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Zygmunt Bauman TEMPOS LÍQUIDOS Tradução: Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro

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Zygmunt Bauman

TEMPOSLÍQUIDOS

Tradução:Carlos Alberto Medeiros

Rio de Janeiro

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� Introdução �

Entrando corajosamenteno viveiro das incertezas

Pelo menos na parte “desenvolvida” do planeta, têm acontecido,ou pelo menos estão ocorrendo atualmente, algumas mudançasde curso seminais e intimamente interconectadas, as quais criamum ambiente novo e de fato sem precedentes para as atividadesda vida individual, levantando uma série de desafios inéditos.

Em primeiro lugar, a passagem da fase “sólida” da moderni-dade para a “líquida” – ou seja, para uma condição em que as or-ganizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais,instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões decomportamento aceitável) não podem mais manter sua formapor muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decom-põem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para mol-dá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam. É poucoprovável que essas formas, quer já presentes ou apenas vislum-bradas, tenham tempo suficiente para se estabelecer, e elas nãopodem servir como arcabouços de referência para as ações hu-manas, assim como para as estratégias existenciais a longo prazo,em razão de sua expectativa de vida curta: com efeito, uma expec-tativa mais curta que o tempo que leva para desenvolver uma es-tratégia coesa e consistente, e ainda mais curta que o necessáriopara a realização de um “projeto de vida” individual.

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Em segundo lugar, a separação e o iminente divórcio entre opoder e a política, a dupla da qual se esperava, desde o surgimen-to do Estado moderno e até muito recentemente, que comparti-lhasse as fundações do Estado-nação “até que a morte os separas-se”. Grande parte do poder de agir efetivamente, antes disponívelao Estado moderno, agora se afasta na direção de um espaço glo-bal (e, em muitos casos, extraterritorial) politicamente descon-trolado, enquanto a política – a capacidade de decidir a direção eo objetivo de uma ação – é incapaz de operar efetivamente na di-mensão planetária, já que permanece local. A ausência de contro-le político transforma os poderes recém-emancipados numa fon-te de profunda e, em princípio, incontrolável incerteza, enquantoa falta de poder torna as instituições políticas existentes, assimcomo suas iniciativas e seus empreendimentos, cada vez menosrelevantes para os problemas existenciais dos cidadãos dos Esta-dos-nações e, por essa razão, atraem cada vez menos a atençãodestes. Entre ambos, os dois resultados inter-relacionados dessedivórcio obrigam ou encorajam os órgãos do Estado a abando-nar, transferir ou (para usar os termos que entraram recentemen-te na moda no jargão político) “subsidiar” e “terceirizar” um vo-lume crescente de funções que desempenhavam anteriormente.Abandonadas pelo Estado, essas funções se tornam um play-ground para as forças do mercado, notoriamente volúveis e ine-rentemente imprevisíveis, e/ou são deixadas para a iniciativa pri-vada e aos cuidados dos indivíduos.

Em terceiro lugar, a retração ou redução gradual, emboraconsistente, da segurança comunal, endossada pelo Estado, con-tra o fracasso e o infortúnio individuais retira da ação coletivagrande parte da atração que esta exercia no passado e solapa osalicerces da solidariedade social. A “comunidade”, como uma for-ma de se referir à totalidade da população que habita um territóriosoberano do Estado, parece cada vez mais destituída de substân-cia. Os laços inter-humanos, que antes teciam uma rede de segu-rança digna de um amplo e contínuo investimento de tempo e es-forço, e valiam o sacrifício de interesses individuais imediatos (ou

8 Tempos líquidos

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do que poderia ser visto como sendo do interesse de um indiví-duo), se tornam cada vez mais frágeis e reconhecidamente tem-porários. A exposição dos indivíduos aos caprichos dos mercadosde mão-de-obra e de mercadorias inspira e promove a divisão enão a unidade. Incentiva as atitudes competitivas, ao mesmotempo em que rebaixa a colaboração e o trabalho em equipe àcondição de estratagemas temporários que precisam ser suspen-sos ou concluídos no momento em que se esgotarem seus benefí-cios. A “sociedade” é cada vez mais vista e tratada como uma“rede” em vez de uma “estrutura” (para não falar em uma “tota-lidade sólida”): ela é percebida e encarada como uma matriz deconexões e desconexões aleatórias e de um volume essencialmen-te infinito de permutações possíveis.

Em quarto lugar, o colapso do pensamento, do planejamen-to e da ação a longo prazo, e o desaparecimento ou enfraqueci-mento das estruturas sociais nas quais estes poderiam ser traça-dos com antecedência, leva a um desmembramento da históriapolítica e das vidas individuais numa série de projetos e episódiosde curto prazo que são, em princípio, infinitos e não combinamcom os tipos de seqüências aos quais conceitos como “desenvol-vimento”, “maturação”, “carreira” ou “progresso” (todos sugerin-do uma ordem de sucessão pré-ordenada) poderiam ser signifi-cativamente aplicados. Uma vida assim fragmentada estimulaorientações “laterais”, mais do que “verticais”. Cada passo seguin-te deve ser uma resposta a um diferente conjunto de oportunida-des e a uma diferente distribuição de vantagens, exigindo assimum conjunto diferente de habilidades e um arranjo diferente deativos. Sucessos passados não aumentam necessariamente a pro-babilidade de vitórias futuras, muito menos as garantem, en-quanto meios testados com exaustão no passado precisam serconstantemente inspecionados e revistos, pois podem se mostrarinúteis ou claramente contraproducentes com a mudança de cir-cunstâncias. Um imediato e profundo esquecimento de informa-ções defasadas e o rápido envelhecimento de hábitos pode sermais importante para o próximo sucesso do que a memorização

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de lances do passado e a construção de estratégias sobre um ali-cerce estabelecido pelo aprendizado prévio.

Em quinto lugar, a responsabilidade em resolver os dilemasgerados por circunstâncias voláteis e constantemente instáveis éjogada sobre os ombros dos indivíduos – dos quais se espera quesejam “free-choosers” e suportem plenamente as conseqüênciasde suas escolhas. Os riscos envolvidos em cada escolha podem serproduzidos por forças que transcendem a compreensão e a capa-cidade de ação do indivíduo, mas é destino e dever deste pagar oseu preço, pois não há receitas endossadas que, caso fossem ade-quadamente aprendidas e diligentemente seguidas, poderiampermitir que erros fossem evitados, ou que pudessem ser, em casode fracasso, consideradas responsáveis. A virtude que se procla-ma servir melhor aos interesses do indivíduo não é a conformida-de às regras (as quais, em todo caso, são poucas e contraditórias),mas a flexibilidade: a prontidão em mudar repentinamente de tá-ticas e de estilo, abandonar compromissos e lealdades sem arre-pendimento – e buscar oportunidades mais de acordo com suadisponibilidade atual do que com as próprias preferências.

É o momento de perguntar como essas mudanças modifi-cam o espectro de desafios que homens e mulheres encontramem seus objetivos individuais e portanto, obliquamente, comoinfluenciam a maneira como estes tendem a viver suas vidas. Estelivro é uma tentativa de fazer exatamente isso. De indagar, masnão responder, muito menos pretender fornecer respostas defini-tivas, visto que, segundo o autor, todas as respostas seriam pe-remptórias, prematuras e potencialmente enganosas. Afinal, oefeito geral das mudanças listadas acima é a necessidade de agir,planejar ações, calcular ganhos e perdas esperados dessas ações eavaliar seus resultados em condições de incerteza endêmica. Omelhor que o autor tentou e se sentiu capacitado a fazer foi estu-dar as causas dessa incerteza – e talvez desnudar alguns dos obstá-culos que impedem a sua compreensão, e assim também nossacapacidade de enfrentar (individual e, sobretudo, coletivamente)os desafios que qualquer tentativa de controlá-las necessaria-mente apresenta.

10 Tempos líquidos