando encapuzado. Nlson Pereira Marinho passou por situaes to constrangedoras e humilhantes, que no tinha coragem de contar para ningum. Foi liberado em julho do mesmo ano. Quando voltou, comeou a ingerir bebida alcolica, tornando-se um alcolatra. Nessa poca, meus filhos e eu sofremos as conseqncias das seqelas que ficaram por causa da revolta e da priso. Nlson Marinho tornou-se um homem amargo e distante. Esse vcio foi aumentando gradativamente, tornando-o invlido e incapaz de conduzir a prpria vida.68

A sua segunda priso ocorreu no ano 1972, em Trombas. Levaram-no para fora da cidade e o colocaram num acampamento improvisado, onde ficou dois dias amarrado, despido. Foram para a cadeia de Formoso, que estava lotada de presos polticos. J tinham sido presos o Felipe Cardoso, Jos Ribeiro, Jos de Castro e Pedro Paran, todos membros da Associao dos Posseiros. Foram levados, como na primeira priso, para Goinia e depois para os quartis de Braslia, onde as torturas foram ainda mais intensas. Ao ser liberado, a sua situao muito se agravou, em vista das inmeras sesses de choques eltricos que sofreu nos rgos genitais, tornando-o impotente sexualmente. Isso o levou a refugiar-se totalmente no vcio do lcool, s vezes ficando at 20 dias embriagado ininterruptamente. Em funo da vida que levava depois das torturas, veio contrair cirrose heptica e cncer estomacal, que o levaram morte em 15 de setembro de 1991. Durante esse perodo de perseguio ao Nlson Marinho, eu e minha famlia sofremos muito. Certa vez, os policiais chegaram em nossa casa e apontaram as suas metralhadoras a fim de nos intimidar para contar onde o meu esposo se encontrava. Ns todos fomos expostos a humilhaes, ameaas e presses de toda natureza. Certa feita, fui obrigada a defecar diante de um policial que me vigiava dia e noite.69

Posso afirmar com toda convico que nossas vidas poderiam ter seguido um curso bem diferente do que aqui foi relatado. Se no tivssemos sido, o Nlson Marinho e toda a nossa famlia, atingidos pelas perseguies dos militares, certamente estaramos, hoje, vivendo em um mundo mais justo, com um pouco mais de dignidade.

Dirce Machado da Silva

Terror levado aos camponeses de Trombas e Formoso

E

m abril de 1964, no calor do golpe militar, tive de fugir, porque pertencia ao Partido Comunista do Brasil (PCB) e Associao dos Posseiros de Formoso. O meu esposo, Jos Ribeiro da Silva, era o 1 secretrio da entidade. Seis meses depois de me submeter a uma complicada cesariana, tive que entregar meus filhos, minha nenezinha de seis meses e mais duas crianas adotivas, aos cuidados de um tio. Minha me e meu irmo estavam em Braslia. To logo ficaram sabendo da minha situao de refugiada, vieram cuidar de meus filhos. Diante da gravidade da situao e da ferocidade da ditadura militar, fomos aconselhados a no esperar pela represso. Nos escondemos nas montanhas. Fiquei 15 dias sozinha, debaixo de uma pedra grande,71

dentro da mata. Os avies passavam em vo rasante. Meu marido tinha ido encontrar outros membros da direo da associao. Fui picada por uma lacraia da pedra e minha perna infecciou, provocando uma dor horrvel. Foi um sofrimento. Meus peitos cheios de leite, longe de minha nenezinha, eu no sabendo o que ia nos acontecer. Sentia muita dor na perna, nos peitos... Tinha febre alta, sem remdios, dentro da mata. Chovia muito. E eu s ouvia e sentia a presena de bichos. Fui em busca de tratamento. Guiada por um amigo, viajamos dois dias e duas noites. Deixamos o animal na beira do rio Maranho. Atravessamos o rio em uma velha canoa furada. Seguimos a p at perto de Dois Irmos. L pernoitamos dentro de umas manilhas na construo de uma ponte abandonada. No outro dia de manh, pegamos um nibus para Braslia. L estive fazendo tratamento da ferida em minha coxa. Quatro meses depois, voltei, clandestinamente, e fui encontrar meu marido nas montanhas. Tnhamos informaes do que acontecia pelo rdio. As notcias mais precisas ouvamos pela BBC de Londres. Em 65, resolvemos que eu me apresentaria. Fiz uma chegada simblica. Meu marido teve uma desidratao aguda. Voltei ao acampamento. noite, no ms de maio, fomos surpreendidos por um peloto comandado pelo Dops. Fomos presos, levados at nossa casa. J tinham feito minha me preparar janta para eles. Espancaram um tio meu, que era deficiente e nem conseguia falar direito. Espancaram o Jos Sivirino, quase o arrebentaram de tanto bater. Seguimos72

algemados e a p. A noite escura; camos nos buracos e nos crregos. Viajamos 12 km at onde estavam trs viaturas policiais e meu irmo Czar Machado da Silveira. Algemados, os trs, fomos levados, enquanto eles faziam toda espcie de ameaa. Passaram em uma venda e compraram vrias garrafas de pinga, beberam e continuaram a beber na estrada. Uns 10 km. depois, pararam as viaturas em um cerrado fechado. A foi um terror. Comearam a espancar meu marido e o meu irmo. E eu virava o rosto para no ver. Os soldados me deram um safano e puxaram meus cabelos, para que eu assistisse horrvel cena. Eles me perguntavam sobre o Mauro Borges, Jos Porfrio e outros lderes da associao, por pessoas que eu nem conhecia. Diziam que eu era uma puta safada que eu preferia ver meu marido , e meu irmo morrerem picadinhos e no contar onde estavam meus cmplices. Meu irmo roxo de pancada, riscado de faca e queimado de cigarros; meu marido com o nariz quebrado, o rosto deformado de pancadas, ambos ensangentados, e meu marido ainda foi amarrado pelos ps e pendurado em uma rvore. Eles me seguravam pelos cabelos e repetiam as perguntas e os mesmos palavres. No pice de meu desespero, eu disse em alto e bom som que eu no sabia, no ia mentir e se soubesse tambm no falava, preferia morrer. Ento, eles me deram um bofeto com as duas mos nos ouvidos de uma vez. Nesse momento, eu desmaiei, fiquei desacordada no sei quanto tempo. Quando voltei em mim, estava molhada de pinga e vomitando. At hoje tenho problemas auditivos por causa do espancamento. Nos levaram para Formoso, ficamos presos em um quarto de penso. Depois, eles voltaram minha casa, fazendo ameaas para minha me, j idosa e doente.73

Saquearam a casa e carregaram o dinheiro da safra, minha me ficando sem recursos para as despesas. Meu filho mais velho, de 14 anos, permanecia em estado de choque e os outros ficaram traumatizados. Passamos vrios dias algemados, nos quartos de uma penso, recebendo todo tipo de ameaa, alm de sermos espancados, e ainda ouvamos gritos horrveis de outras pessoas sendo torturadas. Fomos levados para Goinia, algemados num caminho, estrada de terra, buracos... Chegamos arrebentados, empoeirados e famintos. Os outros presos ficaram separados de mim. Eles falavam que tinham castrado meu irmo e meu marido. Eles estavam muito machucados. Eu no sabia o que realmente estava acontecendo. A guerra de nervos era tanta, que eu e os outros s ficvamos com disenteria. Fui colocada numa cela com trs prostitutas e inclusive assassinas. Fiquei sem saber como agir, elas nuas como nasceram. Vinham se sentar unidas a mim, no meu colo, e os soldados nas grades morrendo de rir. Comearam a me perguntar onde era meu ponto, quem eu havia matado e onde eu assaltei. Elas tinham as leis delas e, como eu era a novata, devia me submeter a essas leis. Resolvi explicar a situao. Bem calma, contei que era da roa, tinha marido, quatro filhos e dois adotivos, era presa poltica. Mostrei a elas o corte repuxado da recente cesariana. Elas me perguntaram por que eu estava com o rosto roxo, inchado e com as pernas cheias de hematomas. Expliquei que tinha sido torturada, e elas comearam a chorar. A pedi a elas que se vestissem, porque eu ficava74

com vergonha. Elas ficaram minhas amigas. Como passei vrios dias em Goinia, na Casa de Deteno, onde o colcho era um trapo sujo, imundo, o cobertor era duro de sujeira, onde eu ficava sem tomar sol e sem tomar banho, as presas arranjavam, escondidas, um litro com gua para minha higiene ntima. Como eram analfabetas, comecei a alfabetiz-las. Tambm consertava suas roupas, a mo. Quando nos retiraram para Braslia, noite, elas me abraaram chorando, e a polcia nos empurrou com a maior brutalidade. Em Braslia, ficamos presos em um complexo policial. Chegamos tarde da noite, pois essas retiradas s aconteciam em altas horas. Fazia um frio terrvel, sem agasalho nenhum, as celas eram s de grades, as correntes de ar pareciam faca na carne da gente. O banheiro era uma divisria com muretas, a porta tinha uma abertura na parte de baixo e de todo jeito que o usvamos, as outras pessoas nos viam, era um suplcio. O colcho sujo, cheio de manchas de sangue velho. Os soldados e os paisanos, que circulavam, ficavam me perguntando onde era meu ponto, que programa eu fazia, mandavam que eu tirasse a roupa para mostrar-me para eles e os fardados davam gargalhadas. Um preso, de uma cela vizinha, mandou chamar o comandante e disse que eu estava sendo molestada, que eu era uma presa poltica, me de famlia, e que eu merecia respeito. Ele era preso porque tinha matado e que ele merecia ser castigado, mas no admitia falta de respeito com uma me de famlia. E, pelo comandante, me mandou uma colcha de l, a qual devolvi no dia em que nos retiraram novamente para Goinia. Fomos levados para a Casa de Deteno. Fiquei em uma cela sozinha. O banheiro75

entupido no tinha descarga, um mau cheiro horrvel. Me davam uma vasilha de folhas, suja, e mais ou menos dois litros de gua por dia, era o que eu tinha para beber. De Formoso ramos um grupo de seis e juntaram a ns mais trs. Ficamos em nove: Jos Ribeiro da Silva, meu esposo, meu irmo Csar Machado da Silva, Onzimo Montezuma de Oliveira, Nlson Marinho, Aniceto Policarpo e eu, depois, Geraldo Tibrcio, sindicalista de Anpolis, um jornalista, (Armando), e um estudante. Meu marido e meu irmo ficaram com os demais em uma cela. Eu ouvia gritos e pancadas, os policiais diziam que a turma estava apanhando porque eles no queriam dar o servio. noite, nos levaram para Braslia novamente, ficamos em uma cela do Dops, sentados no cho. Passamos a noite e o dia sem jeito de mudar de posio e os soldados andando de um lado para outro, nervosos e nos fazendo ameaas. Um padre foi visitar outro padre que estava preso, e como no o encontrou, nos deu as mas e o bolo que havia levado para o colega. Essa foi a refeio que tivemos. noite, fomos levados para uma casa abandonada, no setor das manses, suja e empoeirada, no matagal. No segundo dia apareceu o nosso advogado com o habeascorpus, os policiais ficaram umas feras. O jornalista passou uma reportagem escrita em um papel higinico, que saiu no jornal Dirio. 43 dias de sujeira, sem banho, sem trocar de roupa, sem sol, estvamos imundos. Todos os dias eram uma loucura: interrogatrios, ameaas, espancamentos... e a comida, quando nos ofereciam, era horrvel, parecia76

restos. Fomos transferidos para o BGP, os homens ficaram juntos em um cubculo, e eu fiquei em uma cela improvisada com armrios, na dependncia dos sargentos, onde l ficava uma sentinela armada com fuzil. No outro dia, pude tomar banho. Minha pele estava to seca, que trincou toda, e ardia, parecia que a sujeira no ia desgrudar mais. Tive uma cama e um cobertor, o frio era intenso, estava to abalada, que no conseguia dormir. Eu ficava ouvindo gritos alucinantes e os palavres soavam nos meus ouvidos. Era s comear a dormir, vinha tudo de novo. Os interregatrios interminveis e as acareaes. Faziam de tudo para criar intrigas entre a turma. Minha irm me levou uma l e um par de agulhas de plstico, mas os guardas me tomaram as agulhas. Eu consegui dois palitos, estava tecendo com a maior dificuldade uma blusinha para minha nenezinha. Um tenente me perguntou por que os palitos, contei que tinham me tomado as agulhas de plstico, ele mandou me devolver, e ficou muito tempo me olhando tricotar. No outro dia, ele me perguntou se eu sabia costurar, disse que sim. Ele me perguntou se eu me dispunha a ajud-lo preparar as costuras para a festa junina. Se eu me dispusesse, ele ia pedir permisso ao meu marido. Me levaram uma mquina comum, toda emperrada, na qual levei muitas horas para pr em funcionamento. Fiz a roupa da noiva e do noivo, do casamento na roa, e o tenente deu-me a escrita, para que eu retocasse as falas e coloclas matutamente. Passou a festa, e os soldados gostaram e vieram me agradecer. Passei a consertar as roupas dos77

soldados e para que algum chegasse a mim tinha que pedir permisso ao meu marido e a todos os comandantes do dia. E, mesmo com toda essa burocracia, eu ainda tinha muita costura para fazer. Foi Deus quem me abriu essa porta, por que j estava ficando maluca. No ltimo interrogatrio o coronel me perguntou se eu no tinha vergonha de ser presa, e como eu enfrentaria meus filhos e meus pais, respondi que no me envergonhava de ser uma mulher honesta, no era grileira, nem ladra e nem prostituta, os grileiros, que ensangentaram nossa regio, estavam soltos, eu que trabalhava na terra para sustentar meus filhos, e at na priso eu estava trabalhando, graas a Deus, e que tinha muita vergonha de ser humana, preferia ser um quadrpede, porque os animais respeitavam uns aos outros, e, nesses dias horrveis, eu havia visto e ouvido coisas deplorveis, que nunca havia pensado que pessoas batizadas fossem capazes de fazer. Fomos liberados sem dinheiro, minha irm nos deu as passagens, meu marido foi para Goinia, pois estava muito doente e foi procurar tratamento e eu e meu irmo fomos para Formoso. Chegamos arrasados, doentes, fracos e aterrorizados. Tudo o que tnhamos acabou, para comer tnhamos mandioca, mamo e banana, e para morar, apenas um rancho. Todo dinheiro que ficou com minha me, proveniente da venda da safra e da mquina de costura, os policiais do Dops, inclusive um conhecido como Joo Cascavel, roubaram tambm, saquearem a casa. Quando chegamos, que vimos o absurdo. Ns sobrevivemos a essa tragdia com a solidariedade de amigos e vizinhos.78

Tive que desmanchar um velho pano de bater arroz, para fazer colcho, coberta e lenol e o pano ainda era doado. Plantamos uma rocinha, comeamos do zero. E meu marido sempre doente. No incio da colheita, foi preciso levar meu marido para Porangatu. Ele estava muito mal, com problemas de estmago, devido aos espancamentos. De l, fui para Goinia, sem dinheiro e com a roupa e os calados emprestados. Quando ele teve alta, eu o deixei em Goinia, na casa de um amigo. Voltei para Formoso, devendo para o mdico de Porangatu e de Goinia. Um amigo me emprestou dinheiro para que eu pagasse os hospitais. Eu e os meus filhos pequenos fomos tocar as roas, os amigos fizeram vrios mutires para nos ajudar. O meu marido voltou e mesmo doente e fraco ia para a roa com os meus filhos. Na primeira safra pagamos as contas. Nem com as dificuldades no tnhamos sossego, sempre havia gente estranha fazendo perguntas, bisbilhotando tudo. Em 69, no ms de julho, prximo a agosto, tardinha chegou uma tropa do Exrcito muito bem armada, o comandante me pediu acampamento, disse que estava em manobra. Os soldados me disseram que estavam com muita fome. Ento, eu peguei os tachos grandes e comecei a providenciar a janta. O comandante no queria que eu o fizesse, mas como eu continuei e disse a ele que na minha casa ningum dorme com fome, ele designou dois soldados para me ajudar. Matei 15 galinhas (as que eu tinha), fiz arroz, fui ao mandiocal com os meus filhos e dois soldados, arrancamos mandioca, iluminando com lanterna, depois eu as ralei de madrugada e fritei bolinhos para a tropa79

tomar caf. E os que sobraram, eles pediram e levaram. Meu marido conseguiu dois animais emprestados para que o comandante pudesse levar as armas at o entroncamento de Minau. E um peo trouxe de volta os cavalos. Depois que a tropa saiu, tive que ir no vizinho em busca de arroz limpo emprestado, para o almoo dos trabalhadores, porque o nosso era limpo no monjolo, em um processo manual e difcil. Em 72, ns nos mudamos para Formoso e l tocamos uma penso. Aparentemente, estvamos calmos. Sempre havia pessoas estranhas se hospedando em casa. Sabamos que estvamos sendo vigiados. Um dia, foi uma loucura, prises de todo jeito. Os policiais que moravam na penso mudaram de comportamento, meu marido ao chegar da roa, mais uma vez foi preso, no deixaram nem pr os ps dentro de casa. Eles haviam prendido muita gente, a cadeia ficou lotada. Fui interrogada e ameaada vrias vezes. Eles foram levados para Braslia, mas na poca ningum sabia o destino dos prisioneiros. Eles ficaram presos 30 dias. Quando meu marido chegou, ele estava doente, magro, plido de tanto sofrer na priso. Ele nunca mais teve sade. Era uma guerra de nervos permanente. Meus filhos e eu estvamos arrasados, ningum tinha mais sossego. Meus filhos tiveram prejuzos nos estudos e na sade. Economicamente, o prejuzo foi incalculvel. Com as torturas, meu marido, meu irmo e eu ficamos arrebentados. Mas sabemos que o nosso sofrimento no foi em vo. Nos resta a certeza de que, quando tudo terminar, a nossa contribuio continuar presente em cada conquista da sociedade futura. Nunca deve ser esquecido o mal que a ditadura fez ao povo.80

lio Cabral de Souza

Mtodo Paulo Freire foi ao campoascido em 13/11/1936, na Fazenda Ribeiro Grande, Mineiros/GO; casado, funcionrio pblico e anistiado poltico, lio Cabral participou intensamente dos movimentos estudantis na dcada de 60 e foi membro atuante do PC do B, integrante da Ala Vermelha do Partido. Devido s suas convices ideolgicas, posicionou-se radicalmente contra o regime militar e por isso foi duramente perseguido e penalizado pela represso, tendo sido demitido do cargo de Fiscal Arrecadador da Secretaria da Fazenda do Governo de Gois; foi preso vrias vezes, indiciado e condenado pela Justia Militar a 24 anos de recluso por infringir a Lei de Segurana Nacional, considerado elemento comunista e subversivo;. Depois de cumprir cinco anos de priso, foi liberado e colocado em liberdade condicional, numa histria que ele mesmo conta de forma resumida. Fui alfabetizado somente aos 12 anos de idade, numa escola da zona rural, onde morava com os meus pais, uma81

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famlia de lavradores. Terminei o primrio em Mineiros. Estudei em colgio interno at a 2 srie Ginsio Padre Carlette, em Alto Araguaia/MT, e conclu a 4 srie no Ginsio Nestrio Ribeiro, na cidade de Jata. Iniciei a minha participao poltica nos movimentos estudantis. Fui eleito duas vezes para integrar a diretoria da Uges Unio Goiana dos Estudantes Secundaristas , primeiro em 1959 e depois em 1962, quando ento ingressei nos quadros do PC do B, aps a vinda a Goinia do lder comunista Joo Amazonas. Em 1963-64 fiz curso na UNB, com Paulo Freire, sobre alfabetizao de adultos e fui escolhido pelo MEC, mediante concurso pblico, juntamente com mais quatro companheiros, para aplicao do mtodo Paulo Freire no campo. Nesse perodo, o momento poltico-cultural do pas, sobretudo a partir da tentativa de golpe militar, em 1961, proporcionava uma fertilidade e efervescncia que impressionavam. Havia uma enorme participao popular nas exigncias de mudana do modelo poltico. E acentuou-se a luta pela reforma agrria, que serviu para o magnfico despertar do movimento campons, do movimento operrio e sindical e a rebelio dos sargentos da Aeronutica em 1963, reivindicando o direito de votar e ser votado. Enfim, se desencadeou um grande momento cultural; do CPC da UNE surgiram grandes intelectuais. Em 1 de abril de 1964 eu estava em Braslia e, nesse dia, os agentes da represso invadiram minha casa e levaram meus livros, documentos e fotos; em seguida, fui convocado, pela imprensa, para prestar depoimento no82

IPM (Inqurito Policial Militar). Evidentemente, eu no compareci e a partir da passei a viver na clandestinidade, tendo sido obrigado a abandonar o meu emprego de Fiscal Arrecadador da Secretaria da Fazenda, que s vim a recuperar 20 anos depois. Fui para o campo, no norte de Gois, ajudar a organizar o movimento campons. Aps oito meses contra malria e tive que regressar a Braslia para me tratar. Como tinha passaporte, fui mandado pelo Partido para a China, onde fiquei um ano fazendo curso de poltica e militar. Viajei sem visto no passaporte (arranjo diplomtico), mas, na volta, os americanos tinham aumentado o controle na poltica do Paquisto e, numa simples escala tcnica naquele Pas, eles recolheram os passaportes dos passageiros e os carimbaram. Fotografaram a ns todos e enviaram fotos para o governo brasileiro Ficamos algum tempo na Frana, sem poder sair para qualquer outro pas, pois o controle dos americanos e dos seus aliados no continente era total. Nenhum consulado nos concedia o visto, sem o qual no poderamos comprar as passagens. Vir direto para o Brasil seria suicdio. Depois de rodar pelos consulados sem nada conseguir, descobrimos o que era chamado de porto livre, em Paramaribo, na Guiana Inglesa. Da fomos para a Guiana Francesa, alugamos um teco-teco e descemos na fronteira com o Brasil. Atravessamos de barco at San Antnio, um pequeno vilarejo, e embarcamos de avio para Belm/PA. Com o AI-5, o governo militar intensificou a caada aos movimentos de resistncia ditadura militar,83

uma quantidade muito grande de estudantes foi para a clandestinidade. S da Ala Vermelha foram mais de 15 estudantes que, de uma hora para outra, tiveram que se esconder e viver na clandestinidade. E como sustentar esses jovens e muitos operrios e funcionrios pblicos sem condies para a sobrevivncia na clandestinidade e sem condies de sustentar as suas famlias? Alguns conseguiram trabalho com empresrios que eram simpatizantes, mas a maioria no tinha condies de trabalhar, pois estavam sendo procurados, com fotos e nomes espalhados por toda parte. Deslocamos muitos companheiros para outros Estados, onde no eram conhecidos, mas o problema da sustentabilidade financeira persistia. Fizemos uma reunio da direo do Partido para analisar a questo, que era muito crtica e demandava urgente soluo. Tomamos a deciso de resolver o problema das finanas por mtodos no habituais, a requisio por expropriao do capital financeiro, do capital monopolista que sustentava a ditadura militar. Fui encarregado dessa tarefa. Escolhi mais quatro companheiros para pr o plano em prtica. Como tinha feito curso militar na China, fui encarregado de preparar os componentes do grupo. Segundo ponto: essa atividade era excepcional e de emergncia, no sendo permitida divulgao para fins polticos; e terceiro ponto: no matar ningum, nem arriscar as nossas vidas. Elemento surpresa: para isso, elegemos um alvo mvel de transporte de valores que fazia o recolhimento de dinheiro de fbricas, comrcios e outros clientes. E assim fizemos: esse alvo mvel cruzava uma linha frrea, lugar de pouco84

movimento; nos vestimos com o mesmo uniforme usado pelos ferrovirios e com uma bandeirinha vermelha demos o sinal de parada. Abordamos o piloto, pegamos os malotes com o numerrio, retiramos as chaves e fomos embora tranqilos. No outro dia, os jornais estampavam manchetes: Cenas hollywoodianas aconteceram.... O resultado em dinheiro no foi muito bom, realizamos outras aes. At ento, a Ala Vermelha estava resguardada pela rgida disciplina e pelas normas de segurana muito rigorosas que vnhamos implantando. E foi justamente por desrespeitar a essas normas que fomos todos atingidos. Em conseqncia disso, fui detido pela Oban (Operao Bandeirantes), onde fui barbaramente torturado, conhecendo as mais torpes torturas fsicas e psicolgicas que se possa imaginar, tendo sido, inclusive, devido ao meu estado deplorvel, encaminhado para o Hospital das Clnicas de SP. Tal fato est registrado nos arquivos da ditadura. Em 1966, fui indiciado no IPM, instaurado pela Justia Militar para apurar atividades subversivas de integrantes do PC do B, no