26 o olho e o crebro philippe meyer blog conhecimentovaleouro.blogspot.com by viniciusf666 ec6fe

67
Ha muitas maneiras de enxergar que nos cerca. Entre o objeto em sl m aquilo que nos vemos existe um distancia, motivada pela complexld nfveis neuronais e moleculares - em conhecidos pela psicofisiologl neurobiologia -e tambem por psicol6gicas e filos6ficas . Neste Uv propoe a biofilosofia como o cam biologia moderna reflita questoes da condicao human capacidade do conhecimen chamamo 11111 iII i llili 9 7 8 8 5 7 1 3 9 l Y '• II

Upload: alex-souza

Post on 10-Aug-2015

95 views

Category:

Documents


10 download

TRANSCRIPT

Page 1: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Ha muitas maneiras de enxergar que nos cerca. Entre o objeto em sl m

aquilo que nos vemos existe um distancia, motivada pela complexld nfveis neuronais e moleculares - em

conhecidos pela psicofisiologl neurobiologia - e tambem por

psicol6gicas e filos6ficas. Neste Uv propoe a biofilosofia como o cam

biologia moderna reflita questoes da condicao human

capacidade do conhecimen chamamo

11111 iII i ~ 1111~ 1~ llili ill~ 9 7 8 8 5 7 1 3 9 l Y '• II

Page 2: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

0 0 :::T

0 CD

0 n CD' .., CD

C

""

.., 0

Page 3: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

.I ,

FUNDA<;:AO EDITORA DA UNESP

Presidente do Conselho Curador Jose Carlos Souza Trindade

Diretor-Presidente Jose Castilho Marques Neto

Editor Executive Jezio Hernani Bomfim Gutierre

Conselho Editorial Academico Alberto Ikeda Antonio Carlos Carrera de Souza Antonio de Padua Pithon Cyrino Benedito Antunes Isabel Maria F. R. Loureiro Ugia M. Vettorato Trevisan Lourdes A. M. dos Santos Pinto Raul Borges Guimaraes Ruben Aldrovandi Tania Regina de Luca

Philippe Meyer

0 olho eo cerebro Biofilosofia do percepc_;ao visual

Tradu<;ao

Roberto Leal Ferreira

Revisao tecnica

Katsumasa Hoshino

lffidESP

Page 4: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

,

© 1997 Editions Odile Jacob

Titulo original em frances: l:ceil et /e cerveau.

Biophilosophie de Ia perception visuelle

© 2002 do traduc;ao brasileira:

Fundac;ao Editora do UNESP (FEU)

Prac;a do Se, 1 08

01001-900- Sao Paulo- SP

Tel.: (Oxx11) 3242-7171

Fax: (Oxx11) 3242-7172

Home page: www.editora.unesp.br

E-mail: [email protected]

Dodos lnternacionais de Catalogac;ao no Publicac;ao (CIP)

(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Meyer, Philippe, 1933 -0 olho eo cerebra: biofilosofia do percepc;ao visual I Philippe

Meyer; traduc;ao Roberto Leal Ferreira. - Sao Paulo: Editora UNESP, 2002.

Titulo original: L'oeil et le cerveau: biophilosophie de Ia perception visuelle.

Bibliografia. ISBN 85-7139-395-8

1. Percepc;ao visual I. Titulo.

02-2312 COD- 121. 34

fndice para cat61ogo sistematico:

1 . Percepc;ao visual: Biofilosofia 121 .34 2. Visao: Percepc;ao: Biofilasofia 121.34

Editora afiliada:

S::'D"AD Asoclacl6n de F<:dltmiales Un:lversttatias

de America Latina y el Caribe

1 •• , A<;;soetacao Brasilcira de Editoras Universitarlas

Municipr:l nr. mnmar rereira da Rochf GUARJ-.:;:qs:. : . ..,.. 1i ·-SF'

Oeta: .. _t._j ___ .. Q.S .02o t. !i-TOMBO ___ 61- O::=t-~ . lilt de Nota.;ao~ .. JQ _) __ ----~

t·' \ 5 fJ_.e·-~-I ~-- --, -. . ' .,,., ·~ .. --;: (,

~·-;:_ ~ ... V .'<..( '· t ·• -{!,_ ~...\j r /I

A meus anteleitores

Therese de Saint-Phalle,

Charles Galperin,

com afetuoso reconhecimento.

I . I '-~'-~ -····!\

Page 5: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Sum6rio

Introdu~ao 9

Cerebra e materia 1 3

Da percep~ao sensivel 3 7

Fenomenologia da percep~ao das cores 55

Visao inconsciente e subconsciente 75

Fenotipia da percep~ao sensivel 85

Das coisas e da ciencia 1 07

Conclusao 123

Referencias bibliognificas 127

Page 6: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Ill

i 1111

1

11

II'·'

lntroduc.;ao

Alguns seculos antes do nascimento de Cristo, surgiu a pri­meira filosofia ocidental, urn pensamento que pretendia conhe­cer e compreender o Universo, aspira<;:ao laica que emanava de homens cultos. Tales de Mileto, Anaximandro e Anaximenes acreditaram-se fortes o bastante para tudo saber sobre o mundo, do Cosmos aos minerais, passando pela vida. E bern verdade que o primeiro havia fabricado urn calendario e sabia calcular a dis­tancia de urn barco no mar, e que o segundo inventara o gnomon, uma haste que permite, calculando a altura do Sol, medir o tempo. Essa concep<;:ao da filosofia- compreender pelo conhecimento­e 0 fundamento da alma prometeica ocidental.

Muitos seculos depois, de Pascal e Leonardo da Vinci a Des­cartes e Leibniz, a filosofia continua sendo uma pratica de cien­tistas. Mas eis que no seculo XX esse interesse dos cientistas pela filosofia se individualiza, torna-se autonomo sob a influencia de homens mais preocupados em se refugiar na confortavel hist6-ria do pensamento humano do que em compreender os novos paradigmas da ciencia. E diante disso, os cientistas, com algu-

9

Page 7: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

!:1

',

'II

I I'll

'Ill,

ill

I ~~~ 1111,

~~~~ 1:,'1:

1:1

ill

IIIII I

Ill

j

1

1

1

,']'

I,

I

Philippe Meyer

mas talentosas exce<;6es, mergulharam na busca inesgotavel das leis naturais. Cada urn trabalhou em seu canto, tendo como resul­tado uma cacofonia inaudivel. Os neurobi6logos radicalizaram seu reducionismo materialista, ao pas so que os psic6logos e fila­sofas nao podiam reconciliar as moleculas, mesmo organicas, com sua ontologia. Esses do is mundos se ignoraram par uma di­versidade fundamental de finalidades, de interroga<;6es e de meios.

Os mecanismos da visao sao uma excelente ilustra<;ao dessa incoerencia. Por urn lado, cientistas que conseguem descobrir as especificidades dos neuronios visuais; par outro, pensadores que poem em duvida a nossa capacidade de perceber urn mundo em si. Urn fossa separa os Mariotte, os Young, os Dalton e, hoje, os Zeki, que acreditam na supremacia cientifica daqueles, cada vez mais numerosos, que adotaram instintivamente uma desconfian­<;a husserliana. ]a nao estamos nos tempos distantes da alian<;a entre os pensamentos e as tecnicas, quando foram fil6sofos que fundaram a geometria, a arquitetura e a cosmologia.

Uma filosofia que se baseia nas ciencias da vida, uma biofi­losofia, nasceu ha pouco e procura situar o homem no mundo, pelo conhecimento dos mecanismos intimas que sustentam a vida. Uma biofilosofia contraria ao cientismo, porque nao pretende que a ciencia seja o "abre-te, sesamo" da compreensao univer­sal, a maneira dos positivistas e dos empiristas 16gicos do Circulo de Viena. A biofilosofia consiste simplesmente em considerar a biologia moderna para meditar sabre as grandes incognitas da condi<;ao humana.

A biologia e a fisiologia sao duas fadas que velaram sabre o nascimento da psicologia, escreveu o neurofisiologista Marc jeannerod (1996, p.9). Cada uma das disciplinas-mae deseja ar­dentemente que a crian<;a se pare<;a consigo, a ponto de regis­trar tal filia<;ao como exclusiva. Ha uma centena de anos, a psico­logia vern hesitando entre essas duas genitoras. Apoiou-se ora num conhecimento fisico-quimico da materia do cerebra, ora num mundo das ideias. Mas a psicologia tambem foi tentada por

10

0 olho e o cerebra

uma separa<;ao total em rela<;ao ao que sustentou seu nascimento. Tornou-se "psicofisica" para elaborar uma fisica das sensa<;6es e uma biologia das aptid6es, a partir da observa<;ao das respostas a estimulos exteriores. Tentou apropriar-se dos metodos e dos con­ceitos da biologia. Bi6logos atualizados pretendem hoje poder res­tituir uma psicologia intacta, necessaria para se compreender e respeitar as diferen<;as individuais no seio da especie humana, mas que seja elaborada levando em conta dados de sua disciplina. 0 procedimento deles deve ser posto em paralelo com o da biofilo­sofia. 0 conhecimento do vivente nao pode pretender ser com­pleto, mas nao ha reflexao sobre a vida que nao se refira a ele.

As neurociencias sao urn dos campos que provocam mais interroga<;6es, deslumbramento e emo<;ao. Seu objeto- o funcio­namento do cerebra - situa-as naturalmente no cora<;ao do de­bate filos6fico. 0 conhecimento do homem exige uma integra<;ao sintetica dos progressos neurol6gicos; nenhuma filosofia e con­cebivel sem ter ultrapassado essa etapa. Foi a leitura de urn livro de Merleau-Ponty, I:oeil et ['esprit [0 olho eo espirito], publicado pela Gallimard em 1964, que me levou, ainda que nao-especia­lista, a discutir sobre a subjetividade das percep<;6es e os limi­tes da ciencia. Como aparece no titulo de meu livro, o cerebra pode substituir o espirito gra<;as aos notaveis avan<;os das neu­

rociencias. 0 olho eo cerebra originou-se na serie de seminarios de biofi­

losofia ministrados a jovens estudantes de medicina de primeiro e segundo anos, que hoje estao empenhados num pesado pro­grama de ciencias humanas e sociais. Como ocorreu com urn tra­balho anterior, I:illusion necessaire. Biophilosophie I [A ilusao neces­saria. Biofilosofia I], a clinica neurol6gica e psicol6gica e de novo reduzida a alguns exemplos esquematicos, a fim de nao complicar a tarefa dos lei to res que ainda nao atravessaram as portas do hos­pital. 0 neurologista especializado nao deve decepcionar-se, par seu lado, com a superficialidade das descri<;6es experimentais e das referencias, que dizem respeito mais a livros de sintese do

11

Page 8: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

'Ill

II

1

11

1.1

~~~~ ill Ill I

~~~ illl

I ~I

Philippe Meyer

que a artigos originais e analiticos; a idade dos ouvintes explica esta escolha. Os resultados cientfficos e medicos estao presentes apenas para desenvolver urn raciodnio filosofico.

A discussao inicial suscitada pelo I.:illusion necessaire lan~ou alguma duvida sobre o livre-arbftrio, urn valor que os homens fazem resistir a todas as tempestades. Este novo seminario leva igualmente a uma atitude de reserva e de modestia. A complexi­dade e a variabilidade da organiza~ao cerebral sao tais que urn conhecimento objetivo do "real" parece inacessfvel. Interpreta­~6es individuais inevitaveis, que nao param de crescer como des­vendar do cerebra, op6em-se a defini~ao de normas e padr6es. 0 vermelhao e uma cor com uma realidade objetiva, mas o seu desvio para o amarelo, bern como a sua vivacidade sao deixados a aprecia~ao de cada urn. 0 cerebra humano e constitufdo de tal maneira que imp6e uma marca pessoal a realidade, e como esta ultima e de uma complexidade espantosa, hi dois veus que se contrap6em a sua percep~ao, urn intrfnseco e outro que ele mes­mo traz consigo. 0 real e de fato "velado", como sugere o belo titulo de Bernard d'Espagnat (1994), talvez tanto pel a distor~ao do olhar humano que o contempla quanto pelo furtar-se do ob­jeto examinado.

A presente discussao diz respeito aos mecanismos da visao. Antes de aborda-los e de deles deduzir uma filosofia, foram discu­tidos alguns resultados de estudos sobre 0 pensamento, a memo­ria e a linguagem, porque ressaltam a materialidade do funciona­mento cerebral, ainda demasiadas vezes ignorada, certamente sob a influencia de uma tradi~ao espiritualista tenaz. 0 raciodnio fi­losofico so pode ser levado adiante com base numa premissa materialista.

12

Cerebro e materia

A materia cerebral- hoje isto esta fora de duvida- elabora o con junto da atividade do cerebra, nao somente OS COn troles que o cerebro-maquina exerce sobre a vida visceral, mas tambem as mais nobres fun~6es, que sao a consciencia, o pensamento, a emo~ao e a percep~ao. As provas dessa materialidade sao forne­cidas pela descoberta das localiza~6es cerebrais, ou seja, de uma topografia funcional, pela evidencia~ao dos mecanismos fisico-quf­micos da atividade nervosa e das varia~6es concomitantes do fluxo sangiifneo regional, bern como pelas imprudencias de Bergson.

Urn cerebra somente funciona sea sua textura estiver intacta, equivalendo o funcionamento neuronal a uma mudan~a do estado da materia organica nervosa num lugar particular. Toda manipu­la~ao que se oponha a is so impede por si a sua a~ao, quer se trate de inten~ao, de dedu~ao, de sonho, de memoria ou de prazer. Nao ha pensamento humano fora do cerebra, em que pesem OS que creem num pensamento errante pelo universo.

A materialidade cerebral e indubitavel, abundam os argumen­tos em seu favor. Nenhuma filosofia poderia desdenha-la. No

13

Page 9: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

entanto, imp6e-se uma advertencia. A materialidade de hoje tal­vez nao seja a de amanha. Os movimentos de materia que sao observaveis ao Iongo de urn conjunto neuronal durante a ativi­dade mental sao apenas sincronicos em relat<;:ao a essa manifes­ta<;:ao do espirito. A rela<;:ao de causalidade nao esta estabelecida, outros fenomenos organicos e outros mecanismos sao concebi­veis. Pretender que o homem seja neuronall exige urn conheci­mento absoluto do neuronio e, com toda a evidencia, estamos Ionge disso.

A neurologia nao escapou as limita<;:6es da anatomia. Esta ultima trabalhou duro durante muito tempo iinvestigando 0 cere­bro. que se esquiva e se furta tao logo os declos e escalpelos ten­tam encurralar formas plenas, ate a descobertca de fixadores, como o a! cool. A teoria das localiza<;:6es cerebrais, o u seja, de uma espe­cializa<;:ao funcional estavel das diversas parn:es constitutivas do cerebro costuma ser atribuida ao medico al emao Franz-Joseph Gall, estabelecido em Paris em 1807. Com ele, as dobras da super­fide do cerebro, as circunvolu<;:6es, perdem seu aspecto intestinal e se tornam uma manta dobrada continua, onde fibras nervosas se desenvolvem e se articulam entre si. Sobre-tudo zonas de topo­grafia fixa e reconhecivel podem ser ali defi.nidas e numeradas, cada uma dotada de uma atividade mental prrecisa. Sao "lugares onde se exercem os instintos, sentimentos, vontades, talentos e, em geral, as for<;:as morais e intelectuais". Gall retomava uma hipotese inglesa esbo<;:ada urn seculo e meio antes por Thomas Willis, mas marcou seu tempo ao propor que a forma da caixa craniana, refletindo o desenvolvimento desta ou daquela quali­dade mental, pode nos informar sobre OS temperamentOS do cere­bro que nela se aloja. A frenologia de Gall haseava-se no duplo absurdo de localiza<;:6es cerebrais fantasiosa.s e de uma adequa­<;:ao do volume osseo ao crescimento cerebral, mas, como foi bas­tame com urn na historia das ciencias, uma hipotese falsa orien­tou as pesquisas neurologicas na dire<;:ao de f"enomenos cada vez mais convincentes de uma materialidade cerebral.

14

i~ ~ :ft.

0 olho e o cerebra

A anatomia mostrou -se necessaria, mas naturalmente insufi­ciente. 0 recurso a patologia forneceu a prova decisiva- uma cer­teza construida com base num metodo cientifico - das localiza­fi5es cerebrais, ou seja, de uma geografia tissular organica que pilota as atividades mentais. A contribui<;:ao dos neurologistas clinicos e as vezes negligenciada hoje em dia, em razao do ad­vento da pesquisa bioquimica. Prestemo-lhes nossa homenagem

no inicio deste texto.

0 pensamento e a memoria hoje

A dezena de bilh6es de neuronios que constituem o cerebro humano funciona com modifica<;:6es materiais perceptiveis. A pequena corrente eletrica que acompanha a ativa<;:ao de uma celula nervosa e que se propaga por todo 0 seu comprimento e mensuravel. A comunica<;:ao interneuronal e garantida por subs­tancias quimicas, numerosas mas quantificaveis e observaveis nas termina<;:6es nervosas. Con juntos neuronais encarregados de uma fun<;:ao precisa sao definiveis por uma morfologia particular e urn grupo de neurotransmissores. A realidade de areas sensoriais e motoras especializadas foi demonstrada instrumentalmente por medi<;:6es da eletrogenese cerebral e do fluxo sangiiineo cerebral. Assim, a execu<;:ao de movimentos complexos dos dedos aumenta o fluxo sangtiineo da zona motora do cerebro e uma ilumina<;:ao in ten sa e repentina do olho ativa o cerebro visual occipital. Essas localiza<;:6es cerebrais (dos modulos) devem ser entendidas como regi6es do cortex que tern uma capacidade funcional particular, geneticamente transmitida, evidenciada por uma estimula<;:ao do

meio ou pela aprendizagem. Elas se mostram mais extensas e muito mais complexas do

que se pensava, pois sao compostas pela justaposi<;:ao de uma area principal, que recebe o essencial, a ossatura, de uma sensa<;:ao, e de areas secundarias, onde se inscrevem os pormenores e onde se

15

Page 10: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

'1111'

li

I:

i

II,

ill

:I II

IIIII! ,,J i

1,1

I IIIII

Philippe Meyer

organiza uma sensa<;:ao completa. A integra<;:ao de uma sensa<;:ao para que se tome percep<;:ao e promovida por neuronios associa­tivos, que garantem uma comunica<;:ao no interior da localiza<;:ao ou, a dis tan cia, com outros modulos do cere bro. Cada localiza<;:ao cerebral representa uma zona funcional especializada ou forte­mente orientada para uma atividade psicossensoriomotora, fun­damento dos gestos e da linguagem, do sono e do estado de vigf­lia, das recorda<;:6es e das puls6es afetivas. Mas o cerebra, explica Fran<;:ois Lhermitte (1976), "e tambem, por sua vez, urn orgao (mica, no sentido de que cada uma de suas atividades especiali­zadas esta ligada ao conjunto das atividades cerebrais. lsolada do res to do cerebra, cada uma delas nao teria nenhum significado para o sujeito, que nem sequer as perceberia".

A audi<;:ao de musica pelos lobos temporais, suscitando uma ativa<;:ao neuronal associativa, encarrega-se de afetos multiformes e pessoais. 0 cerebra visual occipital, como veremos, nao funcio­na diferentemente, suas percep<;:6es carregam as marcas de todas as partes do cerebra.

Urn pensamento e urn processo dinamico e estruturado da mente humana, que nasce geralmente de sensa<;:6es, de percep­<;:6es sensoriais ou sensitivas, de lembranc;as, de afetos e de emo­<;:6es complexas, de conceitos ou de dedu<;:6es anteriores. Pode tambem nascer de aparentemente nada, ou seja, talvez de urn in­consciente. A sequencia e caprichosa, detendo-se indefinidamente, gerando urn novo pensamento ou enveredando por urn arquivo mnemico. 0 pensamento excita o hemisferio cerebral esquerdo na pessoa destra e induz a linguagem, embora possa existir urn pensamento sem linguagem.

Esse processo implica o registro de uma ou varias percep­<;:6es e a transferencia da informa<;:ao para uma ou varias areas cerebrais competentes, capazes de dosagem, de triagem e de in­terferencia nas zonas complementares, a fim de construir a sintaxe de uma linguagem interior. Essa psicologia e compatfvel com uma fisiologia modular e associativa. Urn funcionamento

16

0 olho e o cerebro

modular, as vezes com varios modulos em uma unica area senso­rial, mas tam bern uma ativa<;:ao total do cerebra, particularmente das areas frontais e parietais foram evidenciadas pela luminosi­dade tfpica das imagens geradas pelas cameras de emissao de positrons (partfculas elementares positivas liberadas pel a desin­tegra<;:ao de urn elemento qufmico instavel, que se administra pre­

viamente ao exame). Os exames cerebrais por imagens forneceram os argumentos

mais convincentes em favor da materialidade do pensamento e da memoria. Num artigo publicado em Science, em 1993, como belo titulo de "Seeing the mind", Poster explica que quando uma pessoa se familiariza com uma lista de names que ela leu varias vezes, a atividade cerebral vai progressivamente se extinguindo. Mas tao logo uma nova lista lhe e apresentada, o cortex frontal (cognitivo) e a area de Wernicke (da linguagem) se ativam na face lateral, bern como 0 cortex cingular (lfmbico) na face media­na. As imagens de memoria, armazenadas sob forma latente, sao suscetfveis de reaparecer com urn quadro de atividade semelhante

a obtida na presen<;:a do estfmulo. A aptidao do cerebra humano para categorizar sensa<;:6es e

para receber bilh6es de estfmulos caoticos, diferentes de pessoa para pessoa e muitas vezes nao identificaveis, garante a cria<;:ao de urn mundo perceptual e semantico proprio de cada indivfduo, de onde emergem o pensamento e a linguagem. Esse esquema e

pouco discutido pelos cientistas. 0 pensamento- precisa Gerald M. Edelman (1992), premia

Nobel de medicina em 1972- eo duplo produto de uma reorgani­za<;:ao neuronal por sele<;:ao (a fim de categorizar as percep<;:6es) e de uma reentrada (reentn?e) informatica no encadeamento do processo do pensamento (para estabelecer compara<;:6es com os dados perceptuais finais anteriores). Os novos mapas neuronais permitem uma adapta<;:ao a situa<;:6es ineditas e a elabora<;:ao de novas formas perceptuais, uma capacidade de dominar urn novo meio ambiente. Trata-se de urn darwinismo neuronal.

17

Page 11: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

111

1

111

Philippe Meyer

Para Jean-Pierre Changeux (1983), a entrada em atividade de areas multiplas em intera<;:6es reciprocas permite ao mesmo tempo a analise e a sfntese e garante a globalidade do percepto. Os objetos mentais possuem propriedades associativas que lhes "permitem encadear-se, ligar-se de maneira espontanea e auto­noma" (p.187). A sele<;:ao neuronal implicada na adapta<;:ao po­deria realizar-se par destrui<;:ao ou par estabiliza<;:ao seletiva. E Fran<;:ois Lhermitte (1982) escreve que "todos os neuronios se integram em vastos conjuntos, e cada rede e portadora de urn sem-numero de configura<;:6es que, par seu lado, possuem prova­velmente uma especificidade psicofisiologica" (p.489-508).

Admitamos, portanto, par enquanto, a hipotese de uma ma­terialidade do pensamento que nenhum fato cientffico parece recusar.

Cada fun<;:ao cognitiva tern sido abordada da mesma maneira, sabre bases de materialidade, de localiza<;:ao e de circuitos asso­ciativos. A memoria, que e ao mesmo tempo guia e medida dos pensamentos e das percep<;:6es sensoriais, nao escapa a estrate­gia das neurocH~ncias em progresso.

A observa<;:ao do psiquiatra russo Korsakoff, em 1887- sabre a qual voltaremos a falar mais adiante -, suscitara a hipotese de uma topografia cerebral e de uma contrapartida material da lem­bran<;:a. No seculo XX, nao podemos mais duvidar da natureza cerebral, organica, do engrama mnemonico. Neurocirurgi6es -Wilder G. Penfield e J. M. R. Delgado- constataram que a estimula<;:ao eletrica do lobo temporal faz reviver uma experien­cia passada e ressurgirem algumas emo<;:6es sentidas no mom en­to da experiencia original, bern como representa<;:6es sensoriais. Esse fato faz evocar imediatamente uma associa<;:ao entre a me­moria, 0 cerebra afetivo e 0 cerebra sensorial, embora persista uma duvida sabre a verdade da associa<;:ao mnemonica repescada. As condi<;:6es tecnicas dessas experiencias eram, alem disso, criticaveis. Mas as experiencias de estimula<;:ao eletrica demons­traram a realidade de urn rastro material das lembran<;:as no in-

18

0 olho e o cerebra

terior do proprio cerebra, condenando ipso facto as filosofias

espiritualistas. 0 estudo cientifico da memoria podia, entao, come<;:ar com

a inten<;:ao de responder as grandes interroga<;:6es sabre a sua (au suas) localiza<;:ao(6es), seus mecanismos neuronais e molecula­res. Clfnicos, psicologos, neurobiologos e neuroqufmicos, se nao completaram, pelo menos iniciaram o conhecimento de uma das

fun<;:6es mentais mais misteriosas. Alguns pacientes, que se tornaram tao celebres quanta seus

observadores, ajudaram a localizar o sftio de armanezamento mnemico. 0 doente estudado par Brenda Milner nao se cansa de ler o mesmo jornal porque se esquece do que le. 0 de Larry Squire perde o fio dos programas de televisao e dos intervalos publicitarios. 0 de Damasio, trancado num comodo escuro, ja nao sabe se e verao ou inverno. Nesses amnesicos incapazes de se lembrar dos episodios da vida do dia-a-dia, que se esquecem dos fatos recentes a medida que eles vao acontecendo, o encefalo se mostrou lesado em sitios particulares: areas temporais, lobo

temporal mediano e diencefalo mediano. A participa<;:ao do diencefalo pode ser precisada durante cir­

cunstancias tragicas, porem mais claras do que uma intoxica<;:ao alcoolica, sobretudo casas cirurgicos. Uma bilateralidade lesional com destrui<;:ao do circuito hipocampo-mamilo-talamo-cingular e necessaria para que apare<;:am perturba<;:6es globais da memo­ria e da aprendizagem. A interven<;:ao nos lobos temporais foi ob­jeto de numerosfssimos trabalhos, em particular de Brenda Milner, que demonstrou especificidades dos lobos esquerdo e di­reito. Uma lobectomia temporal esquerda induz urn deficit da reten<;:ao verbal, da aprendizagem de pares associados visual ou auditivamente, do reconhecimento de estimulos visuais nao ver­bais recorrentes; uma abla<;:ao do lobo temporal direito exp6e a uma sintomatologia diferente, com emparelhamento retardado de fotografias de rostos, da aprendizagem de labirintos com pon­tos de referenda tacteis ou visuais. Quanta as forma<;:6es tern-

19

Page 12: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

I

Philippe Meyer

porais internas (uncus, nucleo amigdaliano, hipocampo, giro para­hipocampal) - precisa o psicologo Henri Hecaen -, elas consoli­dam a informa~ao, respeitando a especializa~ao funcional de cada hemisferio.

Estas poucas palavras acerca da memoria sao irrisorias em compara~ao com a massa de trabalhos clinicos e experimentais que a exploraram. So foram lembradas como fito de provar mais uma vez que o pensamento, amplamente construido sobre a me­moria, e uma atividade material do cerebro.

Conceber que a memoria poderia ter sido situada numa unica regiao cerebral choca-se com muitos argumentos que sustentam uma multiplicidade funcional e uma diversidade topognifica den­tro do cere bro. "A memoria", disse Larry Squire (Memory and Brain, apud Missa, 199 3, p.152), comentando experiencias de des­trui~6es cerebrais parciais em animais, "e amplamente distribui­da, mas os diferentes lugares armazenam diferentes aspectos do conjunto".

A psicologia da memoria tern mostrado, entretanto, que essa capacidade e uma entidade composta. Ha uma memoria de curta prazo, processo reciclavel, e uma memoria de Iongo prazo, que nao dependem dos mesmos mecanismos; uma memoria explfcita ( ou declarativa), memoria verbalizavel dos fatos e dos episodios; uma memoria implfcita (ou nao declarativa e nao verbalizavel)' que re­mete ao conjunto das habilidades perceptivo-motoras e cogniti­vas adquiridas, bastante semelhante a mem6ria-htibito de Bergson. Ha tambem, identificadas mais recentemente, uma memoria epis6dica das informa~6es contingenciais e uma memoria semiin­tica dos conhecimentos gerais de nosso saber.

Os territories cerebrais ativados pela memoria de curta prazo foram explorados por estudos de varia~6es do fluxo sangtiineo cerebral. Varias regi6es cerebrais do hemisferio direito estao envolvidas no armazenamento da informa~ao visuo-espacial (occipital, frontal e parietal direita). Uma conexao serve para a aquisi~ao da linguagem, permitindo a repeti~ao da informa~ao

20

'{. '\(

' f; ;~ ·<I

0 olho e o cerebro

verbal e sua codifica~ao fonologica; essa conexao situa-se na re­giao de Broca e no lobo parietal inferior. De acordo com a hipo­tese de dois pesquisadores americanos, Baddeley e Hitch, a tria­gem das informa~6es que merecem ser mandadas para a memoria de Iongo prazo seria efetuada por urn controlador central.

Os misterios da memoria de Iongo prazo estao tam bern parcial­mente esclarecidos. Na pessoa destra, o hemisferio cerebral esquerdo e dominante para a linguagem, ao passo que 0 hemis­ferio direito e especializado no processamento das informa~6es visuo-espaciais. 0 lobo temporal mediano, e particularmente sua estrutura chamada "hipocampo", desempenha urn papel funda­mental na codifica~ao, mas nao e urn lugar de armazenamento dos rastros mnemicos, como se acreditava na decada de 1960: ele apenas auxilia temporariamente o processo de memoriza~ao. 0 hipocampo ativa secundariamente varias regi6es corticais, que se encarregam de maneira permanente e definitiva da informa­~ao. A codifica~ao da memoria episodica verbal envolve, alem do hipocampo, 0 cortex pre-frontal esquerdo e as regi6es retroes­plenicas, ao passo que a recupera~ao do rastro mnemico se da no cortex dorso-lateral direito, no giro angular esquerdo e no

cortex parietal. Persistem muitas incognitas, relacionadas especialmente com

a regula~ao das lembran~as de uma zona para outra e com o me­canisme de percep~ao das informa~6es que devem ser preserva­das. Israel Rosenfield, historiador da medicina, trabalhou muito sobre o papel das emo~6es na capta~ao do presentee em sua resti­tui~ao sob forma de lembran~a. No entanto, podemos desenhar uma cartografia da memoria, das terras cerebrais que tern a espan­tosa capacidade de absorver o tempo presente para restitui-lo num tempo futuro e, portanto, de reconhecer os diferentes consti­

tuintes do presente. 0 avan~o cientifico contemporaneo ultrapassa o nivel

macroscopico da localiza~ao e ja leva ao universo molecular da quimica. Em 1994, dois pesquisadores americanos, Wilson e

21

Page 13: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

McNaughton, usando a tecnica de registro de urn pequeno nu­mero de neuronios do hipocampo do rato, constataram que certas celulas geram uma COrrente eletrica toda vez que 0 animal eleva­do de volta ao lugar onde foi feita a aprendizagem e que a mesma excita~ao ocorre espontaneamente durante o sono lento. Foram obtidas algumas indica~6es sobre os mecanismos moleculares que induzem uma eletrogenese desse tipo.

Urn deficit de memoria espacial, que depende de urn born funcionamento do hipocampo, pode ser induzido por substan­cias que bloqueiam a penetra~ao do calcio no interior dos neu­ronios. Urn duplo movimento de ccilcio e de fosforo atraves da membrana neuronal poderia ser urn fator desencadeante. No interior das celulas nervosas, as varia~6es do ccilcio modificam a atividade de diversas enzimas, que tern varias formas e que de­pendem da expressao de varios genes. Eis ai sugerida uma rela­~ao entre a memoria e a hereditariedade.

Por muta~ao, podemos obter linhagens de camundongos sem essa ou aquela proteina. Perturba~6es da memoria espacial po­dem resultar dai. Os mecanismos ionicos e moleculares da me­moria nao poderiam ser resumidos numa exposi~ao concebida sem uma inicia~ao particular a farmacologia fundamental. As par­tes conhecidas do quebra-cabe~a quimico da memoria sao extra­ordinariamente complexas e as zonas desconhecidas continuam sendo imensas. Mas a materialidade dos fenomenos mnemicos nao pode mais ser discutida. Imagina-se o pormenor molecular da aprendizagem: uma amplifica~ao do efeito na segunda esti­mula~ao celular, a chamada "potencializa~ao de longo prazo", foi demonstrada eletrica e quimicamente. Julga-se que o esqueci­mento possa estar ligado a urn efeito de igual natureza, mas agin­do no sentido inverso. Quanta a diferen~a entre memoria de curto prazo e memoria de longo prazo, ela poderia dever-se a uma dife­ren~a dos processos de transporte do fosforo no interior de certas celulas cerebrais. Isso ilustraria a tese que considera 0 Curto e 0

longo prazos eventos de essencia diferente.

22

0 olho e o cerebra

Materia e memoria

Uma filosofia so pode ser concebida em razao dos dados da

ciencia. Bergson resolvera filosofar a partir dos dados da biologia e,

em cinco anos, havia lido tudo sobre a afasia. Mas seu pensamen­to, suas teorias haviam precedido essa pesquisa. Seus postula­dos foram anteriores ao exame dos fatos, a sua psicologia prece­deu a neurologia e nao o in verso. Ele nao procurou dotar as suas teses de "solidas raizes no real" para fortalecer a validade de seus a priori. Em seu livro Les maladies de la memoire [DoenfaS da memo­ria], publicado em 1881, Theodule Ribot escrevera que "a lem­bran~a nao esta na alma, [mas sim] fixada em seu lugar de nas­cimento, numa parte do cerebra" (p.1 0). Em Uber das Gediichtnis, quatro anos mais tarde, H. Ebbinghaus tambem concluira pela materialidade damemoria; e em 1887, Korsakoffrelacionara uma amnesia dos fatos recentes a les6es cerebrais particulares, secun­darias a urn alcoolismo cronico. Uma fun~ao mental que se altera por uma injuria tissular cerebral, como mostrou a historia das afasias, deve ser considerada urn produto material.

Bergson desdenhou esse dado, apesar de seu carater evidente. No segundo capitulo de Materia e memoria, que mencionaremos muitas vezes aqui, ele sustenta que o cerebra pode conduzir uma a~ao, mas nao tern nenhum poder de representa~ao e nenhuma capacidade mnemica, porque a memoria e de natureza espiritual. Nenhuma tese de Bergson resistiu a neurofisiologia e a psicofi­siologia. A influencia de sse filosofo permanece, porem, duradou­ra, pelo menos na Fran~a. Nao ha lugar melhor do que este en­saio de biofilosofia, construido sobre o "real", para refutar de novo o que nao pas sa de cren~a. Alguns excertos dao a medida de sua

imprudencia. "0 cerebra nao pode ser senao uma especie de esta~ao tele-

fonica central. Seu papel e fornecer a comunica~ao ou faze-la aguardar." "Sua fun~ao limita-se a transmissao do abalo sensitivo

23

Page 14: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

au sensorial centrfpeta a urn mecanismo motor. Como na me­dula espinhal subjacente, a transmissao do movimento ocupa a atividade cerebral; nenhum centro cortical trabalha 'tendo em vista o conhecimento'." 0 que ganha o abalo periferico em se prapagar de maneira ascendente em dire<;:ao ao cerebra acima do arco reflexo medular?

0 papel do cerebra limitar-se-ia, portanto, segundo 0 filosofo, a transmitir e a dividir movimento. Ora, ao receber urn abalo, ele ativa todas as suas vias motoras e a elas transmite todas as rea<;:6es de que e capaz; ora restringe a resposta a motricidade segmentar que a medula teria podido realizar por si mesma. 0 cerebra seria, assim, urn orgao de sele<;:ao e de a<;:ao. La Mettrie acreditou num cerebra-maquina capaz de fabricar pensamento. 0 conceito de Bergson e radicalmente diferente: a massa gelati­nasa cerebral, e "seus pralongamentos ameboides capazes de se apraximar diferentemente", e limitada a a<;:ao e destituida de qualquer participa<;:ao na representa<;:ao e, portanto, no estado intelectual. 0 conceito de "espirito" e antagonista dos conceitos de "cerebra e materia".

Bergson imaginou que o cerebra nao conserva nenhuma lem­bran<;:a, nenhuma imagem, "nem na percep<;:ao, nem na memo­ria, nem, com mais forte razao, nas opera<;:6es superiores do espi­rito". 0 cerebra, orgao da a<;:ao, e carente de memoria pura de e ssencia espiritual, a verdadeira memoria. So possui uma memo­ria-habito, gravada no corpo, de natureza sensorio-motora.

0 reconhecimento da "lembran<;:a pura" extracerebral implica u rna materializa<;:ao progressiva (transforma<;:ao em "lembran<;:a­irnagem") e urn engaste na materia cerebral, em que ela se en­carna como percep<;:ao. Essas ultimas etapas e que estao pertur­badas nas patologias do reconhecimento, ao contrario do que afirma a fisiologia associacionista.

As ideias, as puras lembran<,:as, invocadas do fun do da memo­ria, desenvolvem-se como lembran<,:as-imagens cada vez mais ca-

24

0 olho e o cerebra

pazes de se inserir no esquema motor. A medida que essas lem­

bran<,:as vao ganhando a forma de uma representa<,:ao mais com­pleta, mais concreta e mais consciente, elas tendem mais a se con­fundir com a percep<,:ao que as atrai ou cujo quadro adotam. Portanto, nao ha, nao pode haver no cerebra uma regiao onde as lembran<,:as se fixem e se acumulem. A pretensa destrui<,:ao das lem­

bran<,:as pelas les6es cerebrais e apenas uma interrup<,:ao do pro­

gresso continuo pelo qual a lembran<,:a se atualiza.

A memoria pura e de natureza espiritual, imaterial, como o sao o pensamento e a alma que lhe deram forma. "Ha na alma humana algo de imperecivel, e que nao e a entelequia de nenhum corpo, algo que lhe vern de fora ... e 0 espirito, e 0 que hade divi­no na alma." A ciencia neurologica detem-se no limiar de uma metafisica, proxima dade Plotino, na qual as coisas imateriais, a vida, a memoria, a inteligencia sao componentes do Uno. "As­sim como a inteligencia, o uouS, desabrocha em ideias multiplas ... a alma refrata-se sem se dividir, numa multiplicidade de almas individuais." 0 espiritualismo a que se apega Bergson e uma fila­sofia reconfortante, para a qual 0 pensamento humano e urn atri­

buto de Deus, causa unica. Apesar de Gall e de Broca, muitos medicos se acomodaram

muito bern com essa suntuosidade1 reencontrada. Bergson foi aclamado, as vezes como urn neurologista de genio, de Praga a Zurique. Em Paris, em 1906, o neurologista Pierre Marie apai­xona-se pelo espiritualismo e denuncia a ideia de localiza<;:ao e de associa<;:ao cerebrais. "A terceira circunvolu<;:ao frontal esquer­da", escreve ele, "nao desempenha nenhum papel especial na fun<;:ao da linguagem", esta e o praduto de uma atividade cere­bral global, de uma atividade "intelectual" (1906, p.241ss.).

Por suntuosidade, de acordo com jean Hamburger, entendi os aspectos emi­nentemente belos e preciosos da alma humana, sua capacidade universal de definir valores eticos e regras de conduta, bern como de reconhecer em cada homem uma unicidade corporal e espiritual.

25

Page 15: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

IIIII I

Ill

Philippe Meyer

Bergson e desmentido em varios pontos fundamentais. Toda reflexao sobre uma fun<;ao cerebral implica previamente que ela seja realizada no quadro de uma fenomenologia decididamente materialista. As analises por imagens demonstraram sem discus­sao possfvel que 0 cerebro pode ser urn lugar de representa<;ao e que a sua fun<;ao nao pode ser limitada a a<;ao. Uma atividade ffsico-qufmica intensa acompanha as fun<;6es cognitivas cere­brais, derrubando a hipotese de que a memoria seja de natureza espiritual e de que a memoria cerebral se reduza a uma memo­ria proprioceptiva. Enfim, e esse nao e o menor argumento, o cerebro animal, pelo menos nas especies superiores, parece dota­do de certo poder reflexivo, de certa forma de pensamento e de memoria elementares, 0 que permite duvidar de sua essencia espiritual. 0 homem perde seu lugar no centro do mundo. A afir­ma<;ao de urn pensamento animal tern o alcance de uma revolu­<;ao copernicana.

Cameras de positrons registram urn aumento de atividade, ou seja, do fluxo do sangue arterial, na regiao cerebral referente a uma percep<;ao, uma sensa<;ao ou urn movimento. A area mo­tora do cerebro e urn vasto conjunto constituido de zonas dis­tintas, coordenadas, e que exercem atividades complementares. Ao lado da area motora primaria, responsive! pelo elemento motor propriamente dito do gesto, participam na organiza<;ao da motricidade 0 cortex pre-motor, a area motriz suplementar e 0 cortex parietal posterior. Programa e coordena<;ao sao de responsabilidade dos do is primeiros, ao passo que 0 cortex parietal posterior fornece a informa<;ao visual que permite precisao e destreza. Essas areas estao envolvidas na realiza<;ao de urn movimento complexo e executado pela primeira vez: a ativa<;ao cerebral e difusa, a dilata­<;ao vascular estendida ao conjunto do cortex motor. 0 que de­monstra a presen<;a de fenomenos materiais durante uma ativida­de cerebral, mas nao afirma uma causalidade.

0 estudo do perfodo de inten<;ao e de reflexao que precede urn movimento complexo e mais interessante. A sequencia

26

0 olho e o cerebro

gestual que foi escolhida por psicologos dinamarqueses deve ser descrita para se apreciar o grau de atividade cerebral em jogo: trata-se de uma sequencia motora complexa de dedos, na qual o polegar, depois deter tocado duas vezes 0 indicador, 0 dedo medio uma vez, o anular tres vezes e o mfnimo duas vezes, realiza o mesmo movimento em sentido inverso. A representa<;ao mental da programa<;ao do movimento previa a sua execu<;ao ocorre sem manifesta<;6es na area motora primaria, mas ativa as areas mo­toras suplementares. E interessante observar que a representa­<;ao mental de urn gesto simples -urn movimento repetitivo de flexao de urn dedo, por exemplo - transcorre em silencio.

Varios resultados refor<;am a ideia de que a atividade cere­bral e sensfvel a uma representa<;ao mental. Registros eletricos do cortex mostraram a presen<;a, no macaco, de uma pequena zona do cortex pre-motor inferior (chamada V

5) sensfvel aos

movimentos intencionais da mao. Os neuronios dessa area sao excitados da mesma maneira quando o macaco e levado a olhar urn pesquisador que executa o mesmo movimento da mao: em­bora imovel, o animallembra-se do movimento que lhe foi ensi­nado durante a aprendizagem. E, para voltarmos ao homem, a multiplica<;ao das medi<;6es do fluxo sanguineo cerebral para mapeamento de areas ativas indica, sem nenhuma ambigiiida­de, urn aumento do metabolismo cerebral em varias areas cere­brais durante conversa<;6es interiores. A ativa<;ao do hipocampo durante uma prova de memoriza<;ao pode ser tida como certa.

A concep<;ao de urn cerebro, mero orgao de a<;ao, sem capa­cidade de funcionar "tendo em vista o conhecimento", como a de Bergson, e incompatfvel com os dados neurocientfficos con­temporaneos: com efeito, a materia cerebral esta envolvida no processo mental.

A realidade de urn pensamento animal contribui fortemente para uma dessacraliza<;ao das fun<;6es cerebrais. A observa<;ao de urn cao, companheiro do homem no cume da hierarquia domes-

27

Page 16: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

tica, prova que seu cerebro pode ser atravessado por correntes, fragmentos de pensamento. Pode ser que se trate de urn pensa­mento adquirido junto ao dono, de imagens mentais impressas por uma aprendizagem; o espiritualismo e a cren<;a numa trans­cendencia do hom em acima das especies vivas que nao tern acesso a suntuosidade conformam-se com essa hipotese. Mas que importa a origem da atividade mental canina?, basta que ela exista, mesmo no estado de rudimentos ou de balbucios, para que o prin­cipia de sua natureza espiritual possa ser negado. "Ja lase vai o tempo" -escreveu Fran<;ois Lhermitte (1976)- "em que [open­samento] era o atributo exclusive do homem; ele existe nos ani­mais superiores, mas ninguem pode determinar o limite aquem do qual nao ha pensamento e alem do qual a coisa mental aparece".

0 estudo cientifico tratou tambem da linguagem do chim­panze, simio superior que so difere do homem por 2% de seu genoma e que e dotado de certa sociabilidade. Realizado ao longo dos anos 1950-1960, chegou a dois resultados que tern uma im­portancia filosofica fundamental. Em primeiro lugar, chimpanzes podem adquirir, em contato com os homens, urn vocabulario de algumas palavras, mas lhes falta a expressao, porque sua laringe nao disp6e de uma musculatura ad hoc. Em segundo lugar, os grandes simios mostraram-se capazes de aprender uma lingua­gem simbolica e de utiliza-la para fins pragmaticos, para pedir urn contato social ou alimento. Essa capacidade, revelada por urn aprendizado dificil, esgota-se quando nao e mais empregada e jamais a tinge o nivel sintatico da linguagem humana, com frases construidas. 0 pensamento que a anima e decerto rudimentar, incapaz de chegar a uma organiza<;ao intrinseca, mas a experien­cia demonstrou a sua realidade, certamente limitada a encadea­mentos de imagens pouco numerosas, reunidas sem logica e tao fugitivas quanto a percep<;ao.

Definitivamente, a imprudencia de Bergson foi consideravel. Se o pensamento, se a memoria sao de essencia espiritual - em

28

0 olho e 0 cerebra

suma, atributos divines concedidos ao homem, filho de Deus -, por que nao o teriam sido desde as suas primeiras apari<;6es na arvore filogenetica? Por que urn fenomeno vital mudaria de signi­fica<;ao, saltando do chimpanze ao homem?

No estado atual das neurociencias, o pensamento, a memo­ria consistem numa modifica<;ao fisico-quimica da materia cere­bral. Os poucos resultados experimentais relatados neste texto permitem efetivamente esquecer a concep<;ao simplista do espi­ritualismo. Exigem que se aceite que o cerebra, mais precisamente sua rede neuronal, e a sede da atividade cognitiva, sensorio-mo­tora e afetiva, por intermedio de mudan<;as no estado fisico-qui­mico de seus constituintes.

A palavra cerebral

A morte do doente mental Leborgne, em 1861, e sua autop­sia efetuada pelo cirurgiao Paul Broca demonstraram pela pri­meira vez que o tecido cerebral, ou pelo menos o tecido da ter­ceira circunvolu<;ao frontal esquerda, gera no destro a palavra que acompanha, precede as vezes ou se segue imediatamente ao pen­

samento. 0 metodo anatomo-clinico mais uma vez possibilitou 0 nas­

cimento de urn paradigma. Aplicado a esse infeliz doente hospi­talizado durante 21 anos no hospital de Bicetre antes de ali mor­rer, depois do aparecimento progressive de uma hemiplegia direita, durante sete anos, e de uma perda do uso da palavra surgida catorze anos mais cedo, ele provou o lado funcional de uma materia cerebral mole e sugeriu que suas atividades proce­dem de localiza<;6es particulares. Uma {mica lesao situada no hemisferio esquerdo, aproximadamente do tamanho de urn ovo de galinha, aboliu a linguagem articulada, sem disturbios motores concomitantes e sem altera<;ao maior da inteligencia e dame­moria das coisas anti gas. Eis aqui alguns excertos da observa<;ao recolhida no relatorio de Broca (18 61 a):

29

Page 17: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

:11

1

1111!1

II

Philippe Meyer

0 estado da inteligencia nao pode ser determinado exatamente. E certo que Tan2 compreendia quase tudo o que !he diziam; mas, nao podendo manifestar as suas ideias ou os seus desejos senao pelos movimentos da mao esquerda (por causa de uma hemiplegia direita de aparecimento progressivo), nosso moribundo nao podia fazer-se compreender tanto quanto compreendia os outros. As res­pastas numericas eram as que ele melhor clava, abrindo ou fechando OS dedos. Perguntei-lhe varias vezes ha quantos dias estava doente. Respondeu ora cinco dias, ora seis dias. Ha quantos anos estava em Bicetre? Abriu a mao quatro vezes em seguida e completou com urn s6 declo, o que clava vinte e urn anos, e vimos mais acima que essa informa<;ao era perfeitamente exata ... E, portanto, incon­testavel que esse homem era inteligente, podia refletir e havia con­servado em certa medida a memoria das coisas antigas. (p.235-7)

"0 que perece ... neles nao e, pais, a faculdade da linguagem, nao e a memoria das palavras, e tampouco a ac;:ao dos nervos e dos musculos da fonac;:ao e da articulac;:ao, mas outra coisa, uma faculdade particular considerada pelo senhor Bouillaud como a

faculdade de coordenar os movimentos pr6prios da linguagem articulada ou, mais simplesmente, como a faculdade da linguagem articulada, pois sem ela nao ha articulac;:ao possivel", explica Broca (1861 b) no Bulletin de la Societe d'Anthropologie de agosto de 1861. La Mettrie e Cabanis, que, cerca de cern anos antes, haviam chocado os bem­pensantes ao afirmarem a identidade da alma, do pensamento e do cerebra, foram consolados pelo cadaver de urn afasico. 0 born Pierre Flourens, eleito para a Academia Francesa contra Victor Hugo, que acreditava que o cerebra funcionava como urn todo, foi derrotado. A descoberta macabra de Bicetre foi efervescente.

No VII Congresso Internacional de Medicina, em Londres, em 1881, alocalizac;:ao das func;:6es cerebrais tornou-se umainter­rogac;:ao prioritaria. Rudes discuss6es foram provocadas pelos

2 Leborgne foi apelidado de "Tan" porque ja nao dispunha mais do que de alguns raros fonemas, que repetia em todas as circunstancias.

30

0 olho e o cerebro

resultados de ablac;:6es cerebrais parciais em dies ou em chim­panzes, e pela ausencia dos feitos marcantes que pode se seguir a extirpac;:6es bastante importantes. 0 principia de uma locali­zac;:ao das func;:6es cerebrais foi aceito, mas certas imprecis6es experimentais, em particular a falta de reprodutibilidade sinto-

matica, deixaram margem a duvida. ~

0 cerebra da linguagem nao se resume a area de Broca, expli­cara em 1874 o neurologista alemao Karl Wernicke. Uma locali­zac;:ao, mais posterior e mais alta, participa da percepc;:ao das pala­vras escritas ou faladas. Ela e a sede das representac;:6es auditivas das palavras, ou seja, dos registros de cada palavra em particular. Existem duas variedades de afasia causadas por uma lesao cere­bral, sendo a audic;:ao e a visao conservadas em ambos os casos. Na afasia motora, perde-se a func;:ao expressiva, ou seja, a capaci­dade de falar. Em contrapartida, na afasia sensorial (por uma lesao da area de Wernicke), as func;:6es expressivas sao conservadas, podendo o paciente falar e escrever, mas nao conseguindo nem ler nem compreender a fala de outrem. A perda das imagens motoras de verbalizac;:ao tern como conseqiiencia a perda da facul­dade de falar, eo desaparecimento da lembranc;:a visual das pala­vras acarreta uma incapacidade de ler ou de escrever. Ha cegueira ou surdez verbal. Durante muito tempo, perguntou-se sea perda da expressao ou a perda da compreensao nao provocavam uma perda do que se convencionou chamar "linguagem interior", pois o sistema que garante a organizac;:ao dos movimentos articula­t6rios e atingido no primeiro caso, ao passo que 0 sistema de decodificac;:ao de uma mensagem auditiva o e no segundo. Nin­guem pode pretender que o pensamento verbal possa ser conser­vado, mas as atividades intelectuais nao lingiiisticas ficam inde­

nes. Psic6logos como Piaget o demonstraram. A linguagem, portanto, procede de varios territ6rios do ce­

rebra, da atividade cumulativa e complementar de centros funcio­nais associados e interligados. Segundo o medico alemao Ludwig

Lichtheim (1985),

31

Page 18: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

I !!~111 1 : 1.111

.1:1

'Iii IIi I

!111:1

11111!

II

~ ' II , IIIII II

'I IIIII ,,,

IIIII

Philippe Meyer

esse esquema fundamenta-se no fen6meno da aquisi\=ao da lin­guagem, tal como e observado na crian\=a, e no arco reflexo que

esse processo pressup6e. Atraves disso, a crian\=a entra na posse de lembran\=as auditivas de palavras (representa\=6es verbais audi­tivas), bern como de movimentos coordenados (representa\=6es motoras verbais). Podemos chamar respectivamente de "centro de imagens auditivas" e de "centro de imagens motrizes" as partes

do cerebro em que essas lembran\=as estao estabelecidas ... A infor­ma\=ao auditiva entra no centro da imagem auditiva quando o som das palavras e reconhecido ... Os movimentos articulat6rios pro­vern do "centro motor" e sao transmitidos aos 6rgaos da fala por

[urn] circuito. Quando a compreensao do som imitado e super­pasta, estabelece-se uma conexao entre o centro auditivo e a parte

em que os conceitos foram elaborados. (p.433-84)

Uma constrw;ao semelhante pode ser proposta para os cen­tros mnemicos espedficos da leitura e da escrita. Ali sao arma­zenados OS rastros mnemicos, que Wernicke chama de mnemo­nicos, de estimulos auditivos e verbais anteriores, que permitem reconhecer letras, palavras e frases para exprimir ou compreender uma ideia. Os lobos frontais, que garantem uma fun<;ao de regu­la<;ao e de crontrole de todos os comportamentos de certo grau de complexidade, participam tam bern, em bora indiretamente, na constrw;:ao da linguagem. Compreende-se que nao possa existir uma expressao coerente sem uma organiza<;ao do pensamento que a sustente.

As afasias dependem de urn defeito de repescagem mnemo­nica, eventualmente associado a uma ruptura de transmissao entre centros envolvidos na produ<;ao da fala.

Verificou-se que o estudo das afasias confirma, janos seus primeiros passos, a psicologia associativa de David Hume e de outros fil6sofos da escola empirista britanica. N6s fazemos uma ideia do mundo pela sucessao de impress6es que ele nos envia e pelas rela<;6es de causa a efeito que as une e que a experiencia nos ensina. As leis de causalidade sao associa<;6es que resultam

32

0 olho e o cerebra

da semelhan<;a e da contigtiidade. No Tratado da natureza humana, resumo de suas pr6prias teorias, Hume fala dessas associa<;6es como sendo para n6s o cimento do Universo. A neurologia da linguagem, desde os seus primeiros passos, demonstra que urn processo associative entre sensa<;6es e capacidades intrinsecas diversas esta na base da atividade cerebral.

Assim, ja no inicio do seculo XX, alguns prindpios funda­mentais do processo mental foram adquiridos e suscitaram inter­roga<;6es novas e duradouras. Uma fun<;ao mental particular parece extrair-se de uma zona precisa da materia cerebral, ou antes, de duas zonas que operam em sinergia. A substancia organica do cerebra revela-se pensante, ja que a fala tern origem numa tria­gem perceptiva. Mas uma refuta<;ao definitiva do espiritualismo exige, evidentemente, que os percursos neuronais das fun<;6es mentais possam ser definidos, que os mecanismos do trabalho das celulas nervosas constitutivas sejam conhecidos, que as per­cep<;6es, eminentemente subjetivas, possam receber interpreta­<;6es cientificas. 0 progresso foi rapido no que concerne as duas primeiras exigencias, a estagna<;ao talvez seja insuperavel a res­peito da terceira.

As localiza<;6es cerebrais foram especificadas por estudos anatomo-clinicos efetuados na esteira de Broca e de Bouillard e por experiencias em animais. Brodman, em 1909, reunindo os resultados disponiveis de animais e do homem, dividiu o cortex em 52 areas (ver Figura 1): a area 4, circunvolu<;ao frontal ascen­dente, participa na motricidade; a area 17, occipital, na visao; as areas 44 e 45 correspondem a circunvolu<;ao de Broca. A sensibi­lidade corporal e percebida pelas areas parietais 1, 2, 3. No ho­mem, a superficie ocupada pelas chamadas areas "de associa<;ao", em particular as areas frontais, passa por urn desenvolvimento espetacular em rela<;ao ao chimpanze. Quanto mais complexo e voluntario e urn processo, mais ele envolve territ6rios cerebrais diferentes. Areas de associa<;ao, "focos preferenciais de integra­<;ao" coordenam a atividade dos "centros" corticais primarios.

33

Page 19: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

rr,, Ill •1', I , I

Ill I 'I

1:

II I , , I

'; I 1i i

lli1

1

II''' I'

Philippe Meyer

Face externa do hemisferio esquerdo do cerebra

(vista lateral)

F = regiao frontal P = regiao parietal T = regiao temporal 0 = regiao occipital R = Cissura de Rolando

S = Cissura de Sylvius

Uma frenologia cientifica substituiu a frenologia intuitiva e excessiva de Gall, formulada urn seculo antes.

Assim, a ciencia nos ensina que a materialidade do pensa­mento e de seu componente mnemico, bern como de seu compo­nente lingiiistico nao sao discutiveis. A interroga<;ao sabre a on­tologia do cerebra humano e definitivamente remetida aos aspectos da agita<;ao molecular de uma profusao de minicabos percorridos par correntes eletricas de baixa intensidade e organi­zados por determina<;6es heredit:hias e ambientais. A hip6tese de urn mundo sobrenatural das ideias perde a sua consistencia,

34

0 olho e 0 cerebra

pela impossibilidade de conceber como a eletricidade pode trans­formar-se em espirito, a menos, hip6tese audaciosa, que urn sis­tema de informa<;6es ainda indeterminado una materia cerebral organica e alma imaterial, fazendo com que se comuniquem, em suma, o mundo divino das ideias e as agita<;6es microsc6picas intracranianas do cerebra humano. Ali se situa o desafio contem­poraneo da fe espiritualista, na eventual considera<;ao par parte de urn poder sobrenatural de eventos fisico-quimicos organicos que bastam par si mesmos para explicar o pensamento e a alma humanas misturadas.

A explica<;ao materialista que inspira esta reflexao esta lange de resolver todos OS problemas colocados pela analise do pensa­

mento humano. Em primeiro lugar, nao e certo que a fisico-quimica neuronal

hoje conhecida nao perten<;a aos resultados cientificos efemeros a que chegaram as pesquisas recorrentes. A hist6ria das ciencias convida a modestia. Em segundo lugar, urn c6digo fisico-quimico universal e capaz de dar coma das diversidades individuais? En­fim, como pode urn c6digo fisico-quimico, urn conjunto de agi­ta<;6es moleculares ordenadas e repertoriadas dar origem aos valores suntuosos do espirito humano: livre-arbitrio, responsa­bilidade, virtude? Como materialism a oriundo da descoberta de Broca, nao sao antes a angustia, o desespero e o desencanto que se tornam as palavras-chave da condi<;ao humana?

Os fil6sofos preocuparam-se ate agora com a interface cere­bra fisico/imaterialidade, e as constru<;6es sem passarela entre os dais mundos ficaram sendo raras. Alguns bi6logos - com Jacques Monad a frente- tiveram a cora gem de se limitar a propo­si<;6es materialistas. Mas alguns medicos- com jean Hamburger a frente - se deixaram levar pelas sereias espiritualistas em ge­ral, ajustando muito mal as concep<;6es puramente materialistas na sublima<;ao ontol6gica exercida pela atividade mental humana.

A discussao que se segue recusa qualquer referenda ao in­verificavel e ao imaginario. Ela assumiu como tarefa, a partir da

35

Page 20: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

'11;

11

111111 I,L~

Philippe Meyer

materialidade da visao, contentar-se com a fisico-quimica cere­bral, a fim de extrair uma filosofia no en tanto otimista da condi­

<;:aohumana.

36

Do percepc;ao senslvel

As abelhas mal distinguem o vermelho do infravermelho, mas veem 0 ultravioleta. lnumeros insetos percebem OS SOnS pelos movimentos de filamentos e de pelos sensoriais, ao passo que outros, falenas, cigarras ou certos tipos de gafanhotos, tern 6rgaos timpani cos no corpo. Os desempenhos do ouvido do cao sao bern conhecidos. 0 mundo vivo deve a sua expansao aos aparelhos sensoriais que alertam para os perigos e amea<;:as que espreitam as especies. A obra de complexifica<;:ao da Evolu<;:ao atingiu tanto os 6rgaos sensoriais quanto as areas cerebrais de recep<;:ao. Na especie humana, na qual culminam as dicotomias complicadas da arvore da vida, o olfato diminuiu, mas a visao, a audi<;:ao e o tato se tornaram instrumentos de alta precisao. lsso gra<;:as ao desenvolvimento simultaneo dos receptores perifericos de sensa­<;:6es e das areas cerebrais centrais correspondentes, que elabo­ram as percep<;:6es. Lembremo-nos de que estas sao sensa<;:6es moduladas por uma atividade cerebral complexa, em razao do inato e das estimula<;:6es do meio. No homem, em compara<;:ao com os seus antepassados zool6gicos, a percep<;:ao cerebral pro-

37

Page 21: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

grediu mais do que os receptores sensoriais, como era de esperar, pois no cerebra e que se realizou 0 progresso evolutivo mais consi­deravel. Os desenvolvimentos recentes da fisiologia da visao e, numa certa medida, da audi<;:ao aparecem como os pre-requisitos indis­pensaveis de uma discussao sabre uma filosofia da percep<;:ao.

Para Arist6teles, o olho recebe urn estfmulo visual, mas e o cerebra que produz a sensa<;:ao. Os neurofisiologistas determina­ram as leis da transdu<;:ao das imagens na retina: a complexidade existe ja nessa primeira etapa periferica, que nao pode ser compa­rada a uma ernul sao fotografica submetida ao choque dos f6tons. Mas ja Arist6teles compreendera as posi<;:6es respectivas dos pro­cessos de captura luminosa e de integra<;:ao da imagem.

Mais de cern milh6es de celulas retinianas no fundo de cada globo ocular recebem os f6tons- graos de energia luminosa que se deslocam a trezentos mil quilometros por segundo -, depois que sua trajet6ria foi modificada de acordo com a distancia e a intensidade de sua fonte pelo cristalino (uma lente) e a pupila (urn diafragma). Dentre as celulas retinianas, OS bastonetes, que sao cern milh6es na periferia de cada olho, veem a luz branca de baixa intensidade; no centro, os cones, que sao sete milh6es, re­conhecem as cores gra<;:as a seu conteudo em pigmentos verme­lhos, verdes ou azuis. Em outras palavras, a retina contem ele­mentos sensiveis a luz naturale outros sensiveis aos diferentes comprimentos de onda coloridos, como se tivessem sido previa­mente separados por urn prisma de Newton.

A luz e urn conjunto multicromatico decomponivel em urn espectro de cores diferentes. A descoberta de pigmentos no in­terior dos cones, feita pelo medico britanico Thomas Young, em 1807, permitiu compreender o primeiro even to da visao colorida: as ondas longas da luz vermelha (560 nm) sao percebidas como tais por reflexao sabre o pigmento vermelho, ao passo que as ondas medias da luz verde (530 nm) sao identificadas por reflexao sabre o pigmento verde da retina. A primeira etapa da visao co­lorida e apenas urn reconhecimento de comprimentos de onda

38

0 olho e 0 cerbro

dos f6tons. Sabemos quais sao os mecanismos moleculares desse reconhecimento espedfico. Ele se deve a uma diferen<;:a qualita­tiva dos aminoacidos que entram na composi<;:ao de uma proteina, a opsina, componente maior do pigmento. Existe exemplo mais belo de rea<;:ao do vivente como meio que o cerca e mais bela demonstra<;:ao de uma rea<;:ao redproca de moleculas, organicas, por urn lado, e inorganicas, por outro?

0 olho que capta a luz, as cores, vern antes do pin tor que as usa. 0 trabalho dos pintores consiste em jogar com comprimen­tos de onda de referenda, por urn impeto de reprodu<;:ao do real ou por pura imagina<;:ao, em desloca-los urn pouco para ganhar em brilho e em cintila<;:ao ou para dividir e equilibrar formas. "E talvez"- escreve Rene Huyghe em I: art et l'ame [A arte e a alma] (1980, p.82)- "porque cada cor, cada modula<;:ao da cor corres­ponde a urn comprimento de onda diferente, os nossos nervos 6pticos, oferecendo-se a esse fluxo que vai atravessa-los, perce­bam cada uma, ja, como sendo coisas unicas."

A informa<;ao visual e conduzida ao cerebra pelos nervos 6pticos, sob forma de uma varia<;:ao de potencial eletrico. No tronco cerebral, precisamente nos tuberculos quadrigemeos, os neuro­nios 6pticos estao relacionados a neuronios auditivos e com afe­rencias que conduzem as sensa<;:6es fornecidas pelo corpo inteiro. Eles tam bern estao articulados com eferencias motoras, ou seja, dos nervos centrifuges, que comandam os musculos do pesco<;:o e dos globos oculares. Assim, se ocorrer urn evento imprevisto no campo visual ou se urn som aparece num ruido de fun do fami­liar, o olhar e a cabe<;:a, alertados pela percep<;:ao ins6lita, voltam­se para ela. A audi<;:ao e a visao estao entre os sistemas de alarme

de urn ser vivo. A base do cerebra, ou seja, o tronco cerebral ou parte superior

da medula espinhal, e uma entrada de sensa<;:6es antes do cortex cerebral, que tern a capacidade de decifra-las. Ela garante, assim, regula<;:6es reflexas indispensaveis a vida e a sobrevivencia. Essa parte mecanica funciona da mesma maneira nas especies animais

39

Page 22: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

que antecederam a especie humana na Evolw;:ao. Foi por sobre ele que se desenvolveu 0 cortex cerebral do hom em, urn neocerebro.

A percepc;ao visual completa nao ocorre ali no tronco, pois isso nao e proprio de urn conjunto neuronallimitado. A trans­missao nos nervos opticos e compacta, mas nao a que a prolonga no cortex cerebral. Aqui a distribuic,:ao das mensagens luminosas e dispersa, em razao da natureza e da complexidade delas e da situac;ao dos neuronios especializados que as reconhecem especi­ficamente. Efetua-se entao uma triagem, pois nao vemos todos os objetos que sao captados pela retina. 0 dado visual enriquece­se mediante evocac;oes, comparac;oes e amalgamas permitidos pelos contatos dos neuronios visuais ou das terminac;oes nervo­sas vindas de outras regioes cerebrais, sensoriais, sensitivas ou mnemicas. Comparac;ao, classificac;ao e interpretac;ao das sensa­c;oes visuais culminam numa percepc;ao que, no essencial, e a mesma para todos, pois os troncos principais do circuito neuronal sao uma propriedade de especie. Percepc;ao cuja universalidade absoluta nao podemos afirmar, em razao da multiplicidade e da complexidade das interferencias adquiridas e das variac;oes dis­

creps do genoma individual. A vi sao e uma sensac;ao modelada pelo reconhecimento e pela

hierarquia cerebrais, pela memoria e pelos outros sentidos. 0 neurologista britanico Charles Scott Sherrington propos a ideia de que o funcionamento cerebral obedec;a a uma hierarquia orga­nizada pelo progresso evolutivo, sendo as partes arcaicas, ou apenas antigas, dominadas pelo cerebra recente, o neocortex. A organizac;ao do sistema visual da razao a uma teoria que integra as sensac;oes numa imagem perceptual elaborada e que situa esse fenomeno na parte mais alta do sistema nervoso.

Os neuronios ascendentes, vindos dos tuberculos quadrige­meos, fazem conexao numa formac;ao chamada "corpo genicu­lado", on de as celulas nervosas visuais reunidas se articulam com celulas nervosas oriundas do cortex cerebral. Esse corpo e, na realidade, urn primeiro sitio de analise visual envolvido em ativida-

40

0 olho e o cerbro

des muito complexas e muito particulares, como a detecc;ao da cor, da textura e da forma, a visao estereoscopica, ou a detecc;ao do movimento e da luz vacilante. Certas camadas celulares do corpo geniculado recebem neuronios que recebem e mandam conex6es para a regiao subjacente do tronco cerebral que participa na al­ternancia da vigilia e do sono.

Por fim, urn numero consideravel de terminac;oes nervosas une 0 corpo geniculado e 0 cortex occipital do cerebra, a chamada "area visual", importante sitio de integrac,:ao das mensagens lu­minosas que provem da retina. Essa area visual e constituida pelos lobos posteriores, occipitais, do cere bro. Uma grande area visual primaria (chamada de V

1) de cada lado efetua uma parte

consideravel do trabalho, com uma inversao dos campos visuais, sendo o hemicampo direito visto pelo hemisferio cerebral esquerdo e vice-versa, em razao do cruzamento dos nervos opticos. Estao associadas a ele outras areas do cortex occipital, chamadas "se­cundarias" ou "associadas", que estao envolvidas numa func;ao particular de visao estatica (imovel) ou de visao relativa.

No fim do seculo XIX, apenas se conheciam do cortex occipital posterior duas partes ligadas entre si por fibras nervosas, o cortex visual primario (V 1) e o cortex vizinho, cham ado de "associative", porque informa a area primaria sobre as diversas atividades cere­brais que sao importantes para ela, sejam elas evocadas pela vi sao ou precedam o olhar. 0 neurologista sueco Henschen mostrou que as conex6es estabelecidas entre a retina e a area primaria sao organizadas de maneira sistematica, projetando-se cada zona do processamento efetuado na retina sobre uma regiao particular do cerebra visual primario. Fala-se de disposic,:ao "retinotopica". A concepc,:ao dualista proposta em 1890 pelo neurologista ale­mao Lissauer permaneceu em vigor durante cerca de urn seculo: o cortex visual primario receberia e processaria o conjunto das informac;oes transmitidas pela retina, ao passo que 0 cortex associative compararia essa visao a outras impress6es para, por assim dizer, perceber o significado delas.

41

Page 23: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

Ha duas ou tres decadas, as experiencias eletrofisiologicas e os exames cerebrais por imagens impuseram uma interpreta<;ao diferente: 0 cortex associativo participa ativamente do proces­samento das informa<;6es retinianas. Com efeito, les6es do cortex visual primario nao impedem que se percebam estimulos comple­xos. As experiencias empregam registros da atividade ou esti­mula<;ao eletrica de areas cerebrais ou de celulas nervosas e no exa­me por imagens obtidas pela utiliza<;ao de metodos fisicos (ressonancia magnetica nuclear, camera de positrons), para des­cobrir a estrutura e a fun<;ao do tecido cerebral. Julga-se atualmente (ver Figura 2) que o conjunto das informa<;6es provenientes da area V

1, depois deter passado por urn processamento apropriado,

e redistribuido para cerca de trinta areas visuais distintas, espalha­das por mais da metade da manta cerebral, cada uma sendo mais uma vez especializada no processamento de uma particularidade do estimulo. Assim, as areas V 2 e V 5 participam do processamento do movimento, ou seja, da percep<;ao de urn deslocamento, de uma dire<;ao ou de uma velocidade, V4 responde preferencial­mente a core v 3 e excitada pela orienta<;ao das linhas no espa<;o.

Urn milhao de termina<;6es nervosas vindas do corpo geni­culado lateral alcan<;a a area visual primaria V 1 e ali entra em con­tato com duzentos milh6es de celulas. Estas ultimas estao dispos­tas em varias camadas articuladas horizontal e verticalmente por seus prolongamentos nervosos. A comunica<;ao efetua-se com celulas muito proximas ou distantes em varios milimetros. Algu­mas - numerosas na espessura do cortex cerebral visual - tern uma forma piramidal que permite o intercambio em varias dire­<;6es. Outras celulas tern uma forma estrelada, que facilita tam bern sua rela<;ao com suas congeneres. Enfim, sobretudo a certas pro­fundidades, termina<;6es de todos OS comprimentos entre as celulas nervosas convergem em emaranhados e imbrica<;6es inextricaveis, que desafiam o neurofisiologista e o neuroanatomista preocupa­dos em fazer a distin<;ao entre as arquiteturas neuronais inatas e adquiridas. 0 cerebra nao para nunca de falar consigo mesmo.

42

0 olho e 0 cerbro

. . . . . . . . Ar . . . . . . . . . v3

v1

Aspecto esquematico do cortex visual no macaco, segundo S. Zeki.

VI = cortex visual primario v2 = area v2 v3- v5 = cortex associativo Tr, Fr = tras, frente

No macaco, contaram-se, principalmente nas regi6es occi­pitais, 32 areas corticais espalhadas por mais da metade da manta cerebral, que sao suscetiveis, por anastomoses nervosas, de co­municar-se com areas sensoriais associadas. Contam-se catorze niveis hierarquicos e 305 tipos de conex6es que so exploram 40% do total possivel. 0 talamo, sitio profunda das emo<;6es, nao es­capa, com conex6es neuronais nele chegando e dele saindo, en­quanta conex6es transversais, cruzando a ponte inter-hemisferica do corpo caloso, coordenam o funcionamento dos dois lados.

Essa globalidade na a<;ao nao se op6e a uma atividade minu­ciosa com desempenho altamente preciso. A lista de algumas atividades particulares a certas celulas em cada area visual e sufi-

43

~I t!

Page 24: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

ciente para nos convencer disso. A maioria das celulas da area visual primaria V

1 responde melhor a uma fina listra de sombra

ou de luz, ou a urn contorno, do que a uma mancha de luz. Todo neuronio e particularmente sensivel a certa orientac;:ao das linhas: quando se ve diante dela, ele se ativa com intensidade. Certas celulas nervosas, chamadas "complexas", precis am de uma linha ou de urn contorno orientado da maneira que mais lhes convem e sao excitaveis por estimulos complicados, tais como urn con­junto de pontos que se deslocam na mesma direc;:ao. Se a maior parte dos neuronios seleciona seu objetivo em razao de sua orien­tac;:ao, outros se encarregam de reconhecer as linhas muito Ion­gas. Outra variedade de neuronios recebe informac;:ao de ambos OS olhos, mas a excitac;:ao maxima SO e obtida se OS sinais de en­trada provierem de sitios retinianos que nao se encontrem exata­mente no mesmo Iugar em cada urn. Certos neuronios estao li­gados a uma determinada direc;:ao do movimento, mas nao a

direc;:ao oposta. Muitos neuronios respondem de maneira mais ou menos

anciloga as luzes de qualquer comprimento de onda na faixa do visivel. Outros respondem seletivamente a urn dado comprimento de onda, quer dizer, a cor. Essas celulas se encontram no interior de regi6es do cortex visual on de se estruturam a maneira de uma rede de impress6es digitais, com listras escuras e claras que pa­recem envolvidas na coordenac;:ao dos dois campos visuais. Existe uma segregac;:ao funcional notcivel no nivel do cortex visual pri­mario, com urn mosaico de modulos de urn milimetro quadrado de superficie e dois milimetros de profundidade, con tendo estru­turas que analisam as formas de uma determinada parte do campo visual. Entre essas formac;:6es, encontram-se co lunas cujas celulas

respondem seletivamente as cores. Urn mapa visual foi tambem trac;:ado no nivel da area visual

secundaria (V 2), que, como a principal, recebe informac;:6es pro­

vindas do campo visual oposto. Tambem aqui, registros de ativi­dade coletada por microeletrodos possibilitaram que se determi-

44

0 olho e 0 cerbro

nasse a func;:ao das diversas celulas estudadas uma por uma. Em seu con junto, os neuronios da area visual secundaria respondem, como OS da area principal, a orientac;:ao, ao movimento, a dispa­ridade e a cor, mas seu campo receptor e particularmente grande, e certas respostas sao sutis. Alguns neuronios reconhecem, exem­plo interessante, os contornos subjetivos, os contornos ilusorios, ou seja, linhas que nao existem, que so aparecem por uma ilusao devida a certas construc;:6es do meio ambiente. Neuronios de ilu­sao respondem a linhas irreais, imaginarias.

Observajean-Pierre Changeux (1995a) a esse respeito:

A contrapartida neuronal do que Diderot chama "apercep<;ao

das rela<;6es" continua sendo muito enigmatica. Mencionarei em

primeiro Iugar uma serie de experiencias que tratam dos "cantor­

nos ilus6rios". Estes se formam, por exemplo, quando o sujeito

percebe uma barra luminosa continua entre dois elementos escuros

ligeiramente separados, mantidos sobre urn fundo claro, apesar

de essa barra nao existir em razao dos entalhes existentes na borda

interna desses elementos. Peterhans e Von Der Heydt mostraram

que uma atividade nervosa, aqui na area visual V2

, assinala o cantor­

no ilus6rio da barra luminosa. 0 cerebra constr6i uma representa­

<;ao coerente do mundo, ainda que aqui ela seja virtual. (p.62)

A espantosa especializac;:ao das areas corticais visuais secun­darias deve ser completada por algumas indicac;:6es acerca da ex­traordinaria precisao da atividade neuronal que sustenta a visao.

Os neuronios da area cortical V 5

se relacionam ao movimento

de urn estimulo, a sua velocidade e a sua direc;:ao. Alguns neuro­nios sao sensiveis as baixas velocidades, outros as velocidades

elevadas. A integrac;:ao do movimento realiza-se por comparac;:ao com pontos de referenda fixos e pode envolver varias celulas, cada uma com seu proprio coeficiente de apreciac;:ao de direc;:ao.

Os neuronios sao sensiveis a luz de urn objeto que se aproxima, enquanto outros 0 sao a luz de urn objeto que se afasta.

45

I'

Page 25: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

Os neuronios de V 4 respondem a percep~ao da cor, mais do que apenas ao comprimento de onda da luz.

Os das areas visuais superiores e anteriores (em rela~ao a V1)

encarregam-se das percep~6es complexas. Alguns neuronios res­pondem a urn rosto de frente; outros, a urn rosto de perfil; outros, ainda (na area 7a), ao Iugar onde urn objeto entra em rela~ao com a cabe~a ou como corpo, e muito menos ao que ele e. A identifi­ca~ao do objeto esta ligada essencialmente as regi6es infratem­porais.

Ou~amos mais uma vezjean-Pierre Changeux (1995a):

A observa<;ao por ressonancia magnetica funcional das areas visuais no homem revelou a simetria especular de V

1 e V

2, que

corresponde a uma transposi<;ao geometrica da topologia retiniana. Ela mostra tambem a variabilidade, provavelmente epigenetica, da "franja" que margeia cada uma dessas areas. Alem disso, a cada uma dessas areas topologicamente definida esta ligada uma espe­cializa<;ao funcional particular. Zeki mostrou, por exemplo, que a apresenta<;ao a urn sujeito de urn ladrilhado colorido acarreta urn aumento diferencial da atividade de V4, ao passo que os desloca­mentos de quadradinhos pretos e brancos estimulam seletivamente V5, ao passo que V1 e V2, hierarquicamente inferiores, respondem a ambos os estimulos. Trata-se de registros de representa<;6es atuais que se formam na cabe<;a do observador na presen<;a de estimulo. E notavel que quando se pede a pessoa para evocar imagens de memoria, armazenadas sob forma latente, vemos reaparecer na tela uma distribui<;ao de atividade muito parecida com a obtida na presen<;a do estimulo. A evoca<;ao do rastro de memoria reatualiza materia/mente a experiencia cerebral passada. (p.57)

Os neurofisiologistas David H. Hubel e Torsten N. Wiesel, de Harvard, ambos premios Nobel, constataram que a propor~ao de neuronios que reagem a orienta~ao particular das arestas de luz e de sombra presentes no campo de visao real e predetermina­da, identica no gato adulto e no filhote de gato. Certas celulas ner­vosas reagem as linhas inclinadas para a esquerda, outras as in-

46

0 olho e 0 cerbro

clinadas para a direita, verticais, horizontais ou de orienta~ao intermediaria. 0 numero de celulas que somente recebem infor­ma~ao de urn unico olho, e nao dos dois, e igualmente predeter­

minado. Mas a propor~ao de celulas encarregadas de detectar as linhas

com uma orienta~ao particular pode mudar sob o efeito de uma exposi~ao a urn ambiente visual anormal, se esta for realizada durante as primeiras semanas de vida.

0 cerebro visual aparece ao mesmo tempo como registrador e integrador de multiplos detalhes sensoriais. A neurofisiologia descobriu capacidades de detec~ao de eventos basicos de que a visao nao tern consciencia, em razao de sua globalidade, o que demonstra que ap6s a analise da informa~ao visual se segue uma notavel atividade de sfntese. A grande interroga~ao acerca dessas duas etapas da visao refere-se a sua reprodutibilidade de indivf­duo para indivfduo. De uma semelhan~a ou de uma diferen~a dependem duas concep~6es radicalmente opostas, a de urn cere­bro-transdutor ou a de urn cerebro-criador. A complexidade da fenomenologia aponta inicialmente para a originalidade. Os cerca de cern bilh6es de neuronios, os contatos interneuronais dez mil vezes mais numerosos nao se prestam a esquemas uniformes!

As fun~6es cerebrais de integra~ao foram objeto de muitas in­vestiga~6es, que lan~aram algumas luzes sobre o misterio. Assim, a clfnica neurol6gica forneceu urn ponto de partida interessante, com alguns doentes que, sem nenhum deficit intelectual e sem nenhum problema de linguagem, nao conseguem mais reconhe­cer objetos ou rostos. A impossibilidade de reconhecer rostos re­cebeu o nome de "prosopagnosia". Essa curiosa sfndrome, que impede o reconhecimento dos objetos do dia-a-dia, e produzida por uma lesao de territ6rios corticais distintos das areas visuais e situados a frente destas ultimas. Essas areas ajudam a reconhe­cer e a localizar no espa~o. A perda do reconhecimento dos ros­tos e uma sfndrome na origem da qual sempre tornamos a encon­trar uma lesao do lobo occipital do hemisferio nao-dominante.

47

I

Page 26: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

0 disturbio e tao intenso, escreve Franc;:ois Lhermitte (1982),

que os pacientes nao se reconhecem em fotografias, nem na tela da televisao que lhes transmite ao vivo o proprio rosto. Neste caso, s6 o hemisferio esquerdo tern uma atividade normal. Toda infor­mac;:ao que chega a ele tende a ser analisada e formulada em ter­mos de linguagem; mas esse modo de processamento e ineficaz em materia de fisionomia. Tentem descrever verbalmente uma fisionomia- nao apenas a dos rostos humanos, mas tam bern ados animais e dos veiculos - eu os desafio a reconhecer a pessoa de que se trata, ao passo que em urn cento e vinte e cinco avos de segundo a operac;:ao e feita com sucesso pelo hemisferio direito.

Num estacionamento de carros todos visivelmente identicos, esse cerebra visual direito registra e apresenta em bloco os deta­lhes evocadores que permitem o reconhecimento nipido de urn

veiculo. Eis aqui a observac;:ao de uma paciente de Lhermitte, que

processava as informac;:6es visuais atraves do hemisferio direito, depois de uma lesao do cerebra visual esquerdo:

Diante <la reproduc;:ao de seis quadros celebres, ela nao reco­nhecia nem a igreja, nem o campo, nem a campina, nem o Pierro, mas disse irnediatamente: "Veja s6! Dois Van Gogh". 0 estilo de urn pin tor da lugar a inumeros comentarios verbais, mas a sua natureza intrinseca e pouco verbalizavel. Foi em grande parte o hemisferio direito que elaborou as montagens que permitem conhece-lo, reconhece-lo e, quem sabe, ser mais ou menos sensivel a ele. (ibidem)

No macaco, varios pesquisadores evidenciaram neur6nios do cortex temporal que respondem a apresentac;:ao de urn rosto fami­

liar (o do pesquisador) de frente, mas nao de perfil (ou o inverso),

as express6es desse rosto, como certos trac;:os, cabelos, olhos e,

melhor ainda, a direc;:ao do olhar. E espantosa a especializac;:ao funcional de cada celula estudada.

Ainda que esses registros nao tenham sido realizados no hom em, tudo leva a crer que OS homologos desses neur6nios, as

48

0 olho e 0 cerbro

vezes chamados "unidades gnosicas", existam em nos so cerebra

e que o estado de atividade deles mude quando o nosso olhar se desloca na direc;:ao dos rostos ou dos objetos. Uma complexa ativi­

dade de integrac;:ao e atestada por experiencias que mostram que esses neur6nios sabem reconhecer o con junto complicado de urn rosto, mas respondem mal a apresentac;:ao de fragmentos do

mesmo rosto (apresentac;:ao de pedac;:os recortados e separados

de uma fotografia, por exemplo). Uma estrutura do cerebra, o lobo frontal, parece possuir a

mais forte capacidade de sintese. A sua destruic;:ao provoca uma desintegrac;:ao dramatica do reconhecimento visual, uma impossi­bilidade de ligar entre si fragmentos de urn quadro visual, mesmo

que encaixados, uma incapacidade de captar 0 sentido do que e visto. Parece, entretanto, que o cortex frontal seja urn centro de vontade, de decisao e de prorrogac;:ao motora. Quando se sabe que ele esta estreitamente ligado ao cerebra Hmbico subjacente,

que gera as emoc;:6es, compreende-se que ele tenha sido chamado

de "cerebra da civilizac;:ao". Os hemisferios visuais direito e esquerdo sao normalmente

integrados numa func;:ao global, mas podem ser dissociados em

diversas circunstancias fisiologicas e patologicas. As observac;:6es de Roger W. Sperry e de Michael S. Gazzaniga,

entre 1965 e 197 4, revolucionaram a neurologia, mostrando que OS dois hemisferios cerebrais tern varias propriedades funcionais

diferentes. Eles trabalharam com cere bros humanos amplamente

separados em dois hemisferios por uma sec;:ao antero-posterior das estruturas que os unem, sobretudo o corpo caloso, ponte inter-hemisferica que garante uma conexao bidirecional de mi­

lh6es de neur6nios associativos. Essas intervenc;:6es foram pro­

pastas para tratar epilepsias graves. Cada hemisferio recebe sensac;:6es tateis e visuais oriundas

da metade oposta do corpo humano. A patologia cerebral ja havia descoberto que o hemisferio esquerdo, no destro, encerra os siste­

mas da linguagem, dos gestos, do pensamento analitico e

49

Page 27: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

conceitual. A explora~ao psicol6gica dos doentes com urn cerebra

fendido, urn split brain, ulteriormente adaptada a pessoas normais, mostrou que o hemisferio cerebral direito participa especifica­mente no reconhecimento das formas e em sua reconstru~ao no espa~o, na apreensao das configura~6es espaciais, e que ele e a sede das atividades artisticas.

No estado normal, cada hemisferio troca informa~ao com o outro, usando os neuronios associativos das comissuras media­nas. As informa~6es t<heis e visuais percebidas a esquerda, re­conhecidas e nomeadas, sao enviadas para a direita, onde provo­cam imagina~ao e talvez emo~ao, mas certamente nao a palavra. No que diz respeito a vi sao, as experiencias concordam; o cerebra

esquerdo, nos destros, registra urn nome nas coisas vistas, e o cerebra direito percebe as formas, sem nomea-las. Podemos desde janos perguntar se os dais cerebros visuais cooperam ou se op6em e se esse genera de intera~ao e identico de pessoa para pessoa. Podemos duvidar disso, em razao da complexidade do fenomeno.

0 cerebra visual e organizado de acordo com uma hierarquia e uma especializa~ao crescentes: as informa~6es complexas nao sao retidas pela area visual primaria, que somente se interessa por dados elementares, e ganham areas visuais complementares quando ultrapassam certo patamar de dificuldade. Os tra~os vi­suais simples sao extraidos pela primeira area visual encontrada, a saber, a area visual primaria. As seguintes lidam com estimulos cada vez mais complicados, cujo reconhecimento exige urn dicilo­go com outras fun~6es cerebrais, usando de uma ampla rede neuronal associativa.

0 cerebra visual e uma organiza~ao de atividade cognitiva superior, com configura~6es neuronais (patterns) constituidas ao redor de uma atividade funcional de dificuldade crescente. Num nivel de sensa~ao elementar, OS neuronios da area cerebral visual sao suficientes. No nivel de uma sensa~ao mais refinada, a edifica~ao de uma imagem visual requer a coopera~~o de outras

0 olho e 0 cerbro

capacidades cerebrais, da memoria e da emo~ao, por exemplo, de certas localiza<;:6es cerebrais especializadas num movimento, numa forma, no reconhecimento de uma curva, na representa~ao do real por tentativa e erro. 0 estimulo visual nao e senao urn con­junto ordenado de f6tons cuja imagem e construida por urn cir­cuito neuronal que envolve, em razao da experiencia adquirida, diversas zonas especializadas do cerebra.

A organiza<;:ao do cerebra visual sugere inicialmente uma dupla essen cia: por urn lado, estabilidade e relativa uniformidade, ja que os desempenhos cerebrais sao atributos de especie; por outro, subjetividade e versatilidade; is so em razao das flutua<;:6es fenotipicas (ou seja, individuais), que nascem ao mesmo tempo de diferen~as superficiais do programa genetico com urn e de in­fluencias adquiridas, ligadas ao meio e a aprendizagem. A geogra­fia geral do cerebra visual segue uma ordem interna inata, mas as for<;:as externas, eminentemente variaveis de individuo para individuo, podem confrontar-se com a homogeneidade de urn programa de especie.

A mecanica viva do ouvido, embora menos rica do que a do olho, tambem e surpreendente pela amplidao e pela precisao. Tambem aqui, o estimulo provoca urn rearranjo material, varia­<;:6es minimas da pressao arnbiente ao redor de uma pressao at­mosferica media, que se dissipam oscilando ate que as condi~6es fisicas voltem ao seu estado de equilibria.

Urn jogo maravilhosamente sutil de ossiculos, de membra­nas conjuntivas deformaveis, de pequenos compartimentos cheios de liquidos e de celulas sensiveis a pressao transmite ao cerebra temporal, via nervo auditivo, as caracteristicas do ruido ouvido ou escutado. Os ossiculos, movidos pelas vibra<;:6es de minusculas janelas abertas para o exterior, assentam-se sobre membranas cuja deforma<;:ao e captada por urn liquido e trans­mitida a uma membrana elastica do ouvido interno, chamada "basilar" , sobre a qual repousarn celulas sensiveis ao seu movi-

Page 28: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

men to. Sobre as 24 mil fibras elasticas dispostas ao longo de 32 milfmetros da membrana basilar em cada ouvido, cerca de 20 mil celulas sinalizam ao sistema nervoso central a freqiii~ncia (entre 20 e 20 mil ciclos por segundo), a intensidade e as caracteristi­cas das ondas sonoras. 0 cerebro traduz essas qualidades em ter­mos de altura, volume e timbre.

Os sons musicais revelam muito sobre a acuidade da capta­<;ao auditiva. Trata-se de vibra<;6es periodicas de freqi.iencia de­terminada, concebidas pelo homem a escuta de seu meio ambiente, ou mais provavelmente de sua propria voz. No seculo X, urn mon­ge que permaneceu desconhecido teve a ideia de tra<;ar uma linha que representasse urn som fixo, acima e abaixo da qual se orde­navam as vocaliza<;6es, os neumas. Cinqi.ienta anos mais tarde, usavam duas linhas, uma vermelha correspondente ao grau do fa, e outra amarela para o d6.

0 beneditino Guido d' Arezzo acrescentou duas linhas su­plementares, por volta do ano 1000, e essa pauta de quatro li­nhas espalhou-se pela Italia e depois pela Fran<;a, durante o seculo XI. Cinco linhas sao adotadas na Espanha no seculo XIII,

mas o si apenas ganha autonomia duzentos a trezentos anos de­pois. Nasceu a escala racional de sete graus e de sete semi tons, hoje utilizada, mas essa hierarquia nao tern grande significado fisiologico: os patamares de altura poderiam ter sido muito mais estreitos.

A sensibilidade da percep<;ao auditiva, segundo A. Gribenski, e tal que trezentos sons poderiam ser distinguidos por oitava de alturas medias, e cerca de 1.800 sons na totalidade da escala so­nora! 0 ouvido humano reconhece a coma, ou seja, o intervalo que na gama natural separa 0 re-bemol e 0 do-sustenido, em bo­ra os fabricantes de piano o tenham ignorado por raz6es tecni­cas. A coma e, alias, respeitada e reconhecida no violino. Na de­cada de 1710, Leibniz ja propusera dividir a oitava em 31, 43 ou 60 partes. Urn novo solfejo talvez venha a nascer urn dia, desses desempenhos auditivos ignorados.

52

0 olho e 0 cerbro

No seculo XIX, o fisiologista alemao Von Helmholtz acredi­tou que o ouvido interno funcionasse de acordo como prindpio da ressonancia. Todo sistema dotado de uma capacidade vibratoria pode entrar em harmonia com uma vibra<;ao exterior, cuja freqi.iencia e identica a sua. Se as celulas alinhadas sobre a membrana basilar se comportam como ressoadores em freqi.ien­cias diferentes, e seas termina<;6es nervosas auditivas que ai fa­zem contato sao excitadas por essas vibra<;6es, uma mensagem sonora pode ser analisada e dirigida ao cerebro. 0 ouvido capta e trans mite o resultado de sua analise para informa<;ao e intera<;ao

sensorio-motora. Os fisiologistas contemporaneos construiram uma teoria

fun dada nas observa<;6es acerca da vi sao: o ouvido decodifica os ruidos e os sons, descobre e classifica suas caracteristicas fisicas, que sao transmitidas aos neuronios do cortex cerebraL Eo cere­bra temporal que, em definitivo, escuta e ouve, assim como e o

cerebro occipital que ve. Na passagem dos seculos XIX e XX, lorde Ernest Rutherford,

fisico britanico, comparou o ouvido a urn microfone, no qual vi­bra<;6es sonoras geram varia<;6es de corrente eletrica, sendo o ce­rebro sensivel a diferen<;as de potencial veiculadas pelo nervo au­ditivo. A realidade e mais complexa, mas continua sendo admitido que e 0 cerebra que faz a triagem das informa<;6es sonoras que lhe sao transmitidas da periferia. Essa opera<;ao centrale garantida em cada lobo temporal. 0 centro dessa localiza<;ao auditiva ouve passivamente, enquanto a periferia participa ativamente da escu­ta dos sons. A audi<;ao de urn som puro ativa o conjunto da area auditiva, e a destrui<;ao desta ultima, conforme a sua extensao, pro­voca surdez ou incapacidade de interpretar qualidades sonoras.

A complexidade de organiza<;ao do cerebro musical e muito grande. Os lobos parieto-temporais esquerdos estao envolvidos na decifra<;ao das notas, na execu<;ao e tam bern no ritmo; a direita, essas estruturas geram melodias, harmonias e matizes em rela­<;ao a outras areas cerebrais dedicadas a memoria e as emo<;6es.

53

Page 29: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

Mais do que qualquer outro senti do, a audic;:ao coloca a ques­tao da importancia do inato e do adquirido na modelagem das atividades neuronais subjacentes. A aprendizagem desempenha urn papel consideravel na aquisic;:ao de uma sensibilidade musi­cal no sentido amplo. 0 ouvido absoluto, essa faculdade de iden­tificar uma nota fora de qualquer contexto harmonica e que e acompanhada de uma assimetria dos planums temporais (em pro­veito do esquerdo), parece provir tanto da hereditariedade quanto de urn exercicio da musica desde a primeira infancia.

54

Fenomenologia da percep~ao das cores

Uma organizac;:ao neuronal associativa que responda de ma­neira padronizada, reunindo cones retinianos do olho na periferia e neuronios centrais, especialmente da area v 4 do cortex cerebral, garante a visao de cores. Os cones, por seu conteudo pigmentar, captam fotons em razao da ritmicidade de suas ondulac;:6es e os neuronios dao uma cor as sensac;:6es fisico-quimicas oriundas desses fotorreceptores.

A realidade de tal binomio funcional e a sua especificidade nao se revelaram com muita rapidez. A clinica, como de habito na medicina, trouxe as primeiras indicac;:6es. Em 1888, o doutor Verry, medico oftalmologista em Neuchatel, durante a autopsia de urn de seus doentes que perderam a visao das cores, descobre urn tumor situado fora do cortex estriado (ou seja, fora da area visual primaria, chamada V

1). Existiria, portanto, conclui ele, urn

"centro do sentido das cores" no lobo occipital. Mas OS neurologistas permaneceram ceticos, porque a perda

da visao das cores (a acromatopsia) e, em geral, acompanhada de urn escotoma, isto e, de urn ponto cego do campo visual, que uma

55

Page 30: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Phillipe Meyer

lesao da area visual primaria induz. Eles pensavam que a visao das cores vinha de uma parte particularmente sensivel dela. "E classico considerar a acromatopsia como resultante de uma lesao leve da esfera visual", escreviam Pierre Marie & Chatelin em 1915. No mesmo ana, Marie declarava com autoridade que "nada nos parece justificar a existencia de urn centro cortical especial para a vi sao das cores". Argumentos similares foram defendidos por Holmes (1918) em 1945 e par Teuber (1955) em 1960. Hol­mes tentou provar que o cortex estriado processa a recepc;:ao das impress6es coloridas, ao mesmo tempo que os outros atributos visuais.

Na realidade, a situac;:ao dos escotomas associados a acroma­topsia, afetando sempre a visao periferica e a parte superior do campo visual, tornava essa hipotese pouco crivel. Em 1900, du­rante o Congresso Internacional de Medicina, Sachs (apud Henshen, 1903) relata urn caso de acromatopsia cuja autopsia demonstra que ela se deve a uma destruic;:ao bilateral das areas do giro lingual e do giro fusiforme; a visao central e poupada, nao ha escatoma, e a visao das cores desapareceu. Sachs deduz dai, ao contrario de Henshen, que a visao central e elaborada na parte posterior do lobo occipital, e a vi sao periferica mais adiante, na parte anterior do sulco calcarino, proxima a V

4• Por sua vez,

uma sindrome prosopagnosica- nao-reconhecimento dos rostos - acompanha muitas vezes a perda da vi sao das cores. Ora, a area critica para a percepc;:ao dos rostos familiares esta situada no giro fusiforme, nao lange de V 4, a area da cor. 0 papel de V

4 na vi sao

das cores podia ser definitivamente admitida. A percepc;:ao de cores exige a participac;:ao do receptor perife­

rico (o olho) e do analisador central (a area V4

do cerebra). Os dais elementos do par funcional sao necessarios. Em sua forma pura, o daltonismo testemunha a responsabilidade dos cones na vi sao das cores: o vermelho ou o verde (ou ambos) nao sao perce­bidos porque OS cones nao foram dotados de pigmentOS dessas cores, por causa de urn gene deficiente do cromossomo X. Varia-

56

0 olho e 0 cerebro

c;:6es da intensidade luminosa ilustram as func;:6es respectivas dos cones e dos bastonetes. De maneira geral, os cones que detectam as cores, por raz6es de topografia no interior da retina, sao eclip­sados pelos bastonetes quando a luminosidade diminui.

Tudo se passa como se a percepc;:ao da forma sobrepujasse entao ada cor. Assim, no crepusculo, as flares que nao sao ilumi­nadas tornam-se cinzentas. Assim, tam bern, as cores de urn qua­dro desaparecem quando a luminosidade e muito fraca: urn pe­queno quadro do pintor Henri Gervex representa o desmaio de urn jovem medico de La Salpetriere quando descobre uma sala de doentes. Em plena luz, a cor rosa domina, reflex a das pinturas murais e do revestimento dos assoalhos, e, ao cair da tarde, tudo se to rna amarelado antes de tender ao cinza. 0 quadro foi olhado duas vezes, ao meio-dia e a noite, de maneira diferente, primeiro pelos cones, depois pelos bastonetes.

0 cortex da area cerebral da visao tende a neutralizar as va­riac;:6es de cores induzidas por mudanc;:as de luminosidade branca ou pela induc;:ao, no campo visual, de uma cor diferente. A cor de urn vestido nao e identica sob uma lampada eletrica e a luz de uma vela, mas urn ajuste cerebral mantem uma impressao colo­rida de conjunto, urn tom geral que evita uma desorientac;:ao grande demais. Uma folha verde conserva a sua cor na aurorae no crepusculo, apesar do aumento de ondas longas nos momen­tos pouco luminosos. Urn tecido vermelho a luz do dia e perce­bido como vermelho a luz artificial eo pequeno quadro de Gervex conserva, apesar de algumas distorc;:6es cromaticas, o ambiente rosado desejado por seu pintor.

0 cerebra faz mais do que apenas registrar passivamente as mudanc;:as da natureza fisica. Ele cria urn universo colorido imo­vel, ou pouco movel, em razao da sensac;:ao recebida inicialmente. Ele gera a sua maneira os matizes das cores do meio ambiente e participa ativamente da criac;:ao do mundo que os homens con­templam. 0 mecanismo de uma operac;:ao mental que imp6e a sua escolha a fen6menos fisicos versateis ainda e totalmente

57

Page 31: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Phillipe Meyer

desconhecido. Em I.: Hypothese stupefiante [A hip6tese estupefaciente], Francis Crick (1994), premio Nobel, prop6e considerar que a cor de urn objeto seja definida em rela<;:ao aquelas que estao ao seu redor, e que urn ajuste permanente mantem essa compara<;:ao constante: "0 cerebro nao se interessa tanto pela combina<;:ao da reflexao e da ilumina<;:ao quanto pelas propriedades colori­das da superficie dos objetos ... Ele tenta extrair essa informa­<;:ao comparando a resposta dos olhos em diferentes regi6es do campo visual".

Utilizando filtros que bloqueiam certos comprimentos de onda, demonstrou-se que a impressao do vermelho e a conseqiiencia da luminosidade percebida pelos receptores retinianos do verme­lho e que OS diferentes graus de obscuridade sao percebidos pe­los do verde e do azul. Cada cor apresenta uma palheta diferente de luminosidade e de obscuridade nos tres comprimentos de onda a que e sensivel a retina. 0 cerebro com para esses diferentes graus de luminosidade, 0 que assegura a visao cromatica.

A area cerebral responsavel pela visao de cores, por meio de uma serie de opera<;:6es comparativas com as cores pr6ximas das que ele observa como principal, negligencia varia<;:6es de cor induzidas por mudan<;:as de intensidade da luz bran ca. 0 cerebro extrai, a partir das energias luminosas refletidas por uma palheta colorida, uma rela<;:ao invariante dos diversos coloridos que a comp6em. Essa propriedade, que preocupou muitos fisiologistas ap6s Helmholtz, leva-nos a perguntar sea corre<;:ao efetuada pelo cerebro e a mesma em todas as pessoas.

Nao e possivel dar uma resposta a essa pergunta, mas pode­mos dar como certo o ajuste das cores a luminosidade. Semir Zeki observou no cortex visual V4 do macaco (que percebe as cores de modo muito parecido como dos homens) neuronios que codi­ficam, nao pelos comprimentos de onda recebidos pelo olho, que variam com a hora do dia, mas sim pela cor, tal como e vista cons­tantemente: a ativa<;:ao neuronal, percebida pelo registro das des­cargas eletricas locais, persiste para alem da exposi<;:ao ao esti-

58

0 olho e 0 cerebro

mulo colorido, quando mudan<;:as de ilumina<;:ao transformam o comprimento de onda real que atinge a retina. Nesse animal, como no homem, a cor nao pode ser considerada uma mera sensa­<;:ao fisico-quimica. Em seu livro intitulado La fabrique du beau [A fabrica do bela], Roger Vigouroux (1992) resume da seguinte for­ma as grandes linhas da percep<;:ao de cores:

A aprecia<;ao matizada das cores, requerida, por exemplo, pela observa<;ao de urn quadro, exige urn papel ativo do cortex, urn ato de juizo e nao de sensa<;ao. De fato, a visao cromatica de uma composi<;ao permanece aproximadamente a mesma, sejam quais

forem as condi<;6es de ilumina<;ao. Ela conserva uma constancia espantosa, embora as caracteristicas ffsicas da luz refletida nao

sejam identicas. Esse fen6meno subentende, da parte do sistema nervoso, a capacidade de extrair de dados variaveis urn modelo interno invariante que representa a cor percebida. Implica a exis­tencia de neur6nios cuja atividade nao depende dos comprimentos de onda recebidos pelo olho, mas sim de uma defini<;ao cromatica dada. De qualquer modo, o cerebro distribui a cada uma de suas

constru<;6es uma tonalidade colorida deduzida nao somente das sensa<;6es que chegam ate ele, da luminosidade, mas tambem de

urn modelo internode representa<;ao de cores. (p.l84)

Aos processamentos efetuados na etapa cerebral devem-se acrescentar, tambem, elementos oriundos da periferia. Nem to­dos os f6tons do comprimento de onda vermelha sao absorvidos pelos cones vermelhos. A probabilidade de tal desvio e pequena, mas nao nula. A captura de f6tons nao e urn fen6meno em bloco, do tipo "tudo ou nada". E concebivel certa irresolu<;:ao a partir de alguns f6tons que encontram cones sensiveis aos comprimen­tos de onda adjacentes. Segundo Francis Crick (1994), "urn in­dice medio de rea<;:ao a urn fluxo de f6tons pode dever-se quer a alguns f6tons de urn comprimento de onda favoravel, quer a numerosos f6tons de urn comprimento de onda desfavoravel; o receptor nao pode dizer qual seja a versao certa" (p.349). Em ou-

59

Page 32: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Phillipe Meyer

tras palavras, urn dado comprimento de onda nao e urn determi­nante absoluto de cor. Quem pode garantir que a captura fotonica seja estritamente identica em cada urn de n6s? 0 contrario e que e provavel, tendo por conseqtiencia varia~6es da percep~ao das cores.

A visao colorida desaparece quando do is ou tres comprimen­tos de onda diferentes, suscetiveis de excitar seus cones corres­pondentes, atingem a retina simultaneamente e com a mesma intensidade. 0 olho e seu cerebra adjacente tornam-se en tao ce­gos para essas cores, como o sao fisiologicamente para compri­mentos de onda fora da escala do visivel, em particular o ultra­violeta.

A visao de cores pode ser modificada pelo movimento. Urn movimento de pequena amplitude tende a fazer desaparecer duas cores, o vermelho e o verde, por exemplo, se tiverem a mesma brilhancia. A percep~ao de urn movimento associado a cor induz uma visao real acromatica em preto e branco.

A visao de cores nao e redutivel a perc~p~ao ordenada de f6tons dispersos e depois rearranjados em razao de suas oscila­~6es. 0 poder de discrimina~ao do aparelho sensorial periferico nao tern a estabilidade de urn espectrofotometro, isto e, de urn aparelho que mede intensidades luminosas, e a percep~ao central (cerebral) e uma representa~ao mental em parte independente de leis materiais inorganicas e no entanto vigorosas. A visao de cores comporta-se como urn sistema aberto, e nao podemos nos surpreender que o equilibria de brilhancia de duas cores, deter­minado mediante proje~6es em tela e designado insolumincincia, seja variavel. Esse equilibria muda no mesmo observador em razao da dire~ao de seu olhar, se ele fita a linha de mira ou se o afasta para a periferia do campo visual, e, principalmente, ele nao e identico para todos.

Duas interpreta~6es da visao colorida surgem da investiga­~ao cientifica. A primeira diz que a percep~ao de nosso meio ambiente colorido e explicavel por uma fenomenologia linear,

60

0 olho e 0 cerebro

uma soma de eventos inorganicos e organicos intricados mas decifraveis e submetidos a leis. A segunda diz que a visao colorida procede de urn emaranhado etiol6gico multifatorial, que exige maior modestia ou pelo menos uma interroga~ao sabre as possi­bilidades de chegar a uma compreensao absoluta do mundo. Os neurobi6logos alinham-se de born grado entre os otimistas e se limitam a primeira interpreta~ao.

Jean-Pierre Changeux, em Raison et plaisir [Raziio e prazer] (1994), descreve os fenomenos neuronais do espectador que descobre uma obra pict6rica:

Diante de urn quadra, o olho captura indfcios fisicos da super­ffcie colorida. Ele converte as radia~6es luminosas refletidas por esta em impulsos eletricos que sobem ate o cerebra. Este vai ana­lisar esses sinais e depois reconstruir uma representa~ao interna do quadra. Em suma, ha inicialmente uma sucessao de etapas de analise que vao da retina ao cortex visual, via ta!amo. Formas, co­res, movimentos vao ser tratados separadamente no nfvel do cortex cerebral. Numerasas areas, chamadas secundarias, participam da analise. Algumas delas sao, por exemplo, especializadas na cor. Semir Zeki demonstra precisamente que o cerebra reconstroi a cor a partir das energias luminosas refletidas pelas diversas super­ficies coloridas que comp6em o quadro. (p.l24)

A sequencia de acontecimentos descrita nas paginas anterio­res e resumida com uma concisao que sugere que a ciencia da visao colorida e definitiva. No en tanto, como vimos, o dado per­ceptual nao pode ser tido universalmente semelhante.

As leis newtonianas, a descoberta de cores primarias e com­plementares, a quimica dos corantes eo isolamento dos pigmen­tos retinianos deram efetivamente origem a uma ciencia croma­tica. As receitas artesanais ace rca da extra~ao das cores naturais, transmitidas desde a mais remota Antigtiidade por meio dos li­vros e dos manuais, chegam no Renascimento a dezenove colo­ra~6es nos centros italianos de tintura da la e da seda (sete das

61

Page 33: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Phillipe Meyer

quais derivadas da purpura). A pintura, segundo o pequeno tra­tado de Fulvia Morato, publicado em Veneza em 1535, so utiliza uma duzia de cores, as quais se devem acrescentar o ouro e a prata henildicas. Mas, em 1864, a enciclopedia de Eugene Chevreul, Des couleurs et de leurs applications aux arts industriels [Das cores e de suas aplicaf6es as artes industriais], enumera 14.400 tonalidades cromaticas ligadas a materias naturais, ao lado dos novas corantes sinteticos oriundos da quimica industrial. Esta ultima progrediu ainda ao longo do seculo seguinte. A natureza confiou ao homem todos os seus segredos cromaticos, e colorac;:6es artificiais, criadas pela cabec;:a e pela mao do homem, foram acrescentadas.

Nao e insensato comparar notas musicais e cores, alem de todas as comparac;:6es emocionais. Hegel, na Estetica, busca uma equivalencia entre a harmonia das cores e a dos sons: semitons sao colocados ao longo das escalas musicais e cromaticas, assina­lando o timbre das cores a diversidade'delas, e indicando o tom a intensidade delas.

Optiks: or a Treatise of Reflections, Refractions, Infections and Colours of Light, publicado em Londres em 1704 par Isaac Newton, virou uma pagina da historia da visao da luz e da sombra. A era qualitativa das cores esta terminada, os corpusculos que mais tarde serao chamados de "fotons" sao os constituintes univer­sais delas. Podemos medir seu desvio com urn prisma; a natureza pode opor-se a eles pela interposic;:ao de urn meio que nao se deixa atravessar. A cor tornou-se a medida de urn evento flsico, aces­sivel a todos. 0 interesse soberano pela fonte de luz acarreta urn esquecimento de suas formas (as "perdas" de Leonardo da Vinci). As hipoteses corpusculares e ondulatorias, indiferentes aos an­tigos manipuladores da cor, relacionam 0 fenomeno inteiro a luz e nao ao sujeito que percebe. Uma cor nada mais e que uma por­c;:ao de materia refletindo uma pardcula elementar e universal, o foton, segundo urn comprimento de onda oscilatorio que lhe e proprio. As 14.400 tonalidades a que acabamos de aludir sao apenas matizes de materia.

62

0 olho e o cerebro

A descoberta de uma zona do cortex cerebral especializada na integrac;:ao das sensac;:6es coloridas fortalece, seja qual for seu grau de complexidade, a realidade do fenomeno ciendfico, sen do a fisiologia cerebral uma fisiologia da especie, a mesma para todos.

Que lugar deve ser dado as indeterminac;:6es_de origem in­terna e as flutuac;:6es perceptivas impostas pelo meio?

A historia das cores engloba uma serie de fenomenos anti­newtonianos, que introduzem urn misticismo cromatico latente e indicam que a visao das cores nao e redudvel a uma particulari­dade flsica da transmissao da luz.

As cores esquecidas

Os homens de Lascaux souberam extrair muitos matizes a partir de tres oxidos minerais (preto, vermelho, amarelo), utili­zando a colorac;:ao natural da rocha. Todavia, Homero, em seus Poemas, assinala apenas cinco cores (enquanto Newton introduziu sete): leukos (bran co), glaukos ( cinza), erythros (vermelho), chloros (verde), kyanos (azul). 0 mundo antigo em geral, a civilizac;:ao greco-latina privilegiaram a forma em vez da luz, porque a beleza e feita da "exatidao das proporc;:6es" e da "elegancia das formas". Luciano escreveu que a luz e as cores que lhe sao solidarias for­mam "urn espetaculo born para os olhos de urn Barbaro, [que ama] o que e bela, porem nao tanto quanta o que e valioso". A cor sera reabilitada apos os merovingios, com a ascensao de urn cristianismo que confere a luz urn sentido moral e ate divino. Os tons triviais e foscos do afresco classico, alem de sua cor pro­pria, ganham os matizes infinitos das variac;:6es da intensidade luminosa.

Eruditos como Hugo Magnus admitiram que a relativa indi­ferenc;:a dos greco-latinos pelas cores poderia provir de uma ano­malia de suas retinas. A pobreza cromatica dos afrescos roma-

63

Page 34: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Phillipe Meyer

nos, que alias prolonga a das paredes e dos pisos egipcios, nada

tern aver, evidentemente, com essa explica\=ao: rastros de colora­

\=ao podem ser encontrados na civiliza\=ao antiga, como a cor s6-

bria do marmore a diversificar os espa\=OS recortados que ele

determina, ou a combina\=aO sutil do malva com o rosa ou o azul

das estatuetas de Tanagra. A razao da inexpressao cromatica e

outra.

Sob o titulo "Daltonismo dos pensadores", em Aurora, publicada em 1901, Nietzsche deu sua interpreta\=ao:

Os gregos viam a natureza de maneira diferente da nos sa, pois e preciso admitir que seu olho era cego ao azul e ao verde e que viam, em vez do azul, urn marrom mais profundo; em vez do verde, urn amarelo (eles designam, pois, com a mesma palavra a cor de uma cabeleira escura, a do acianto e a dos mares meridionais, e ainda, com a mesma palavra, a cor das plantas verdes e da pele humana, do mel e das resinas amarelas: de sorte que seus maiores pintores, como foi demonstrado, so conseguiram reproduzir o mundo que os rodeava atraves do preto, do branco, do vermelho e do amarelo). Como a natureza deve ter-lhes parecido diferente e mais proxima do homem, ja que a seus olhos as cores do homem predominavam tam bern na natureza, e esta nadava, por assim dizer, no eter colorido da humanidade ... Foi atraves desse defeito que se desenvolveu a faculdade infantil, peculiar aos gregos, de considerar os fen6menos da natureza como deuses e semideuses, ou seja, de ve-los sob forma humana. Mas que isso sirva de simbolo a outra suposi<;:ao. Todo pensador pinta seu proprio mundo e as coisas que o rodeiam com menos cores do que existem, e e cego para certas outras cores. Isso nao e somente urn defeito. Gra<;:as a essa aproxi­ma<;:ao e a essa simplifica<;:ao, ele introduz nas coisas harmonias de cores que tern urn grande encanto e podem produzir urn enrique­cimento da natureza. Talvez tenha sido assim que a humanidade aprendeu 0 gozo em rela<;:ao a vida, pelo fa to de que a existencia lhe foi inicialmente apresentada com urn ou dois tons simples, antes de passar a matizes mais variados. Ainda mais, certos individuos empenham-se em sair de urn daltonismo parcial, para chegar a

0 olho e o cerebro

uma visao mais rica e a uma maior diferencia<;:ao: e nisso eles nao somente en con tram novos gozos, mas sao for<;:ados a abandonar e a perder alguns outros antigos. 1

Acontecimentos banais indicam que o esquecimento de uma

cor tern origem no cerebro e nao no olho. Cores e objetos escapam

todos OS dias a aten\=aO. 0 cerebro SO percebe realmente 0 que

procura sob o efeito de estimula\=6es sensoriais ou de seu proprio

pensamento. Essa letargia e causa de uma ambliopia que faz com

que as formas se fundam e que mergulha certas cores num cinza

crepuscular. 0 despertar cerebral acontece com uma ilumina\=ao

da cor, que reencontra en tao a sua qualidade de estimulo visual.

A sombra camufla a cor, e uma forte luminosidade a ofusca.

Nao e de surpreender que foram civiliza\=6es meditem1neas

que se esqueceram das cores: consegue-se discernir o prateado

das folhas de oliveira ou o negro de seu tronco tortuoso quando

o sol de verao esta no zenite? Inversamente, nas cidades som­

brias da Europa do Norte, apesar dos matizes infinitos que sao o

seu en canto, o cinza escapa facilmente. 0 vocabulario, com seus

raros cinza-camundongo e cinza-ard6sia, nao esta de modo algum a altura das colora\=6es que rodeiam seus habitantes. Aqui, a lu­

minosidade boreal conjuga-se a universalidade dos cenarios urba­

nos e ao habito, para fazer que o pensamento, portanto o olhar,

nao capte apenas o cinza.

A luz e feita de cores, mas e tambem a luz que faz as cores.

Em seu Tratado das cores (Zur Farbenlehre, 1810), Goethe distin­

gue as cores qufmicas- que ele define como materiais, corporais,

fixas, permanentes, substanciais, verdadeiras - das cores fisio/6-gicas e fisicas - aparentes, fugitivas, falsas, variaveis, especiosas,

enfaticas, fantasistas. 0 vermelho nao escapou nem aos gregos

nem aos judeus nem aos fenicios.

Homero, Luciano de Sam6sata, Hugo Magnus e Nietzsche sao citados por Brusatin (1980).

Page 35: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

1

1

1

'I

Phillipe Meyer

u rna tintura vermelha e extraida da raiz de garanc;:a do murice e de certas variedades de caracol do mar. A purpura e uma cor militar que pertence a primeira variedade de Goethe. As cores menos luminosas, o cinza do exemplo anterior, mas tambem cores de que nos esquecemos - o azul - sao cores fugitivas. 0 reconhecimento de cores "pesadas" e de cores "leves" e universal. As primeiras, pretos e marrons, sao colocadas na parte inferior das telas e das palhetas, ao passo que as segundas, amarelos e alaranjados, ocupam as partes superiores.

Cores ineditas

As cores sao vistas atraves dos filtros da religiao, da socieda­de, dos mitos e das emoc;:6es, que reduzem a eventualidade de uma sensac;:ao fisica e pura, restrita a uma difrac;:ao de f6tons. Como toda area cortical, V 4 e rica em associac;:6es com neuronios que contem informac;:6es memorizadas, de emoc;:ao, de percep­c;:6es sensoriais e de juizo, de onde nasce uma imagem perceptual impregnada de dados de experiencias passadas.

Para OS cristaos, a cor azul-celeste e ada Virgem Maria; 0

branco e simbolo de pureza. 0 verde e a cor do isla. Segundo o Alcorao, Khidr, o mensageiro divino, conduziu Moises sabre o Sinai. Ele veste sempre umagalibiah verde e executa ao pe da letra as miss6es que lhe sao confiadas pelo Senhor. Na Idade Media, o ouro exaltou as raizes mais nobres da luz.

Segundo Brusatin, uma linguagem das cores exprime as boas e as mas reac;:6es humanas: verde para a esperanc;:a, vermelho para a vinganc;:a e branco para a pureza; o amarelo e dominac;:ao e arro­gancia; o encarnado, os prazeres do amor. No seculo XIX, over­melho, cor militar, assume a conotac;:ao ideol6gica revoluciona­ria que ainda possui. No Oriente, o c6digo das cores e diferente; o preto, par exemplo, indica a sabedoria.

Os cruzados adotaram esse simbolo: sabre os portais da aba­dia de v ezelay, 0 preto se alterna com 0 bran co, indican do que a

66

0 olho e 0 cerebro

sabedoria leva a iluminac;:ao. A Inquisic;:ao introduz o preto nos guarda-roupas: "o traje preto convem ao nosso seculo, dizem no inicio do seculo XVII", ou ainda:

as cores com que se deleitam cada seculo e cada na<;:ao revelam seus costumes. Todos hoje gostam do preto, proprio da Terra, da materia e do Inferno, sinal de luto e de ignorancia. A primeira cor foi o azul-celeste ... depois o vermelho da crueldade guerreira e depois as cores variadas das rebelioes; em seguida, vern o branco, na epoca de jesus, e OS batizados vestem 0 traje branco; daf, pas­sando por diferentes cores, chegamos ao preto. 0 branco voltara, de acordo com a roda do destino. (Henri Guerlin, La couleur.

Anthologie des citations, apud Huyghe, 1965, p.75)

0 viol eta aparece cedo, no seculo II, como cor da separac;:ao e da viuvez; e uma cor de meio-luto, como o malva eo cinza. Depois do Condlio de Niceia, a comunidade cat6lica militante faz dela a cor do jejum.

Os primeiros pintores da civilizac;:ao ocidental utilizaram a cor para res sal tar as formas, quer par meio de uma barra separan­do a imagem de urn ruido sem interesse, quer par urn con junto de cores, que tam bern punha em evidencia uma superficie e seus contornos. 0 desenho primava entao sabre a cor. "A cor contri­bui para a beleza, mas nao a constitui: ela apenas a ressalta e valoriza as suas formas", escreve Rene Huyghe (1980, p.79). A cor foi plenamente reconhecida quando a pintura de Van Eyck possibilitou manejar os matizes como nunca e quando os gran­des pintores classicos, Ingres, Delacroix ou David, usaram sem reservas do seu valor estetico.

Ate as escolas do seculo XX, a core fornecida pelo Universo terrestre, mas nao mais lhe pertence. Ela pode sofrer duas distorc;:6es sucessivas, devidas ao olhar do pintor, que a capta, e a sua alma, que a traduz sabre a tela. As variac;:6es sao infinitas: "Uma cor e diferente de outra porque a sinto assim, porque a comoc;:ao que ela provoca em mim, em meu sistema nervoso, nao e identica a nenhuma outra", explica Rene Huyghe (1980, p. 77).

67

Page 36: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Phillipe Meyer

No seculo XVII, o pintor - que come<;a a observar as cores que OS progressos tecnicos da pintura a oleo agora lhe permitem reproduzir- descobre que a sombra nao e urn mero escurecimento do tom local, mas tern as suas tonalidades pr6prias, que reagem umas sabre as outras reciprocamente. A sombra e policromica e viva como a luz, e essas mobilidades permitem que o cerebra do pintor se divirta com o real. Os tons foscos e banais do afresco classico sao estabilizados em sua monotonia. 0 6leo da a possi­bilidade, mediante varia<;6es de intensidade luminosa, de modi­ficar os brilhos da cor. Assim, o pintor tornou-se capaz de produ­zir o que pode ver e o que gostaria de ver.

Em seu Tratado da paisagem, Leonardo da Vinci deu o exem­plo do vestido de uma dama que se encontra num prado ilumi­nado pelo sol. En tao, explica ele a urn aluno, "veras todas as partes das dobras que podem ser influenciadas pelo prado tingirem-se par raios reflexos da cor do prado, e isso acontece mudando as cores dos objetos pr6ximos, luminosos ou nao-luminosos".

A core a alma

As cores foram cada vez menos sustentando a representa­<;ao das formas, mas cada vez mais a de urn ambiente, de uma atmosfera emocional sentida pelo artista e reproduzida em sua obra para que ela seja oferecida ao espectador. Delacroix, em suas Obras literarias, descreve muito bern esses do is tempos da cria<;ao pict6rica: "Vemos entre os objetos que se oferecem aos nossos olhares uma especie de liga<;ao produzida pela atmosfera que os envolve e pelos refiexos de todo tipo que fazem, par assim dizer, que cada objeto participe de uma especie de harmonia geral". E mais adiante: "Esse tipo particular de emo<;ao ... uma impressao ... que resulta de determinado arranjo de cores, de luzes, de sam­bras ... essa emo<;ao dirige-se a parte mais intima da alma ... ela mexe com os sentimentos". William James, no seculo XIX, numa

68

0 olho e o cerebro

psicologia da Evolu<;ao, mostrou que a percep<;ao de urn fato excitante acarreta mudan<;as fisicas e que, ate mesmo sem a inter­ven<;ao da consciencia Iucida, pode nascer emo<;ao desse choque.

Mais uma vez Rene Huyghe, em seu livroL'art et l'iime (1980), da uma interpreta<;ao similar da cor:

A forma requeria [do artista] que ele aplicasse os dons de sua inteligencia para analisar elementos constitutivos, para isohi-los e depois liga-los, de acordo com rela<;:6es de propor<;:ao, para combina­

los segundo poderes de intera<;:ao que faziam urn pouco da harmo­nia procurada ser a nostalgia de uma maquina maravilhosa ... A cor nao e mais, como a forma, uma se<;:ao do espa<;:o; ela e uma

vibra<;:ao. (p.84)

Delacroix disse que "o homem tern em sua alma sentimentos inatos que objetos reais jamais satisfarao", e Baudelaire, que "essa cor se expressa par si mesma, independentemente dos objetos que ela veste". 2

A mao do pin tor responde ao cerebra que esta tornado par urn espetaculo natural ou imaginario, recusando-se a se referir a ele.

Podemos imaginar que a capta<;ao das cores par V4 seja ga­rantida par alguma rea<;ao espedfica de seus neuronios (cuja natureza permanece misteriosa). A esse respeito, nenhuma fan­tasia. A "rea<;ao" e uma caracteristica da especie, reproduzindo mui logicamente a mesma imagem, uma sensa<;ao con stante nos diferentes individuos em que ela ocorre, desde que seja desen­cadeada pelas cores "brutas", de luminosidade constante, inde­pendentes e im6veis, sem interferencia de volumes, pianos e co­lora<;6es das proximidades. Essa visao colorida fundamental pode ser entendida como uma propriedade estavel da especie humana. E uma visao colorida imutavel que podemos qualificar de "ele­mentar"' porque e certamente aquela possuida pelas especies

2 Leonardo da Vinci, Delacroix e Baudelaire sao citados por R. Huyghe (1980, cap.IV, "La couleur et !'arne", p.?S-87).

69

Page 37: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Phillipe Meyer

tam bern dotadas de visao co lorida, mas carentes de cerebra supe­rior: peixes, repteis, passaros ou insetos como a abelha e a libelula.

A mesma sintaxe nao se aplica a visao colorida humana, diversificada ao infinito pela submissao a urn neocortex, confe­rindo-lhe uma caracteristica fenotipica, ou seja, uma variabili­dade individual. A visao co lorida do homem e uma manifesta<;:ao suplementar da potencia e da variedade do seu cerebra. As areas cerebrais especializadas, que a Evolu<;:ao vai estabelecendo a medida de sua complexifica<;:ao, funcionam inicialmente de ma­neira auto noma, imunes a uma influencia superior que ainda nao existe. Centros da medula espinhal permitem que ras, frangos e patos saltern e andem depois de decapitados. 0 sistema limbico proporciona ao gato e ao camundongo sensa<;:6es puras e estereo­tipadas de fame, de sede e de pulsao sexual. Com o surgimento do neocortex nos mamiferos superiores, o funcionamento dos modulos cerebrais e ao mesmo tempo hierarquizado e embara­lhado par inumeras aferencias neuronais.

As atividades do sistema limbico humano tern apenas uma leve semelhan<;:a com as do cerebra canino ou felino. As sensa­<;:6es resultantes sao carregadas de lembran<;:as, de emo<;:6es ou de informa<;:6es; elas podem ser desembara<;:adas de sua mensa­gem primitiva. Certas areas cerebrais, especializadas em fun<;:6es tao precisas quanta a aten<;:ao visual para uma metade do campo visual ou a compara<;:ao de varios estfmulos para isolar 0 que e pertinente, sao individualizadas no chimpanze e integradas no homem em regi6es mais amplas. "Isso e verdade para todas as regi6es de alto nivel hierarquico de atividade, o lobo parietal, o lobo temporal e sobretudo o lobo frontal", afirma Fran<;:ois Lher­mitte (1982). A visao co lorida nao escapa a esse enriquecimento cultural e, par essencia, pessoal.

0 pin tor pinta como vee como aprendeu aver. As sensa<;:6es puras de uma cor ou de uma nota sao embaralhadas em seu nasci­mento par urn contexto e par uma vizinhan<;:a, e, em sua capta­<;:ao cerebral, pelas evoca<;:6es sensoriais, sensitivas ou mnemicas

70

0 olho e o cerebro

que desencadeiam. Uma cor torna-se crua par justaposi<;:ao a uma sombra profunda. Uma semelhan<;:a de cor entre urn objeto e seu fundo ou urn degrade progressivo de luminosidade na interface de duas formas, o movimento de uma colora<;:ao (cascata de espu­mas, chama ascendente, folhas ao vento) desencadeiam processos cerebrais subjetivos de cren<;:a, inventando fronteiras, transforma­<;:6es e sensa<;:6es. E essa alquimia que a pintura oferece. Sua arte pode ser fun<;:ao das modas e da coordena<;:ao muscular daquele que segura o pincel, mas sobretudo traduz a sensa<;:ao das sensa­<;:6es recebidas: exprime uma percep<;:ao.

As sensa<;:6es visuais sao, portanto, imediatamente transfor­madas pelo cerebra, onde se exerce urn jogo infinito de particula­ridades individuais que modulam a apreensao do meio. Acontece

com a visao o mesmo que com a audi<;:ao. A visao genot£pica desemboca numa percep<;:ao elementar das

formas e das cores, certamente mais ou menos comparavel em cada urn de nos. Trata-se de urn fenomeno de especie, cuja cons­tancia e garantida ao mesmo tempo pela natureza fisica do esti­mulo (das radia<;:6es eletromagneticas) e par uma especializa<;:ao complexa mas repetitiva do cerebra, que e da esfera de uma on­

togenese espedfica. A visao fenot£pica e uma percep<;:ao individual, a impressao que

cada individuo tern de uma excita<;:ao visual. De maneira geral, chamam-se "fenotipo" os caracteres aparentes de urn indivfduo, que nao sao necessariamente conformes aos que a hereditarie­dade lhe legou. 0 grande dicionario Larousse indica que a palavra "fenotipo" e utilizada na psiquiatria para designar 0 carater de urn individuo. Uma visao fenotipica e, portanto, uma percep<;:ao que flutua em razao de tudo o que leva ao polimorfismo, varia­<;:6es superficiais do genoma, marcas do meio que se afirmam ja nas primeiras horas da existencia, e aprendizagem.

A tradu<;:ao anatomica do polimorfismo funcional consiste numa enorme diversidade da organiza<;:ao sinaptica, que, par si so, implica que os dados perceptuais difiram. Os objetos tern

71

I

Page 38: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

i!

Phillipe Meyer

cores, formas e volumes constantes, mas a vi sao que deles temos e func;:ao da modelagem que todo cerebro humano sofre desde 0

infcio de seu desenvolvimento.

Num livro de 1995, intitulado Esthetique, psychologic et musique [Estetica, psicologia e musica], Renee Bouveresse deu varios exem­plos dessa versatilidade sensorial.

Nem todos gostam igualmente de uma dada cor, e as raz6es dessa diferenc;:a sao muitas. Estao envolvidas caracteristicas pr6-prias da cor e condic;:6es psicol6gicas particulares ao experimentador. A complexidade cromatica, tal como no-la ofereceu Cezanne, e a situac;:ao da cor no interior de urn conjunto cromatico desem­penham seu papel; uma cor dada parece mais escura na parte de baixo de uma tela do que em sua parte superior (diz-se que a cor possui urn peso aparente, mas o "peso" da cor varia de pes­soa para pessoa, sem que se saiba a razao exata disso).

Intervem tambem a psicologia do individuo que percebe a cor, a sua afetividade, o seu modo de vida e a sua profissao, a sua experiencia pessoal e social. 0 psic6logo C. W Valentine insis­tiu, ja em 1962, a maneira de Hume, na influencia possivel das associac;:6es conscientes ou subconscientes sobre a apreciac;:ao da cor; o azul faz lembrar experiencias felizes, o verde parece re­pousante, o amarelo eo vermelho sao quentes porque evocam o sol, mas cada individuo reage de maneira imprevisivel e diferente. "0 carater agradavel ou nao de uma cor deve-se a uma experien­cia especial e individual do observador ... Ninguem pode dar todas as raz6es que permitam determinar o efeito exato que uma cor tern sobre ele."3 0 psic6logo Edward Bullough, lembra Valentine, chegou a conclusao, depois de muitas experiencias, de que exis­tem certas invariantes na maneira de se classificarem as cores, mas que podemos distinguir vcirios modos operat6rios individuais. As cores pesadas sao uniformemente colocadas na parte inferior

3 C. W. Valentine e E. Bullough sao citados por Renee Bouveresse (1995, p.79-86).

72

0 olho e o cerebro

do plano de trabalho, pois existem varias maneiras de fazer-se alternarem as cores claras e escuras. Os psicopediatras mostra­ram que, antes dos quatro anos de idade, uma crianc;:a nao possui o sen so da harmonia das cores, o qual aparece por volta dos doze anos de idade, com, sublinha Valentine, a mesma variabilidade

individual que no adulto.

73

Page 39: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

0 ponto cego

Visco inconsciente e subconsciente

Edme Mariotte, fisico amador residente em Dijon, comuni­cou em 1666 a Academia de Ciencias as suas Observaf6es sabre o 6rgao da visao, pelas quais demonstrava a existencia de urn ponto cego no campo visual. Essa experiencia, que produziu uma forte impressao, foi repetida com born exito dois anos mais tarde, perante a Sociedade Real de Londres. Infelizmente, Mariotte tirou dela uma conclusao errada, a localiza<;:ao da percep<;:ao luminosa na cor6ide e nao na retina, o que diminuiu provisoriamente a sua reputa<;:ao. A descoberta do ponto cego e, no entanto, crucial para

a psicologia e para a fisiologia dos sentidos. Em linguagem moderna, a comunica<;:ao original de Mariotte

equivaleria ao seguinte: urn drculo de papel branco de cerca de 11 em, colocado sobre urn fundo preto, desaparece do campo vi­sual quando, a uma distancia de 3,25 m, fitamos, fechando urn olho, urn ponto situado a cerca de 65 em do lado nasal e urn pouco

acima da linha horizontal.

75

Page 40: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

Mariette ~onstruira a sua experiencia com base em dados ana­tomicos conhecidos cern anos antes e verificados por ele mesmo, que demonstravam a excentricidade da origem do nervo optico. Este nao emerge do globo ocular no eixo do olhar, mas a uma pequena distancia, alguns milimetros, desse diametro mediano. Podemos supor que Mariette esperava urn resultado oposto ao que obteve, porque na epoca se considerava que o nervo optico tinha a dupla propriedade de receber e de transmitir sensa~6es visuais. Nessa eventualidade, o ponto de emergencia do nervo optico deveria ser o ponto mais sensivel do campo visual. 0 que se verificou foi o resultado oposto, urn ponto cego.

A coroide e a membrana que envolve e protege o globo ocular eo nervo optico. Essa membranae interrompida pela constitui­~ao do nervo optico, que ela envolve ate a sua penetra~ao no tron­co cerebral. A observa~ao de urn ponto cego no ponto de consti­tui~ao do nervo optico levou Mariette a dele fazer o tecido da percep~ao visual. Muitos cientistas, em particular Jean Pecquet e Claude Perrault, em Paris, rejeitaram, por vezes estrepitosa­mente, essa teoria. Mas o tempo foi propicio a Mariette: o erro foi perdoado e o ponto cego, honrado. Nao constituia ele uma prova cientifica de uma trucagem da realidade, uma vez que nao somos conscientes de urn buraco do campo visual, de uma inadequa~ao do que vemos ao que cremes ver? A prova, em suma, de uma corre~ao da visao feita pelo cerebro?

A visao cega

Uma lesao do cortex visual occipital acarreta a perda da visao consciente na metade do campo visual oposto a destrui~ao cere­bral. A visao e amputada pela metade por uma mancha negra a qual se deu o nome de escotoma. E a sindrome de hemicegueira contralateral (em rela~ao ao lado lesado) e uma hemianopsia.

Em 1973, a revistaNature publicou o relate de uma experien­cia, assinado porE. Poppe!, R. Held e D. Frost, que sugeria que a

76

0 olho e o cerebro

cegueira nao e absoluta no interior do escotoma, continuando 0

doente a perceber uma estimula~ao luminosa intensa. Evidentemen­te, haviam sido tomadas precau~6es para que os doentes ignoras­sem tudo sobre a experiencia e fossem surpreendidos pela ilumi­na~ao do campo visual cego, sendo o clarao luminoso acompanhado, de maneira irregular, de urn sinal son oro constante. Ora, os paden­tes nao se enganaram ao reconhece-lo regularmente: a metade cega do campo visual nao ve mais, mas permanece, portanto, sen­sivel a uma luz branca e forte, o que permite concluir pela per­sistencia de urn mecanisme visual de natureza inconsciente.

0 fenomeno foi chamado "visao cega" (blind sight). Seus mecanismos sao desconhecidos, mas sua existencia nao se dis­cute, pois recebeu muitas confirma~6es. Dois pesquisadores, P. Steering eA. Cowey, demonstraram em 1992 que ela ocorre tam­bern com a visao cromatica: existe uma visao inconsciente para as cores na regiao cega do campo visual.

Essas descobertas demonstram que, ao lado do conhecimento explicito, ha Iugar para urn conhecimento implicito. Este ultimo, revelado pela visao cega, e urn olhar nao desejado, uma tomada de consciencia nao intencional do meio ambiente. Esse registro automatico corre o risco, da mesma forma que uma sensa~ao percebida, de entrar nos arquivos da memoria e de deixar urn ras­tro ulteriormente recuperavel.

Uma sindrome similar ada visao cega esta relacionada com o tato. Chamada por essa razao de "tato cego" (blind touch), foi descoberta recentemente. Este sugere que a dicotomia funcio­nal da consciencia caracteriza o con junto dos sistemas sensoriais: urn hom em vitima de hemianestesia sensorial e capaz de localizar o Iugar on de urn experimentador toea a sua pele, em bora estando inconsciente de ter sido tocado.

77

Page 41: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

~~~ Philippe Meyer

Uma visao pensante

Os psic6logos estudam a nossa visao debrw;:ando-se sobre as diversas etapas de constrw;:ao de uma imagem visual. A opi­niao deles e unanime: a visao nao e uma percep<;ao que ocorre por inercia, uma recep<;ao de objetos exteriores que se imp6em em bloco a celulas visuais passivas e complacentes. 0 sistema de capta<;ao de f6tons e necessario mas insuficiente para induzir uma imagem do mundo que nos cerca. Ele deve ser completado por uma atividade cerebral que transforme informa<;6es implicitas em informa<;6es explicitas, que coordene descargas eletricas neu­ronais digitais numa paisagem coerente. 0 cerebro imp6e uma unidade global as atividades de suas diferentes partes, para en­contrar a harmonia de objetos isolados num quadro geral.

Os objetos nao nos sao dados como tais, sao reconhecidos e reconstruidos por urn cerebro dotado de capacidades de analise, de sintese e de hierarquiza<;ao. Nao e o olho, mas sim o cerebro

queve. Os exemplos que testemunham os aspectos rudimentares

dos dados visuais e a necessidade de uma manipula<;ao cerebral sao muito numerosos e facilmente evidenciados mediante testes

simples. Assim, temos a sensa<;ao de uma percep<;ao difusa, circular,

das formas e das cores na totalidade da esfera do campo visual. Ora, experiencias simples demonstram que nao e esse o caso: se fizermos aparecer lateralmente em nosso campo visual uma caneta colorida e a deslocarmos na dire<;ao do centro sem mexermos o eixo do olhar, o objeto, inicialmente amorfo e irreconhecivel enquanto se encontra na extrema periferia, vai ganhando urn contorno a medida que evolui para o centro do olhar; a cor apa­rece depois da forma, substituindo o aspecto enegrecido da morfologia inicial. E facil a interpreta<;ao dessa sequencia: ela e gerada pela densidade desigual dos cones e dos bastonetes na periferia e no centro da retina. A continuidade da percep<;ao das

78

0 olho e 0 cerebro

formas e das cores de uma extremidade do campo visual para ou­tra indica que 0 cerebro e capaz de compensar uma desigualdade somatica periferica.

A percep<;ao visual mostra-se versatil, independentemente do real e da fun<;ao de uma decisao cerebral. Se tomarmos tres circulos pretos dos quais foi removido urn angulo de mesmo ta­manho com a abertura voltada para a periferia e colocarmos tais angulos nos vertices de urn triangulo ficticio, dependendo das circunstancias (em especial da ilumina<;ao), ou os tres circulos escuros predominarao na visao, ou, pelo contrario, o triangulo claro de contornos fictfcios recortados nos circulos sera visto como figura predominante. Ou, igualmente, se considerarmos o que se convencionou chamar de "cubo de Necker", urn simples desenho feito rapidamente em tres dimens6es, a percep<;ao do cubo pode inverter-se como se o olhassemos de outro angulo, com a condi<;ao de que o fitemos durante certo tempo. Tambem ai, a percep<;ao sensorial esta sob a dependencia de uma ativi­dade cerebral, a satisfa<;ao de contemplar uma forma dada sob uma ou outra luz.

Outro exemplo de subordina<;ao do real aos neuronios cere­braise fornecido pela integra<;ao do ponto cego. Sen do este, lem­bremo-lo, uma zona de cegueira ligada a saida maci<;a, na dire­<;ao das profundezas do cerebro, dos neuronios das celulas retinianas que formam OS nervos 6pticos. Esse ponto cego e per­feitamente detectavel, ligeiramente abaixo e no exterior dos eixos oculares, quando realizamos uma explora<;ao sistematica do campo visual. Mas o cerebro nao leva em conta esse buraco esquecido num sistema de integra<;ao que o preenche com imagens globais do campo visual.

Como pode urn cerebro construir uma imagem, a imagem daquilo que acredita estar ali, mas nao esta realmente la? Dois processos parecem estar envolvidos. Por urn lado, uma interpre­ta<;ao simb6lica, que se efetua em niveis cada vez mais complexos e cada vez mais elevados: todo objeto possui urn poder de evoca-

79

I i I i I

I I I

Page 42: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

I I

I

I

I I

I

II

I

Philippe Meyer

<;:ao, e a imagem evocada e comparada a realidade para saber se ela pode ajustar-se aos outros elementos dessa realidade. Uma oval, que simboliza urn vasa, urn avo ou urn queixo, e conside­rada queixo se percebermos ao seu lado o olho, a orelha ou o nariz que anunciam o aparecimento de urn rosto. Mas sera julgada avo se aparecer urn galinheiro no campo visual, ou sera julgada como urn vasa, se o cerebra visual descobrir flares. A imagem global constroi-se par etapas sucessivas, ate o nivel mais alto de inte­gra<;:ao, que proporciona uma imagem visual completa. As prin­cipais etapas da atividade cerebral compreendem, portanto, uma sensa<;:ao, uma simboliza<;:ao, uma compara<;:ao, uma percep<;:ao e novas simboliza<;:6es em escalas cada vez mais completas.

A integra<;:ao final efetua-se em bloco, contando o conjunto

mais do que os detalhes que permitiram construi-lo. Em 1912, os psicologos alemaes Max Wertheimer, Wolfgang

Kohler e Kurt Koffka fundaram uma psicologia da forma, uma Gestaltpsychologie, que reconhece a existencia de "todos organi­zados, de que cada uma das partes afeta as outras, sendo o todo bern mais do que a soma de suas partes" (cf. Crick, 1994). Essa teoria e conforme ao que Rene Thorn (apud Boutot, 1993, p.24) chama de "intui<;:ao ingenua que atribui as coisas exteriores uma existencia independente de nos sa percep<;:ao". Ela da toda a sua importancia as formas em movimento formalizaveis pela teoria das catastrofes de Rene Thorn e as rela<;:6es da forma e do fun do sabre 0 qual se destaca 0 objeto. 0 reconhecimento deste ultimo, segundo a Gestalt, procede de uma percep<;:ao de similitude, de proximidade, de continuidade e de extra<;:ao do fundo.

As possibilidades de ilus6es e de determinismos perceptuais indicam bern que OS dados principais da percep<;:ao visual nao sao estimulos isolados, que flutuam no vazio. Eles se deslocam, evo­luem e interagem de uma maneira que pode impor uma inten­cionalidade. A visao implica fun<;:6es de an:ilise, de reconhecimento e de reintegra<;:ao num quadro familiar. Uma mancha amarela de contornos indefinidos torna-se bola de tenis se a virmos par cima

80

oi<,

'

0 olho e o cerebro

de do is personagens vestidos de bran co, de uma rede transversal, e tambem porque a desigualdade de defini<;:ao de sua forma da uma impressao de velocidade.

A pintura impressionista privilegiou as formas, as estruturas, as percep<;:6es de conjunto. 0 pormenor inerte ou vivo e negli­genciado, sem porem ser omitido. As brumas, a chuva e o ne­grume da Torre de Londres con tam mais do que os ponteiros do relogio, e os nenUfares val em mais pela cor do que pela forma. 0 genial nessa representa<;:ao e que ela se situa 0 mais perto possivel da visao cerebral elaborada, que, tendo assimilado os componen­tes elementares, se interroga sabre a impressao do conjunto do espetaculo, sem duvida o melhor estimulo da memoria visual.

Qualia

A experiencia mental tern uma parte de qualidade inexpri­mivel, que os filosofos chamarn de quale (qualia, no plural). Alem de uma qualidade objetiva, semelhante para todos, uma sensa­<;:ao provoca uma imagem perceptual propria a cada individuo, urn matiz que nao e comunicavel a nenhum outro, pelo menos na vida cotidiana. A qualidade objetiva e o desafio da ciencia, a qualidade subjetiva nao o e. Se nao podemos, explica Francis Crick, descrever sem ambigiiidade as propriedades de urn objeto (a tonalidade de urn vermelho particular, par exemplo), teremos dificuldades para explica-las em termos reducionistas. Os qualia sao nao mensuraveis, porque exprimem dados aleatorios.

Os acontecimentos mentais considerados de dentro, de urn ponto de vista subjetivo, foram chamados de "sentimentos bru­tos" (raw feelings) ou "propriedades fenomenais" (phenomenal properties). 0 filosofo D. Dennet (apud Missa, 1993, p.63) definiu OS qualia da seguinte maneira: "Qualia e urn termo nao familiar para alguma coisa que nao poderia ser mais familiar a cada urn de nos: o que as coisas nos parecem ser". Imaginemos urn homem

81

Page 43: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

comendo urn chocolate. Os receptores nervosos gustativos esti­mulados dao origem a influxos nervosos que se propagam pelo cerebra. Assim e percebido o gosto do chocolate. Urn cientista pode regis tar a atividade das celulas nervosas sensiveis as sensa­c;6es gustativas, mas sera que vai encontrar o gosto do chocolate? Nao. A percepc;ao do gosto encontra-se no interior da mente do homem que come 0 chocolate, de tal maneira que e inacessivel a todo observador exterior. Situac;6es analogas encontram-se tam­bern em todas as areas sensoriais. Detectamos os indicios de uma atividade bioeletrica nervosa nos lobos occipitais e temporais, suscitados pela visao da Gioconda ou pela audic;ao da fantasia Wanderer de Schubert, mas e impossfvel descrever OS modos indi­viduais de percepc;ao. A linguagem nao o permite, e as variac;6es sao muito grandes de pessoa para pessoa. Alem disso, se o gosto do chocolate e provavelmente 0 mesmo para todos, nada indica que urn pedac;o derretendo na boca gere precisamente a mesma percepc;ao em todas as pessoas. Alias, faltam as palavras para ex­plicitar a sensac;ao.

Repetidas vezes em sua obra, Bergson debruc;ou-se sabre a subjetividade do espfrito. Sua Materia e memoria, publicada em 1896, dotada talvez do poder de seduc;ao que jean Guitton atri­bui as obras opacas, trata desse tema, afirmando que se ha inde­pendencia da materia e da consciencia que a percebe, existe uma diferenc;a individual entre a realidade e a imagem que a mente produziu: a materia possui qualidades primarias e secundarias. Como poderfamos conciliar uma base fisico-qufmica universal do funcionamento cerebral e igual dose de subjetividade na apre­ciac;ao das coisas que nos cercam?

A percepc;ao pura, explica Bergson, nao tern nenhum sentido. Existe por certo uma "ordem objetiva e independente de nos", mas as suas imagens inextensfveis estao fora de nosso alcance. Nao ha, com efeito, "percepc;ao sem afecc;ao". Para reencontrar a pureza da imagem, e preciso extrair da percepc;ao as influencias mais diversas do cerebra e do corpo, uma "especie de visao inte-

,I, ,'

0 olho e o cerebra

rior e subjetiva" que constantemente se mistura a percepc;ao do presentee que pode ate substituf-la. "Aos dados imediatos e pre­sentes de nossos sentidos, misturamos milhares e milhares de detalhes de nossa experiencia passada. 0 mais das vezes, essas lembranc;as deslocam nossas percepc;6es reais, das quais so rete­mas entao algumas indicac;6es, simples 'signos' destinados a nos fazer lembrar de velhas imagens. A comodidade e a rapidez de uma percepc;ao tern esse prec;o; mas tambem nascem daf ilus6es de todo tipo." A intervenc;ao dos sentidos e tao forte quanta ada memoria, "o carater de movimentos exteriormente identicos e interiormente modificado, conforme a replica feita a uma impres­sao visual, tactil ou auditiva". 0 meio intervem: "Nossas afecc;6es internas, como nossas percepc;6es externas, dividem-se em gene­ros diferentes. Esses generos, como os da percepc;ao, sao descon­tinuos, separados por intervalos preenchidos pela educac;ao".

Peguero uma agulha, apoiem-na sobre a pele e afundem-na progressivamente, ate que a sua percepc;ao mude de natureza, ate que se ins tale a dor. Esse limiar doloroso varia de pessoa para pessoa, em razao do interesse que ela atribui ao acontecimento, de seu pudor, de seus tern ores naturais e da acuidade perceptiva de suas terminac;6es nervosas. Uma dor em si, solta do sujeito que a sente, nao tern significado. Par conseguinte, na medicina, nao ha lugar para urn tratamento antalgico impessoal.

Em suma, nenhuma sensac;ao informa sobre urn estado obje­tivo da materia. Uma ordem natural existe, certamente, indepen­dentemente de nos, mas a flutuac;ao infinita das sensac;6es nao permite conceber, nem sequer imaginar, a qualidade dos objetos do meio ambiente. A lic;ao de Bergson e que a percepc;ao e uma mera selec;ao por eliminac;ao das imagens que nao possuem uma virtu de interativa, triagem indeterminada que responde a incita­c;6es complexas do corpo, da mente e da propria materia.

No Essai sur les donnees immediates de la conscience [Ensaio sabre os dados imediatos da consciencia], Bergson (1985) considera ate mesmo uma subjetividade absoluta, pois, explica ele, as ativida-

Page 44: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

des cerebrais sao nao s6 diferentes de hom em para homem, mas {micas em seu genero para urn mesmo individuo: "Ao lado dos graus de intensidade, distinguimos instintivamente graus de pro­

fundidade ou de eleva~ao" (p.l3). A dificuldade de quantificar sensa~6es afetivas como o prazer

e a dor, sensa~6es representativas, dados perceptuais, excita~6es proprioceptivas profundas - o esfor~o muscular-, em suma, os qualia, bern como uma subjetividade insuperavel colocam dificeis interroga~6es filos6ficas. Nao devemos aceitar a realidade de uma dicotomia entre materia e pensamento, uma vez que a primeira parece governada por leis, ao passo que 0 segundo e contingente e individual? Tern sentido a no~ao de consciencia objetiva e, se nao, como ter acesso a urn universo em si? Que significa~ao atri­buir a urn homem de cerebro assim limitado, amputado, chacoa­lhado por for~as exteriores e interiores nao controlaveis porque

incompreensiveis? Esse questionamento nao e original. Ele merece ser retomado,

pois os conhecimentos neurocientificos permitem agora algumas

explica~6es e algumas hip6teses novas.

84

Fenotipia do percepc;ao senslvel

Do sensac;ao

As analises da percep~ao visual- formal, estrutural e colorida - indicaram que a sensa~ao pura, vibra~ao recebida de urn mundo exterior em si, indeformavel e inteligivel, nao corresponde a nada de que tenhamos experiencia. Foi possivel demonstrar que as sensa~6es estao ligadas a rela~6es e nao a coisas absolutas, que percep~6es nascem dessas sensa~6es por dupla interferencia de influencias exteriores que desinstrumentalizam os sentidos, e de intera~6es mentais que lhes conferem particularidades fenoti­picas imprevisiveis e nao reprodutiveis. S6 podemos concordar com Merleau-Ponty (1945) quando escreve: "o aparelho senso­rial nao e urn condutor, ate mesmo na periferia a impressao fisio-16gica se ve envolvida em rela~6es consideradas antigamente como centrais" (p.lS), e: "o sensivel eo que apreendemos com os sentidos, mas [se sabe] agora que esse 'com' nao e simplesmente instrumental" (p.l3).

85

1 I

Page 45: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

A sensa<;:ao pura nao existe porque o objeto puro nao existe, ela seria uma forma isolada, imovel e unica num espa<;:o homoge­neo sem fundo. Uma vez que existem outros objetos, superpostos ou alinhados, a analise visual torna-se segmentaria e geometrica, e procede par recorte-recomposi<;:ao, de acordo com incita<;:6es nao sistematizaveis. "Construimos atraves da optica e da geome­tria o fragmento do mundo cuja imagem a cada momenta pode formar-se sabre nos sa retina" (p.ll), prossegue Merleau-Ponty. A opera<;:ao e func;ao, como indicam investiga<;:6es cientificas, dos antecedentes, de impress6es, de contrastes e de compara<;:6es. Uma vez que o objeto esta em movimento, a imagem constroi­se par referencias e probabilidades. 0 mundo exterior e uma pro­je<;:ao do que queremos nele par.

E impassive! dar uma defini<;:ao, encontrar uma explica<;:ao para o campo visual, cuja periferia, variando a cada passo e que deveria ser uma zona acromatica, se com porta na realidade como uma transi<;:ao indeterminada. Tampouco se pode encontrar uma interpretac;ao para a desigualdade aparente de duas figuras iguais provocada pela adjunc;ao de linhas auxiliares (ilusao de Miiller­Lyer). Nem para a aparente constancia cromatica de uma super­fide colorida, apesar das desigualdades de luminosidade. Nem para a varia<;:ao da grandeza aparente de urn objeto com a sua dis­tancia. Nem para a dependencia de uma forma ou de uma cor a lembran<;:a que dela temos. Nem para o fato de que uma forma incompleta, parcial, evoque uma forma completa. 0 aparelho sensorial percebe sensa<;:6es imediatas que nao sao descritiveis porque sao modificadas, ja em seu impacto, por uma interven­<;:ao do sistema nervoso central. A sensa<;:ao imediata tornou-se sensac;ao mediata ou percep<;:ao.

Uma sensa<;:ao, para ser pura, deveria consistir numa "moti­va<;:ao" de neuronios virgens que jamais tivessem recebido ante­riormente uma excita<;:ao analoga ou mesmo proxima. Uma modi­fica<;:ao neuronal epigenetica adquirida, induzida ja no primeiro choque sensivel, nao pode ser eliminada; ora, ela tern como con-

86

0 olho e o cerebro

sequencia modificar a segunda sensa<;:ao. 0 cerebra, diziam os empiristas, deve ter a brancura imaculada de uma folha de papel novo. Uma sensa<;:ao pura nao se ajusta nem a memoria nem ao conhecimento, que permitem julgar e comparar. 0 que basta para demonstrar, pelo menos no que diz respeito as sensac;6es de base (dadas par cores, formas e objetos do dia-a-dia), que uma sensa­<;:ao pura e, par definic;ao, mitica. A crian<;:a comec;a a discernir claramente as cores depois do nona mes de vida. Antes, a separa­<;:ao entre 0 colorido e 0 acromatico nao e nitida, as colorac;6es sao apenas quentes ou frias, o verde ou o vermelho sao vistas, mas nao sao identificados. "A primeira percep<;:ao das cores pro­priamente ditas e, portanto, uma mudan<;:a de estrutura da cons­ciencia", escreve Merleau-Ponty (1945, p.38). Em seguida, a cor, estruturada, da lembranc;a tende a levar a melhor sabre a cor presente. A sensac;ao produz-se agora por referenda, e a ideia de que ela possa reencontrar uma pureza inicial e agora carente de sentido. 0 olhar funciona gra<;:as a lembran<;:as, associa<;:6es, reconhecimentos de formas, verificac;6es e recortes.

Os psicologos reconheceram ha muito tempo que urn con­torno e uma soma de vis6es locais (prefigura<;:ao de uma geome­tria fractal a la Mandel brat), que urn contorno circular evoca outras distribui<;:6es analogas, que uma percepc;ao presente deve revestir uma forma para evocar uma imagem antiga a qual ela se assemelhe e que uma ilusao muitas vezes nos ameac;a, fazendo passar por uma percepc;ao autentica aquela que foi apenas extraida de urn arquivo mnemico.

Os sentidos estao ai para informar o cerebra sabre os acon­tecimentos do meio ambiente e sabre suas mudan<;:as. Eles repre­sentam nas especies vi vas urn elemento de vida e de sobreviven­cia, assinalando desde os niveis mais simples do reino animal as fontes alimentares e os perigos. A representa<;:ao mental do meio exterior acompanha naturalmente o desenvolvimento cerebral e constitui no homem urn dos pilares da consciencia e da inteli­gencia. lsso se passa em grande parte nos lobos frontais e pre-

87

Page 46: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

frontais. Nenhum psic6logo con testa atualmente a influencia de uma mae, de uma paisagem ou de uma linguagem sobre o desen­volvimento psicoafetivo de uma crian<;:a. Nenhum deles nega que o intelecto nas<;:a dos encontros de capacidades cerebrais inatas - a aptidao para a linguagem, por exemplo - e acontecimentos exteriores, estimulos ex6genos, detectados pelos sentidos. Falar o mandarim depende de uma dupla exigencia, uma inata, com urn a todos OS homens- 0 cerebro da fala- e a outra adquirida, uma educa<;:ao chinesa.

A importancia relativa desses dois termos alimentou uma controversia importante na hist6ria das neurociencias, sendo o ina to tido como responsavel por uma desigualdade chocante. Os

progressos da genetica fundamental e da genetica aplicada aos comportamentos levaram a maior parte dos cientistas de hoje a reconhecer que a atividade cerebr;.il esta sob a dupla influencia de urn programa hereditario e do meio ambiente. Uma psicolo­gia ha pouco exclusivamente orientada para o exterior foi respon­savel pelo atraso do pensamento medico.

Certas filosofias tambem levaram em conta unicamente o meio, funcionando b cerebro apenas em resposta a sensa<;:6es recebidas do exterior, sen do o pensamento humano inteiramente alimentado pelos 6rgaos dos sentidos. Urn empirismo sensorial despojado foi professado por John Locke (1974). A experiencia e a primeira e unica fonte real de informa<;:ao, a informa<;:ao e dada pelos sentidos, nos so espirito forma-sea partir de uma tabula rasa primitiva. Quase nao ha lugar em Draft A para a reflexao, as rela­<;:6es da alma e do corpo na sensa<;:ao, a interven<;:ao divina. 1m­porta mais do que tudo a determina<;:ao da origem das ideias, as sensa<;:6es.

Imagino que todo conhecimento se fundamenta nos sentidos, af encontra em definitivo a sua origem, ou se fundamenta em algo que tern rela~ao com eles e pode ser chamado de sensa~ao, resul­tado da aplica~ao de nossos sentidos a objetos particulares. Essa

88

0 olho e o cerebro

aplica~ao da-nos as ideias simples ou imagens das coisas ... E por isso que eu penso que o que chamamos qualidades sensfveis sao as ideias mais simples que temos e os primeiros objetos de nosso entendimento. (Locke, 1974, p.35)

Locke explicou como palavras nascem das sensa<;:6es:

E o que explica que uma crian~a a quem mostramos muitas vezes uma coisa de urn amarelo vivo e luminoso, ensinando-lhe a chama-lade "ouro", seja levada a imaginar ... que ela baste para fazer essa coisa que ela chama de ouro; assim, ela est<i pronta para designar o cobre com o nome de ouro e a chamar de ouro urn peda~o dourado de bolo. Uma maior familiaridade dos sentidos como objeto permite constatar que o peso se une ao amarelo lumi­noso, urn maior exame encontra a flexibilidade, a maleabilidade, a fusibilidade, a fixidez e a solubilidade num certo lfqiiido etc. Assim se acaba por obter a cole~ao acabada de todas as ideias simples unidas no sujeito, a que chamamos ouro; de sua enumera~ao origi­nou-se uma defini~ao da palavra. (ibidem, p.38)

E Locke, indo ate o fim de seu raciocinio, sustenta "que urn cego de nascen<;:a, cujos olhos se abrissem a luz, nao distinguiria pela visao urn globo de urn cubo" (cf. Condillac, 1984, p.75). 0 dogmatismo escolastico de Oxford morreu, a corrente empirista leva a melhor. Thomas Hobbes, seu inspirador, tern sucessores que sabem fazer-se ouvir: uma sensa<;:ao, ou simplesmente urn senti do, e a combina<;:ao de urn objeto exterior ao corpo e de certas partes do corpo que lhe respondem, tornando-se elas mesmas objetos para outros corpos.

John Locke analisou, em particular em A conduta do entendi­mento, o devir das sensa<;:6es no interior do tecido cerebral. Ali elas se tornam ideias e memoria. Das ideias nascem o pensamen­to e a linguagem. Os mecanismos em jogo sao evidentemente ignorados, ainda que as diferen<;:as individuais sejam reconheci­das. "Entre os homens de mesma educa<;:ao, ha uma grande de­sigualdade de talentos" (Locke, 197 5, p.17). Mas a sensa<;:ao con-

89

Page 47: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

tinua sendo o primum movens: o universe imprime-se no cerebro pelos sentidos. Ele ali se projeta de maneira abspluta, sem sofrer

diston;:ao. Condillac, que se inspirou em Locke - e que a ele se refere

explicitamente -, considerava que o cerebrose tornava odor, cor ou espetaculo. Suponhamos, escreve ele em seu Tratado das sen­saroes (1984), que o hom em seja uma estatua "limitada a urn sentido", ou seja, dotada de urn unico sentido, o olfato, por exem­plo. Este se mostra atento a primeira solicita~ao, proporciona ja ness a estimula~ao inicial prazer ou desprazer, grava a percep~ao numa memoria que representara essa lembran~a olfativa, quali­tativa ou quantitativamente, na analise de urn novo cheiro. Assim se forma, como conseqiii~ncia de urn unico sentido, uma cadeia de informa~6es a respeito do exterior, a memoria, a preocupa­~ao em comparar, a capacidade de avalia~ao e de julgamento, a imagina~ao (que nao e senao uma memoria que coma com tanta for~a as coisas passadas, que elas parecem presentes) e atividade

de reconhecimento. Uma sensa~ao e aproveitada pelo pensamento e modifica a

alma.

Tendo provado que a nossa estatua e capaz de prestar aten<;:ao,

de se relembrar, de comparar, de julgar, de discernir, de imaginar; que ela tern no<;:6es abstratas, ideias de numero e de dura<;:ao; que ela conhece verdades gerais e particulares; que forma desejos, tern paixoes, ama, odeia, quer; que ela e capaz de esperan<;:a, de temor e,

de espanto; e que, enfim, ela contrai habitos: devemos concluir que num s6 sentido ha tantas faculdades quanto nos cinco reunidos. (p.S7)

E conclui Condillac: "A sensa~ao encerra todas as faculdades da alma" (idem). A atividade cerebral e apenas o produto "de es­timula~6es sensoriais: nossos conhecimentos vern dos sentidos". As diferen~as individuais nao estao ligadas nem a disparidades do meio ambiente nem a particularidades constitutivas do tecido cerebral, mas sim a varia~6es da analise sensorial, da observa~ao

90

0 olho e o cerebro

da natureza . .E precise ver para ter ideias, mas e precise tambem saber olhar.

0 universe que nos cerca molda o nos so pensamento por in­termedio dos sentidos, e estes nos informam sobre a natureza desse meio ambiente, em particular conjugando a vista e o tato. Condillac concebeu uma filosofia da submissao que da ao exte­rior a responsabilidade pelo desenvolvimento dos individuos. 0 unico livre-arbitrio admitido e uma faculdade de organizar a per­cep~ao sensivel, de disciplina-la para melhor analisa-la.

Para Malebranche, a dependencia humana e ainda maior, pois os juizos nascidos das sensa~6es sao obra divina. Diz ele, em Da

busca da verdade:

Creio dever avisar que nao e a nos sa alma que forma OS jufzos sobre a distancia, sobre a grandeza etc., dos objetos; mas sim Deus, em conseqiiencia das leis da uniao da alma e do corpo. E por isso

que chamei de naturais esses tipos de jufzos, para assinalar que eles se dao em n6s, sem n6s e a despeito de n6s ... S6 Deus pode instruir-nos num instante sobre a grandeza, a figura, o movimento e as cores dos objetos que nos cercam. (s. d., p.ll9-20)

Da percepc;ao

Uma sensa~ao pode ser definida nos planos fisiologico, psico­logico e filosofico. Ela e percep~ao de urn fato ou de urn aconte­cimento do meio ambiente, por meio dos aparelhos sensoriais naturais, que dao informa~6es sobre as cores e os contornos, os ruidos e os sons, os cheiros, as formas e os sabores. 0 fato ou o acontecimento sao de natureza fisica, portanto detectaveis e men­suraveis, comprimentos de onda, varia~6es da pressao atmosferi­ca, particulas carregadas pelo ar. Cada senti do natural compreen­de urn receptor sensivel a uma excita~ao fisica especifica, ou seja, a mudan~a de urn estado fisico particular, e urn circuito nervoso, que veicula a informa~ao periferica para 0 cerebro que registra.

91

Page 48: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

A fisiologia sensorial e uma ciencia aparentada tanto a fisica quanta a biologia, por parametros quantificados em angstrons, pascais, milibars, hertz e por neuronios cerebrais prepostos a essas fun<;:6es. Por conseguinte, como corolario des sa concep<;:ao tradicional, a psicologia e descritiva, uma analise das rea<;:6es mentais provocadas pela "experiencia de urn' choque' indiferen­ciado, instantaneo e pontual de uma sensa<;:ao pura", como diz Merleau-Ponty (1945, p.9). A psicologia musical nascida nose­culo XIX dos trabalhos de Helmholtz baseia-se nesses esquemas lineares, quando explica que a consonancia de dois sons se deve a predominancia dos harmonicas que eles tern em comum, ao passo que a dissonancia e introduzida pelos harmonicas que se encontram separados por intervalos pr6ximos ao semitom.

Uma filosofia das sensa<;:6es, por fim, implica que o pensa­mento humano derive delas por uma soma de adi<;:6es, de preser­va<;:ao e de dedu<;:6es. A alma elabora-se como urn jogo de montar cujas pe<;:as - os produtos das sensa<;:6es -, identicas entre si, pod em ser reunidas em montagens variaveis, conforme a orienta­<;:ao das pe<;:as elementares eo aperto dos parafusos. 0 fator limi­tante continua sendo 0 numero de pe<;:as disponiveis no inicio do exercicio, ou seja, a exposi<;:ao dos sentidos a estimulos exteriores.

Tudo indica, porem, que a sensa<;:ao nao e uma serie de feno­menos ordenados, aditivos e quantitativos; que ela nao e sensa­<;:ao pura, mas percep<;:ao, isto e, urn fenomeno aberto, individual

e aleat6rio. Nosso meio ambiente e rico, as vezes exuberante, complexo,

com associa<;:6es imprevisiveis de formas geometricas e de com­posi<;:6es indeterminadas. Os pontos, as linhas, a intensidade lu­minosa, os movimentos sao eminentemente reprodutiveis, estereotipados de maneira a interessar urn grupo dado de neu­ronios, sempre OS mesmos. Saber que tal neuronio de VIe sen­sivel a orienta<;:ao e tal outro ao movimento da uma ideia da base da constru<;:ao da sensa<;:ao, mas nao e de modo algum urn indica­dar do dado perceptual final, da natureza do que e percebido. A

92

0 olho e o cerebro

etiqueta de uma cor, de uma sensa<;:ao de vermelho, de verde ou de amarelo e apenas uma categoriza<;:ao sumaria. Essas tres cores s6 tern senti do para urn espectrofotometro capaz de analisar com­primentos de onda. Os vermelhos, verdes e amarelos naturais sao misturas sutis que o olho reconhece ao par em jogo varias sensa­<;:6es que ele com para a padr6es de referenda fixados na memoria, as sensa<;:6es coloridas da vizinhan<;:a. A vi sao cromatica e antes de tudo uma questao de medida exterior e interior, e a sua complexi­dade e ilustrada pela seguinte experiencia: se analisarmos, de olhos bern abertos, uma cor, para a lembrarmos e em seguida procurar­mos tornar a encontra-la sobre uma palheta, por mais rica que ela seja, jamais conseguiremos identificar exatamente a cor inicial.

As formas dao lugar a sensa<;:6es integradas, em que a visao de conjunto conta se nao mais, pelo menos tanto quanto o acumulo de sensa<;:6es pontuais. Merleau-Ponty, que se inspirou na Gestalttheorie e na fenomenologia husserliana, interessou-se pela percep<;:ao de uma mancha para ilustrar seu prop6sito. Se­jam quais forem a substancia, o material que entrem na composi­<;:ao de uma mancha escura colocada sobre urn fundo claro, a estrutura da borda e descontinua, justaposi<;:ao de pequenos agre­gados materiais, ou mesmo de elementos fibrilares, se a matriz for urn tecido. Ora, o observador ve nessa borda uma linha con­tinua, ele s6 tern olhos para o todo que a mancha constitui, uma entidade circular ou oval que forma urn contraste bruto, sem tran­si<;:ao como fundo. Ele globaliza a percep<;:ao, interessando-se ape­nas pelo simbolo e pelo significante.

Seja uma mancha branca sobre urn fundo homogeneo. Todos os pontos da mancha tern em com urn certa "fun<;ao" que faz deles uma "figura". A cor da figura e mais den sa e como que mais resis­tente que a do fundo; as bordas da mancha branca !he "perten­cem" e nao sao solidarias ao fundo, ainda que contfguo; a mancha parece colocada sobre o fundo e nao o interrompe. Cada parte an un­cia mais do que o que contem, e essa percep<;ao elementar ja esta, portanto, carregada de urn sentido. (Merleau-Ponty, 1945, p.21)

93

Page 49: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

A identifica<;ao de uma forma complexa procede por patama­res sucessivos de integra<;ao de suas componentes maiores. A primeira a ser reconhecida e a que mais evoca o objeto no plano experimental: uma reverbera<;ao aguda e subita do sol sabre o para-brisa de urn veiculo leva a se tentar apreender secundaria­mente o seu volume e a sua velocidade. Algumas pessoas, no mar, reconhecem barcos pela evoca<;ao suscitada pelo conjunto dos petrechos do barco, outras, pela que e inspirada pelo casco. Uma forma complexa em movimento pode nao oferecer jamais o mes­mo indicia de referenda; a sensa<;ao pura tornou-se percep<;ao aleatoria, uma variavel que depende da velocidade do objeto e das posi<;6es eventuais do observador.

Em suma, a psicologia da visao reencontra a fisiologia e se ajusta aos seus resultados: o poder de integra<;ao da percep<;ao visual aumenta a medida que o sistema neuronal especializado se eleva na dire<;ao do cerebra neocortical. A placa fotografica sucede a camera cinematografica, depois a transcri<;ao em video acoplada a uma rede de informa<;6es informatizadas. As percep­<;6es simples seguem essa via ascendente e essa progressao, ao passo que as percep<;6es complexas utilizam inicialmente os sis­temas de alta integra<;ao.

A fisiologia nervosa e a biologia que a sustenta sao as bases naturais da psicologia e da filosofia. E inutil querer interpretar os comportamentos humanos e compreender a condi<;ao humana, tao estreitamente ligada ao cerebra, sem precisamente conhe­cer e compreender as neurociencias. Dissertar sabre as virtudes nada traz a interroga<;ao filosofica essencial que procura saber por que a palavra "virtude" e o apanagio da especie humana e por que ela e carente de sentido no resto do mundo vivo. Com os progressos cientificos, a filosofia cindiu-se em dois ramos aparentados: uma historia da filosofia antiga, por urn lado- diga­mos, como Jean-Fran<;ois Revel, de Tales a Kant-, e urn pensa­mento construido sabre a cii~ncia, por outro, que exige que ela seja conhecida. Essa foi a via biofilosofica seguida aqui.

94

0 olho e o cerebro

Uma "sensa<;ao pura" nao tern significado para o homem, cuja atividade cerebral trabalha, integra, explora, mede toda sensa<;ao e analisa em sua memoria racional e emocional. Ha apenas per­cep<;ao de urn con junto, globaliza<;ao de uma excita<;ao sensivel, que pode efetuar-se de diferentes maneiras, por analogia estru­tural, geometrica, sensitiva ou sensorial, o que permite conce­ber infinitas varia<;6es individuais. "0 'alga' perceptivo esta sem­pre no meio de outra coisa, faz sempre parte de urn 'campo' ... Urn campo visual nao e feito de vis6es locais ... Renunciarei, portanto, a definir a sensa<;ao pel a impressao pura", explica Merleau-Ponty (1945, p.IO).

0 vermelho assume as caracteristicas de urn '"choque' indiferenciado, instantaneo e pontual" (p.20), nos seres vivos carentes de uma capacidade cerebral superior pela sensa<;ao pura des sa cor. Essa cor excita a novilha e a ra, provavelmente por uma sensibilidade particular dos tecidos retinianos e nervosos nesses animais que a detectam. 0 choque sensitivo desencadeia, por via reflexa, uma rea<;ao motora estereotipada. A sensa<;ao e pura porque uma unica variedade de vermelho- digamos, urn verme­lho papoula- esta em jogo (uma mistura de varios vermelhos e ineficaz), e porque o comportamento determinado por essa sen­sa<;ao se realiza constantemente na mesma dire<;ao.

Uma sensa<;ao perde necessariamente a sua pureza com a evolu<;ao complexificante que deu ao homem urn cerebra de neuronios ricamente anastomosados e mnemicos, 0 que faz que quase nao haja uma parte que funcione sem repercutir sabre ou­tra, vizinha ou ate mesmo distante, e sem deixar uma lembran<;a consciente ou subconsciente. Nao somente o cerebro construiu as sensa<;6es que chegam ate ele, mas cada cerebro o realiza de urn modo que lhe e proprio, em razao das sensa<;6es - portanto, das experiencias - anteriores. Onde urn gato ve urn recipiente plano de porcelana branca como uma forma clara que pode even­tualmente servir de prato, urn homem percebe urn drculo geo­metrico suscetivel de ser misturado ja desde o momenta em que

95

Page 50: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

o ve, pela evocac;ao de sensac;6es alimentares ou de pec;as de louc;a, com as lembranc;as que eventualmente se associam a ele.

0 empirismo faz do pensamento urn produto das sensac;6es, uma soma de impactos formadores vindos de fora. 0 empirismo esvaziou-o de todo misterio, reduzindo-o a posse de uma quali­dade. Revela-se agora que urn fosso separa o "sentir" do "conhe­cer", ou seja, a excitac;ao de uma terminac;ao sensorial e urn pro­cesso cognitivo, uma sequencia de interac;6es interneuronais de eta pas inexploraveis, pela multiplicidade dos atalhos, das vias de retroativac;ao (boucles de n?entree), dos cruzamentos multiplos e dos prolongamentos axonais. Somam-se a is so o peso do passado, muitas vezes escondido em inacessiveis zonas de sombra, eo das capacidades mais ou menos brilhantes retransmitidas por ante­passados que nao pudemos conhecer.

Uma sensac;ao que nao inaugura ou que nao completa urn conjunto ja experimentado de sensac;6es analogas ou complemen­tares e menos forte do que uma sensac;ao que possua essas pro­priedades, mesmo seas suas caracteristicas gerais forem identi­cas. A visao de dezenas de rostos encontrados num mercado frances e pouco ou nada significativa para urn frances, ao passo que a figura de personagens trajando urn kilt ou calc;6es de couro, vista em lojas de Glasgow ou de Munique, impressiona quem tern curiosidade pelas culturas vizinhas. Urn nativo do interior da Costa do Marfim nao sentiria a mesma emoc;ao ao ouvir o andante da Decima sonata de Mozart interpretado por Paul Badura-Skoda que urn ex-aluno do Conservat6rio de Viena. E urn campones de Correze, ao descobrir Schnittke, nao reconheceni uma orac;ao divina por meio de suas notas musicais.

A sensac;ao absoluta, que receberiamos em bloco, nao existe. As sensac;6es sao apenas dados finais de percepc;ao condiciona­dos pelo aprendizado, pela experiencia anterior ou por uma nova inclinac;ao. Elas podem impregnar a atividade cerebral intensa­mente, nessas circunstancias. No caso inverso, seu impacto e pequeno, ou mesmo nulo. E urn mecanismo eficaz que permite

96

0 olho e o cerebro

evitar a saturac;ao do cerebro mediante estimulac;6es sensiveis demasiado numerosas. Urn filtro, por assim dizer, que permite que o cerebro trabalhe conforme suas pr6prias escolhas (ou se­gundo exigencias impostas), ao abrigo do ruido exterior. Uma barragem que nao pode ocorrer quando 0 pensamento interior esta ausente, como eo caso nas especies inferiores, para as quais as sensac;6es sao ao mesmo tempo puras e nao filtradas. As ima­gens perceptuais, distorc;6es de sensac;6es pela cultura, aparecem de novo como produtos da Evoluc;ao.

As neurociencias con tern uma boa parte de reducionismo, a exemplo da ciencia em geral, levada a isso pela miniaturizac;ao da quimica, da instrumentac;ao, do campo de observac;ao e do raciodnio, que se sente mais em casa no pormenor elementar da materia organica do que em arquiteturas de con junto que esca­moteiam o evento significante. Os neurocientistas tornaram-se, portanto, em sua maioria, adeptos de localizac;6es e de centros cerebrais, de uma geografia neuronal baseada na disposic;ao de trajetos nervosos percorridos por mensageiros quimicos particu­lares. Seus livros recentes descrevem configurac;6es (patterns), ou seja, conjuntos de neuronios encarregados de uma dada atividade cerebral e que se organizaram de forma a otimizar a atividade funcional. Assim, os esquemas neuronais produtores de pensa­mento propostos ha cinco anos por Gerald M. Edelman, Francis Crick ou Antonio Damasio comportam igualmente uma conexao que une o cerebro-maquina profundo e as circunvoluc;6es superfi­ciais da inteligencia que recebem aferencias sensoriais, mnemicas e comportamentais. Uma organizac;ao que, em suma, se mantem por si mesma e funciona por amplificac;ao de dados de percepc;ao finais presentes e anteriores. 0 inato ai convive bern como adqui­rido, pois o conjunto neuronal evoca a interac;ao de uma compe­tencia geneticamente transmitida em ressonancia com excitac;6es oriundas do meio ambiente, ou de experiencias e de aprendizagem.

Convictos da validez de seus modelos, os neurocientistas prosseguem suas pesquisas no laborat6rio seguindo a mesma

97

Page 51: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

estrategia, ou seja, por afinamento das localiza<;:6es cerebrais, compreensao dos questionamentos associativos e interpreta<;:ao das transmiss6es neuronais, de seus desencadeamentos e de suas inibi<;:6es. Eles trilham o caminho da precisao, claramente evo­cado numa descri<;:ao do objeto mental, constituinte elementar do pensamento: "0 objeto mental e identificado ao estado fisico criado pela entrada em atividade (eletrica e quimica), correlata e transit6ria, de uma ampla popula<;:ao ou 'assembleia' de neuronios distribuidos no nivel de varias areas corticais definidas", explica Changeux (1983, p.186). 0 objeto mental, conjunto elementar do pensamento, e 0 produto da atividade de urn sistema neuronal, ou seja, de series de potenciais de a<;:ao que se propagam em esca­las de tempo extremamente curtas, da ordem de alguns decimos de milissegundo, e que ativam 0 neuronio adjacente, liberando urn transmissor quimico no espa<;:o interneuronal. E, portanto, claro que uma dissec<;:ao reducionista pode dar conta totalmente do funcionamento neuronal e interneuronal, dos processos de indu<;:ao dos objetos mentais por urn outro. Em suma, do even to fisico-quimico neuronal que acompanha urn pensamento. As neurociencias parecem definitivamente decididas a enterrar o dualismo. Mas essa cren<;:a num cerebro desmistificado pela den­cia e, portanto, objetivamente acessivel, por ser apenas urn seg­mento corporal, apesar de urn nivel muito alto de funcionalidade, choca-se com obstaculos inevitaveis, que arruinam a ideia de uma estereotipia reprodutivel e do modelo unico.

Primeira advertencia: a organiza<;:ao neuronal, da morfologia sinaptica aos trajetos neuronais, esta sujeita a uma dupla variabi­lidade. A primeira e genetica, ou seja, uma diversifica<;:ao da ex­pressao do genoma, COmO e de regra em todos OS tecidos ViVOS; a estrutura melodica e imutavel, como toda caracteristica de es­pecie, mas o tempo, as harmonias, as altera<;:6es sofrem flutua<;:6es individuais. A segunda e epigenetica, impondo-se janos primei­ros meses, ou ate mesmo nos primeiros anos de vida, sob a in­fluencia de circunstiincias ambientais, de uma penetra<;:ao do

98

0 olho e o cerebro

meio. Para compreender de maneira satisfatoria o modo como o cerebro determina a mente e 0 comportamento humanos e, par­tanto, indispensavellevar em considera<;:ao o seu contexto hu­mano e social.

Bases cientificas do diversidade cerebral

Durante muito tempo, a memoria foi interpretada como uma fun<;:ao cerebral espedfica, exercida por territorios ("localiza­<;:6es") espedficos, em numero limitado. 0 registro dos fatos recentes era mantido aqui, o dos fatos antigos ali, em comparti­mentos neuronais fechados, separados dos outros de maneira absoluta e imutavel. Em 1896, Freud se insurge junto a seu amigo Wilhelm Fliess: "0 material presente sob forma de rastros mnemicos esta sujeito de tempos em tempos a uma reorganizafao adaptada as novas circunstiincias -a uma retranscrifao. Assim, o que a minha teoria traz de fundamentalmente novo e a tese de que a memoria esta presente nao so uma vez, mas varias vezes, que ela esta estabelecida em diferentes tipos de indica<;:6es" (Freud, apud Rosenfeld, 1989, p.147). A memoria e uma estra­tifica<;:ao que se adapta, o registro nao se abre sempre na mesma pagina, e varias paginas podem permanecer coladas. Ha lembran­<;:as que nao reaparecem, que se juntam a pensamentos inespe­rados, que surgem logicamente em reflex6es a que elas servem ou que acompanham emo<;:6es apropriadas.

A primeira abordagem experimental da memoria foi neuro­cirurgica. Durante trepana<;:6es realizadas em pacientes desper­tos (520 pessoas operadas por epilepsia), o neurocirurgiao Wilder Penfield, de Montreal, constatou que estimula<;:6es eletricas da superficie do cerebro temporal provocavam de tempos em tempos urn fluxo de consciencia antiga, sem nenhuina rela<;:ao como tempo presente, que mudava de individuo para individuo e so

99

Page 52: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

se manifestava quando eram ativadas as estruturas lfmbicas (ge­ralmente consideradas indispensaveis para as experiencias emo­cionais). Pierre Gloor e seus colaboradores de Montreal escre­veram em 1982: "Nossas observa~6es, que abarcaram trinta e cinco epilepticos ... fornecem a primeira vista a prova de que, a menos que se ativem as estruturas limbicas durante uma crise espontanea ou por intermedio de uma estimula<;:ao eletrica, o fenomeno de 'resposta vivida' nao acontece" (Gloor, apud Damasio, 1995, p.344). Sua observa~ao concorda com a afirma­~ao de Freud de que e impossivel reconhecer lembran<;:as despro­vidas de afetos.

Os neurocirurgi6es constataram que a memoria e evocada por duas areas cerebrais complementares, cuja sinergia da uma carga afetiva ao tempo presente, a fim de que ele possa reaparecer ulteriormente no pensamento. As emo~6es sao indispensaveis para a cria<;:ao e para a categoriza<;:ao das lembran~as. Mas o cere­bra limbico nao basta em si mesmo para proporcionar uma me­moria inteira. Ele so gera rastros fragmentarios, que so se tornam lembran~as ao final de urn trabalho analitico sobre os pensamen­tos e as emo~6es, ou seja, no momenta do estabelecimento do contexto.

0 funcionamento da memoria foi descrito precisamente, estes ultimos tempos, por estudos do fluxo sangiiineo cerebral, atraves da emissao de positrons, tecnica impressionante que colore a superficie cerebral em razao da sua atividade. 0 sujeito estudado executa urn ato mental dado, e o medico rastreia as areas cerebrais que se ativam e mede o grau de ativa~ao, tudo isso apos a administra~ao de urn indicador radioativo de vida media breve.

Em 1972, o psicologo canadense En del Tulving propos distin­guir memoria episodica e memoria semantica. A primeira remete ao armazenamento de informa~ao sob forma contingencial, que representa o equivalente de uma memoria autobiografica; a se­gunda esta ligada aos conhecimentos gerais, lingiiisticos e

100

0 olho e o cerebro

conceituais de nosso saber. Por outro lado, distingue-se a codifi­ca~ao e a recupera~ao dos rastros mnemicos. Os exames cere­brais por imagens mostraram que circuitos nervosos diferentes no interior dos lobos frontais, temporais e parietais sao ativados pelos dais processos de uma memoria episodica verbal. Existe urn certo grau de assimetria cerebral influenciada pela natureza das provas de que nos servimos para estudar a memoria e que fazem intervir de uma ou de outra maneira a linguagem e a per­

cep~ao sensorial. A memoria de longo prazo e amplamente dependente do hi­

pocampo, situado no lobo temporal mediano; mas e muito pro­vavel que a consolida~ao e o armazenamento dessa memoria este­jam igualmente sob a dependencia do neocortex. Em suma, e e 0 que nos importa, a memoria e da al~ada de varias areas corticais ligadas entre si e a regi6es do cerebra implicadas em diversas atividades - sensoriais, em particular - por meio de circuitos neuronais associativos. A codifica~ao, bern como a recupera~ao, envolvem todo o cere bro. lsso explica a interferencia de emo~6es, de pensamentos e de sensa~6es na ativa~ao do processo mnemico; a obra de urn romancista consiste, em ampla medida, em reen­contrar as situa~6es que geraram uma lembran~a e que sejam tao interessantes para o lei tor quanta para o au tor.

A memoria e uma fun<;:ao complexa de dados perceptuais anteriores, de uma atividade emocional limbica e do meio ambiente imediato. "As necessidades e desejos individuais deter­minam a nos sa maneira de classificar os individuos, os lugares e os acontecimentos que povoam a nossa vida cotidiana", escreve Israel Rosenfield (1989, p.152). Nao ha memoria tipica. Sea categoriza~ao de dados perceptuais particulares varia de indivi­duo para individuo, bern como as proprias bases da categoriza~ao,

nenhuma sistematiza~ao e possivel. Tam bern nesses neuronios foram demonstradas modifica<;:6es

quimicas relativas ao calcio e as fosforila~6es celulares, trazendo urn complemento molecular as imagens da memoria. Os meca-

101

Page 53: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

nismos ultimos da memoria sao provavelmente identicos em todos os homens e se devem a neuronios especializados univer­sais, mas seria imprudente propor demasiado rapidamente a hi­potese de uma fisiologia universal da memoria.

Gerald M. Edelman, aclamado em 1972 por descobertas re­lativas a quimica da imunidade, continuou a sua obra com estu­dos sobre o cerebro. Formulou na decada de 1980 uma teoria qualificada como "darwinismo neuronal", acerca da genesee da epigenese da organiza\=ao nervosa. A estrutura\=ao geral dos con­juntos neuronais, sua geografia, se quiserem, e ditada em suas grandes linhas por genes, como o sao as capacidades cerebrais, capacidades cognitivas e sensoriais do neocortex, ou capacida­des de regula\=aO visceral automatica do cerebro profunda, entre outros exemplos. Come\=amos ate a conhecer as etapas molecu­lares des sa diferencia\=ao, que se inscreve num programa proprio a toda especie viva.

A complexidade da rede neuronal e o imenso potencial de associa\=ao das termina\=6es nervosas ultrapassam, porem, o ca­pital genetico. Ja no periodo embrionario, a influencia do adqui­rido e patente. As estimula\=6es sensoriais forjam uma rede de neuronios interconectados, na qual a for\=a motora do sistema esta representada pela intensidade do estimulo. Grupos neuro­nais particulares sao selecionados dentro da popula\=ao neuronal, e o grupo neuronal fortalecido entra em competi\=ao com outros grupos para eventualmente integrar sua atividade. Esse fortale­cimento, segundo Edelman (1992), ao criar urn repertorio neu­ronal secundario, acaba numa reparti\=ao de neuronios interativos dispostos em mapas corticais.

Neuronios associam esses mapas entre si, de modo que a atividade de cada urn possa beneficiar-se com a experiencia dos outros. Assim, por reentrada ou reintrodu\=aO, 0 cerebro nao cessa de falar consigo mesmo, de reinterpretar as sensa\=6es percebidas em razao de uma experiencia passada. A sensa\=ao sucede uma compara\=aO, que leva a uma percep\=ao. Essa comunica\=ao intra-

102

0 olho e o cerebro

cerebral nao destroi a teoria das localiza\=6es cerebrais tal como foi exposta anteriormente; o cortex cerebral continua sendo urn con junto regional estavel, dotado de aptid6es diversas, distribui­das em razao de programas hereditarios. Ela condena, porem, qualquer interpreta\=ao linear do funcionamento neuronal.

Durante muito tempo, supos-se que as localiza\=6es funcionais do cortex cerebral fossem permanentes e mais ou menos identi­cas entre os membros de uma mesma especie. Em 1983, Michael Merzenich, pesquisador da Universidade da California, em San Francisco, descobriu uma grande variabilidade dos mapas senso­riais corticais dentro de uma mesma especie de macacos normais, e uma certa labilidade no mesmo individuo, em razao do tempo. Produz-se urn rearranjo cortical em seguida a uma lesao de urn nervo sensitivo de urn dos dedos de urn macaco. Muitas desco­bertas recentes testemunham a intera\=ao dos mapas cerebrais. As corujas, como os seres humanos, escreve Rosenfield (1989),

recorrem aos sons para localizarem animais em movimento, como urn camundongo, que representam para elas uma presa eventual. Os tempos de latencia sonoros percebidos por cada ouvido e a intensidade do som constituem as principais indica~oes sensoriais. Como o cerebro da coruja nao pode cartografar diretamente esses tempos de latencia, dois mapas sensoriais iniciais representam as freqiiencias que ela percebe, cartografando respectivamente as percep~oes dos ouvidos direito e esquerdo. Essas representa~oes sao em seguida combinadas num outro mapa, por meio do qual os respectivos tempos de latencia (chamados "disparidades sonoras") de uma dada freqiiencia sao comparados entre si. Os sons emiti­dos por urn camundongo num campo sao assim classificados em categorias, em razao de disparidades que permitem determinar as

fontes sonoras. (p.l68)

Assim, mapas detectam disparidades as vezes de alguns mile­simos de segundo; outros mapas agem em seguida para precisar o fmgulo de desvio da rota do camundongo em rela\=ao a da co-

103

Page 54: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

ruja; depois rna pas visuais funcionam em resposta a estimula<;:ao do campo visual; urn mapa geral (auditivo e visual) do espa<;:o da a coruja plena capacidade de ataque.

A coruja pode ir diretamente a sua presa. Se ela for bem-su­cedida, associa essa cartografia e esse esquema de atividade ao ato motor preciso que e o ataque. Em caso de fracasso, outros comportamentos sao adotados, ate que o ataque seja vitorioso. lsso foi demonstrado experimentalmente, obstruindo-se o ou­vido de uma coruja durante o seu crescimento, o que desloca o som percebido em rela<;:ao a sua posi<;:ao real. No espa<;:o de quatro a seis semanas, explicam Eric e Phyllis Knudsen, os autores dessa pesquisa, essas corujas aprenderam a localizar o som corretamen­te. "Elas aparentemente haviam se adaptado a essa geografia sonora modificada, reordenando suas cartografias (mappings) internas. A informa<;:ao reorganiza-se constantemente", escreve Rosenfield (1989, p.169).

Amostragem, classifica<;:ao e categoriza<;:ao podem tambem estar na base de fun<;:6es cognitivas superiores, do pensamento, da consciencia e da linguagem, promovidas por capacidades gene­ticas e estimula<;:6es ambientais. A experiencia adquirida sob for­ma de memoria e de aprendizagem traduz-se pela utiliza<;:ao de mapas mentais de referenda. Num livro datado de 1932 e intitulado Remembering, escreveu o psic6logo britanico Frederic C. Barlett (apud Rosenfield, 1989): "A rememora<;:ao nao e uma reativa<;:ao de inumeros rastros inanimados e fragmentarios. E. uma reconstru<;:ao ou constru<;:ao imaginativa, fundada por nossa atitude ante uma globalidade ativa, composta de rea<;:6es passadas ou de experiencias, em rela<;:ao a urn pequeno detalhe saliente que geralmente aparece sob forma de imagem ou atraves da lin­guagem" (p.177). Assim, a lembran<;:a s6 raramente e fiel, mesmo em sua expressao mais elementar, em que o que e repetido foi decorado.

A linguagem, segundo Rosenfield, evidentemente adquiri­da em sociedade, nao depende de nossa aptidao em utiliza-la, de

104

0 olho e o cerebro

repensar continuamente o mundo que nos cerca atraves de car­tografias de todas as ordens de que procede o pensamento?

Segundo a teoria de Edelman, cada pessoa e unica, suas per­cep<;:6es sao, em certa medida, cria<;:6es, e suas lembran<;:as fazem parte de uma imagina<;:ao em movimento. A vida da mente nao e uniformemente redutfvel a moleculas. A teoria das localiza<;:6es cerebrais, o substrato molecular da atividade cognitiva represen­tam explica<;:6es incompletas.

105

Page 55: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Das coisas e da ciencia

Se olharmos a Casado Parlamento em Londres de Claude Monet (versao de 1904), a gama cromchica escolhida pelo pin tor, que evolui entre o prateado eo cinza, passando pelo azul, e reconhe­cida par urn sistema cerebral primario, que associa cones retinianos e celulas particulares da area visual. Essas cores en­chem-se de umidade, pela agua do rio entrevista na massa opaca de estacarias do primeiro plano e numa neblina densa e flutuante, ainda que alguns raios de sol tenham conseguido perfura-la aqui ou ali. Sao celulas visuais secundarias, que funcionam grac;:as a participac;:ao de vias de retroativac;:ao, originarias de multiplos mapas cerebrais, que nos reelaboram tais dados. Para alem da analise, numerosas areas do cerebra contribuem para fazer uma sintese, o lobo frontal participa na elaborac;:ao de uma critica e suas relac;:oes limbicas proporcionam emoc;:ao e prazer estetico. Monet tornou-se neuronal.

Admitamos que em linhas gerais esteja certo e que, apesar de algumas imprecisoes de detalhes, a contemplac;:ao do quadro

107

Page 56: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

suscite estimula<;:6es cerebrais desse tipo; em suma, admitamos urn mecanisme materialista e neuronal que ative a camera de positrons em localiza<;:6es esperadas. Resta explicar por que nin­guem da a mesma indica<;:ao quanto a tonalidade geral da obra, ao momento do dia durante o qual o quadro foi composto, por que ninguem julga da mesma maneira a umidade que se de­preende da tela, e por que a carga afetiva provocada por sua con­templa<;:ao e estritamente imprevisivel? A imagem e transformada em cada urn de nos por uma alquimia unica, oriunda das circuns­tancias, de aprendizados e de tendencias constitutivas inimita­veis. 0 dado perceptual final nasce de urn caos que esvazia de sentido o conceito de urn cerebro neuronal, ainda que a imagem do quadro e a voz da linguagem interior que o acompanha tenham nascido em neuronios. A unicidade e a originalidade do dado perceptual final op6em-se a concepc;ao de urn homem neuronal, porque esta nao leva em coma as diferen<;:as individuais que fazem o homem e porque nao da a minima explica<;:ao para elas.

A busca de leis fisiologicas corre o risco de se chocar ainda durante muito tempo com fenomenos que se sucedem sem lei, sob a influencia de press6es estocasticas inatas ou adquiridas. A analise dos fenomenos do cerebro topa com urn emaranhado de circuitos, com uma geografia funcional mutavel, com sinergias imprevistas e com vaos ignorados. A fisiologia neuronal e de pouca ajuda para o psicologo. Apesar de urn admiravel progres­so, a ciencia da visao nao fornece uma explica<;:ao coerente para a constitui<;:ao do dado perceptual final, que escapa a qualquer possibilidade real de classificac;ao, desafiando aqueles que des­cobriram a atividade eletrica dos nervos, sua condutividade e seus transmissores quimicos, ou que escrevem teorias da conscien­cia e do pensamento biologicos.

0 dado perceptual finale certamente apenas apreensao subje­tiva do mundo exterior e de suas coisas, porque "a natureza esta no interior", como diz Cezanne (apudMerleau-Ponty, 1964, p.37), porque "a visao, em todo caso, so aprende vendo, so aprende de

108

0 olho e 0 cerebra

si mesma", segundo Merleau-Ponty (ibidem, p.25). Urn quadro nao pode ser uma imagem da natureza, pois ele e embaralhado duas vezes, pelo pintor e pelo espectador.

Ao lado dessa opacidade de origem subjetiva intervem tam­bern uma limita<;:ao intrinseca a ciencia, de poder compreender tudo, explicar tudo; em suma, de superar os cortes que se op6em ao acesso ao real. Nao se deve fazer como Bergson, ou seja, inter­pretar e estatuir sem saber cientifico. 0 filosofo foi punido por nao ter ele proprio seguido o conselho que prodigava aos outros. Ora, dificuldades de interpreta<;:ao, talvez insuperaveis, acabam de ser levantadas por cientistas atualizados, que nao querem mais que a medicina adote, como muitas vezes no passado, urn dogma quimerico a mais. Pode a interpreta<;:ao molecular, atualmente dominante, resistir as novas incertezas?

Primeira dificuldade: as etapas que levam da atividade fisico­quimica neuronal ao pensamento nao sao conhecidas em seus minimos detalhes. Eventos podem estar ligados entre si sem ter nenhuma rela<;:ao de causalidade, eo que hoje e considerado causa pode ser tambem apenas urn efeito de outra causa subjacente e ainda ignorada.

Segundo problema, encontrado no proprio interior da hipo­tese fisico-quimica: ao chegar a extremidade de urn neuronio, a despolariza<;:ao eletrica libera, como se sabe, urn mensageiro qui­mico que atravessa o espa<;:o interneuronal (a sinapse) para es­timular o neuronio seguinte. Uma centena de mensageiros qui­micas foram identificados nas terminac;6es nervosas. Conjuntos neuronais que se comunicam por meio deste ou daquele mensa­geiro foram identificados, e foi tra<;:ado urn verdadeiro mapa qui­mico do cerebro, suplantando a anatomia descritiva. Mas a de­monstra<;:ao recente de varios mensageiros quimicos diferentes no interior da mesma termina<;:ao nervosa complica a interpreta<;:ao. Uma unidade anatomica do cerebro seria capaz de exercer duas fun­<;:6es? E, prioritariamente, qual? Resultado, em todo caso, incom­pativel com uma concep<;:ao materialista linear do pensamento.

109

Page 57: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

Sobretudo, a libera<;:ao dos mensageiros qufmicos numa sinapse nao se mostra assim tao ordenada quanta se acreditava ha pouco tempo. Para que haja comunica<;:ao entre duas celulas nervosas, e preciso conceber uma libera<;:ao de urn mensageiro qufmico no neur6nio emissor e receptores (alvos de acoplamento molecular) no neur6nio que recebe a informa<;:ao. Ora, varios pesquisadores, formados na escola do premia Nobel de 1969, John C. Eccles, demonstraram que a transmissao qufmica de urn neur6nio a outro podia ser quantica, ou seja, probabilfstica. Como pode uma transmissao dessas inscrever-se numa atividade cere­bral intencional e voluntaria? E a medida que o saber vai progre­dindo que aparecem limites, talvez intransponfveis.

0 paradoxa da ciencia apareceu no seculo XX. Foi preciso que ela se tornasse poderosfssima para nos darmos coma de sua falibi­lidade. A biologia, por ter-se tornado triunfante, ostenta a mesma aura de incerteza que as ciencias do universo inorganico, em particular a ffsica.

A certeza do poder da ciencia, de sua capacidade de conhecer o nosso universo e daquilo de que somas feitos foi absoluta de Platao a Auguste Comte. Essa certeza foi compartilhada por Planck e por Einstein, apesar das descobertas de que dificilmente temos ideia clara. Para Platao e para Descartes, a percep<;:ao dos fen6menos e ilimitada, e urn "perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode saber" e acessfvel. A razao, por si mesma para Platao, por sua natureza divina para Descartes, pode abordar o mundo supra-sensfvel das Ideias, apreender o Infinito. 0 conhecimento de Deus leva ao conhecimento detalhado do Universo. Uma certeza da mesma grandeza tern o au tor da filoso­fia positiva que sup6s poder dirigir as sociedades humanas me­diante a compreensao completa dos mundos organicos e inor­ganicos. 0 determinism a dos fil6sofos da ciencia do seculo XIX,

de Fran<;:ois Magendie e de Claude Bernard na fisiologia, perma­nece na mesma linha, sustentando que o mundo e estruturado em razao de leis verificaveis, o que quer dizer que, pela falta de

110

0 olho e o cerebro

possibilidade de se abordar sua razao de ser, o bi6logo pode pre­tender decifrar OS modos de organiza<;:ao do Universo. "Tudo e acessfvel ao hom em, e o homem e a medida de todas as coisas", "a concep<;:ao cientffica do mundo nao conhece enigmas insolu­veis", 1 proclama o Manifesto do Cfrculo de Viena, em 1929, em

sua defesa de urn empirismo 16gico. A maioria dos atuais pesquisadores do mundo vivo, pouco

preocupados com a epistemologia, s6 pensa em aumentar a po­tencia de seu microsc6pio eletr6nico ou em pular para a qufmica, para aumentar e automatizar OS proceSSOS de analise e de sfntese. Ignoram o que nao observam; sao apenas, como disse Bachelard, "trabalhadores da prova". Todos esses cientistas sao oriundos do pensamento j6nico do seculo V antes de nossa era, que, liber­tando os homens de sua submissao aos deuses, lhes conferiu o poder intelectual de compreender e, portanto, de dominar o mundo estranho em que foram curiosamente reunidos. Essa fila­sofia baseava-se em dais prindpios intangiveis: a estabilidade das coisas e dos fen6menos, e a inteligencia humana. A partir dai, o processo cientffico mostrava-se ao mesmo tempo simples e oti­mista, por sua aptidao a penetrar na constitui<;:ao intima das coi­sas, entidades absolutas e invariantes. 0 homem fora reconhe­cido como potencia central sem limites; antropomorfismo e antropocentrismo foram as suas conseqiiencias inevitciveis.

A propria ciencia veio p6r fim a esse triunfalismo fanatica. 0 tumulto come<;:ou quando os fisicos, e depois os quimicos, se afastaram das dimensoes medias, aquelas que 0 homem percebe em sua atividade cotidiana, para levarem em coma o infinitamente pequeno, o infinitamente grande e variaveis ate en tao mal conhe­

cidas - o espa<;:o e o tempo. A geometria euclidiana, ultrapassada nessas escalas de gran­

deza, deu lugar a conceitos estranhos, que escapam ao sensa

I Rejlexoes sobre os limites do conhecimento, Manifesto do Cfrculo de Viena, citado

por Hamburger (1984, p.83).

111

Page 58: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

comum. A introdw;ao dos fatores tempo e espac;o deu origem a relatividade, nao transcorrendo mais o tempo de maneira uni­forme e tornando-se o universo fechado e curvo. As particulas constitutivas da materia tern destinos que escapam a qualquer previsao individual: o determinismo deu lugar a urn probabilis­mo. A ciencia classica procurava explicar o mundo perceptive! por meio de leis, e foi urn sucesso, apesar de todos os instrumentos que foram inventados permitirem apenas urn certo grau de apro­ximac;ao. A fisico-quimica de hoje, obrigada a mudar de escala porque a investigac;ao imediata estava quase acabada, aborda ter­renos infinitos, instaveis e nao resolvidos, que escapam a intuic;ao e a todo antropocentrismo.

A irresoluc;ao, a estranheza e a inabordavel complexidade conquistaram as neurociencias. 0 Universo escapa a perspicacia humana, a fome de conhecimento esta intacta, mas o real recua diante dos novos avanc;os do saber, a ciencia nao e poupada do mito de Sisifo, fugindo a vit6ria das maos dos pesquisadores tao logo eles alcanc;am os cumes do saber.

Muitos fil6sofos pressentiram a impossibilidade de sua mis­sao. Montaigne, em sua apologia a Raymond Sebond, ostenta urn ceticismo absoluto e fala da emlncia do individuo entregue as sensac;6es. Mais moderado, Hume caminha, porem, no mesmo sen­tido, deplora a parcimonia de nossos meios e afirma que nao pode­mos deduzir leis gerais a partir de uma serie de observac;6es. 0 pro­prio Kant, em sua Critica da razao pura, reconhece a existencia de leis universais, mas duvida que a mente tenha a capacidade de reconstitui-las, pois a mente e o real sao de essencia diferente.

Kant nao nega de modo algum, sublinha Massimo Piattelli Palmarini, que as coisas existem, nao diz que inventamos o mun­do (o que sera professado por alguns de seus sucessores, que mais tarde se tornarao adversarios, os idealistas, como Fichte, Schelling e Hegel). Diz ele que n6s o "organizamos" de acordo com as formas a priori de nos sa percepc;ao e de nos sa intuic;ao. 0 que seja o mundo "fora" e "alem" da organizac;ao que lhe conferi-

112

0 olho e o cerebro

mos (esse mundo em si, Kant o chama "noumeno", ao passo que 0 mundo organizado por n6s e chamado "fenomeno"), nada sabe­mos sobre ele e jamais saberemos. Podemos apenas dizer o que ele nao e, nao 0 que e.

Os fil6sofos das ciencias contemporaneas, de Bachelard a Popper, Eccles e Prigogine, nao deixaram de refletir sobre as con­seqiiencias de uma ciencia relacionada com fen om enos que acon­tecem sem sistematica perceptive!, sem determinismo aparente.

Podemos acreditar na vinda de novos Einstein, Boltzmann, Planck e outros De Broglie. Podemos imaginar que a matematica, apoiada numa informatica cada vez mais competente, mostrara que a desordem responde a certos tipos de organizac;ao, que o indeterminismo e apenas uma aparencia a envolver determinis­mos incompreendidos. A considerac;ao das leis da relatividade geral permitiu retificar certas previs6es acerca da trajet6ria de cometas. Podemos sorrir a ideia de urn limite do poder explora­t6rio da inteligencia humana: basta medir a consideravel soma de conhecimentos acumulados de seculos para ca. Mas nao e mais possivel, perante a adic;ao de tantas aporias, acreditar ainda numa aventura prometeica da humanidade, numa inteligencia capaz de apreender todos os porques e todos os comos.

As neurociencias, vitoriosas mas incertas, sao exemplares quanto a ambigiiidade do procedimento cientifico que as cons­truiu. Dois enormes obstaculos barram o caminho do saber. Por urn lado, uma extrema complexidade da organizac;ao e da func;ao cerebral, que pode parecer tao insolente quanto a questao dos limites do Universo. Por outro, uma versatilidade absoluta da organizac;ao neuronal, que confere a cada cerebra uma unicidade inata e adquirida.

A ciencia se ve em dificuldade para fazer uma analise feno­menol6gica e para formular leis universais. Talvez haja uma im­possibilidade de se passar do fato neuronal ao pensamento, da sensac;ao visual ao dado perceptual final. Interpretar a face oculta

113

Page 59: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

do mundo das ideias, mesmo incompletamente, levara a para­digmas hoje tao insuspeitaveis quanto o foram a eletricidade neural ou a neuroquimica no tempo de Descartes. Os neurobio­logos sabem que estao apoiados na instabilidade das hipoteses e, portanto, convidam a prudencia e a modestia.

Apesar da euforia positivista, a qual aderiram muitos Maine de Biran e Teilhard de Chardin, ha hoje lugar para a incerteza- a psicologia da visao bern o mostra.

Varios filosofos, de Berkeley a Husser! e a Wittgenstein, con­victos dos limites da for<;:a investigadora do cerebro humano, co­locaram a angustiante interroga<;:ao sobre seas coisas que nos cer­cam existem "em si" ou "em nos". 0 Tratado da visao de George Berkeley devia naturalmente ser seguido de uma analise dos prin­dpios do conhecimento (A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge [Urn Tratado acerca dos principios do conhecimento humano]), no qual ele e levado a fazer que urn de seus atores diga que nao existe uma realidade exterior ao pensamento. Nao e a Gestalttheorie o reconhecimento de uma impossibilidade de se distinguir o por­menor e a afirma<;:ao de que o valor quantitative do todo nao e igual ao da soma das partes, como escreve claramente Kohler em Die physischen Gestalten? Como explica]ean Piaget (1968), "ja no ter­rene da percep<;:ao, o sujeito nao eo simples teatro em cujos pal­cos se representam pe<;:as independentes dele e ordenadas de an­temao pelas leis de urn equilibria fisico automatico: ele e o ator e muitas vezes ate o autor dessas estrutura<;:6es, que ele vai ajus­tando a medida de seu desenrolar, mediante urn equilibria ativo feito de compensa<;:6es opostas as perturba<;:6es exteriores, portan­to de uma continua auto-regula<;:ao" (p.S 1). E toda a fenomenologia ulterior se baseou na dificuldade de se saber exatamente o que vemos. Em Un atome de sag esse [Urn atomo de sabedoria], B. d'Espagnat (c£ Wittgenstein, 1961, p.359) contrap6e a "realidade em si", ul­

tima e inacessivel, a "realidade empirica"' exploravel pela ciencia. A ciencia da visao, com o grau de precisao hoje alcan<;:ado, e

urn requisite util a uma nova interroga<;:ao filosofica.

114

0 olho e o cerebro

A imensa diversidade do meio ambiente, em cores, colora­<;:6es, semitons, contornos, volumes e movimentos, nao podia corresponder urn sistema optico que integrasse os dados da sen­sa<;:ao. A Evolu<;:ao transferiu para o cerebro as fun<;:6es delicadas que ultrapassam as possibilidades de urn aparelho de recep<;:ao elementar, ou seja, o complexo retina/area visual primaria V1•

Ate 1970, acreditava-se, como propusera Lissauer em 1890, que 0 cerebro visual fosse composto simplesmente de uma area visual primaria e de urn cortex associative, encarregado de comparar a visao primaria a outras impress6es, ou seja, de compreende-la.

Ora, hoje sabemos que essa concep<;:ao elementar foi supe­rada por uma topografia funcional complicada, de natureza com­pletamente diferente, que associa multiplas areas visuais espe­cializadas. A visao sup6e a existencia de trajetos multiples e paralelos, que transportam diferentes aspectos da informa<;:ao visual, e de modules corticais que os tratam de maneira distinta. Entre essas areas do cortex visual, existe urn autentico circuito, que se parece mais com urn diagrama de linhas aereas entre dife­rentes cidades do que com uma estrutura hierarquica e direcional. Os mecanismos da unifica<;:ao perceptiva, que permite em alguns segundos identificar urn rosto e situa-lo no espa<;:o, empregam neuronios associativos. "0 mecanisme exato pelo qual vemos nos sa avo"- escreve Michael Gazzaniga (1996, p.40), ilustre por suas experiencias sobre a separa<;:ao do cerebro direito e do cere­bro esquerdo (split brain)-, "ao mesmo tempo na vida real e em nos sa vi sao interior, permanece incompreensivel."

Pouco se sabe a respeito disso, as hipoteses estao abertas, mas o polimorfismo cerebral resultante da desigualdade e da variabilidade das press6es geneticas e adquiridas permite duvidar da identidade dos mecanismos da visao no seio da especie huma­na, e autoriza, por conseguinte, a eventualidade de uma sensa<;:ao incoerente e de uma incapacidade constitutiva de apreender oreal.

Esse estado de coisas e agravado pelo fenomeno da percep­<;:ao visual involuntaria, a visao cega, que envolve neuronios que

115

Page 60: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

tern uma fun~ao nao mais visual, mas simbolica. Trata-se da per­sistencia de uma percep~ao num campo visual cego, que leva o doente a apreender objetos que atravessam a sua vi sao morta sem ve-los. Sua descoberta nos homens data de 1974, e se deve ao psicologo Laurence Weitskrantz, da Universidade de Oxford. Essa sensa~ao particular de visao independente da retina aparen­ta-se ados vertebrados inferiores, a capacidade da ra, por exem­plo, que, apesar da ausencia de urn cerebro visual elaborado, pode localizar com precisao objetos em movimento. Ela foi descoberta ja em 1965 por Nicolas Humphrey, da Universidade de Cam­bridge, na macaca Helen, que, em bora sem cortex cerebral, podia apanhar objetos e evitar obstaculos. Evidentemente, acrescenta­se a percep~ao visual sensorial uma segunda variedade de sensa­~ao, inconsciente sem conota~ao freudiana, que implica areas cerebrais ainda nao identificadas, provavelmente numerosas, dis­tintas, em todo caso, das areas em a~ao na visao retiniana. Espe­ram-se aqui tambem grandes flutua~6es individuais, varia~6es fenomenologicas entre visao consciente e inconsciente, referen­tes, por exemplo, a rapidez, que fortalecem a subjetividade do dado perceptual visual.

Urn desenvolvimento (mico do cerebro no reino animal co­locou a especie humana no cimo de suas etapas evolutivas, con­ferindo-lhe urn grande dominic de seu meio. Sobreviver e a fina­lidade de toda especie viva. Os animais defendem-se por meio de musculos e de moleculas toxicas que permitem escapar aos predadores de diversas capacidades postas a servi~o do grupo e inscritas no programa hereditario, e de uma diversidade indivi­dual benefica garantida por uma reprodu~ao sexuada pois repri­me a expressao de anomalias geneticas. 0 homem recebeu urn trunfo suplementar e de primeira linha para lutar contra as sevi­cias da natureza: urn cerebro capaz de formular urn pensamento sintatico e logico. Todo ser humano adquire uma aptidao a me­lhor conhecer o U niverso, reconhecida porTales de Mile to seculos antes de nossa era, e portanto a contribuir para o saber de seus

116

0 olho e o cerebro

semelhantes, o que justifica sua passagem pela Terra. Esse talento cognitive, apesar de muitos erros, das persistentes zonas de obs­curidade, dos fracassos e dos tiros pela culatra, provou a sua tem­pera. Associado a uma sensibilidade, uma emotividade e uma paixao exprimiveis, ele confere ao homem uma suntuosidade espetacular e singular no mundo vivo.

Para os Antigos, uma criatura tao esplendorosa so podia ter sido concebida a imagem de Deus, e durante quatro milenios o pensamento humano deificado foi reconhecido como uma entelequia do mundo das Ideias, uma realidade perfeita. E a terra que acolhe o homem, filho de Deus, devia tambem necessaria­mente ser obra divina. As palavras de Deus no primeiro capitulo do Genesis (I, 24) lembram essa simbiose sobrenatural: "Sede fecundos e prolificos, enchei a terra e dominai-a". Nao ha outro lugar para acolher o poder etereo das almas humanas, que compar­tilham com a de Deus os atributos do sobrenatural e da eternidade.

Dessa gloria sublime do par Deus e homem nasceu, muito logicamente, a atribui~ao de formas e de sentimentos humanos as for~as da natureza. 0 antropomorfismo imp6e-se quando 0

hom em e criado a imagem de Deus. Ele se to rna antropocentris­mo quando o homem se torna, se nao o centro do mundo, pelo menos o herdeiro "desde sempre esperado, natural, do Universe inteiro", para retomar os termos de jacques Monod (1970, p.53). Essas ilus6es conquistaram as artes e as ciencias, as filosofias e, muitas vezes, a politica. De urn ponto de vista cientifico, o an­tropocentrismo consiste em querer explicar a totalidade do Uni­verse sem mudar de escala, mediante medidas que os homens carregam por instinto na cabe~a, desconhecendo o que Jean Hamburger chamou de "cesuras" e de "terrenos ilicitos".

As dificuldades do pensamento cientifico desempenharam urn papel capital no abandono da transcendencia do espirito hu­mane. Como continuar a pretender que o hom em seja ao mesmo tempo senhor e centro do mundo, quando perdeu em algumas dezenas de anos seu conforto cientificista e o seu poder logico?

117

Page 61: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

Quando a sua imagina<;aO de todos OS dias e torturada "pel a alea­torio, par espa<;os curvos, par corpusculos que sao ao mesmo tempo ondas e corpusculos, pela confusao entre a materia e a en~rgia" (Hamburger, 1984, p.104) e pelas diferen<;as entre o tempo de urn relogio terrestre eo tempo intergahitico? E quando vern a se interrogar sabre a validade de uma interroga<;ao acerca da origem do mundo e da existencia das coisas em si? Quando ele chega a se perguntar, segundo a metafora de jean Hamburger, seas suas interroga<;6es nao sao tao irrisorias quanta perguntar

a cor do numero 36! A percep<;ao de urn limite da ciencia influenciou as grandes

filosofias e as correntes de pensamento religioso e social. 0 pro­gresso cientifico provoca, afinal de contas, mais angustia do que calma. A potencia que o homem acreditou ganhar conhecendo­se a si mesmo e decifrando o Universo e relativizada par uma dificuldade cada vez maior, par uma impossibilidade talvez, de desempenhar bern todos os papeis. Uma era de duvida e de desen­canto se segue a urn tempo de gloria.

A ciencia e paradoxalmente obrigada a ignorar seu desespero. A cren<;a cega num sucesso que garantisse a felicidade de todos, aquela que foi cantada pelos positivistas, par Renan e par Teilhard de Chardin, tornou-se obsoleta pelo surgimento de fatos resis­tentes. Mas a despeito de sua limita<;ao final, apesar de uma cer­teza de fracasso, a ciencia continua a rolar seu bloco de pedra sabre uma ladeira, impulsionada par tres motores ativos desde a cria<;ao do homem: certeza de arrancar da Natureza alguns se­gredos a mais, dinamismo intrinseco do pensamento humano e intui<;ao do recuo das condi<;6es da vida humana quando o pensa­

mento estagna. Par causa da ciencia, e nao porque nao a tenham, os hom ens

descobrem sua natureza profunda. Seres submetidos de fato a seu universo, limitados e ambliopes. Individuos passivos, hesi­tantes entre a recusa da natureza e uma curiosidade incansavel e insatisfeita. Nesse jogo de bilhar, o que acontece com a suntuo-

118

0 olho e o cerebro

sidade e a liberdade? A ciencia desembocou num buraco negro, urn novo niilismo.Jacques Monad o previra, como prova a ultima frase de seu livro: "Agora, o homem sabe que esta sozinho no Universo".

A ciencia nao consegue ir ao fundo das coisas, alcan<;ar o fim do tunel. As sensa<;6es informam mal sabre a natureza do real, e 0 sistema de integra<;ao que e 0 cerebra humano traz urn toque de originalidade variavel, proprio a cada individuo que realiza uma tela suplementar. 0 cerebra humano contribui para 0 de­senvolvimento da especie humana, mas as suas capacidades sao limitadas par uma incapacidade de apreender onde esta si­tuado eo que ele proprio e. Tudo se passa como se esse cerebra, vitima de sua ignorancia, em vez de fazer parte dos cimos prometeicos de uma evolu<;ao complexificante do Vivente, esti­vesse situado num patamar, Ionge da animalidade, mas nao no nivel das Luzes. Tudo se passa tambem como se esse cerebra, talvez para se tranqiiilizar, impusesse seus conceitos a uma rea­lidade que nao corresponde a eles, invisivel e inviolavel.

0 estudo da psicologia da vi sao leva a interroga<;ao filosofica. Ela divide os pensadores em dais campos. De urn lado, os mate­rialistas, que relacionam as lacunas do conhecimento a uma im­perfei<;ao da analise fisico-quimica do Vivente. De outro, os es­piritualistas, laicos ou religiosos, que concedem a todo fenomeno uma margem eterea de irresolu<;ao. Uma fenomenologia visual tern urn interesse suplementar, porque demonstra sem ambigiii­dade a existencia de uma variabilidade individual. A heteroge­neidade do dado perceptual final e urn obstaculo ao conhecimento objetivo, mas esta gravida de significa<;ao filosofica.

A diversidade e uma propriedade essencial do Vivente. A di­versidade das formas entre as especies, mas tambem no interior de uma dada especie, e reconhecida. A diversidade quimica da materia organica e admitida desde que Karl Landsteiner, em 1900 e depois em 1939, e jean Dausset, em 1952, descobriram que certas moleculas presentes na membrana das celulas sangiiineas

119

Page 62: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

(grupos sangiifneos e sistema HLA) variam quimicamente de indi­vfduo para indivfduo. A diversidade individual estende-se ao ter­rene microscopico e subcelular. Urn servivo assemelha-se a uma composi~ao sinfOnica que, a cada vez que e executada, varia em alguns semitons pela expressao dos violinos. Reconhecemos a sua forma de conjunto, mas as pequenas desigualdades tonais so sao percebidas pelos especialistas.

A diversidade da fun~ao visual revelou-se ao longo da dis­cussao. Os cerca de trinta mil ou cinqiienta mil genes que ditam a morfologia neuronal, a reuniao e a articula~ao de neuronios entre si, as capacidades funcionais do cortex ou do cerebro antigo e o metabolismo cerebral oferecem urn polimorfismo identico ao dos constituintes das celulas sangiifneas, obrigatorio num ser vivo oriundo de uma reprodu~ao sexuada, que vern misturando caracteres paternos e maternos ha milhares de gera~6es.

A essa diversidade inata, o cerebro soma dessemelhan~as ad­quiridas, o fruto de sua propria atividade, que o exp6e a urn enri­quecimento sensitive, sensorial e cognitive que so termina com a sua morte. 0 mundo que nos cerca e captado a cada vez, mas num dado individuo, por urn olhar novo.

A psicofisiologia da visao e rica em polimorfismos individuais, naquilo que e a causa direta do florescimento de talentos pictori­cos, dos quais nenhum e ou pode ser semelhante a outro, mesmo se a influencia de modas e escolas for inegavel. Mas apesar da influencia- digamos sensorial - de Veneza, Tintoretto, Basson, Crivelli, Bellini ou Carpaccio diferem pela reprodu~ao de aparen­cias, pelas estiliza~6es de formas, pelas representa~6es reais e simbolicas. Suas obras sao produtos inimitaveis, unicas em seu genero, concebidas a partir de sensa~6es, de percep~6es coloridas, de lembran~as, alimentadas por uma diversidade inqualificavel de influencias. Foram os resultados de uma atividade cerebral exuberante, de maneira contraria a urn aparelho fotografico.

A diversidade cerebral humana constitui uma dificuldade in­contornavel para o cientista, pois ela se op6e, por sua complexi-

120

0 olho e 0 cerebro

dade, a que se compreendam as coisas e os fenomenos, o que no en tanto representa o seu objetivo. Pelo contrario, o polimorfismo cerebral e uma dadiva para 0 filosofo e para 0 humanista.

Descobrir uma fenotipia organica do cerebro constitui uma verifica~ao objetiva do velho adagio bfblico da unicidade de cada homem. Ela indica em filigrana que os conceitos de responsabili­dade, de livre-arbftrio e de suntuosidade procedem do particu­larismo biologico de cada indivfduo. Como poderia urn cerebro que nao tern igual no mundo funcionar sem ter sua responsabili­dade, sua liberdade, sua carga afetiva e emocional, seus valores proprios?

A originalidade do Vivente e absoluta, nao sendo nenhum hom em concebido exatamente como outro. Depois da morte, so resta de urn indivfduo uma fra~ao varia vel de seu patrimonio ge­netico, que perde uma parte importante de seu poder ao se as­sociar a parte, de mesma natureza, transmitida pelo outro geni­tor. Essa originalidade pode encontrar explica~6es numa concep~ao materialista da mente, bern como numa interpreta~ao espiritua­lista, no polimorfismo genetico, assim como numa filia~ao divina. lsso importa pouco, no fundo, pois ela representa uma possibi­lidade de exito, uma promessa de excepcionalidade e uma obri­ga~ao de desenvolve-la. Com trunfos tao consideraveis, sera precise cair na melancolia provocada por nossas limita~6es fun­damentais e pela inacessibilidade das coisas? E entrar numa cor­rida louca atras dos por ques? Nao seria melhor contentarmo-nos em decifrar do melhor modo o jardim que nos foi dado, para co­lhermos OS seus frutos e alcan~armos uma beatitude que nao sera compartilhada por mais ninguem?

121

Page 63: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Conclusao

Os mecanismos do cerebro come<;:aram a ser decifrados quan­do se reconheceu uma materialidade fisico-quimica na lingua­gem neuronal. Desde esse paradigma, no senti do epistemol6gico que T. S. Kuhn deu ao termo, que ocupou a primeira metade do seculo XX, nenhuma nova revolu<;:ao conceitual aconteceu, mas o inventario dos fen om enos vitais que acompanham pensamen­tos conscientes, a<;:6es, sensa<;:6es e express6es foi exuberante. Psicofisiologia e neurofisiologia dao interpreta<;:6es objetivas aos comportamentos e as fun<;:6es cerebrais. 0 andamento geral do saber das neurociencias e exponencial, tendo como corolario uma continua intrusao de materialidade. Nasceu uma filosofia intran­sigente da neuralidade, pondo de lado Plotino, Descartes e Berg­son, e crendo enriquecer-se ao reduzir mais a espiritualidade a pequenas mudan<;:as de materia. A ciencia derrubou o homem de sua suntuosidade. Escreve Merleau-Ponty na primeira pagi­

na de Eoeil et ['esprit:

A ciencia chissica conservava o sentimento da opacidade do mundo, era ele que ela pretendia alcan<;:ar atraves de suas constru-

123

Page 64: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

<;oes, eis por que ela se acreditava obrigada a procurar para as suas opera<;oes urn fundamento transcendente ou transcendental. Ha hoje - nao na ciencia, mas numa filosofia das ciencias bastante difundida

-de completamente novo isto que a pratica construtiva adota e con-sidera aut6noma, e que reduz deliberadamente o pensamento ao con junto das tecnicas de abordagem ou de captura que ela inventa.

A ciencia gerou sentimentos complexos desde que desabrochou. Aos desencantamentos nascidos da violac;:ao da alma por parte da quimica, da lentidao e da superficialidade dos progressos do saber cientifico, contrap6em-se novos sonhos prometeicos, a esperanc;:a de alcanc;:ar urn conhecimento universal e ate restos de positivismo. Sentimentos opostos de altivez ou de cansac;:o foram provocados por

avanc;:os da linha de progresso. No interior das neurociencias, os mecanismos da visao- reflexao deste livro, porque a pesquisa foi ai muito intensa- constituem motivos exemplares de interrogac;:ao filos6fica. 0 campo da vi sao e 0 que mais se presta a uma analise da distancia que separa molecula e sensac;:ao, a uma discussao sobre a capacidade de perceber o em-si das coisas, e a uma inter­rogac;:ao sobre a universalidade das sensac;:6es e das percepc;:6es.

A psicofisiologia e a neurobiologia da visao alcanc;:aram urn grau altissimo de minucia nos niveis neuronais e moleculares. Os fenomenos de impregnac;:ao das emuls6es fotograficas com que se assemelham a retina e o cerebro visual foram analisados ate as unidades celulares de percepc;:ao. Eles sao suficientes para aqueles que professam uma filosofia materialista rigida, a vida de demonstrac;:6es rapidas, mas nao podem representar senao uma etapa antes de novas explicac;:6es moleculares para aqueles que ainda acham que estamos longe de urn conhecimento completo dos acontecimentos vitais do neuronio, para aqueles que pode­riamos chamar de "materialistas com reservas" ou "materialis­tas de intenc;:ao". 0 estudo dos mecanismos visuais e propicio a uma discussao sobre a oportunidade de uma alternativa materia­lista as concepc;:6es atualmente em vigore sobre as possibilidades de persistencia de teorias imateriais.

124

0 olho e o cerebra

0 estudo da visao permite que nos interroguemos sobre a semelhanc;:a de urn objeto em si com o objeto vista. Ele e pretexto

a essa reflexao epistemol6gica fundamental sobre o poder da den­cia, que leva indiretamente ao do cere bro. Sera que ela vai fazer a razao acabar indo na direc;:ao da certeza de que os universos orga­

nico e inorganico, seja qual for sua verdadeira essen cia, sao aces­siveis ao nosso entendimento? Ou, pelo contrario, na eventuali­

dade inversa- a impossibilidade de tudo saber -, na direc;:ao da angustia, do medo do vazio e do desencanto? Pertence a psicofi­

siologia da visao humana a esses campos de complexidade transcendental referentes ao homem e seu meio que resistem her­meticamente a uma duzia de milenios de vigilia intelectual p6s­

neolitica perdido na imensidade do tempo? 0 pensamento hu­mano tern limites singulares que correspondem aos do cerebro

que o fabrica; ele esta atado ao mundo fisico que ele percebe e e incapaz de transcende-lo para verdadeiramente ter acesso

ao real. E grande o risco de que tal discussao, dada a instabilidade

da ciencia, termine numa opiniao efemera. Cientistas e fil6so­

fos das ciencias tornaram-se os Sisifo da civilizac;:ao moderna. No mesmo inferno que seu antepassado real, filho de Bolo, eles se

alc;:am ao topo de montanhas que nao se deixam galgar. Os limites das neurociencias explicam os das correntes fi­

los6ficas do pensamento ocidental propostas ate agora para

compreender a alma humana. Determinismo materialista de or­dem fisico-quimica, filosofias sensualista e comportamentalle­vam ao desencantamento, porque seus conceitos se afastam da

grandeza do cerebro humano. As imensas virtudes que sepa­ram o pensamento humano da atividade cerebral animal ajus­

tam-se melhor as teorias vitalistas. Mas e claro que esquemas

etereos ou pneumaticos representam explicac;:6es tao ruins quanto as interpretac;:6es fundadas apenas na molecula. Livre­arbitrio, responsabilidade ou consciencia cintilam sobre uma

materia invisivel.

125

Page 65: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

Essa reflexao sabre os mecanismos da visao humana convida a nos debrw;:armos sabre essas pedras angulares da interraga~ao metafisica. 0 alto grau dos conhecimentos cientificos o justifica.

Em primeiro lugar, a ciencia, mesmo tendo chegado a urn nfvel extrema de perspid.cia, encontra-se numa situa~ao de pre­cariedade e de instabilidade. Nenhum resultado, mesmo aquele que parece uma evidencia, pode resistir ao tempo. Pormenores, hoje obscuros, podem tornar-se amanha indicadores poderasos; a capacidade de analise do cerebra human a, em bora enorme, tapa com a complexidade do real. A complexidade do objeto e ilus­trada pelo funcionamento do cerebra human a, e particularmente pelo do cerebra visual, cujo mecanismo pode achar-se alem das capacidades maximas de apreensao. Nao e inconcebivel afirmar, e ate possivel desconfiar, que a imagem mental dos objetos que nos cercam seja a mesma para todos os homens e que uma visao objetiva do universo tenha urn sentido. Nao e impossfvel que o cerebra dos homens imponha a realidade conceitos que nao te­nham nenhuma rela~ao com ela.

Essa duvida fundamental ve-se fortalecida pela diversidade do Vivente, que faz que, afora o caso excepcional de individuos oriundos do mesmo avo, nao haja dais tecidos organicos que sejam estritamente identicos. Esse polimorfismo e particular­mente desenvolvido no nivel do sistema nervoso exposto a uma variabilidade genetica - como todo tecido vivo - a qual se soma uma forte flutua~ao das influencias ambientais. Nenhum cere­bra pode pensar como outra, nenhum individuo ve como outro.

0 polimorfismo cerebral e sensorial no centro da reflexao fi­los6fica abre uma porta, certamente muito estreita, para as inter­raga~6es sabre as sublimidades da alma humana e sabre a essen­cia mesma desta. E, com efeito, a unicidade de cada pensamento humano que faz acreditar em sua responsabilidade, portanto em sua liberdade. A suntuosidade e apenas uma ilusao, mas uma ilu­sao necessaria.

126

Refer€mcias bibliograficas 1

ARISTOTELES, Les parties des animaux. Trad. Pierre Louis. Paris: Les

Belles Lettres, 1956.

AUBOURG, P. La memoire. Medecine Therapeutique, v.1, 1995.

BACHELARD, G. La formation de /'esprit scientifique. Paris: Vrin, 1993.

BAILHACHE, P. Leibniz et la theorie de Ia musique. Paris: Klincksieck,

1992.

BERGSON, H. Les donnees immediates de la conscience. Paris: PUF, 1927.

(Col. Quadrige).

__ .Matiere et memoire. Paris: PUF, 1939. (Col. Quadrige).

__ . Cours. Paris: PUF, 1995. v.III.

__ . Essai sur les donnees immediates de la conscience. Paris: PUF, 1985.

p.l3. (Col. Quadrige).

BOUTOUT, A. I: invention des formes. Paris: Odile jacob, 1993.

BOUVERESSE, R. Esthetique, psychologie et musique. Paris: Vrin, 1995.

1 Referencias gerais cuja leitura provocou a interroga~ao filos6fica deste en­saio. As referencias originais acerca das neurociencias clfnicas e experimen­tais poderao ser aqui encontradas.

127

Page 66: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

BROCA, P. Perte de Ia parole, ramollissement chronique et estruction

partielle du lobe anterieur gauche du cerveau. Bulletin de la Societe

d'Anthropologie, v.2, avril 1861a.

__ . Remarques sur le siege de Ia faculte du langage articule, suivies

d'une observation d'aphemie (perte de Ia parole). Bulletin de la

Societe d'Anthropologie, v.6, aout 1861b.

BRUSATIN, M. Histoire des couleurs. Paris: Flammarion, 1980.

CHANGEUX, J.-P. I.:homme neuronal. Paris: Fayard, 1983.

__ .Raison et plaisir. Paris: Odilejacob, 1994.

__ . Creation et neurosciences. In: FONTAINE, j. (Org.) Actes des

Colloques du Bicentenaire de l'Institut de France 179 5-199 5. Paris: Fayard,

1995a. ___ . Point de vue d'un neurobiologiste sur les fondements de

l'ethique. Commentaire, v.71, 1995b.

CONDILLAC (Etienne Bonnot de). Traite des sensations. Paris: Fayard,

1984. CRICK, F. I.:hypothese stupefiante. A Ia recherche scientifique de !'arne.

Paris: Pion, 1994.

DAMASIO, A. I.:erreur de Descartes. Paris: Odilejacob, 1995.

DELACOUR, j. Neurobiologie de l'apprentissage. Paris: Masson, 1978.

__ . Biologie de la conscience. Paris: PUF, 1994.

__ . Le cerveau et /'esprit. Paris: PUF, 1995.

ECCLES, J. C. Evolution du cerveau et creation de la conscience. Paris: Fayard,

1992.

EDELMAN, G. M. Biologie de la conscience. Paris: Odile jacob, 1992.

(Points).

ESPAGNAT, B. (d'). Un atome de sagesse. Paris: PUF, 1982.

__ . Le reel voile. Paris: Fayard, 1994.

FERRY, L. I.:Homme-Dieu ou le sens de la vie. Paris: Grasset, 1996.

FRANCES, R. La perception de la musique. Paris: Vrin, 1984.

GAZZANIGA, M. Le cerveau social. Paris: Odile jacob, 1996. (Col. Opus).

GOETHE, j. W. (von). Traite des couleurs. Paris: Triades, 1973.

GRMEK, M.D. La premiere revolution biologique. Paris: Payot, 1990.

GUITTON, j. Leclair et l'obscur. Paris: Aubier-Montaigne, 1964.

HAMBURGER, J. La raison et la passion. Paris: Seuil, 1984.

128

0 olho e 0 cerebro

HENSHEN, S. E. On the Visual Path and Centre. Brain, v.16, p.176-8,

1903.

HOLMES, G. Disturbances of Vision by Cerebral Lesions. The British

journal ofOphtalmology, v.2, p.353-84, 1918.

HUME, D. Dissertation sur les passions. In: _. Traite de la nature

humaine. Paris: GF-Flammarion, 1991. Livre II. [Ed. bras. Tratado

da natureza humana. Sao Paulo: Editora UNESP, 2001.]

HUSSERL, E. Idees directrices pour une phenomenologie. Paris: Gallimard,

1950.

HUYGHE, R. Les puissances de ['image. Paris: Flammarion, 1965.

___ . I.:art et l'iime. Paris: Flammarion, 1980.

JEANNEROD, M. Le cerveau-machine. Paris: Fayard, 1983. __ .De la physiologie menta/e. Paris: Odile jacob, 1996.

LHERMITTE, F. La pensee sans langage. Revue des Travaux de l'Academie

des Sciences Morales et Politiques et Comptes Rendus de ses Seances, 1 er

semestre 1976.

___ . Le cerveau et Ia pensee, ou Ia matiere et !'esprit. Bulletin de

l'Academie Nationale de Medecine, v.166, 1982.

LICHTHEIN, L. On Aphasia. Brain, v.7, p.433-84, jan. 1985.

LOCKE, j. Draft A. Paris: Vrin, 1974.

___ .De la conduite de l'entendement. Paris: Vrin, 1975.

MALEBRANCHE. La recherche de Ia verite. In: _. Oeuvres completes.

Paris: Vrin, CNRS, s. d. v.3, p.ll9-20.

MARIE, P., CHATELIN, C. Les troubles visuels dus aux lesions des

voies optiques intracerebrales et de Ia sphere visuelle corticale

dans les blessures du crane par coup de feu. Revue Neurobiologique,

v.22, p.883-925, 1915.

MARIE, P. Revision de Ia question de l'aphasie. Semaine Medicate, v.26,

1906.

MERLEAU-PONTY, M. Phenomenologie de la perception. Paris: Gallimard,

1945. ___ . I.:oeil et /'esprit. Paris: Gallimard, 1964.

MEYER, P. I.:illusion necessaire. Paris: Pion, 1995.

MISSA, J.-N. I.:esprit-cerveau. Paris: Vrin, 1993. (Col. Pour demain).

MONOD, j. Le hasard et la necessite. Paris: Seuil, 1970.

129

Page 67: 26 o Olho e o Crebro Philippe Meyer Blog Conhecimentovaleouro.blogspot.com by Viniciusf666 Ec6fe

Philippe Meyer

NAVILLE, P. Thomas Hobbes. Paris: Pion, 1988.

NIETZSCHE, F. Aurore. Paris: Gallimard, 1901.

PIAGET, ). Le structuralisme. Paris: PUF, 1968. (Col. Que sais-je?).

__ . I:epistemologie genetique. Paris: PUF, 1970. (Col. Que sais-je?).

PIATTELLI PALMARINI, M. Petit Traite sur Kant a ['usage de mon fils.

Paris: Odile Jacob, 1996.

REVEL, ).-F. Histoire de la philosophie occidentale. Paris: Nil, 1994.

RIBOT, T. Les maladies de la memoire. Paris: Felix Alcan, 1881.

ROSENFIELD, I. !:invention de la memoire. Paris: Eshel, 1989.

SPILLMANN, L., WERNER, J. S. Visual Perception. The Neurophysiolo-

gical Foundations. Academic Press Inc., 1990.

TEUBER, H. L. Physiological Psychology. Annual Review of Psychology,

v.6, p.267-96, 1955.

VIGOUROUX, R. Lafabrique du beau. Paris: Odilejacob, 1992.

WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. Paris: Gallimard, 1961.

__ .De la certitude. Paris: Gallimard, 1965.

ZEKI, S. A Vision of the Brain. London: Blackwell, 1993.

130

SOBRE 0 LIVRO

Formato: 14 x 21 em

Mancha: 23 x 44,5 poicos

Tipologia: Iowan Old Style 10/14

Popel: Polen Soft 80 g/m2 (miolo)

Cortao Supremo 250 g/m2 (capo)

Jo edic;oo: 2002

EQUIPE DE REALIZA<;:AO

Coordenac;oo Gerol Sidnei Simonelli

Produc;ao Grafica Anderson Noboro

Edi<;oo de Texto Nelson Lufs Barbosa (Assistente Editorial)

Nelson Lufs Barbosa (Prepara~ao de Original)

Ana Paulo Castellani e

Ado Santos Seles (Revisao)

Editorac;oo Eletronica Lourdes Guociro do Silva Simonelli (Supervisee)

Lufs Carlos Gomes (Diagrama~ao)