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2017

12ª edição

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Cap. 1 • DIREITO CONSTITUCIONAL 41

C A P Í T U L O 1

Direito constitucionalSumário: 1. Natureza – 2. Definição – 3. Objeto – 4. Fontes de juridicidade: 4.1. Fontes do direito constitucional: 4.1.1. Os costumes constitucionais; 4.1.2. A criação judicial do direito; 4.1.3. A doutrina como fonte indireta de produção do direito.

1. NATUREZA

Conhecer a essência do direito constitucional e suas singularidades contribui para uma adequada compreensão e solução dos problemas constitucionais. Dentro da maior e mais tradicional divisão do direito positivo – público e privado –, o direito constitucional é classificado como um ramo interno do direito público. Por ser a constituição o fundamento de validade de todas as normas do ordenamento jurídico, há quem o considere como o tronco do qual derivam todos os demais ramos do direito.

O direito constitucional se diferencia não apenas por seu objeto e tarefas, mas também por peculiaridades, como o seu grau hierárquico, a classe de suas normas, as condições de sua validade e a capacidade para se impor perante a realidade social (HESSE, 2001a).

O caráter supremo e vinculante das normas constitucionais condiciona a forma e o conteúdo dos atos elaborados pelos poderes públicos, sob pena de invalidação. A supremacia do direito constitucional é um pressuposto da função desempenhada pela constituição como ordem jurídica fundamental da comunidade, cujas normas vinculam todos os poderes, inclusive o Legislativo.

O caráter aberto da constituição permite a sua comunicação com outros sistemas. Nesse sentido, Konrad Hesse (2001a) assinala ser a constituição não um sistema fechado e onicompreensivo, mas um “conjunto de princípios concretos e elementos básicos do ordenamento jurídico da comunidade, para o qual oferece uma diretriz (norma marco).” A abertura do sistema constitucional, no entanto, não é ilimita-da, pois se apresenta apenas na medida suficiente para garantir a margem de ação necessária à liberdade do processo político, permitindo a persecução de diferentes concepções e objetivos, de acordo com as mudanças técnicas, econômicas e sociais. Permite uma adaptação à evolução histórica, algo indispensável para a própria exis-tência e eficácia da constituição.

A garantia imanente decorre da inexistência de uma instância superior capaz de assegurar o cumprimento da constituição. O direito constitucional, por ter que se garantir por si mesmo, exige uma configuração apta a assegurar, mediante a independência e harmonia entre os poderes, a observância espontânea e natural de suas normas pelos poderes constituídos.

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2. DEFINIÇÃO

Definir um objeto consiste em delimitar os seus aspectos gerais e específicos com o intuito de diferenciá-lo dos demais. Com base nos pressupostos lógico-formais, o direito constitucional pode ser definido como o ramo interno do direito público (gênero próximo) que tem por objeto o estudo sistematizado das normas supremas, originárias e estruturantes do Estado (diferença específica).

Meirelles Teixeira (1991) define o direito constitucional, de forma sintética, como o “estudo da teoria das constituições e da constituição do Estado brasileiro, em par-ticular”; e, de forma analítica, como “o conjunto de princípios e normas que regulam a própria existência do Estado moderno, na sua estrutura e no seu funcionamento, o modo de exercício e os limites de sua soberania, seus fins e interesses fundamentais, e do Estado brasileiro, em particular.” Para José Afonso da Silva (1997), enquanto ciência positiva das constituições, trata-se do “ramo do direito público que expõe, interpreta e sistematiza os princípios e normas fundamentais do Estado.”

3. OBJETO

O direito constitucional tem por objeto característico de estudo as normas refe-rentes aos direitos e garantias fundamentais, à estruturação do Estado e à organização dos poderes, matérias tipicamente consagradas pelas constituições.

Manuel García-Pelayo (1993) diferencia três disciplinas, conforme o objeto específico a ser estudado:

I) direito constitucional positivo (particular ou especial): tem por objeto a interpretação, sistematização e crítica das normas constitucionais vigentes em um determinado Estado como, e.g., o direito constitucional brasileiro;

II) direito constitucional comparado: tem por finalidade o estudo comparativo e crítico das normas constitucionais positivas, vigentes ou não, de diversos Estados, desenvolvido com o intuito de destacar singularidades e contrastes entre as diversas ordens jurídico-constitucionais; e

III) direito constitucional geral: compreende a sistematização e classificação de conceitos, princípios e instituições de diversos ordenamentos jurídicos visando à identificação dos pontos comuns, isto é, das características essencialmen-te semelhantes de um determinado grupo de constituições. Por meio desta disciplina, procura-se estabelecer uma teoria geral do direito constitucional.

4. FONTES DE JURIDICIDADE

O problema das fontes está relacionado ao modo de constituição e manifestação do direito positivo vigente em uma determinada sociedade. A palavra “fonte” (do latim fons ou fontis), que significa nascente de água, vem sendo utilizada metaforicamente

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pela ciência do direito, desde o século XVI, para designar de onde este provém. As fontes do direito são, portanto, os fatores responsáveis pela constituição de sua normatividade.

A experiência jurídica revela a existência de três bases constitutivas fundamentais do direito: a legislação, a tradição e a jurisdição. Conforme o tipo de sistema (civil law ou common law), via de regra, uma delas se sobressai “como polo de organização do conjunto” e convoca as demais, de forma que todas acabam por participar do processo global de constituição do direito (MIRANDA, 2000a). Em que pese a diver-sidade de grau e de articulação entre as fontes, todo sistema constitucional possui normas advindas da lei, dos costumes e da jurisprudência.

4.1. Fontes do direito constitucional

Toda classificação doutrinária é subjetiva e, de certa forma, arbitrária. Para ser útil, além de coerente, deve facilitar a compreensão de uma determinada realidade estudada. Nas palavras de Virgílio Afonso da Silva (2003), “classificações ou são co-erentes e metodologicamente sólidas, ou são contraditórias – quando, por exemplo, são misturados diversos critérios distintivos – e, por isso, pouco ou nada úteis.” As classificações das fontes do direito são bastante diversificadas, não havendo consenso nem mesmo acerca do sentido no qual devem ser trabalhadas. Utilizando como paradigma a classificação adotada por Norberto Bobbio (1996), as fontes de juridicidade podem ser divididas em originárias e derivadas.

Nos países de civil law, a fonte originária do direito constitucional é a constituição escrita que, na condição de fonte principal e suprema, pode delegar competências a outros poderes ou reconhecer, ainda que implicitamente, normatividade a outras fontes. As fontes derivadas delegadas são as resultantes de competências atribuídas pela constituição a órgãos inferiores para a produção de normas jurídicas regulamen-tadoras. Enquadram-se nesta espécie, por exemplo, as leis e decretos que lhe servem de apoio, bem como a jurisprudência decorrente da integração e interpretação de seus dispositivos. As fontes derivadas reconhecidas compreendem as normas jurídicas produzidas antes ou durante a vigência de uma constituição e que são por ela aco-lhidas. É o caso, por exemplo, das leis recepcionadas e dos costumes constitucionais.

Fontes do direto

constitucional

Originária:Constituição escrita

Derivadas

Delegadas: leis, decretos

e jurisprudência

Reconhecidas:

costumes

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4.1.1. Os costumes constitucionais

O surgimento de um costume ocorre quando a prática reiterada de certos atos é capaz de criar, no meio social, a convicção de sua obrigatoriedade. Para que este tenha valor jurígeno, é imprescindível a conjugação do aspecto objetivo, consistente na prática comum e habitual de determinados atos, com o aspecto subjetivo, caracte-rizado pela crença de que tais atos são necessários ou indispensáveis à coletividade.

O costume constitucional se diferencia dos demais não pela forma de surgi-mento, mas por ter um conteúdo relacionado aos direitos fundamentais, à estrutura do Estado ou à organização dos poderes. Parte da doutrina critica a aceitação dos costumes como fonte do direito constitucional por considerar que a manifestação da vontade do povo deve ocorrer exclusivamente por meio da Assembleia Consti-tuinte ou de um órgão equivalente (princípio da soberania nacional), bem como por entender que a existência de normas criadas à margem da constituição vulnera sua supremacia (conceito de constituição formal). A despeito de tais argumentos, os costumes constitucionais, quando compatíveis com a constituição escrita, devem ser admitidos por terem um papel relevante na interpretação de dispositivos e na integração de lacunas constitucionais. Vale notar, no entanto, que o reconheci-mento de uma norma costumeira como direito constitucional não escrito depende da confirmação, ainda que implícita, pelas cortes constitucionais, principais órgãos responsáveis pela guarda das constituições. Nesse sentido, o entendimento adotado por Klaus Stern (1987) que cita, como exemplo de costume no direito alemão, a “cláusula rebus sic stantibus” reconhecida pelo Tribunal Constitucional Federal como “um componente não escrito do direito constitucional federal.” A extensão e a prolixidade da Constituição brasileira deixam pouco espaço para o surgimento de costumes constitucionais. Um dos raros exemplos neste sentido é o “voto de liderança”, de acordo com o qual, no processo simbólico de votação das matérias legislativas, o voto dos líderes dos partidos políticos representa o de seus liderados presentes à sessão. No processo de votação nominal, os líderes votam em primeiro lugar para que os demais parlamentares saibam, antes de votar, em que sentido foi o voto da liderança de seu partido.

Os costumes podem ser de três espécies. O único reconhecido como fonte autô-noma do direito constitucional, é o costume praeter constitutionem (“além da consti-tuição”), utilizado na interpretação de dispositivos constitucionais ou na integração de eventuais lacunas existentes no texto. O costume secundum constitutionem, por estar em consonância com a constituição, contribui para sua maior efetividade. Este deve ser considerado apenas como fonte subsidiária, pois, existindo norma constitu-cional escrita é esta que deve ser aplicada. O costume contra constitutionem, ou seja, aquele cujo conteúdo tem o sentido oposto ao de uma norma da constituição formal, não deve ser admitido como fonte para a criação de normas (costume positivo), nem para o desuso (costume negativo).

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4.1.2. A criação judicial do direito

As divergências sobre o papel da jurisprudência como fonte criadora de normas jurídicas são intensas, sobretudo, no que se refere à extensão e legitimidade. Cada vez mais, a jurisdição tem assumido um lugar de destaque, notadamente em virtude da atuação das cortes constitucionais na concretização e realização das constitui-ções. Embora isso não seja uma novidade no direito norte-americano, trata-se de um fenômeno relativamente recente na América Latina e na Europa, onde, segundo Canotilho (2000), “as decisões dos tribunais constitucionais passaram a considerar-se como um novo modo de praticar o direito constitucional.”

A doutrina mais tradicional sustenta, com fundamento no princípio da separação dos poderes, que os juízes têm legitimidade democrática apenas para a aplicação, e não para a produção de normas. Inocêncio Mártires Coelho (2000a) pondera, no entanto, que a sobrevivência do princípio da separação dos poderes depende de sua adequação às mudanças impostas pela práxis constitucional, sendo imprescindível sua reinterpretação de forma a “adaptá-lo às exigências do moderno Estado de Di-reito.” Para o autor, “a interpretação criadora é uma atividade legítima, que o juiz desempenha naturalmente no curso do processo de aplicação do direito, e não um procedimento espúrio, que deva ser coibido porque supostamente situado à margem da lei.” Por considerar inquestionável a legitimidade e imprescindibilidade da criação judicial do direito, Canotilho (2000) afirma que a controvérsia deve girar apenas em torno de sua extensão. Em suas palavras, “a investigação e obtenção do direito criadoramente feita pelos juízes ao construírem normas de decisão para a solução de casos concretos constitui um dos momentos mais significativos da pluralização das fontes de direito.”

Com o advento das profundas mudanças operadas no constitucionalismo do segundo pós-guerra, a atividade interpretativa desenvolvida no âmbito do Poder Judiciário assumiu uma importância ainda maior. A margem de ação na aplicação do direito vem sendo gradativamente alargada em virtude da inafastável necessidade de identificação do conteúdo normativo de dispositivos formulados em termos vagos e imprecisos, bem como da resolução de conflitos normativos inexoravelmente pre-sentes em constituições democráticas consagradoras dos valores plurais inerentes às complexas sociedades contemporâneas.

A interpretação do direito não se resume à mera descrição de um significado normativo, nem à descoberta de uma norma preexistente. Trata-se de uma atividade constitutiva, e não simplesmente declaratória (GRAU, 2006). O intérprete constrói – ou, segundo Humberto Ávila (2004), reconstrói – o sentido da norma a partir do texto normativo, ponto de partida e limite para a interpretação. A norma é, por-tanto, o produto da interpretação: interpretam-se textos, aplicam-se normas. Se a determinação do sentido do direito sempre resulta do processo interpretativo de um texto, logo os enunciados legislativos e jurisprudenciais não devem ser considerados,

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em si mesmos, como direito, mas sim como a fonte a partir da qual o processo de produção jurídica se desenvolve.1

As normas podem ser regras ou princípios. Enquanto aquelas fornecem razões definitivas para a decisão, estes fornecem apenas razões contributivas (PECZENIK; HAGE, 2000). Isso ocorre porque a interpretação de enunciados normativos princi-piológicos não é suficiente para fornecer, desde logo, todas as razões necessárias e suficientes para a decisão. É preciso que, em um segundo momento, sejam analisadas também as razões fornecidas por princípios opostos para então se extrair a regra a ser aplicada no caso concreto. Como anota Riccardo Guastini (2010), da concretiza-ção de um princípio pode resultar um número indeterminado de regras particulares.

Vale destacar, ainda, que na declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos, o tribunal constitucional atua como um autêntico legislador negativo. Nesse sentido, Hans Kelsen (2007) afirma que “anular uma lei é estabelecer uma norma geral, porque a anulação de uma lei tem o mesmo caráter de generalidade que sua elaboração, nada mais sendo, por assim dizer, que a elaboração com sinal negativo e, portanto, ela própria uma função legislativa.” Como observa Emerson Garcia (2008b), embora não seja permitido aos tribunais criar paradigmas de con-trole não contemplados no texto constitucional, nem substituir as opções políticas adotadas pelo legislador por suas próprias escolhas, há uma indiscutível influência das decisões judiciais no delineamento do padrão de conduta a ser seguido pela coletividade. A criação judicial do direito se mostra, ainda mais nítida, nas decisões com eficácia aditiva, em especial, quando o tribunal constitucional emprega a técnica da interpretação conforme ou supre uma omissão de outro poder.2

No sistema constitucional brasileiro, o direito judicial com força de lei revela--se, sobretudo, nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de

1. Sobre esse aspecto, são esclarecedoras as observações de Carlos Bernal Pulido (2005): “As fontes do Direito são disposições, no sentido de textos ou enunciados, dos quais, considerados de maneira isolada, nada se deriva. Trata-se unicamente de um elenco de signos que, por si mesmos, não têm nenhum significado. O significado lhes é atribuído somente quando interpretados. [...] Desta distinção entre dispositivo e norma seguem-se vários efeitos. O mais importante para os nossos propósitos é que, na verdade, as normas jurídicas não se encontram nas fontes de direito, mas sim em suas interpretações, e que as interpretações que fundamentam e concretizam as normas com autoridade são as produzidas na jurisprudência, ou seja, as desenvolvidas pelos juízes na fundamentação de suas decisões.”

2. Quando do julgamento da constitucionalidade da lei de biossegurança, o Ministro Gilmar Mendes asse-verou: “Em outros vários casos antigos [ADI 3.324, ADI 3.046, ADI 2.652, ADI 1.946, ADI 2.209, ADI 2.596, ADI 2.332] é possível verificar que o Tribunal, a pretexto de dar interpretação conforme a Constituição a determinados dispositivos, acabou proferindo o que a doutrina constitucional, amparada na prática da Corte Constitucional italiana, tem denominado de decisões manipulativas de efeitos aditivos. Tais sentenças de perfil aditivo foram proferidas por esta Corte nos recentes julgamentos dos MS [MS 26.602, 26.603, 26.604], em que afirmamos o valor da fidelidade partidária; assim como no julgamento sobre o direito de greve dos servidores [MI 708, 712, 607]; na fórmula encontrada para solver a questão da inconstitucionali-dade da denominada cláusula da reserva de barreira instituída pelo art. 13 da Lei 9.096 [ADI 1.351; 1.354]. [...] Portanto, é possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais europeias” (ADI 3510/DF, Rel. Min. Ayres Britto, 29.05.2008).

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controle abstrato de constitucionalidade (CF, art. 102, §§ 1.º e 2.º) e na edição de enunciados de súmula com efeito vinculante (CF, art. 103-A). Em tais hipóteses, é inegável a atribuição de um poder normativo ao Tribunal, ainda que pautado por parâmetros constitucionais.

No campo das lacunas, a criação judicial do direito envolve a utilização da analogia, procedimento de integração do direito através do qual a norma referente a uma determinada hipótese é aplicada a outra semelhante não regulamentada. Nas palavras de Francesco Ferrara (1987), analogia é a “harmônica igualdade, proporção e paralelismo (paragone) entre relações semelhantes”, e “esta essência do método analógico faz com que a ele se possa recorrer independentemente de autorização do legislador.” Para a doutrina mais tradicional, ao decidir um caso não regulamentado, o juiz não cria propriamente uma nova norma, mas apenas descobre uma norma já existente dentro do ordenamento jurídico. Ferrara (1987) sustenta que o juiz, ao aplicar normas por analogia, “não forja com livre atividade regras jurídicas, mas desenvolve normas latentes que se encontram já no sistema”, pois o “direito não é só o conteúdo imediato das disposições expressas; é também o conteúdo virtual de disposições não expressas, mas ínsitas todavia no sistema onde o juiz as vai desco-brir.” Nesse sentido, a analogia não é considerada como fonte do direito, mas como um procedimento de autointegração por meio do qual se busca, dentro do próprio sistema normativo, a solução para o caso não regulamentado.

A semelhança entre os casos deve ser relevante, isto é, deve ser a razão su-ficiente para aquela regulamentação legal (ratio legis), podendo ser compreendida por meio da seguinte fórmula: “onde houver o mesmo motivo, há também a mesma disposição de direito” (“Ubi eadem ratio, ibi eadem iuris dispositio”). A analogia propriamente dita é denominada de analogia legis. Na analogia iuris, a norma não é retirada de um caso singular, mas abstraída de todo o sistema ou de parte dele. Neste caso, a rigor, não há o emprego de um raciocínio por analogia, mas sim de um recurso semelhante ao utilizado quando se recorre aos princípios gerais de direito (BOBBIO, 1996b). Com o reconhecimento definitivo da normatividade dos princípios e de sua importância como critério de decisão, o papel da analogia foi sensivelmente reduzido.

4.1.3. A doutrina como fonte indireta de produção do direito

A doutrina (ou dogmática jurídica), em seu sentido mais amplo, abrange con-cepções teóricas e metodológicas, parâmetros e critérios de decisão, assim como enunciados dogmáticos formulados por estudiosos do direito ou extraídos da juris-prudência de tribunais nacionais ou estrangeiros. Trata-se de uma disciplina “plu-ridimensional” que mescla, pelo menos, três atividades: (1) a descrição do direito vigente (dimensão empírico-descritiva), (2) sua análise sistemática e conceitual

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(dimensão lógico-analítica) e (3) a elaboração de propostas para a solução de casos jurídico-problemáticos (dimensão prático-normativa).3

Em sua dimensão normativa, busca fornecer critérios para a redução de incer-tezas do direito. Para isso, propõe modelos de decisão voltados a fornecer respostas racionalmente fundamentadas a questões axiológicas deixadas em aberto pelo material legislativo e jurisprudencial. A questão central desta dimensão consiste em determinar, a partir do direito positivo válido, qual decisão é correta em um determinado caso concreto. As limitações de tempo e cognição inerentes ao processo judicial exigem o constante recurso a parâmetros de decisão previamente formulados, tornando ainda mais relevante a formulação prévia de critérios decisórios potencialmente capazes de contribuir para a sofisticação do debate, bem como para a redução do ônus argumenta-tivo e da complexidade decisória. A partir da antecipação de conflitos constitucionais, fornece um conjunto de soluções pré-elaboradas capazes de servir como diretriz para a solução de casos concretos. Ao analisar o papel da doutrina no constitucionalismo contemporâneo, Antonio Maia (2009) afirma que esta “procura lançar pontes entre a teoria e a prática, municiando os operadores do direito com instrumentos capazes de conduzi-los a respostas pertinentes para os problemas jurídicos, bem fundadas e ao mesmo tempo verificáveis e, na medida do possível, objetivamente controláveis.”

Teorias, concepções, parâmetros e critérios metodológicos formulados no âmbito doutrinário, embora não possuam caráter vinculante e obrigatório, desempenham duas funções extremamente relevantes no processo de criação judicial do direito. De um lado, fornecem razões contributivas para a interpretação e aplicação de textos e normas. Quanto maior o consenso doutrinário em torno de uma determinada teoria, maior o seu caráter persuasivo. De outro, contribuem para constituir e estruturar os atributos judiciais. Durante toda sua formação acadêmica e profissional, os juízes são doutrinados com base em princípios e conceitos jurídicos, bem como em modos de interpretação e julgamento característicos do direito, os quais lhes inculcam certos pontos de vista, valores e convicções. A atuação dos juízes está situada nesse contexto de “infusão de significados” que lhes conferem um modo próprio de enxergar e de se envolver com o direito (TAMANAHA, 2010). Quanto mais arraigada a concepção doutrinária acolhida pelo juiz, maior sua influência na construção da norma de decisão do caso concreto.

3. Para o positivismo jurídico metodológico, a dogmática jurídica teria tão somente as duas primeiras dimen-sões (analítica e empírica). Já na abordagem não positivista proposta por Robert Alexy (2008a), devido ao caráter prescritivo atribuído à teoria do direito, ela adquire uma dimensão normativa.