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2.3 - A "CONSTRUÇÃO" DOS FUNDAMENTOS DA MALÍCIA, 1800-2000 Quando penso no futuro não me esqueço do passado. (Desilusão, Paulinho da Viola) A malícia, como a conhecemos hoje, não apareceu já prontinha para ser usada com os primeiros capoeiras. Ela foi sendo lentamente "construída" através das gerações. Rio de Janeiro: os escravos africanos ladinos, 1800- 1850 No Rio de Janeiro, no comecinho dos 1800s, já temos notícias de pequenos aglomeradas de negros capoeiras, que eram alvo da perseguição das autoridades. Estes grupos, normalmente, eram constituídos de menos de meia dúzia de escravos, e todos (ou, a grande maioria) eram africanos ladinos, já conhecedores da cidade (em oposição ao africano boçal, recem-chegado da Africa). Logo após a chegada de D. João VI (1808), e com a criação da Guarda Real (que se desenvolveu até tornar- se a atual Polícia Militar do Rio de Janeiro), estes pequenos grupos de escravos ladinos se tornaram um dos principais alvos da nova força policial.

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2.3 - A "CONSTRUÇÃO" DOS FUNDAMENTOS DA

MALÍCIA, 1800-2000 Quando penso no futuro não me esqueço do passado. (Desilusão, Paulinho da Viola) A malícia, como a conhecemos hoje, não apareceu já

prontinha para ser usada com os primeiros capoeiras. Ela foi sendo lentamente "construída" através das

gerações. Rio de Janeiro: os escravos africanos ladinos, 1800-

1850 No Rio de Janeiro, no comecinho dos 1800s, já temos

notícias de pequenos aglomeradas de negros capoeiras, que eram alvo da perseguição das autoridades. Estes grupos, normalmente, eram constituídos de menos de meia dúzia de escravos, e todos (ou, a grande maioria) eram africanos ladinos, já conhecedores da cidade (em oposição ao africano boçal, recem-chegado da Africa).

Logo após a chegada de D. João VI (1808), e com a criação da Guarda Real (que se desenvolveu até tornar-se a atual Polícia Militar do Rio de Janeiro), estes pequenos grupos de escravos ladinos se tornaram um dos principais alvos da nova força policial.

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a. Um tipo social. No início dos 1800s, como nos ensinou Líbano

Soares no livro Negregada Instituição, os escrivães de polícia comumente referiam-se a "jogar capoeira" - indicando uma prática lúdica. Mas nas décadas seguintes a prisão será feita simplesmente "por capoeira" - que indica o uso do termo para identificar um "tipo social" e, aí incluídos, toda sorte de desordeiros e malfeitores (24). Ou seja, aí vemos o início da identidade do capoeira; e o início da construção de uma maneira de ser, agir e pensar deste "tipo social" - o início da malícia.

Este "tipo social" já é um antecessor direto do malandro carioca, decantado nos 1920s, reprimido por Vargas nos 1930s, mas sobrevivendo até nossos dias; não somente nos sambas dos recém falecidos Morreira da Silva e Bezerra da Silva, ou do atual Zeca Pagodinho; mas também no imaginário brasileiro, e até mesmo numa linha de umbanda.

Vamos ver, a seguir, que o Malandro, assim como o Valente; paralelo a muitas outras características de "ser um capoeirista"; já começam a ser parte da incipiente da maneira de ser, da malícia, desde o início do Brasil Império em 1808.

Já existia uma identidade entre os escravos capoeiras

- não só por serem africanos e ladinos, mas por serem especificamente "capoeiras" -, que se manifestava com o

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uso de fitas com as cores vermelha e amarela (talvez ligadas ao Congo, na África centro-ocidental), e o uso do barrete vermelho, nas primeiras décadas de 1800s. E também, entre outras coisas, determinados assobios para se comunicarem - escravos eram presos por "assobiarem como capoeiras". (25)

Estes pequenos grupos - que vão evoluir até se tornarem as maltas de capoeira - eram mais fortemente visíveis, e também era assim com outras manifestações com raízes africanas em toda a América e Caribe rebeldes, nos dias de folga da escravaria e durante as festas populares - dançando e fazendo arruaça na frente de procissões religiosas, desfiles militares, festas de rua. Não eram, no entretanto, grupos de assaltantes ou ladrões, como se poderia pensar; eram apenas arruaceiros.

Já vemos aí, algumas características que irão se imbricar na maneira de ser e na filosofia dos capoeiristas, e da capoeira:

- a vontade, a verdadeira mania, de aparecer, de ter visibilidade, de se pavonear diante da população obediente e domada;

- o gostar pela "arruaça"; - o gosto pela festa, pela dança, pela música; a

"alegria de viver". b. O território. Apesar de constituídos por escravos, estes grupos se

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consideravam donos de determinadas partes da cidade. Tanto era assim que a capoeiragem e as fugas para os quilombos eram práticas paralelas mas geralmente dissociadas. Ficar na cidade, como escravo, mas pertencendo a uma malta (que era "dona" de um território), era uma opção política e de poder, que os capoeiras escolhiam voluntariamente.

Apesar de serem "donos" de áreas específicas no Rio dos 1800s, geralmente praças com chafarizes (centros nevrálgicos onde os escravos vinham buscar água para abastecer a casa dos senhores brancos), os capoeiras movimentavam-se pela cidade com estonteante mobilidade, sempre fazendo badernas e tocando o terror - "estratégia sinuosa". E que talvez, hoje, tenha enxameado a estonteante mobilidade de jovens "mestres" que perambulam pelo mundo, dando aulas, apresentando-se em teatros e espetáculos, comendo as "gringas", tornando-se efetivos e atuantes vetores da cultura brasileira no exterior sem nenhum apoio, monetário ou estratégico, da mídia, do Governo, ou do capital privado.

No entanto, esta característica de "ser dono de um determinado território" foi algo que se perdeu e não foi transmitido das maltas dos 1800s para os grupos de capoeiras atuais. O "território" é característica de outro segmento marginal que são as gangues do narcotráfico carioca que dominam, cada uma, determinada favela. Aliás, em relação a estas gangues de traficantes, é bom

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lembrar como seus jovens integrantes também se amarram num baile funk ("o gosto pela festa, pela dança, pela música").

Além disto, as maltas nunca se interessaram em "fazer a revolução"; derrubar os "senhores" brancos através de um levante armado como fizeram os negros escravos no Haiti no começo dos 1800s. Optaram (como as gangues do narcotráfico, hoje em dia, também) por conquistar espaços dentro da urbe constituída; como se soubessem que a derrubada de um sistema injusto e autoritário leva irremediavelmente a outro similar; como se soubessem que o problema não são os "sistemas" mas, sim, o ser humano irremediavelmente predador:

- "urubu come folha? é conversa fiada?", "olha a cobra que morde, senhor são bento", dizem os cantos de capoeira.

Por volta de 1830, pela primeira vez, aparecem

relatos de capoeiras escalando, por fora, as torres de igrejas e saltando sobre os sinos - com perigo de queda e morte -, fazendo-os soar inesperadamente de madrugada, ou em dias de festa e procissão, ante o olhar embabascado da multidão. As igrejas eram marcos nítidos e importantes das diferentes áreas e freguesias da cidade, e "dominá-las" era simbólico de dominar aquela freguesia, aquele território. (26)

Aqui também vemos novamente a vontade de aparecer, tornar-se visível, pavonear-se frente a

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população obediente e servil (em oposição a maioria da marginalidade que primava por passar desapercebida). Este traço vai também aparecer no próprio jogo, nos saltos e floreios acrobáticos estonteantes que pouco têm a ver com a objetividade das artes marciais e dos desportos; assim como na persona esfuziante e no visual do malandro das décadas de 1920 a 1950; assim como na figura de muitos mestres contemporâneos, verdadeiras personagens de estória-em-quadrinho (mas, já em oposição, por volta de 1970 aparece um novo um tipo de capoeirista, "sério" e careta, influenciado pela mentalidade da Educação Física e pelos valores do Sistema e da classe média).

c. Os conflitos Os conflitos com a polícia carioca, no início dos

1800s, existiam paralelo à guerra crônica entre as maltas: "tanto uns quanto outros (os policiais e as outras maltas) eram invasores, beligerantes, se bem que em planos diferentes" (27), nos diz Soares. A cidade era deles, mas não toda a cidade, ou toda de uma vez; as maltas "forjaram uma cidade (negra) dentro da outra" (28).

Esta "guerra crônica", que também é típica de todos grupos com estrutura "nômade" (29), teve sequência em toda a história do Jogo e reaparece no conflito "capoeira regional x capoeira angola" (aprox. de 1940 em diante); e tem seguimento nas inimizades entre os grupos de

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capoeira de nossos dias. d. A influência dos presos políticos, e marinheiros

estrangeiros Na década de 1820, os escravos presos "por

capoeira" ficavam em um navio-prisão - a Persiganga -, e trabalhavam nas obras de construção de um colossal dique para reparos de navios - 37 anos para ser concluído -, no Arsenal da Marinha, na Ilha das Cobras (Rio de Janeiro).

Misto de prisão e trabalhos forçados, o Arsenal com sua explosiva mistura - capoeiras, escravos fugidos, delinquentes e malfeitores, marinheiros nacionais e estrangeiros, rebeldes e prisioneiros políticos de levantes regionais, prisioneiros argentinos e uruguaios das Guerras Cisplaltinas, mulheres de sentenciados e escravas de ganho (vendedoras de comida etc.) -, todos participando do cotidiano da ilha , forjou um caldeirão de troca de experiências e vivências que seguramente ajudou a forjar o perfil e as estratégias dos capoeiras e das maltas. (30)

As inacreditáveis "fugas atlânticas" - escravos presos no Arsenal que fugiam e depois eram recapturados em, p.ex., Londres, como foi o caso de Bento Creoulo (31) - foram alguns dos frutos de semelhante convivência; especificamente com a ajuda dos marinheiros estrangeiros que desertavam de seus navios e, quando capturados, também ficavam presos na Persinganga.

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Isto nos faz lembrar a facilidade com que os capoeiristas atuais "dão um jeito" e viajam pelo mundo, ensinando a capoeira; mesmo aqueles que vêm das classes economicamente desfavorecidas e normalmente jamais teriam esta chance.

Lembra-nos também que, desde mestre Bimba (1930); e, a partir dos 1960s, passando pelo Grupo Senzala no Rio, e os jovens mestres baianos que emigraram para São Paulo (como Acordeon e Suassuna); os capoeira sempre tiveram facilidade em absorver o "saber" de outros contextos: p.ex., o convívio dos capoeiristas da atual "era das academias" com outras artes marciais, especialmente as orientais com séculos de experiência, ajudou a forjar o perfil dos grupos contemporâneos.

O convívio de presos "comuns" com presos "políticos"

têm gerado graves consequencias para os orgãos de repressão. Bem recentemente, durante a ditadura militar de 1964-1984, a convivência de presos políticos com narco-traficantes teria sido um dos vetores que agenciou a estrutura do crime organizado - que se sofisticou e cresceu após aproximadamente 1980 -, em mega-gangues, como o Comando Vermelho e o Terceiro Comando, que dominaram a cidade do Rio de Janeiro, inclusive mandando ocasionalmente fechar o comércio local ( e sendo obedecidos) no início dos atuais 2000s (algo que as maltas, após 1850, também faziam).

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Uma convivência, algo semelhante, no Arsenal de Marinha na década de 1820, foi um dos vetores que formou, após 1850, a infraestrutura e as estratégias das mega-maltas, Nagoas e Guaimus, que dominaram as ruas e praças da cidade do Rio no final dos 1800s, delineou o Malandro dos 1920s, e contribui na construção da malícia da capoeira de nossos dias.

e. A "brasilidade" Em 9 de junho de 1828, os batalhões de mercenários

alemães e irlandeses com cerca de duas mil praças - a serviço de D. Pedro I -, se revoltaram: "e, de armas em punho, abandonaram os quartéis e fizeram uma carnificina, matando, devastando e saqueando tudo". Mas foram atacados "por magotes de pretos denominados capoeiras", e caíram os estrangeiros "pelas ruas e praças públicas, feridos em grande parte, e bastante sem vida" (32).

Depois do fim da rebelião, uma grande quantidade de negros e escravos "continuou armada, causando temores iguais ou maiores na população e nas autoridades da Corte"(33). Os escravos também continuaram a usar "topes" - fitas com as cores da bandeira brasileira -, algo que causava um certo desconforto nas classes hegemônicas.

Este sentimento de "brasilidade", que nada tem a ver com o respeito às leis do governo, ou com a moral burguesa ou proletária, impera até hoje dentro das

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academias e grupos. Provavelmente tem algo a ver com o sentimento de territorialidade; de pertencer a um determinado "território"; e até mesmo ser "dono" daquele terrítório, mesmo quando eram escravos nos 1800s. O mesmo - sentimento de brasilidade - acontece hoje em dia com muitos mestres; mesmo com aqueles de pouco sucesso econômico e que nunca foram ajudados, nem apoiados pelo Estado.

Vale salientar o ano de 1831 - já o início do período

regencial - quando lusitanos, de um lado, e pardos e pretos, do outro, se enfretaram nas ruas centrais da capital do Império, o que culminou com abdicação e a partida de D.Pedro I para a Europa.

... (em 1831) o papel de libertos e cativos foi importante, até para se contrapor aos chumbos (lusitanos), mas, agora, sua permanência nas ruas e o uso de símbolos nacionais ("topes", fitas com as cores da bandeira nacional, por exemplo) eram perigosos e tinham de ser combatidos. O mesmo ocorreu em relação a 1828, quando os "moleques" foram úteis para derrotar os irlandeses e alemães, mas após o fim do motim transformaram-se de solução em problema. De certa forma era um padrão

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que se repetia. (34) f. Os artistas estrangeiros que documentaram a

capoeira Então, como estamos vendo, no Rio do início dos

1800s a capoeira já era bem visível e documentada, principalmente "pela pena do escrivão de polícia", como nos ensinou Líbano Soares (35). Em oposição à Salvador que é considerada a "terra da capoeira", mas onde a capoeira só começa a ter visibilidade após 1900.

Muitas características daquela época continuaram ativas e fazem parte da maneira de ser, da identidade do capoeirista atual, e também de sua filosofia de vida - a malícia.

Esta visibilidade da capoeira carioca também está documentada em textos de "insuspeitados visitantes estrangeiros", como o artista alemão Rugendas (1835), que nos deixou a conhecida gravura colorida - "Jogar capuëra, ou dance de la guerre" -, acompanhada do texto abaixo.

Os negros tem ainda um outro folguedo guerreiro muito mais violento, a capoeira: dois campeões se precipitam um sobre o outro procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e

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paradas igualmente hábeis; mas lançando-se um contra o outro, mais ou menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça, o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas entrem em jogo ensangüentando-a. (36)

Então vemos que, em 1835, já existia a cabeçada e

os "saltos hábeis" no Jogo. A presença das facas "ensanguentando o jogo", por sua vez, revela a presença do Valente na "maneira de ser" do capoeira carioca - na malícia que se estruturava no Rio de Janeiro de 1835.

Vemos com clareza que, em 1835, a "filosofia", a "maneira de ser dos capoeiras", era ainda uma coisa primária e incompleta em relação ao que é hoje. Pode-se ver a mesma coisa - uma forma ainda primária e incompleta - na maneira de jogar: apenas cabeçadas e "saltos ágeis". Aliás, não poderia ser de outra forma: a "maneira de jogar" e a "filosofia" caminham juntas; o corpo aprende a malícia do Jogo, e só depois este "saber" extrapola pra cabeça e se constitui em "filosofia".

No entanto, apesar da forma primária e incompleta, elementos básicos, tanto do jogo quanto da filosofia, já existiam: a capüera era jogada ao som de um atabaque. Além disto já era jogo - "jogar capüera" -, além de ser luta e também dança - "dance de la guerre". E muito dos

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elementos que faltavam ao jogo já existiam no Rio de Janeiro, embora ainda não associados à capoeira:

- Augusto Earle já tinha pintado sua aquarela, "Negros lutando" (1822), onde um escravo africano dava uma "benção" (chute com a sola do pé no abdomem) em outro;

- Debret já havia desenhado e comentado o berimbau, "tocado por um escravo cego numa praça pública", em 1824 (37);

- Debret, também já havia desenhado e descrito, em 1824 (38), os "negros volteadores", que iam à frente dos enterros dos africanos importantes no Brasil, dando saltos mortais e outros pulos acrobáticos (o "floreio").

g. A capoeira baiana em 1800-1850 Por sua vez, na Bahia, sabemos que a capoeira só

começa a ser visível a partir de 1900. (39) Mas apesar da capoeira baiana, dos 1800s, até hoje

não estar documentada; certamente ela existiu, talvez em outra forma. Acreditamos nisto devido a pujança da capoeira de Salvador e do Recôncavo no comecinho dos 1900s, e que não poderia ter surgido do nada - como bem nos ensinou mestre Frede Abreu.

Vejam este texto de 1831:

... alguns cativos (em Salvador) ousaram ocupar cadeiras e participar dos debates da Câmara. A história de um deles é

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contada pelo Secretário da Câmara (de Salvador, em 1831), Attaíde Seixas: "E reparando eu num negro, José Ignacio, cativo de Felix da Silva Monteiro, sentado nas cadeiras da Câmara, perguntei-lhe quem era, respondeu-me que era hum cidadão como eu, e mostrou-me hua faca de ponta batendo com ella sobre a meza". (40)

Vejam bem este texto, acima. Ninguém fala que o escravo, José Ignacio, era "um

capoeira". Mas a atitude do escravo, a valentia, a arrogância, e a

faca de ponta, seguramente eram características da "maneira de ser"; eram características da identidade do capoeira (como já vimos na descrição de Rugendas, no Rio de Janeiro, de 1835); características do capoeira, tanto em 1831 em Salvador, como também em muitos de nossos colegas atuais.

Em suma, vemos neste texto acima, que também já existia a presença do Valente na maneira de ser do capoeira baiano; já existia a presença do Valente na malícia que se estruturava em Salvador no início dos 1800s.

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As maltas, os brabos, e os valentões: 1850-1920 A "construção" da malícia começa, então, com os

pequenos grupos de escravos africanos ladinos; estes grupos crescem e se transformam nas maltas cariocas.

Paralelo a esta dinâmica, vimos a capoeira que já existia em Salvador (mas não é documentada), no mesmo período - 1800-1850 -, e que também vai dar sua contribuição neste processo.

a. A Guerra do Paraguai e o "guerreiro brasileiro" Em 1865, o Brasil, a Argentina e o Uruguai entraram

em guerra com o Paraguai e seu caudillo mestiço, Solano López. O exército brasileiro formou batalhões de capoeiras; muitos foram agarrados à força nas ruas do Rio. No entanto, estes marginais revelaram-se combatentes tão admiráveis que, aos poucos, foi se formando, no exército, o mito do capoeira ser o "guerreiro brasileiro".

Tanto foi assim que, mais tarde, em 1907 - como nos ensinou mestre Jair "Perigo" Moura (41) -, quando a capoeira já é proibida por lei pela primeira constituição da República, surge dentro do próprio exército um "manual de capoeiragem", O Guia da Capoeira ou Ginástica Brasileira, escrito por um "distincto official do exército brazileiro, mestre em todas as armas, proffessor de militares e habilissino na gymnastica deffensiva ou

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verdadeira arte do capoeira", "ilustrado e destinado ao manuseio, ao uso, dos seus companheiros de farda". Muita gente dizia que o "distincto oficial" tinha as iniciais O.D.C.; que, apesar de aparecerem na página de rosto, na verdade quer dizer: "Ofereço, dedico e consagro à Distincta Mocidade". O libtreto - "Tendo-se esgotado, com rapidez, a primeira edição desta obrinha..." - abrange cinco partes, que focalizam: I) - Posições; II) - Negaças; III) - Pancadas simples; IV) - Defesas relativas; V) - Pancadas afiançadas". (41)

A prática (proibida) da capoeiragem, nas forças

armadas, foi se tornando tão popular que o general Nestor Sezefredo dos Passos, Ministro da Guerra do presidente Washington Luis e que tinha encaminhado um projeto de lei para a Educação Física Brasileira, era um conhecido praticante de capoeira. Em 1921, quando era um coronel de 49 anos de idade e comandava o Regimento Sampaio (RJ), o tenente Buys de Barros, de 22 anos, invadiu a sala do coronel Nestor, pistola numa mão e fuzil na outra, anunciando que estava tomando o Regimento junto com outros jovens oficiais; era mais um levante militar característico da época.

Nestor Sezefredo colocou seu cinto com coldre e revólver em cima da mesa, levantou-se, e delicadamente perguntou ao tenente os motivos da rebelião. O jovem tenente empolgou-se com a teoria e descuidou-se das armas em riste. O general foi se aproximando pensativo

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e, súbito, aplicou uma violenta e traiçoeira rasteira na mais perfeita tradição capoeirista, jogando pro alto o tenente, o revóver, o fuzil, e a ideologia. E em poucos minutos reassumiu o controle do Regimento Sampaio. O "Nestor", nome do general e meu também, não é coincidência: Nestor Sezefredo foi meu avô paterno.

O mito do "guerreiro (capoeirista) brasileiro" se

manteve durante décadas entre determinados círculos de oficiais e praças das Forças Armadas. Por exemplo, bem mais tarde, em 1968, o jovem capoeirista Dick Fersen só conseguiu organizar o 1º Simpósio Nacional de Capoeira devido o apoio que teve da Força Aérea, que forneceu as passagens de avião para os mestres de outros estados, arrumou alojamento para mais de 50 participantes, e cedeu o auditório no Campos dos Afonsos; este curioso e inusitado apoio deve ter acontecido devido ao fascínio de algum velho coronel ou brigadeiro pelo mito do "guerreiro brasileiro".

O mito, no entanto, não é sem fundamento: os

capoeiras do Batalhão de Zuavos, especialistas em tomar as trincheiras inimigas na base da arma branca, fizeram misérias na Guerra do Paraguai.

Destacam-se dois capoeiras nos combates corpo-a-corpo: o alferes Cezario Alves da Costa - posteriormente

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condecorado com o hábito da Ordem do Cruzeiro pelo marechal Conde d'Eu -, e o alferes Antonio Francisco de Melo, também tripulante da já citada corveta Parnahyba que, entretanto, teve sua promoção retardada devido ao seu comportamento, observado pelo comandante de corpos: "O cadete Melo usava calça fofa, boné ou chapéu à banda pimpão, e não dispensava o jeito arrevesado dos entendidos em mandinga" [p.79]. (42)

Já havia claramente, em 1865, uma maneira de se

vestir, de falar, e de ser, "dos entendidos em mandinga". Já havia, até mesmo, a ligação entre a "mandinga" (algo relacionado a magia, mas também um sinônimo da malícia) e a capoeira.

Cinco anos depois - 1870 -, os sobreviventes da

Guerra do Paraguai voltaram como heróis. Muitas destas feras, agora transformados em "heróis", engrossaram as fileiras das maltas cariocas; vários ingressaram na polícia (sem necessariamente abandonar as maltas).

Esta infiltração - das classes perigosas nos meios militares e, especialmente, na instituição policial -, nos meados dos 1800s, é uma das causas históricas que

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explicam a contemporânea corrupção policial, a intimidade grotesca, e a falta de uma fronteira nítida, entre muitos policiais cariocas contemporâneos e os traficantes de armas e drogas. Uma outra causa, óbvia, da corrupção que impera nas instituições policiais, é serem parte de um sistema político/econômico que sempre, desde seus primórdios, foi corrupto e extremamente injusto. Talvez porque sempre fomos uma "colônia" - dos portugueses, dos ingleses, das norte-americanos, das multinacionais -; e nossos dirigentes e homens-de-poder-e-dinheiro foram, e são, em grande parte, os testa-de-ferro e gerentes de interesses alienígenas. Enfim, estes "homens de negócios" e politicos - na verdade otários com grana e poder - são homens de visão muito curta, deslumbrados com as "luzes da Europa" ou com o "dinheiro e a modernidade dos Estados Unidos"; homens que ainda se apoiam num modelo do tipo "massa de trabalhadores ignorantes de baixo custo", e que não têm culhões, nem competência, nem criatividade para instaurar uma "nova ordem" em nosso país.

b. Um capoeirista, jornalista, escritor, e teatrólogo

português, documenta o método de ensino das maltas de capoeira em 1886.

Plácido de Abreu, capoeira e jornalista, nos deixa entrever a continuação da "construção" de um "método de ensino"; e de uma "ética", de uma "filosofia", de "uma

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maneira de ser" - enfim, da malícia -, nas maltas cariocas em 1886, através de seu livro Os Capoeiras.

Nesta época além dos escravos africanos ladinos, a capoeira carioca já tinha absorvido os negros livres, os creoulos (negros nascidos no Brasil), muitos brancos, e até estrangeiros (um em cada três capoeiras cariocas presos em 1863, era estrangeiro, a maioria português).

Há pouco tempo o bando Guaiamu costumava ensaiar os noviços no morro do Livramento, no lugar denominado Mangueira. Os ensaios faziam-se regularmente nos domingos de manhã e constavam dos exercícios de cabeça, pé, e golpe de navalha e faca. Os capoeiras de mais fama serviam de instrutores. ... se os chefes decidiam que uma questão fosse resolvida em combate singular, enquanto os dois representantes das cores vermelha e branca se batiam, as duas maltas conservavam-se à distância e, fosse qual fosse o resultado, de ambos os lados rompiam aclamações ao triunfador. A chegada da polícia desarticulava os dois grupos que fugiam de forma

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organizada. (43) Já existia, em 1886, não somente a capoeira com

uma identidade e filosofia - a malícia -, mas também um método de ensino racional e estruturado para transmitir, não somente as técnicas - "constavam dos exercícios de cabeça, pé, e golpe de navalha e faca" -, como também do axé e do saber - "os capoeiras de mais fama serviam de instrutores".

Já existia também uma "ética": "se os chefes decidiam que uma questão fosse resolvida em combate singular, as duas maltas conservavam-se à distância e, fosse qual fosse o resultado, de ambos os lados rompiam aclamações ao triunfador".

Além disto, vejam bem: "... os dois grupos fugiam de

forma organizada". Certamente, além do Valente, já podemos sentir uns

ares de malandragem - e de malandragem organizada! -, em 1886.

Aliás, esta "fuga organizada", que já é parte da malícia naquela época, vai ser citada por mestre Bimba como característica da capoeira baiana quase cem anos depois (1960):

"Quem aguenta tempestade é rochedo" Ou seja, o capoeirista, que é um homem e não um

rochedo, foge quando a parada é dura demais. Então esta "fuga organizada", que é citada por

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Plácido de Abreu em 1886, e também é mencionada por mestre Bimba por volta de 1960, é incorporada definitivamente à malícia e vai dar na "estratégia da esquiva" (em oposição à uma estratégia de "bater de frente", ou de "bloquear", de várias artes marciais).

A esquiva, assim como a rasteira (o capoeira desce se esquivando, ao mesmo tempo que derruba o adversário), é parte do jogo; e também da maneira do capoeirsta lidar com os "ataques" que sofre no seu dia-a-dia.

c. Um desenhista e chargista registra a malandragem

e a capoeiragem carioca de 1906 Em 1906, vinte anos depois de Plácido de Abreu, as

maltas cariocas tinham sido desbaratadas pela perseguição que veio com a República (1890). Curiosamente temos uma reportagem de Lima Campos enfocando a capoeira na sofsiticada revista carioca Kosmos (44). Nesta reportagem, Kalixto Cordeiro apresenta desenhos dos Guaimus e Nagoas - as duas principais maltas do final dos 1800s -, e dá voz a estes personagens, reproduzindo a maneira de falar destes incipientes e seminais malandros.

O Valente ainda está poderoso na "construção" da malícia; mas vemos que o Malandro começa a ter quase tanta importância, e já começa, até mesmo, a ter uma "fala malandreada".

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Na verdade, talvez Kalixto, em 1906, não se recordasse do "falar malandreado" de 25 anos antes, dos Guaiamus e Nagoas de 1880. Por isso é mais provável que retratou a "fala malandra" de sua própria época - o comecinho dos 1900s, onde não existem mais as maltas, mas já começa a aparecer o malandro.

Apesar da "malandragem carioca" ser mais fortemente difundida nas décadas de 1920 a 1950 quando a "produção da música popular carioca teve na malandragem seu motivo central ou seu motor poético" (45) - como ensinou Claudia Matos -, já em 1906 podemos constatar uma "maneira de ser" malandra, uma "filosofia da malandragem", um "texto malandro" da qual se ouvem os ecos nas falas reproduzidas por Kalixto.

Vejam só a pujança; a importância da corporalidade; do suíngue; e da "alegria de viver" (que também são elementos integrantes da malícia da capoeira atual); que transparece no falar destes primeiros malandros, reproduzido por Kalixto, já em 1906.

Cahi no bahiano rente a poeira, e isquei-lhe um rabo-de raia que o marreco voôu na alegria do tombo, indo amarrotar a tampa do juizo n'uma canastra, e ahi gritei: Entra negrada! O turuna enfeitou-se outra vez... Oh! cabra cutuba!

Não te conto nada seu compadre! o

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samba esteve cuerê-réca. No fim que houve uma choramella de escacha. O Cara Queimada estava de sorte com a Quinota quando o marchante chegou. Ih! seu camarada! Foi um estrompicio! O Marchante era sarado, foi logo encaroçando a joça. Eu tive que entrar com o meu jogo, sim, tu sabes, que não vou nisso, e ali eu estava separado, não havia cara que me levasse vantagem. Quando a coisa estava preta eu fui ver como era p'ra contar como foi. Com pouco vi um cabra peneirando na minha frente, dansei de velho, o typo era bom! sambou e entrou no caterêté commigo... Fiz duas chamadas nos materiaes rodantes, de uma palma,sempre com os mirones grelados no mecco, o cabra não leu... Fiz uma figuração por cima para o bruto fugir com o carão, e grampeei o individuo. Chamei o cabra na

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xinga, levei a caveira de lado, e fui buscar o machinismo mastigante do poeta. O cabra engolio a lingua, damnou-se, não perdeu a scisma, ganhou tento e compareceu de novo... Não fiz questão do preço da banha... Grimpei, perdi a estribeira, cocei-me, dei de mão na barbeira e... ia sapecar-lhe um rabo de gallo, quando o cabra cascou-me uma lamparina que eu vi vermelho! Ahi não conversei, grudei na parede, escorei o tronco, e meti-lheo andante na caixa de comida. O dreco bispando que eu não erapecco, chamou na canella que si bem corre, está muito longe... Eu voltei p'ro samba garganteando: "Meu Deus que noite sonorosa"(46)

Fica óbvio que o malandro, que "cai no bahiano",

aplica o "rabo-de-arraia", e que "mete a mão na barbeira" (navalha), é um descendente direto das maltas; ainda mais por viver no mesmo espaço geográfico (a Lapa, no Rio de Janeiro) das maltas em 1906, menos de 20 anos

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depois de serem desbaratadas. d. O Negro Ciriaco derrota o japonês Sado Miako em

1909. Também vemos esta maneira de falar, 6 anos depois,

no depoimento do Negro Cïriaco (1909), após sua vitória sobre Sada Miako, campeão japonês de jiujitsu, e instrutor de defesa pessoal dos oficiais da marinha brasileira. Esta "fala malandreada" irá se desenvolver nas décadas de 1920 e 1930, e será usada pelos malandros e sambistas.

Vamos examinar o artigo de mestre Jair "Perigo"

Moura (47) que recorta trechos do depoimento de Ciríaco ao jornal "A Notícia" (17/5/1909), à revista "A Careta" (29/5/1909), e à revista "O Malho" (13/8/1910):

O embate de Ciríaco da Silva com Sada Miako contribuiu decisivamente para a credibilidade, a difusão, o renascimento da capoeiragem, que atravessava uma fase de declínio, de ostracismo, desde os tempos da ofensiva desencadeada pelo Dr. João Batista de Sampaio Ferraz, o primeiro Chefe de Polícia do Rio de Janeiro republicano... Com sua vitória, Ciríaco tornou-se o alvo de todas as atenções, mormente porque

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vários capoeiras já tinham sido postos fora de ação pela destreza, habilidade e vigor dos golpes demolidores de Sada Miako. "Cheguei em frente com ele (declara Ciriaco ao jornal "A Notícia"), dei as minhas cuntinenças e fiz a primeira ginga, carculei a artura do negrinho, a meiada das pernas, risquei com a mão pra espantá tico-tico, o camarada tremeu, eu disse: Antão? Como é? Ou tu leva o 41 dobrado ou tu está ruim comigo, pruque eu imbolá, não imbolo. O japonês tremeu, risquei ele por baixo, dei o passo da limpeza gerá, o negrinho aturduou, mexeu, mas não cahio". O repórter inquiriu sobre a reação da platéia que, entusiasmada, incitava Ciríaco e aplaudia o seu desempenho espetacular, gritando: "Aí, Ciríaco! Entra com teu jogo inteiro!". "Eu me queimei e já sabe: tampei premero, distroci a esquerda, virei a

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pantana, e oiá o homê levando com o rabo-de-arraia pela chocolateira. Deu o ar comprimido e foi cumê poeira. Ahi eu fiz o manejo da cumprimentação e convidei o home pro relógio de repetição, mas o gringo se acontentou com a chamada e se deu por satisfeito"... "Você a princípio não queria dar a mão ao japonês?" Retrucando, o interrogado esclareceu: "Quá o que, meu sinhô: se ele quizé eu dou as duas mão e atiro com ele pru cima do piano, da música e até das madamas dos camarotes". (48)

As declarações de Ciríaco não confirmam o mito da

cusparada nos olhos - vitória sem fair play -; nem a versão de que, logo nos primeiros instantes da luta, Koma tentou o "arrastão" e Ciríaco soltou o "rabo-de-arraia" pegando o adversário na cabeça - vitória por um "golpe de sorte" e/ou "esperteza".

Na versão do capoeirista, o golpe fatal foi dado após alguns momentos de estudo: Ciríaco desnorteou o adversário com a ginga; fintou um tapa ("...risquei com a mão pra espantá tico-tico"); tentou derrubar com a "rasteira" ("risquei ele por baixo... mexeu, mas não cahio"); movimentou-se, enganando e novamente desnorteando o adversário ("tampei premero, distroci a

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esquerda, virei a pantana"); para só então desferir o "rabo-de-arraia na chocolateira" (cabeça).

Pode-se compreender a força do mito da "cusparada"

por estar baseado na "falsidade" (uma "qualidade", no entender dos capoeiristas).

Pode-se também compreender o potencial de uma explicação da vitória de Ciríaco, baseada na "esperteza" (Ciríaco prevendo que Miako iria "entrar agarrando por baixo tentando levá-lo para o chão, para a luta agarrada"); e o fim da luta com um único "golpe de sorte". Ainda mais que o próprio capoeirista recusava-se a lutar agarrado ("...antão? como é? ou tu leva o 41 dobrado ou tu está ruim comigo, pruque eu imbolá, não imbolo").

Por outro lado, entende-se também a surpresa geral

face a vitória de Ciríaco ("tornou-se o alvo de todas as atenções, mormente porque vários capoeiras já tinham sido postos fora de ação pela destreza, habilidade e vigor dos golpes demolidores de Sada Miako").

Vigorava um diagnóstico depreciativo, uma "ideologia do pessimismo" do "homem brasileiro" (que irá desaguar em Moreira Leite, "O caráter nacional brasileiro", 1968), desde o Visconde de Taunay, no Segundo Reinado, com suas esperanças da redenção antropológica atrvés de uma imigração dos povos da Europa do Norte (alemães, escandinavos).

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Era necessário justificar a vitória do negro brasileiro sobre o estrangeiro, contratado para "ministrar os ensinamentos das regras do jiu-jitsu, difundidos pela Marinha do Brasil" - o ramo aristocrático da Forças Armadas Brasileiras. Esta justificativa alegaria uma "traição" ou "esperteza".

Seria impensável imaginar que Ciríaco - negro capoeira - pudesse sair vitorioso em condições de fair play; embora o capoeira testemunhase que no início da luta "cheguei em frente com ele e dei as minhas cuntinenças" e que, após o "rabo-de-arraia" demolidor, "fiz (novamente) o manejo da cumprimentação e convidei o homê pro relógio de repetição, mas o gringo se acontentou com a chamada e se deu por satisfeito". Na fala do reporter nota-se claramente a dúvida, a incredulidade numa vitória "honesta" de Ciríaco: "você, a princípio, não queria dar a mão ao japonês?"; e, mesmo tantos anos depois, sentimos claramente o despertar da irritação do capoeira que comprende claramente os preconceitos do sinhô jornalista: "quá o que, meu sinhô: se ele quizé eu dou as duas mão e atiro com ele pru cima do piano, da música e até das madamas dos camarotes".

Ciríaco faleceu três anos depois, em 1912, aos quarenta anos de idade, vitimado por uremia.

Com Ciriaco vemos que a "construção" da malícia já

incorporou definitivamente o Malandro (além do Valente);

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e que ocasionalmente o capoeira emerge como "herói". Mas nesta construção, nem sempre se trata de

adicionar. Muitas vezes, períodos inteiros, ou características básicas, são apagadas e jogadas foras por uma nova geração.

c. O esquecimento, pela História, das maltas cariocas

dos 1800s A memória da capoeiragem carioca do final dos

1800s, que nos deixou seu herdeiro destronado - o malandro -; que vetorizou indivíduos como o capoeira Negro Ciríaco, como João Candido da Revolta da Chibata , e os capoeiras da Revolta da Vacina; foi praticamente apagada:

- apagada da "memória oficial" da "História do Brasil"; - apagada da memória da capoeira, e da memória dos

capoeiristas em geral (e só é retomada após 1970, por pesquisadores com o mestre Jair "Perigo" Moura, Bretas, e Libano Soares,);

- e também da memória da própria malandragem carioca.

1. O desaparecimento da memória oficial é fácil de

entender: a capoeira das maltas estava imbricada com a malandragem e a navalha. Quando Getúlio sobe ao poder na década de 1930 e permite uma "capoeira domesticada e vigiada" (extirpada de seus valores marginais e malandros, como também acontece hoje em

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dia nas academias), esta capoeira das maltas é jogada para escanteio, não é mais mencionada, como se nunca tivesse existido.

2. Por outro lado, Letícia Reis estudou a parte

referente ao "sumiço" da capoeira das maltas cariocas dos 1800s, da memória da capoeiragem:

... alguns estudiosos que abordaram a capoeira baiana não perceberam criticamente essa 'invenção de tradições', acabaram por adotar a perspectiva dos capoeiristas. (49)

Isto é: muitos capoeiristas nem sabem que existiu

esta capoeira caioca dos 1800s. E a maioria acredita que "a capoeira nasceu na Bahia", e que a capoeira baiana é "mais pura" e, dentro da capoeira baiana, acham que a angola é "mais pura" e "mais tradicional" que a regional.

E muitos estudiosos e pesquisadores também embaracaram nesta onda.

Seguiu-se, então, a desvalorização da capoeiragem das maltas cariocas dos 1800s, e o obscurecimento de sua memória entre os próprios capoeiras das décadas seguintes; um fade-out ajudado pelos trabalhos literários que (até aprox. 1965) glorificavam a "nova" Luta Nacional (a capoeira castrada de suas origens negras e marginais).

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3. No entanto, a parte mais curiosa: o obscurecimento

da memória da capoeiragem carioca dos 1800s no imaginário da própria malandragem carioca, é uma coisa curiosa e aparentemente sem explicação.

Já em 1910, menos de vinte anos após o apogeu das maltas cariocas (em 1890), o malandro Madame Satã, em suas memórias, não menciona a capoeira das maltas.

Isto nos leva a pensar que a malandragem, e muitas

outras atividades marginais das classes economicamente desfavorecidas, não têm, e nem se importam, com o passado. Eles vivem a "loucura" do aqui e agora.

Por outro lado, quem insiste em preservar a "história", em "construir" a idéia de um encadeado de ações no tempo que podem dar um certo sentido (racional) à vida (e à sociedade), é o Sistema, são os "sedentários" (no sentido dada por Deleuze e Guatari em Mille Plateaux, que veremos mais adiante).

"Marginal", aqui, obviamente não inclui o candomblé; ou o próprio samba, a partir dos 1920s. "Marginal", aqui, é marginal mesmo: a bandidagem; ou a boemia desregrada de determinados artistas e pessoas. Eles não tem memória pois não se importam nem em preservar a sua própria vida, vivem num turbilhão que sabem que terá curta duração.

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d. Os brabos em Recife, e o valentão em Salvador No entanto, independente do obscurecimento da

memória, esta "fala malandra" - que era reflexo de uma "identidade do malandro", já em 1906 (Kalixto), e em 1912 (Ciríaco) - foi se sofisticando. Quando chegamos em 1930, este tipo de falar, e o próprio tipo social - o Malandro -, já existem em definitivo, e já têm grande visibilidade no universo do samba, e na capoeira.

Paralelo a esta "construção da malícia" no Rio de

Janeiro, isto também acontecia com os brabos das bandas de música do carnaval de Recife, no começo dos 1900s.

E também com os valentões da capoeira de Salvador. Estes valentões eram sujeitos rudes e afeitos ao autoritarismo policialesco, como vemos neste artigo do jornal A Tarde, Salvador 1920:

Foi um rolo feio na Baixinha... A navalha e a faca trabalharam (...) João Batista ou "Guruxinha", trabalhador das Docas, vinha com um companheiro de trabalho, João de Tal, vulgo "Rajado", quando ao chegar ao alto do elevador do Taboão, encontraram "Pedro Porreta" e "Piroca" (irmão de Pedro), que estavam a beber numa

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taverna. O primeiro destes, que é peixeiro na Baixa dos Sapateiros, e antigo desafecto de de "Guruxinha", chama "Rajado" e indaga: - Que é que veio fazer aqui nesta zona? - Viemos buscar uma roupa na casa do alfaiate, na baixinha - reponde "Rajado". - Pois então os dois estão presos por que aqui quem manda sou eu! - grita o "Porreta" (apesar de não ser policial). A esta voz, "Rajado" sai em disparada pela ladeira abaixo, enquanto "Guruxinha" se revolta contra a esquisita prisão dizendo: - Não o conheço com autoridade de me prender. (50)

Oliveira conclui a história contando que "Piroca"

atacou e foi esfaqueado "Guruxinho"; "Porreta" sacou de sua "inestimável navalha... e começa a retalhar o inimigo"; e "o único a sair ilesa de ferimentos foi o Pedro Porreta".

Ou seja, neste relato, assim como na imagem de Besouro - um ícone da capoeira -, em Salvador no início dos 1900s, vemos claramente o Valente, mas nem tanto o Malandro.

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Mas estes rudes valentões baianos serão substituídos, após a década de 1930, pelos Educadores, como Bimba, Pastinha, Waldemar da Paixão, Noronha, e tantos outros.

e. Os educadores baianos

A capoeira veio da África trazida pelo africano todos nóis sabemos disco porem não era educada quem educor ella famos nois bahiano para sua defeiza pessoal. (51) Mestre Noronha, 1909-1977.

Estes educadores vão se travestir com valores da

sociedade para, justamente, seduzir esta sociedade, e conquistar espaço para a capoeira e para o homem negro.

Mas algo que não é comentado, é que paralelo a esta "sedução" (que já é, obviamente, um agir malandro altamente sofisticado), estes educadores - Bimba, Pastinha, e todos os outros mestres baianos entre 1930 e 1960 -, também vão introduzir elementos "filosóficos" e de "malandragem" (não necessariamente idênticos ao da malandragem carioca) na incipiente capoeira baiana daquela época.

Ou seja: vão ser muito importantes na "construção" da malícia, após 1930.

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Mas paralelo à Bimba e Pastinha, já acontecia o

samba (carioca) e o rádio (em todo o Brasil), por volta de 1920 1930, que foram elementos extremamente importantes desta mesma dinâmica.

O malandro e o sambista No início dos 1900s, não havia rádio nem televisão;

as experiências, as vivências, e o "saber" dos capoeiras de uma cidade não influía diretamente e on line sobre os capoeiras das outras cidades.

Ainda assim, estas capoeiras não eram completamente estanques e isoladas. Já havia uma troca de saberes, e havia canais de comunicação . Especialmente porque o Rio e Salvador e Recife eram cidades portuárias com enorme movimento de navios e marinheiros, e um dos espaços privilegiados da capoeira - dos 1800s e início dos 1900s - era justamente a área portuária das três cidades, com seus navios e marinheiros que iam de um local ao outro.

Por volta de 1920 e mais fortemente a partir de 1930, o Rio era a capital da República e o grande centro irradiador de cultura; tudo que acontecia por lá ressoava pelo resto do país. A "filosofia da malandragem" carioca começou a ser divulgada através dos "sambas de malandro", que estavam sendo gravados em disco e

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tocados no rádio, que já existia nesta época, com grande sucesso em todo o país.

No Rio de Janeiro, enquanto segmentos sociais

hegemônicos cariocas tentavam mudar, no imaginário, a imagem da capoeira; observava-se também a reação das "classes populares" com a construção, popularização, e consagração do "malandro".

O Malandro vai atravessar horizontalmente toda a cultura, e maneira de ser, do carioca - e, em última instância, do brasileiro -; e, verticalmente no tempo, vai também ser vetor ativo e atuante na formação da atual "filosofia da capoeira" - a malícia.

O Malandro vai se tornar tema de muitos sambas até que, com a política de Vargas de valorização do trabalho na década de 1930 (52), ele começará a apresentar-se como o "malandro redimido".

O Malandro era o herdeiro destronado e solitário das

maltas cariocas extintas pela perseguição policial na virada do século XIX para o XX.

"Solitário": agindo individualmente e sem o poder do grupo, não se tornou um risco para a polícia e para o novo Regime Republicano, como tinham sido as maltas de capoeira do Império).

"Destronado": sem o apoio de algum político poderoso; como (no passado) o poderoso e rico parlamentar conservador, monarquista, e abolicionista,

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Luiz Joaquim Duque-Estrada Teixeira, o Nhô-nhô da Gloria, que patrocinava a malta Flor da Gente.

O malandro era um elemento fragilizado que contava apenas com sua esperteza, sua lábia, seu charme, seu know-how do jogo e das mulheres, sua capacidade de apelar inesperadamente para a capoeiragem e para a navalha quando se via acuado e sem possibilidades de resolver a situação "na conversa".

Apesar desta herança - o Malandro -, a verdade é que

a ação policial conseguiu atomizar as maltas dos 1800s. Não mais grupos, mas indivíduos isolados. Por outro lado, era a vitória - dentro da derrota - da

estratégia de Manduca da Praia (aprox. 1870), que "não recebia influências da capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte, sendo capoeira por sua conta e risco".

Nós veremos muitos mestres, em Salvador e também no Rio e São Paulo, nas décadas de 1950 e 1960, que eram indivíduos que ensinavam capoeira "à parte, por sua conta e risco", como o Manduca da Praia de cem anos antes - 1870.

Mas já em 1970, vemos o reaparecimento de grandes grupos de capoeira, principalmente no Rio e São Paulo, que amealhavam dezenas e, a partir dos 1990, centenas de professores (e alguns milhares de alunos).

A capoeira das maltas cariocas de 1800s quase não

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deixou registro de mão própria - exceto pelos relatos de Plácido de Abreu (1886) -; os registros que temos são de outros atores, como "a pena do escrivão de polícia".

Por sua vez, a malandragem seminal do comecinho dos 1900s também não deixou registro próprio, exceto pelas falas de Kalixto e de Ciríaco.

Sobrou principalmente a voz do sambista.

As letras de samba por muito tempo constituiram o principal, senão o único, documento verbal que as classes populares do Rio de Janeiro produziram autônoma e espontaneamente. (53)

Provavelmente (e, aqui, com este "provavelmente",

entro no terreno das suposições e da "invenção de tradição"), os capoeiras de Salvador e Recife perceberam que aquela "malandragem" carioca - veiculado pelos marinheiros e músicos que aportavam vindos do Rio; e mais tarde, a partir dos 1930s, veiculada pelos sambas que tocavam no rádio -, era algo bastante "familiar".

"Familiar" mesmo, no sentido de ser algo da mesma família.

E rapidamente adotaram, absorveram, e encarnaram aquele "saber", e até mesmo parte de seu elegante e espalhafatoso visual.

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Inicialmente o samba era composto grupalmente, era uma atividade comunitária. Mais tarde aparece o indivíduo "autor/compositor de samba" (vemos uma certa semelhança com as maltas que eram grupais, em oposição à estratégia de Manduca da Praia que obrava "por conta e risco").

Talvez pudéssemos dizer o mesmo das rodas de capoeira, em Salvador, por volta de 1920 - era uma coisa grupal, como a turma que iniciou Noronha -; até o aparecimento do "mestre" com sua "academia", após a década de 1930 com mestre Bimba.

Sinhô, o primeiro músico popular a se distinguir na sociedade global como autor-compositor de sambas, realiza a conjunção ambivalente do coletivo com o individual que caracterizaria mais tarde o samba malandro, do qual aliás pode ser considerado precursor. Se o desejo de ascender socialmente ou de ganhar dinheiro, orientava-lhe a conduta no momento de registrar e promover seus sambas, tal individualismo não chegava a determinar seu modo de produção, que permanecia vinculado aos fundamentos "comunalistas" - para retomar a expressão de Muniz Sodré - do músico

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negro-proletário. (54) Geraldo Pereira, por sua vez, constituiu um modelo

de malandro e sambista daquela época: sambista, compositor, valente, mulherengo, mas com emprego como motorista da Limpeza Urbana.

Geraldo Deodoro Pereira nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, a 23 de abril de 1918. Vindo ainda garoto para o Rio, foi morar em Mangueira, e depois no Engenho de Dentro por volta dos 18 anos. Em 1939, já morador da Lapa, teve sua primeira composição gravada pelo cantor Roberto de Paiva. Era o samba Se você sair chorando, de parceria com Nelson Teixeira. Em 1940 começa sua associação com Ciro Monteiro, seu grande amigo até o final e principal intérprete. Trabalhou em boates e teatros, sendo também cantor, melodista e letrista. De sua autoria, gravaram-se cerca de sessenta sambas em 78 rpm, e ao todo mais de 70 composições, embora muita coisa sua ainfda permaneça inédita.

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Morreu precocemente, ao que se diz em consequência de uma briga com o afamado Madame Satã. Em 4 de maio de 1955, foi internado com hemorragia intestinal no Hospital dos Servidores Públicos, como funcionário público que era, motorista da Limpeza Urbana. Morreu no dia 8, um domingo, aos 37 anos de idade. Ciro Monteiro custeou seu enterro. Geraldo deixou viúva, Eulíria Salustiano Pereira e o filho Celso Salustiano Pereira. O jornalista Jorge Aguiar considerou Geraldo 'o maior sambista de sincopados que já apareceu', fazendo 'sambas diferentes de tudo o que se fazia na época, usando a língua dos trens de subúrbio, das gafieiras, das rodas de malandragem da Lapa, das subidas sinuosas dos morros'. Chamou-o também de 'malandro autêntico dos anos 30', esclarecendo: 'como malandro que era até a raiz dos cabelos (não confundir com vagabundo que é outra coisa), sempre na estica daquele linho branco amarrotado, balanceado naqule ginga de valente calmo e boa gente, quase dois

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metros de altura, forte como um touro, isso tudo fazia de Geraldo Pereira dois tipos de que nunca se afastou: o mulherengo incontrolado, sempre cobiçado pelas cabrochas mais disputadas, e um valente invulgar... As histórias de valentia de Geraldo Pereira enchem o folclore carioca'. (55)

A "filosofia da malandragem" estava, então, fina e

legitimamente representada nos sambas de Geraldo, e outros, que eram excelente compositores, talentosos sambistas, e genuínos malandros.

Vejam estes sambas, da década de 1930, quando o malandro já era o "rei da Lapa" - o bairro da vida noturna do Rio de Janeiro, cheio de bares, cassinos, casas de jogo e de prostituição.

"Meu chapéu de lado Tamanco arrastando Lenço no pescoço Navalha no bolso Eu passo gingando Provoco e desafio Eu tenho orgulho De ser tão vadio" (Lenço no pescoço, Wilson Batista,

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1936) "Lá vem o Chico Brito Descendo o morro nas mãos do Peçanha É mais um processo É mais uma façanha Chico Brito faz do baralho O seu melhor esporte É valente no morro Dizem que fuma Uma erva lá do norte" (Wilson Batista e Afonso Teixeira)

A Lapa, por sua vez, era o habitat perfeito para o

malandro:

A Lapa boêmia começou a crescer por volta de 1910 e atingiu seu período de ouro mais ou menos entre o final dos anos quarenta (1940)... Os bares: o Siri, o Café Colosso, o Capela, o Café Bahia, o Imperial. Os cabarés: o Apolo, o Royal Pigalle, o Vienna Budapeste, o Novo México, o Casanova, e o incrível Cu da Mãe. O Cassino High Life... Parisienses, polacas e brasileiras. Leonor Camarão, que morreu enquanto

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tomava um banho de champanhe. Boneca, por quem mais de um homem se matou... Mas outros lugares como o Mangue, a Saúde, a Praça Onze e o Cais do Porto também abrigaram muitos malandros... Meia-Noite, Beto Batuqueiro, Edgar, Sete-Coroas, Miguelzinho e muitos outros... (56)

Quando, em 1937, Getúlio Vargas e o Estado Novo

instituem "a ideologia do culto ao trabalho e uma política simultaneamente paternalista e repressiva em relação à cultura popular" (57), os compositores foram incentivados "a louvar os méritos e recompensas do trabalhador, ao mesmo tempo que se interditam e censuram os casos e façanhas do malandro" (58).

Além disto, muitos malandros vão morrendo. Meia-Noite morreu assassinado por um desafeto em 1938. Miguelzinho morreu aos dezoito anos de morte natural. Joãozinho da Lapa foi assassinado por um companheiro de malandragem por volta de 1939. Edgar morreu aos 26 anos de idade. (59)

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Então, como já dissemos, na década de 1940 aparece:

... a figura ambígua do 'malandro regenerado', sempre às voltas com a polícia, falante, problemático, defensivo, dizendo-se trabalhador honesto mas sempre carregando os estigmas e emblemas da malandragem (60)

Vejam este samba de Wilson Batista, típico desta

época:

Seu Martins Vidal Eu moro no Lins e sou o tal que há muito tempo exerço uma fiel profissão Eu não sou mais aquele antigo trapalhão (Averiguações, Wilson Batista, 1941)

Mas o malandro já tinha fundado sua dinastia dentro

do samba. Na minha juventude, tivemos figuras como Bezerra da Silva, João Nogueira, Zé Keti; e atualmente, ilustres e talentosos representantes em Martinho da Vila e Zeca Pagodinho; apesar dos versos de Chico Buarque e de requiens e sentenças definitivas de estudiosos

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vários.

Eu fui na Lapa e perdi a viagem pois essa tal malandragem não existe mais. (Chico Buarque) Não tenho dúvidas quanto ao desaparecimento, nos dias atuais, do suporte sociológico que ancorou a vadiagem na música popular. (61)

Os malandros que viveram nas primeiras décadas do

século XX, e "protegeram" a Lapa, são um estranho elo de ligação entre as maltas cariocas do século XIX - das quais o malandro era o herdeiro - e as academias de capoeira que irão começar a se alastrar no Rio, e logo também em São Paulo, e depois por todo o Brasil. As mais conhecidas, no Rio de Janeiro, foram:

- na década de 1930 (ate aprox. 1960), Sinhozinho (capoeira-luta sem berimbau ou ritual);

- na de 1950 (até aprox. 1975), Artur Emídio (capoeira de Itabuna, similar à de Bimba, capoeira objetiva com berimbau);

Apesar do obscurecimento dos atores e cenários da

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capoeiragem das maltas dos 1800s, houve uma herança que se transmitiu de maneira não-causal e não-linear.

O saber da capoeiragem dos 1800s "enxameou" a malandragem do início dos 1900s; assim como o universo do samba carioca; e a capoeiragem carioca das décadas de 1930, 40, 50, e, em consequência o grande movimento de expansão, poderíamos até dizer "explosão" da capoeira, que vai começar na década de 1960.

A descontrução do malandro, dentro da própria

malandragem A malandragem, e os "verdadeiros malandros",

ironizam "espertos" e "golpistas" metidos a malandro, chamando-os de "malandro-agulha"; uma denominação que vem com seu poético epiteto - "toma no buraco (ânus), sem perder a linha" -; primo-irmão do "malandro-otário", e do "falso malandro"

Na verdade, existem várias categorias de malandro na marginália, e que, contudo, são muito distintas de outras variedades e tipos, como o 171 (escroque), o golpista, o punguista (batedor de carteira), o vadio, o mendingo, o ladrão que se especializa no furto (em oposição ao que é especializado no roubo), o assaltante de banco, o valente, o pistoleiro, o matador, o 281 (traficante),etc.

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Evidentemente, estas categorias não aparecem "puras" nas pessoas de carne e osso. Muitos destes, apesar de "especializados", tem muito a ver com a malandragem - melhor dizendo, são, todos eles, trespassados pela "filosofia da malandragem".

Isto complica o entendimento do que seria a Malandragem, e o Malandro.

Outro problema na abordagem do malandro é que,

muitas vezes, o estudioso não tem conhecimento desta diversidade de categorias; não tem conhecimento prático do submundo. Conhece apenas as representações feitas pela classe média e burguesia; e confunde alhos com bugalhos; confunde a grande obra de arte do mestre Picasso, com a grande pica de aço do mestre de obras.

Este cenário se torna mais complexo, ainda, pela

descontrução do malandro dentro da própria malandragem.

"Malandro não existe!", afirma o malandragem que, há menos de vinte minutos atrás, encostado no balcão de um botequim no Buraco Quente do Morro da Mangueira (no Rio de Janeiro), mandou passear um malandro-otário que queria ficar na aba do seu (do malandragem) chapéu, filando cerveja gelada e cigarro:

"Sai fora, mané! Em casa de malandro, vagabundo não pede emprego!"

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Esta negação, da existência do malandro dentro da própria malandragem, é antiga.

Noel Rosa, p.ex., cantava: "No século do progresso, o revólver teve ingresso para acabar com a valentia" Poderíamos pensar: o que Noel quer é, justamente,

separar e explicitar as categorias: "malandro é malandro, valente é valente".

Tudo bem. Mas o assunto é ligeiramente mais complexo, tanto é

assim, que Noel também canta: "Malandro é palavra derrotista, que só faz deturpar o nome do sambista" Ou seja, não só o descolamento do malandro do

valente; mas também a separação entre o malandro e o sambista.

E o mesmo samba conclui: "Proponho, ao povo civilizado, não mais te chamar de malandro,

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mas, sim, de rapaz folgado" Enfim, levando em consideração que Noel Rosa era,

ele mesmo, um príncipe sem navalha da malandragem, poderíamos pensar: paradoxo é o que não falta.

Se usarmos o enfoque de Eduardo Coutinho (62)

sobre "a dialética da tradição" onde ele analisa "o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola", creio que teremos mais facilidade em destrinchar e desovar o presunto.

A tradição (no caso, a tradição da malandragem) não é um saber "congelado", como uma estátua, ou uma pintura pendurada na parede de um museu.

A tradição é um "processo dialético", no qual as questões e problemas do presente são resolvidas por um "saber" do passado. Mas este "saber" do passado, se modifica e se adapta, mantém um diálogo com o contexto presente (que é diverso do contexto onde o "saber" originalmente foi forjado), para poder resolver os problemas e as situações da atualidade.

Então, durante um certo período, as maltas cariocas

de capoeira tiveram sucesso e se desenvolveram usando uma "estratégia de violência".

Este saber foi passado ao herdeiro das maltas: o malandro. Este malandro obviamente era malandro e também valente (como eram os capoeiras das maltas).

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Mas eis que o samba, que nasce mais tarde, por volta de 1920, no mesmo caldeirão cultural e geográfico, começa a fazer sucesso. E eis que o malandro/valente/sambista percebe que é melhor "aposentar a navalha", como explicitou Chico Buarque. Melhor dizendo: mantê-la escondida no cós da calça; e, para uso externo, usar um discurso que a condene, como foi feito por Noel:

"Deixa de arrastar este tamanco, que tamanco nunca foi sandália. Tira o lenço branco do pescoço, compre terno e gravata, jogue fora esta navalha, que te atrapalha". (Noel Rosa) Então, creio que para melhor é esquecer por um

breve momento o Malandro, que é uma figura camaleônica, quase utópica; é mais como uma direção e um gol para os malandros (de carne e osso).

Esqueçamos, então, o Malandro; e vamos tentar entender a Malandragem como uma Escola Filosófica que matém um "processo dialético" com a tradição (os valores herdados das maltas cariocas dos 1800s). Isto, da mesma forma que Paulinho da Viola, que é um "inovador" respeitado pelos jovens e pela Velha Guarda, mantem um "processo dialético" com a tradição do

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samba. Então, a Malandragem é uma Escola Filosófica

baseada na "dialética da tradição". Uma Escola filosófica que tem uma práxis, usada no

dia-a-dia. Uma Escola Filosófica que faz evoluir o corpo, a

mente, e a alma. Uma Escola Filosófica que, em grande parte, é

constituída de uma sabedoria corporal (aprendida com o corpo, e não com a mente), como dançar o samba, jogar capoeira, tocar instrumentos musicais.

Uma Escola Filosófica que atua vericalmente através do tempo; e, horizontalmente, trespassa todo o submundo, e também toda a sociedade brasileira, em menor ou maior grau; mas nunca em estado de "pureza", pois a "pureza" é característica dos saberes teóricos.

Por outro lado, o Malandro, seria aquele ser utópico

que se formaria, "puro", nesta Escola Filosófica. Uma impossibilidade, já que é uma escola imbricada seminalmente ao corpo e à "vida real", às esquinas, ao mundo da rua - e portanto "impura".

O Malandro é, portanto, uma figura mítica, virtual; um gol, uma direção na qual seguem os estudantes desta escola.

Malandro não existe! O que existe, então? O que existe são pessoas que entraram em contato

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com este saber - malandragem - e utilizam-no no seu dia-a-dia. Alguns poucos são artistas talentosos, a maioria não é. Alguns são espiritualizados e alto-astral, a maioria não é. Alguns são filósofos ou inteligentes por natureza, a maioria não é... cavalo tem muito, São Jorge é um só.

As contribuições de Bimba e Pastinha na

"construção" da malícia Mas este movimento de troca, esta "construção" da

capoeira e de sua malícia, que começou a ficar mais forte por volta de 1930 (com os "sambas de malandro" irradiados pelo rádio), não era uma rua de mão única, do Rio para Salvador.

Na Bahia, a partir da década de 1930, como já dissemos, entram em cena os Educadores, que terão uma grande influência, talvez a mais forte de todas, na "construção" da capoeira e de sua "filosofia" e "ética" - de sua malícia.

Na década de 1930, mestre Bimba, com 30 e poucos

anos de idade, abre a sua academia de capoeira regional, em Salvador. Este "estilo de capoeira" vai se tornar tão forte e hegemônico que, já na década de 1940, vemos os jornais e a população carioca, especialmente a grande parcela que se interessava pelo esporte,

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seguindo atentamente as lutas (de ringue) realizadas no Rio de Janeiro entre capoeiristas de Bimba, vindos de Salvador expressamente para realizarem as lutas, com os capoeiristas cariocas de Sinhozinho.

Ou seja, na década de 1940, as trocas entre as capoeiras do Rio e Salvador são cada vez mais fortes e atuantes. E a malícia - o "saber" da capoeira que faz o corpo e a mente dos capoeiristas - se enriquece, cada vez mais, com as experiências e vivências destas duas metrópoles.

Atuando em paralelo temos, portanto, durante as

décadas de 1930 e 1940: - os "sambas de malandro", no Rio de Janeiro,

transmitidos pelo rádio para todo o Brasil; "tenho orgulho de ser tão vadio!".

- a capoeira do (então) jovem mestre Sinhozinho, no Rio, que apesar de ser uma capoeira sem berimbau, voltada para a briga de rua e para as lutas de ringue, estava também impregnada pelo espírito das ruas, da valentia, e da malandragem.

- a "filosofia" que o (então) jovem mestre Bimba, uma "enciclopédia da malandragem", nas palavras de mestre Cesar "Itapuan", veicula aos seus alunos da capoeira regional em Salvador: "capoeira é mardade!"

- as "filosofias" e "metafísicas", e a atenção à música e elementos ritualizados (como as chamadas pra o passo-a-dois, etc.), tão característicos de mestre

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Pastinha e sua capoeira angola, também em Salvador: "capoeira é tudo que a boca come!".

Mestre Bira "Acordeon" perguntou a mestre Pastinha

o que era capoeira: "é tudo que a boca come!". Ao fazer a mesma pergunta a mestre Bimba, ele

respondeu: "Capoeira é mardade". E Acordeon concluiu que, apesar da aparente

incongruência destas definições, "elas não conflitam". Complementam-se e refletem diferentes posturas do negro brasileiro "diante dos vários problemas da existência". (63)

Por sua vez, mestre Decânio (1925), figura básica da

capoeira regional, braço direito de mestre Bimba por décadas à fio, médico, professor da UBa, acupunturista, sintetizou com maestria a determinante contribuição de Pastinha e Bimba na feitura da capoeira contemporânea.

A capoeira desenvolve um processo circular, bi-polar, concordante com o sistema dialético Ying<->Yang, consoante o qual em todo o jogo existe a semente da maldade e em toda luta encontramos movimentos portadores do germe lúdico, dentro do conjunto do aperfeiçoamento do Ser.

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De modo similar, enquanto Mestre Pastinha enfatizou os aspectos metafísicos, éticos e até religiosos da capoeira, preocupando-se com a perpetuação da sua obra; Mestre Bimba dedicou-se sobretudo aos componentes pragmáticos, legalização da sua prática, o aperfeiçoamento de sua técnica e a sua aplicação à defesa pessoal. A complementação do embasamento somático pelos fundamentos psíquicos através as duas correntes geradas pelos criadores dos estilos "regional" e "angola", garante a unidade da capoeira como jogo e luta, ao mesmo tempo que a transforma no jeito brasileiro de aprender a "ser-estar" no mundo a que se refere César Barbieri, abrindo um leque de aplicações pedagógicas e terapêuticas cujos limites são imensuráveis (64)_

Dizer que "capoeira é tudo que a boca come", é algo

que traz sorrisos aos lábios de intelectuais e artistas. É algo zen. E já ouvi comentários elogiosos do tipo: "como pode um homem semi-alfabetizado, como mestre Pastinha, conseguiu chegar a tais profundezas filosóficas!".

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E me lembro de um sambista e compositor da velha guarda da Mangueira, ou talvez fosse da Portela, sendo entrevistado por uma jovem e modernosa jornalista, ao vivo, na televisão:

- Mas como é que o sr., que é semi-analfabeto, consegue compor estas verdadeiras jóias da Música Popular Brasileira?

- Eu não sou semi-analfabeto. Sou anafalbeto mesmo, minha filha. Semi-analfabeta é a sra.

A mardade de Bimba Mas, diferente de mestre Pastinha, o conceito

apresentado por mestre Bimba - "... é mardade!" -, apesar de nunca ter sido problemático para os capoeiristas pois na verdade costuma desencadear risadas ou sorrisos irônicos, causou desconforto em alguns estudiosos.

Lewis, por exemplo, foi um que se enrolou ao tentar explicar o que Bimba "queria dizer":

... a sua amargura pessoal (de Bimba) face ao que ele achava que eram injustiças da vida, fez com que a coisa ("capoeira é mardade") saísse mais forte e amarga (do que a capoeira realmente é). (65)

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Mestre Bimba teria curtido uma "personal bitterness"

(amargura pessoal), em especial no fim de sua vida quando se mudou de Salvador para Goiânia. É algo que qualquer um que conhece a estória de Bimba consegue entender:

- na década de 1930, Bimba cria um "método de ensino" (que é a base do ensino de capoeira até hoje, em todos os estilos) e abre a primeira "academia de capoeira";

- em 1936, aos 36 anos, ele se sagra "campeão invicto" e se torna uma espécie de ídolo em Salvador; sua academia enche-se de alunos e ele é o primeiro a viver de "aulas de capoeira";

- em 1953, aos 53 anos de idade, após apresentação para Getúlio Vargas, ouviu do presidente que "a capoeira é a verdadeira luta nacional!". Ora, Bimba já ensinava capoeira há mais de 30 anos, tinha formado inúmeras gerações de capoeiristas, e já era um ícone que atraía turistas para Salvador (sem nada receber por isto). Com o caloroso abraço de Vargas, muito provavelmente Bimba ficou esperançoso que um outro ciclo despontasse em sua vida: quem sabe ele iria organizar capoeira nas universidades e colégios baianos, ou ter alguma possibilidade de expandir a capoeira através os shows e apresentações em todo o Brasil, semelhante aos shows para turistas patrocinado pela prefeitura de Salvador;

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- mas nada disso aconteceu e, em 1974, Bimba mudou-se para Goiânia com uma comitiva de 17 pessoas (2 mulheres, filhos, etc.), convidado por um antigo aluno, achando que teria mais oportunidades nesta outra cidade. Ao partir, mestre Bimba declarou:

Não voltarei mais (à Bahia), aqui nunca fui lembrado pelos poderes públicos. Se não gozar de nada em Goiânia, vou gozar de seu cemitério. (66)

Então, é verdade que mestre Bimba, com razão,

estava definitivamente injuriado com os "poderes públicos".

No entanto, justificar o "capoeira é mardade", de Bimba, através de uma "personal bitterness" (amargura pessoal), tornando a definição de Bimba "stronger and darker" (mais forte e pesada do que a capoeira seria, na idéia de Lewis), não nos parece correto.

Mestre Bimba viveu numa época e local onde todos

intuíam a capoeira como um todo complexo e abrangente, inserida num contexto baiano e afro-brasileiro do qual fazia parte o candomblé. Então, este "todo" (capoeira e candomblé e etc.) não era preciso explicitar: todo mundo conhecia, era parte do dia-a-dia.

Mas o fato da mardade - o conhecimento da maldade; ter "intimidade" e saber lidar com a maldade

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(67) - também fazer parte deste quadro, não era tão óbvio e merecia uma citação (feita por mestre Bimba). Esta citação da mardade seguramente é necessária para teóricos deslumbrados com a parte estética e musical da capoeira - não é o caso de Lewis -, associando-a a coisas como o "contact improvisation" - somente energias "positivas" e "politicamente corretas" em jogo -, em moda nos mundos da dança e das terapias alternativas.

A visão de Lewis sobre a capoeira, neste aspecto da

mardade (de mestre Bimba), é tão simplista e primária quanto a visão e a compreensão dos contemporâneos "guerreadores" da "capoeira-esporte-luta"; e tão equivocada quanto a mentalidade fechada e excludente dos "defensores da tradição ou da etnia" que demonizam todos os outros estilos.

Então, com Bimba, além do Valente, estamos também em presença do Malandro que tem uma ampla visão e compreensão do mundo e das pessoas; algo que seus oponentes, de outros estilos, tentem deseperadamente obscurecer; tentam fazer de Bimba "apenas um lutador" que criou uma "capoeira-luta" mas que não tinha "nenhum fundamento".

Nos próximos dois livros que estudam o "histórico" da capoeira, e que serão editados em breve, vamos estudar mestre Bimba em profundidade, assim como outros grandes mestres baianos como Pastinha, Noronha,

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Waldemar, Canjiquinha, etc. Aliás, em relação à mardade, Bimba não era o único

a ter este enfoque. Muniz Sodré conta que Santugri, um velho capoeirista

do Recôncavo Baiano, era um brigador agilíssimo e perigoso: tomava faca da mão de "bicho solto". E tinha uma característica curiosa: dava "surra de chapéu". Provavelmente colocava um pedaço de metal dentro do chapéu dobrado, e onde o chapéu batia, quebrava.

Mas, paradoxalmente, Santugri jogava capoeira quase em câmara lenta, repetindo sempre o mesmo cantochão - "... ê, camaradinha, camará". A capoeira, para Santugri, era uma espécie de devoção, algo "com um fio-terra ligado à religião".

E, no entanto, semelhante a mestre Bimba, também dizia: "capoeira é mardade!".

Para Pastinha - "capoeira é tudo que a boca come" -,

capoeira era tudo que a vida lhe oferecia, aceitando filosoficamente o bom e o ruim.

No entanto, Paulo dos Anjos presenciou Pastinha - o "filósofo" clean e "politicamente correto" da capoeira, como querem alguns - admoestar e aconselhar cautela a um amigo que estava "se apoiando demais num aluno de inteira confiança". O amigo de Pastinha estava se esquecendo que a falsidade existe e - no entender dos capoeiristas - é parte normal do ser humano.

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Em vários desenhos dos "Cadernos manuscritos de mestre Pastinha" (aprox. 1960), escritos à mão pelo próprio mestre, vemos seguidamente a anotação "observação" (no sentido de olhar atentamente alguma coisa ou pessoa) e/ou "mardade".

Mestre Leopoldina (1933-2007), da "velha guarda" do

Rio de Janeiro, por sua vez, tem uma música muito conhecida, comentando o mesmo assunto:

"Neste mundo tem duas coisas das quais ninguém nunca escapou: a morte e a falsidade. Nem Jesus Cristo se livrou!" É verdade que nos 1930s e 1940s já estamos em

plena "era das academias", após o "tempo da escravidão" e o "período da marginalidade".

É verdade que, aí, a capoeira perdeu, em parte, sua faceta de "teatro mágico de rua" ou de "microcosmo mágico" que representava, as vezes de forma brutal, as energias que regem o relacionamento entre duas pessoas e, de forma mais ampla, até mesmo as energias que regem a vida.

É verdade que a capoeira se tornou mais acadêmica e menos malandreada.

Mas apesar dos mestres Bimba e Pastinha estarem seduzindo a classe média através da invençåo da

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"academia de capoeira"; também é verdade que em nenhum momento eles abriram mão de suas respectivas "filsofias de vida", mumunhas, mandingas, e malícia, profundamentes imbricadas na capoeira, no universo das ruas, e da malandragem.

... é significante um pequeno incidente narrado por Nenel (um dos filhos de mestre Bimba), por ocasião de uma apresentação de Bimba com seu grupo em Goiânia em 1974 , no auge da ditadura militar, quando apenas se sussuravam os casos de tortura e assassinatos de militantes políticos. A exibição de capoeira era parte de um evento oficial, a que se fazia presente o general-presidente da República. Findo o ato, Bimba já se retirava quando alguém da comitiva oficial o chamou pelo nome. Fingindo não ter ouvido, ele continuou a andar, e ante o aviso de Mãe Alice de que "a gente do presidente está lhe chamando", o Mestre, sem se deter, decretou: "Deixe esse filho da puta vir atrás de mim". (68)

O aspecto criativo e renovador de Xangô presidiu não apenas à capoeira de

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Bimba, mas também ao seu relacionamento com o poder instituído. Seu lado "Balduíno" (o agitador político do romance Jubiabá, de Jorge Amado) era forte, embora pouco documentado (não há registros escritos de sua participação em greves do cais do porto). Na verdade, ele era radicalmente avesso a qualquer forma de injustiça social, e se disso não falava muito, deixava entrever o que sentia em forma de tiradas irônicas e por seu comportamento junto à comunidade em que vivia. (69)

Esta maneira de ser, de mestre Bimba, foi básica

para construir - ao menos, até um certo ponto - uma identidade alternativa para os capoeiristas.

Uma identidade própria, distante dos valores do Sistema; distante dos valores da classe média e da burguesia; distante dos valores da televisão, do consumo, e do capital.

Algumas linhas acima, eu falei "ao menos, até um certo ponto" porque o sistema de academia introduziu inevitavelmente elementos das classes hegemônicas na capoeiragem.

Apesar disto, é sempre bom lembrar que Bimba, Pastinha, e os demais educadores, nos livraram, em grande parte, da proposta (carioca) da "Luta Nacional",

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que já existia antes de 1900, e que tentava se desvencilhar das raízes negras, e também do desenvolvimento no meio marginal. Ainda assim, nos nossos dias vemos inúmeros mestres tirando uma de "sério" e "bem comportado", ou agindo como "professor de Educação Física", ainda na sequência desta mentalidade da "Luta Nacional".

Mas não foi só em relação ao Poder Estabelecido e à

Injustiça Social que mestre Bimba deixou sua marca. Na área, básica em qualquer cultura, da

sensualidade e dos relacionamentos sexuais, mestre Bimba - assim como a malandragem do samba carioca - nunca se curvou as imposições castradoras da classe média:

Mãe Alice não esconde: "Bimba era homem de muitas mulheres, e sem maiores esforços, porque era muito bom amante". Sem contar as inúmeras aventuras e flertes, ela afirma ter sido a vigésima primeira mulher dele. Isto significa que foi a de número 21 das que viveram ou tiveram uma ligação mais forte com ele. (70)

No entanto, Bimba nada tinha a ver com o "machismo" latino, estava mais em harmonia com a alta malandragem

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carioca em relação ao sexo. Também nada tinha a ver com a onipotência tão típica dos winners (os "vencedores", em oposição aos loosers, "perdedores") norte-americanos, algo que Muniz Sodré também no comenta no texto abaixo:

Ele (Bimba) não acreditava em valentes absolutos, escutava com cara de malícia, quando escutava as bazófias de bravura dos jovens campeões em tudo. Raramente prestava-se a contar uma história pessoal de briga na rua... Nada aqui da onipotência anglo-saxônica quanto à técnica de um esporte, mas tudo a ver com o sentido de oportunidade dos irônicos, ou com a malícia corajosa do não-agir. Com Bimba, desfiz (Muniz Sodré) todas minhas ilusões adolescentes de onipotência. Físicas e outras. (71)

As metafísicas de Pastinha Mestre Pastinha, por outro lado, também contribuiu

fortemente na construção da identidade do capoeirista de nossa época, assim como na maneira de ser do jogador. Em especial por sua postura pessoal; mas tembém pelo trabalho de seus diletos discípulos, mestre João

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Pequeno (1920) e mestre João Grande (1933); e, sem dúvida, através da atuação do (então) jovem mestre Moraes (1950), que na década de 1970 iniciou um movimento que trouxe de volta a capoeira angola que estava em fase de extinção.

Pastinha ficou conhecido como "o filósofo da capoeira":

Capoeira, mandinga de escravo em ânsia de liberdade. Seu princípio não tem método, seu fim é inconcebível ao mais sábio dos mestres.

Mestre Pastinha tem uma faceta curiosa: não

enfatizava, em especial, o Malandro, e menos ainda o Valente. Na verdade, preconizava valores da classe média bem comportada: na sua roda não se jogava descalço; se a camisa saísse da calça, ele parava o jogo até o jogador se recompor, etc. (só para citar algumas das mais curiosas). Esta estratégia visava a atrair e seduzir a classe média, e também a "desarmar" os possíveis "valentes" que eventualmente pudessem baixar em sua roda.

No entanto, Pastinha foi um inovador em outra área: já em 1960, podemos ouvir ecos do que, bem mais tarde, seria chamado de "um pensamento ecológico", tanto do

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ponto de vista da "ecologia da Terra", como também de uma "ecologia humana" (72). É que, aliado à sua "estratégia de sedução" que valorizava a moral e os costumes da classe média, mestre Pastinha também encetou alguns vôos poéticos e filosóficos:

Mo Caros Agos e Bons Capoeiristas, Querer mal a vida e a terra é uma inconsciente inveja, e porque provoca astucias conquista aos seus camaradas, ou a seu mestres para satifazer a seu da conquistador, você mesmo se tiver conhecimento, diz consigo, é verdade porque eu vi, e vi com meus proprio olho fulano fazer-se prevalecer de um camarada, de corpo fraco, mas ele é desperto e consciente, diz: Eu sem corpo inteiramente e nada mais. (73)

O texto refere-se claramente às pessoas que não

estão de bem com a vida; às pessoas que não são ecologicamente ligadas ao nosso planeta; às pessoas invejosas.

Pastinha critica o uso da força dentro da roda: "eu vi, e vi com meus proprio olho fulano fazer-se prevalecer de um camarada, de corpo fraco".

O capoeirista, mesmo que mais fraco, porém "desperto e consciente", está "inteiramente" presente e

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preparado - algo como o "aqui e agora" dos samurais e da filosofia zen -, "eu sem corpo", "e nada mais".

Mestre Pastinha, apesar de filosofo, não é um

apologista da mente; Pastinha não desprezava o corpo como algo "inferior" (em relação à mente, ou à alma):

Amigos o corpo é um grande systema de razão, por detrás de nossos pensamentos acha-se um Snr. poderoso, um sabio desconhecido. (74)

Aí, encontramos ecos de conceitos como

"pensamento corporal", "sabedoria corporal"; algo que desabrocha em conceitos usados por mim atualmente: "a malícia é um saber corporal, aprende-se com o corpo e, depois, extravasa para a mente e para a vida do jogador".

Além disto, Pastinha, apesar de valorizar o corpo e preparo físico do capoeirista - "é um tipo musculoso" -, como veremos abaixo, afirma também a "capoeira como arte", em oposição à uma capoeira como esporte ou luta.

O Capoeirista de hoje é um tipo musculoso, não é um malandro, nem um profissional exclusivo de capoeira, somos bailarinos, um homens que vive a arte da capoeira e como artista sincero, somos

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do trabalhos de todas profisções. (75)

A vadiação de Waldemar da Liberdade Mestre Waldemar da Liberdade é outro que também

contribuiu na construção da filosofia da capoeira - a malícia.

Eles (os mestres) vinham para Periperi, aquela roda danada. Foi quando eu peguei a aprender com eles. Eu era rapazinho. Comprava duzentos réis de vinho tinto, aquele copo branco de alça, ele tomava e dizia: "pegue na boca da minha calça!". Eu levava pra pegar na boca da calça dele e ele virava aquela cambalhota desgraçada e já cobria (com) o rabo de arraia. Quando eu ia levantando ele dizia: "não levante não, lá vai outro". Os alunos deles jogavam com a gente como que (se) a gente já era (fosse) bom. (76)

Já vemos aí, por volta de 1930, não só o uso do

floreio - "aquela cambalhota desgraçada" (provavelmente o atual aú) -, como a nomenclatura dos golpes usada até hoje - "já cobria (com) o rabo de arraia".

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No entanto, outros aspectos da capoeira se

perderam. Frede Abreu destaca a importância da cachaça e da quitanda - mixto de botequim e vendinha - no contexto da capoeira verdadeiramente "tradicional".

A quitanda, p. ex., subentendida na declaração de Waldemar, aparece explicitamente na narrativa de Canjiquinha, quando ele descreve o local onde aprendeu, no banheiro de Otaviano, na frente do qual "tinha uma quitanda, (onde) eles (Aberrê, Onça Preta, Rosendo, Chico Três Pedaços, Zé das Brotas, Silva Boi, Dudu, Maré) ficavam ali bebendo cachaça (era do interesse do dono do banheiro) e treinando (77)

Ou seja, a academização levada a cabo por Bimba e

Pastinha, incluí - e isto é básico para os "novos rumos" - uma ruptura radical com este poderosíssimo vetor cultral e social: a quitanda, o botequim, o bar, a boemia, e uma certa mentalidade "etílica-filosófica" que é característica a estes ambientes.

Frede Abreu cita o Capoeira Angola (1968) de Waldeloir Rego:

Antigamente havia capoeira, onde havia

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uma quitando ou venda de cachaça, com um largo bem em frente, bem propício ao jogo. Ali, aos domingos, feriados e dias santos, ou após o trabalho, se reuniam os capoeiristas mais famosos, a tagarelarem, beberem, e jogarem capoeira. Contou-me mestre Bimba que a cachaça era a animação e os capoeiras, em pleno jogo, pediam-na aos donos das vendas, através de toque especial de berimbau, que eles já conheciam (78)

Para o fim de semana, os donos dos botecos preparavam um cardápio reforçado (sarapatel, mocotó, feijoada, rabada, moqueca, dobradinha, etc.) e, por ser do seu interesse, deixavam o samba, serestas e capoeira acontecer no ambiente, pagando com bebida seus praticantes... nesses ambientes populares piscava a tendência de se misturar comida baiana com manifestações da cultura popular de origem afro-brasileira para ganhar dinheiro. A partir dos anos 1960, esta mistura será transformada num filão pela indústria

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turística. (79)

A roda - em Salvador, após 1930 -, na frente da quitanda, ou venda de cachaça, vai desaguar em dois subprodutos comerciais: as aulas de capoeira em academia, e os shows "folclóricos".

Esta tendência é tão forte que mestre João Grande (1933) - hoje, ensinando capoeira angola em Nova Iorque - diria que "há três tipos de capoeira: a de show, a de academia, e a da roda de rua". E em cada uma delas, o capoeirista apresenta uma performance diferente:

- na de show, vemos uma capoeira espetacularisada que, no entanto, entre dois bons jogadores, pode resultar em jogos da melhor qualidade;

- na sua (própria) academia, o capoeirista joga conforme os fundamentos e ritual do estilo a que pertence;

- na roda de rua, "um olho no padre e outro na missa"; jogadores de diferentes linhagens e estilos estão presentes e muitos seguem o lema: "entra quem quer, sai quem pode".

No entanto, o projeto "academia" de Bimba e

Pastinha e outros, não encontrou suporte nas rodas que mestre Waldemar realizava em seu barracão no bairro da Liberdade aos domingos; ali, o que rolava era a verdadeira vadiação, frequentada por jogadores, bons e

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fracos, de todos os estilos e tendências.. Havia uma pequena tendinha, e o espanhol servia

cachaça até mesmo para os tocadores de berimbau que, em plena roda, tinham um toque especial para pedir um copo da branquinha.

Mas independente da "academia", ou da "vadiação"

na Roda de mestre Waldemar; aos poucos foi se criando, nas décadas de 1920 a 1950, uma nova identidade para o capoeirista, que era resultante da mudança do status da capoeira face à sociedade (o começo da "era das academias", quando a capoeira começa a ser aceita e, mais tarde, valorizada); das novas oportunidades que os mestres tem (ganhar dinheiro com aulas ou com shows); e também das mudanças que estavam ocorrendo orgânica e "naturalmente" na roda e no jogo.

Mestre Waldemar analisou vários conhecidos capoeiras daquela época, já sob uma nova ótica:

Barbosa do Cabeça: carregador da pesada, o capoeira de melhor técnica que já vi. Ele tinha uma voz como a minha. Cantava muito, tocava muito, e jogava muito. Um cachoeirano. Era bom mestre. Daniel (Noronha): jogava capoeira, mas não era essa coisa toda. Totonho de Maré: Era sopeiro (não criava

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situações de jogo, ficava esperando a brecha para poder bater e derrubar), jogava, mas só sabia jogar capoeira, não tocava berimbau, não cantava, não fazia nada. Samuel Querido de Deus: Era bom, mas era sopeiro também. Só de jogo. Ficava esperando você pular para ele dar uma cabeçada. Quando você queria forrar (dar o troco, ir às forras), ele não queria mais jogar. Aberrê: Cantava muito. Besouro Gazo: Um branco cheio de sarda. Jogava muito mesmo. Ele não era daqui não,ele era de Periperi. (80)

Percebemos aqui um novo conceito - uma nova

identidade -, sobre o que significava "ser capoeirista". "Ser capoeirista" incluía, não apenas jogar, mas também ter "a melhor técnica que já vi", cantar, e tocar berimbau - além de, com algum tempo, ensinar, se tornar "um bom mestre".

Além disso, uma outra mudança no próprio jogo. Não bastava você ser malandro e "pegar" o outro. Além de ter uma boa técnica - fruto de muito jogo, ou de muito treino na academia (ou de ambos) -, também era necessário florear, criar situações para enriquecer o jogo.

Enfim, era necessário uma saber corporal que,

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apesar de não existir em muitos mestres de renome, por volta de 1940; já tinha existido em alguns jogadores mais antigos de grande reputação, como já nos falou Muniz Sodré.

Segundo consta, (Bentinho, africano, e mestre de Bimba) era desses capoeiristas capazes de "dar um salto mortal na boca de uma caixa de cebola", como relata Decânio, citando Bimba: "Dá um sárto mortá na boca dum caixãu di cebola!". Era gente da mesma estirpe de Besouro Mangangá que seria capaz de "sartá di costa i caí de vórta dentru dus chinélu!" (81)

O estilo de Bimba - a regional - era objetivo. Entre os

regionais, quase ninguém se interessava em "dá um sárto mortá na boca dum caixãu di cebola!"; apesar de mestre Bimba admirar esta faceta. Além disso, muitos - semelhante a alguns angoleiros criticados por Waldemar -, não cantavam e não sabiam tocar berimbau.

Vamos ver, em breve, estas mesmas "deficiências" no Rio de Janeiro e São Paulo, nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, a geração seguinte já cresceu com a "obrigatoriedade" de florear, de tocar o berimbau e, até mesmo, de cantar.

Pouco a pouco, foi se construindo a nova e

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identidade do capoeirista dos nossos dias, cada vez mais influenciada pelos mestres baianos; mas tendo, a contraponto, as influências dos valores da sociedade estabelecida, na qual estamos inseridos.

A contribuição da geração Rio e São Paulo, 1960-

1980 Com a chegada, no Rio, de Artur Emidio, que era de

Itabuna, na década de 1950; e com a chegada de inúmeros (então) jovens mestres baianos em Sampa, no final dos 1960s; cresce, e se firma, a influência da Bahia no eixo Rio-Sampa mas já com uma outra mentalidade, mais "profissional", diversa da de Salvador.

Em São Paulo, estes (então) jovens mestres baianos que vinham de diferentes linhagens e estilos, começam, cada um, a ensinar capoeira; abrem sua academias isoladamente ou, algumas vezes, aos pares. Isto resultou numa grande diversidade de estilos em São Paulo.

Mas, no Rio, muitos dos jovens baianos que migram para lá, entram para o Grupo Senzala composto de jovens adolescentes da classe média carioca, que desponta também nos 1960s. Havia também uma capoeira nos subúrbios do Rio fortemente influenciada por mestre Artur Emidio; mas é a Senzala, instalada na rica zona sul carioca, que vai rapidamente tornar-se hegemônica.

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Poderíamos dizer que estes (então) jovens mestres,

nascidos por volta de 1945 e atuando no Rio e em São Paulo, em nada vão contribuir para a "construção" da malícia. Sua contribuição seria mais na faceta "esportiva", nas técnicas de ensino, na dedicação de muitas horas de treino diário, no estilo de jogo, na infra-estrutura da "academia de capoeira", e na postura profissional de querer "viver de capoeira" (algo que apenas mestre Bimba tinha conseguido, até aquele momento).

A capoeira era jogada em alto nível técnico de golpes e preparo físico; mas com pouca malícia, em comparação com a capoeira baiana dos 1950s. Mas a técnica, fruto de muitas horas diárias de treino, já tinha atingido um tal nível que "vencia" facilmente o jogador com muita malícia e experiência, mas sem as muitas horas de treino.

Esta geração, que é a minha (Nestor), criou um

modelo de infra-estrutura de grupo e de academia, que já era um desenvolvimento dos modelos criados por Bimba, Pastinha e outros. Parte desta infra eram as relações de poder:

- as relações de poder entre mestre e alunos (que inicialmente eram quase da mesma idade), baseada numa hierarquia rígida, como nas Forças Armadas, ou nas artes marciais orientais;

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- as relações, e jogos de poder, entre professores de um mesmo grupo que, a partir aproximadamente de 1975, começaram a ficar cada vez mais competitivas, semelhante aos relacionamentos dos altos executivos de uma grande empresa capitalista;

- e as relações de poder entre mestres de grupos diferentes, que se tornaram tão competitivas ao ponto de dificultar seriamente um relacionamento amistoso entre alunos de academias, ou de estilos, diferentes.

Também, neste pacote, estão inseridas a questão do

uso obrigatório de uniforme, a hierarquia (cordas coloridas na cintura, mais tarde adaptadas na capoeira angola por divisões em treinel e contramestre e etc.), logotipo do grupo (que também será adotado pelos novos angoleiros que se tornarão mais visíveis a partir aprox. 1985).

Após aproximadamente 2005, muitos grupos que queriam estar atualizados com o "novo milênio" e desejavam disfarçar o autoritarismo que existia nas academias, largaram parcialmente a obrigatoriedade do uso de uniformes (sem modificar o autoritarismo do sistema de academia). Apesar de ser uma mudança apenas na aparência externa, talvez já seja um indício de novas tendências.

Eu fiz parte desta geração, nascida por volta de 1945.

Comecei a jogar em 1965 e em 1969 já dava aulas.

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Aprendi o prazer físico que o "treino puxado" proporciona; e também o prazer psicológico, artistístico e estético que sentimos à medida que um movimento ou golpe fica mais veloz, mais perfeito, mais eficaz, e mais belo.

Mas, para mim, sempre foi óbvio que a parte física, dentro da academia - mesmo se a praticamos 4 ou 5 horas por dia -, não deve estar num nível mais importante que a "filosófica". E também que os interesses comerciais, de status, e as relações de poder não devem ser mais importantes que a amizade, ou que as curtições - aquele lance da "vadiação".

E isto não aconteceu no modelo de "academia", aperfeiçoado e vetorizado por minha geração, e por aquelas que vieram a seguir, na década de 1970; e depois de 1985, pela capoeira angola que até então estava obscurecida pelo sucesso da regional.

Este modelo de grupo de capoeira, e de academia, deu certo, deu a oportunidade de "viver de aula de capoeira", e tornou-se hegemônico e atualmente é usado em todos academias, de todos os estilos, em todo o mundo.

Mais tarde, a partir de 1971 e mais ainda na década

de 1980, os capoeiristas que viajaram e se estabeleceram no estrangeiro, principalmente na Europa, talvez em decorrência da distância do Brasil e do "modelito de academia" brasileiro; e seguramente

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também devido à vivência em outra cultura; abrandaram bastante a competição excessiva que havia entre os grupos.

Nos Summer Meetings do jovem mestre Paulo Siqueira, em Hamburgo (Alemanha), entre 1990 e 2005; e nos Easter Meetings dos jovens mestres Samara e Marreta, em Amsterdam (Holanda), até hoje (2010); que duravam uma semana, podíamos ter mais de 300 alunos de toda Europa, e uns 20 ou mais professores e mestres brasileiros de todos grupos e estilos.

Eram 3 campos de basquete dentro de um grande estádio, em cada campo um professor diferente (alunos iniciantes, médios, e avançados, 4 aulas de 2 horas por dia, tudo na maior paz e integração. Os 300 alunos dormian, nos seus sacos-de-dormir, nestes campos do estádio.

Além disto haviam as palestras teóricas que podiam ser com o velho mestre mestre João Pequeno, o historiador e pesquisador Mathias Assuncão, este vosso humilde escriba (Nestor), e muito outros. Também havia mostra de filmes e DVDs documentários; lançamento de CDs e livros; venda de berimbau, calça e camiseta. E as ótimas festas nas quais a rapaziada dançava de montão, muitas vezes com som ao vivo, que varavam a noite e iam até altas madrugadas com muita cerveja, azaração, e namoro; ou seja, a socialização através da "festa" e da "alegria".

Eventos adultos e conscientes, em oposição ao

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modelo doss eventos no Brasil onde só comparecem alunos daquela academia, e talvez de mais uma ou outra que são "amigas". Eventos que mais parecem festa infantil regada a refrigerante e uma "salutar" mesa de frutas; onde não há festa noturna e os participantes, ao escurecer, vão para suas casas dormir porque são "sérios" e "muito saudáveis".

Mudança em 2005, pela geração nascida por volta de

1975 Este modelo criado em 1960s/1970s teve grande

sucesso e manteve-se até o momento atual (2010). No entanto, na geração nascida aproximadamente

em 1975, onde vários são filhos de mestres, já nasceram dentro da roda; e onde outros começaram muito cedo e já jogam excepcionalmente bem - tanto na angola quanto na regional -; entre alguns destes jovens, agora com 25 ou 35 anos de idade, podemos perceber pela primeira vez, uma crítica ao modelo atual das academias com seu excesso de autoritarismo e excessiva competição entre grupos e capoeiristas.

Já estive, como "visitante não participante", em vários

eventos "alternativos" desta rapaziada, no Rio de Janeiro, em San Francisco (Estados Unidos), Berlim (Alemanha), Suiça, etc. Apesar de terem várias

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características comuns, inicialmente não tinha conhecimento de que algo semelhante estava acontecendo em outras cidades; mas agora estão interligando-se de maneira informal.

Estas novas propostas não vieram com discursos

revolucionários, nem tampouco com críticas aos mestres e suas academias. Propunham-se simplesmente, p.ex., a realisar rodas sem a presença dos mestres, e nesta roda os capoeiristas não usariam o uniforme e a graduação de seu grupo.

Parece pouca coisa. Mas veja bem que, com isto, estavam quebrando toda aquela estratégia das academias que diz que "os outros grupos são nossos inimigos" (algo que dá uma maior coligação interna, e um maior sentido de unidade a cada grupo).

E também é evidente que a ausência dos mestres nas rodas é um lance de independência incompatível com a estrutura extremamente hierarquisada das academias. Muitos mestres não gostaram, outros acharam que era um "sinal de maturidade dos alunos" e não se opuseram.

Na minha opinião, este movimento jovem é positivo e, mais do que isto, é necessário.

Eu o vejo um pouco como a Bossa Nova na música brasileira, que trouxe nova liberdade e quebrou determinadas restriçõesções. No entanto, 15 anos depois, por volta de 1980, a Bossa Nova já estava

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restrita a pequenos nichos que, hoje, se resumem a alguns círculos de fãs na França, na Alemanha, e no Japão.

Creio que este novo movimento é semelhante à

Bossa Nova que estava mais ligada ao jazz que "às raízes": é necessário e positivo mas vários de seus componentes estão bastante "desterritorialisados" apesar da excelência do jogo, do conhecimento do ritual da roda, da vivência no Brasil e exterior. Neste sentidon são semelhantes ao Grupo Snzala quando era novo nas décadas de 1960/1970. No entanto, é certo que vários destes jovens estarão entre os mestres de maior influência dentro de uns 10 ou 15 anos (2025); da mesma forma que Tom Jobim passou pela Bossa Nova e posteriormente se tornou um marco da música brasileira.

É difícil precisar o que falta a determinado movimento ou grupo; é mais fácil recorrer ao humor e à gozação:

- estão mais para Bob Marley, que para Zeca Pagodinho;

- mais para sushi de restaurante japonês, do que da feijoada com cerveja em botequim;

- percebem claramente os defeitos dos grupos e academias, mas não percebem com clareza as qualidades;

- valorizam mais o matrimônio e a monogamia prescritos pela classe média, do que a esbórnia libertária da filosofia da malandragem;

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- preferem muito trabalho (alienante) e dinheiro, ao invés de pouco trabalho e tempo livre;

- alguns integrantes, apesar de rejeitarem os símbolos externos do autoritarismo excessivo (graduação, uniforme, etc.), são tão (ou mais) autoritários quanto os mestres que eles criticam;

- não são basicamente ligados, nem estão desenvolvendo o gosto pela "festa" e pela "alegria" (que já está presente em vários encontros europeus).

Enfim, semelhante ao movimento paulista e carioca

de 1960 (que eles criticam, com justiça), este novo movimento também se afastou bastante de algumas (outras) facetas (a meu ver) básicas da capoeira e da malícia; e (me parece) não tem a abrangência e a visão global que seria ideal.

Ainda assim, a capoeira está em boas mãos e vive, no início dos 2000s, uma Idade de Ouro.

NOTAS: (24) SOARES, Carlos Eugenio L. A negregada

instituição, os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Prefeitura do Rio de Janeiro, 1994.

(25) Ibidem. (26) Ibidem (27) Ibidem

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(28)Ibidem. (29)No sentido dado por Guattari e Deleuze em Mille

Plateaux. (30) SOARES, op. cit., 1994. (31) Ibidem. (32) REGO, W. Capoeira Angola, Salvador: Ed.

Itapoan, 1968. (33) Ibidem. (34) Ibidem. (35) SOARES, op. cit., 1994. (36) RUGENDAS, J.M. Voyage pittoresque et

historique dans le Brésil. Paris: Engelmann et Cie, Paris, 1835.

(37) DEBRET. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris: Didot Firmin et Fréres, 1824.

(38) Ibidem (39) Esta afirmação geralmente espanta as pessoas,

pois é crença generalisada que a capoeira "nasceu na Bahia". Na verdade, como estamos vendo, isto não é verdade; anteriormente, nos 1800s, a capoeira existia, era visível, e foi bastante documentada no Rio de Janeiro. Mas seguramente poderíamos dizer que a capoeira que praticamos hoje, no Brasil e no mundo, é a baiana; no entanto, ela não tem "séculos de existência", ela só tomou o aspecto atual, com a roda e os berimbaus, após 1900.

(40) QUERINO, Manuel, in ABREU, Frede. Capoeiras, Bahia, Século XIX, vol 1. Salvador: 2005.

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P.18. (41) MOURA, Jair (Mestre Jair "Perigo). "Evolução,

apogeu e declínio da capoeiragem no Rio de Janeiro", Cadernos Rioarte Ano I nº 3. Rio de Janeiro: 1985. P.35.

(42) SOARES, op. cit., 1994. (43)ABREU, Placido de. Os capoeiras, 1886. (44) L.C., Kosmos, ano III, nº3, março 1906. (45) MATOS, Claudia. Acertei no milhar. RJ, Paz e

Terra, 1982, p.13. (46) CORDEIRO, Kalixto in L.C., Kosmos, ano III,

nº3, março 1906. (47) MOURA, Jair (Mestre Jair Perigo). "A projeção

do negro Ciríaco no âmbito da capoeiragem", Revista Capoeira. São Paulo: #11, dez.1999.

(48) CIRÍACO. Depoimento ao jornal "A Notícia", RJ, 17/5/1909.

(49) REIS, Leticia V.S. O mundo de pernas para o ar. São Paulo: Publisher Brasil, 1997.

(50) Jornal "A Tarde", de 14/12/1920 in OLIVEIRA, J.P. No tempo dos valentes, os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador: Quarteto, 2005. p.67.

(51) NORONHA, Mestre (Daniel Coutinho). O ABC da Capoeira Angola, os manuscritos de mestre Noronha. Brasília, DEFER CIDOCA/DF, 1993, apresent. por Frede Abreu.

(52) A partir de 1930, com Vargas no poder, os sambistas são orientados a louvar o "trabalho honesto", ou seus sambas não tocariam no rádio nem seriam

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gravados. Ver: MATOS, Claudia. Op. cit., 1982. (53) MATOS, Claudia, op.cit., 1982, p.22. (54) Ibidem, p.20. (55)Jorge Aguiar, Folha de São Paulo, 29 de março

de 1979 in MATO (56) DURST, Rogério. Madame Satã. São Paulo:

Brasiliense, 1985. (57) MATOS, Claudia. Acertei no milhar. RJ: Paz e

Terra, 1982, p.14. (58) Ibidem, p.14. (59) DURST, Rogerio. Op. cit., 1985, pp. 9-16. (60) MATOS, Claudia. Op. cit., 1982, p.14. (61) VASCONCELOS, Gilberto in MATOS, 1982, op.

cit., p.15. (62) COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias,

memórias futuras; o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola. Rio de Janeiro: UFRJ-ECO. Tese de Doutorado em Comunicação e Cultura, 2000.

( 63) ALMEIDA, Ubirajara (Mestre Acordeon). Água de beber, camará. Salvador: EGBA, 1999, p. 17.

(64) DECANIO FILHO, Angelo (Mestre Decanio). Falando em capoeira. Salvador: Col. São Salomão, 1996, photoc., pp. 33-34.

(65) LEWIS, J.L Ring of liberation. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1992. Pp.186 e 212-213.

(66) ALMEIDA, Cesar (Mestre Itapoan). Bimba, perfil do mestre. Salvador: Centro Ed. e Did. da UFBa, 1982, p. 68.

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(67) O meu (Nestor) conceito de malícia (que seria o "conhecimento da verdadeira natureza dos seres humanos" aliado à "alegria de viver") foi inspirado na minha vivência dentro da roda, mas também pelos comentários dos Velhos Mestres que conheci na minha juventude. Sem dúvida o meu conceito de "o conhecimento da verdadeira natureza dos seres humanos" deve muito ao conceito de "mardade" de mestre Bimba.

(68) SODRÉ, Muniz. Mestre Bimba, corpo de mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002. P.100.

(69) SODRÉ, ibidem, pp. 99-100. (70) SODRÉ ibidem, pp. 96-98. (71) SODRÉ, ibidem, pp.18-19. (72) GUATARI, F. As três Ecologias. Campinas (SP):

Papirus, 1991. (73) PASTINHA, V.F. (Mestre Pastinha). Caderno e

álbum do Centro Esportivo de Capoeira Angola, Quando as pernas fazem miserêr. Salvador: cad. manuscrito, s/data, aprox.1955. P.2.

(74) Ibidem, p.2. (75) Ibidem, p.3. (76) ABREU, Frede. O Barracão de mestre Waldemar.

Salvador: Zarabatana, 2003., p.16. (77) Ibidem, p.17. (78) REGO, W. in ibidem, p.19. (79) Ibidem, p.18. (80) Ibidem, p.59.

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(81) SODRÉ, op. cit., 2002.ßß (82) Em 2009, Nestor ultrapassou 100.000 livros de

capoeira vendidos no Brasil e exterior. Na verdade, as definições da malícia, assim como a

idéia da capoeira ser "uma filosofia de vida", uma "maneira de estar no mundo" etc., apresentadas por mestre Nestor Capoeira e seus contemporâneos, apesar de estarem enraizadas ao modo de ser dos mestres seminais da capoeira que atuaram entre 1920 e 1960 - Bimba, Pastinha, Noronha, Atenilo, Waldemar, Caiçaras, Canjiquinha, Leopoldina, Paulo dos Anjos, etc. -; podem se enquadrar no conceito de "tradições inventadas" (conceito desenvolvido por Eric Hobsbawn e T. Ranger).