document20

9
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 410-418, jul./dez. 2012 * Mestranda em Antropologia Social. PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. 380 p. Patrícia Kunrath Silva * Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil O foco está nas festas. Nas festas como fato e como questão […]. E que, por isso mesmo, se constituem em verdadeira perspecti- va a partir da qual se penetra – com o perdão pela linguagem objeticadora – nas religiões, nas construções da infância e da juventude, na organização dos tempos, nas artes, na política, nas histórias, nas morais, no turismo, no trabalho, na loucura, na violência, na organização retórica. Tudo isso ganha nova luz. Otávio Velho Festa como perspectiva e em perspectiva é um livro composto por uma pluralidade de artigos que nos conduzem por ricas propostas teórico-metodo- lógicas e análises a partir de dados etnográcos e históricos na proposição de uma compreensão, de apreensão, dos “universos festivos”. Com aporte em diversas modalidades de eventos festivos, a coletânea apresenta ao leitor a possibilidade de reetir acerca da produção acadêmica crescente em torno do tema “festa” – lato senso – e suas abordagens, bem como seguir um percurso de leitura que traz à tona dimensões e problemáticas embasadas em olhares multiformes que se voltam ao tema. Questionar “o que é festa?”, extrapo- lar seu caráter muitas vezes substancializado de fato social em si (Durkheim, 1977), superar a noção da festa tratada como um epifenômeno de um coti- diano complexo. Todas são possibilidades que se abrem a partir desta leitura. Na proposta de renovar e inovar olhares – sem deixar para trás ou desme- recer a produção, mas sim como um enfoque agregador, de avanço para uma

Upload: ana-paula-campos-eb

Post on 17-Dec-2015

213 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania (Org.). Festa como perspectivae em perspectiva. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. 380 p.

TRANSCRIPT

  • 410

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 410-418, jul./dez. 2012

    Patrcia Kunrath Silva

    * Mestranda em Antropologia Social.

    PEREZ, La Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. 380 p.

    Patrcia Kunrath Silva*

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil

    O foco est nas festas. Nas festas como fato e como questo []. E que, por isso mesmo, se constituem em verdadeira perspecti-va a partir da qual se penetra com o perdo pela linguagem

    objetifi cadora nas religies, nas construes da infncia e da juventude, na organizao dos tempos, nas artes, na poltica, nas

    histrias, nas morais, no turismo, no trabalho, na loucura, na violncia, na organizao retrica. Tudo isso ganha nova luz.

    Otvio Velho

    Festa como perspectiva e em perspectiva um livro composto por uma pluralidade de artigos que nos conduzem por ricas propostas terico-metodo-lgicas e anlises a partir de dados etnogrfi cos e histricos na proposio de uma compreenso, de apreenso, dos universos festivos. Com aporte em diversas modalidades de eventos festivos, a coletnea apresenta ao leitor a possibilidade de refl etir acerca da produo acadmica crescente em torno do tema festa lato senso e suas abordagens, bem como seguir um percurso de leitura que traz tona dimenses e problemticas embasadas em olhares multiformes que se voltam ao tema. Questionar o que festa?, extrapo-lar seu carter muitas vezes substancializado de fato social em si (Durkheim, 1977), superar a noo da festa tratada como um epifenmeno de um coti-diano complexo. Todas so possibilidades que se abrem a partir desta leitura.

    Na proposta de renovar e inovar olhares sem deixar para trs ou desme-recer a produo, mas sim como um enfoque agregador, de avano para uma

  • 411

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 410-418, jul./dez. 2012

    Festa como perspectiva e em perspectiva

    nova apreenso a partir de uma gama variada de estudos apresentados por renomados pesquisadores brasileiros, que tm se dedicado ao tema da festa, esta obra condensa diferentes formas de abordagens etnogrfi cas e histricas do fenmeno festivo em modulaes empricas: cristotecas catlico-carism-ticas, boias-frias, festa infantil de aniversrio, literatura, funk, msica eletr-nica, ciberarte, turismo religioso [] relaes entre festa e religio (p. 14). A diversidade dos textos alcana ainda o nvel das problematizaes e anlises que colocam em foco discusses sobre performance, ritual, violncia, iden-tidade, etc., alm de explorar refl exes quanto ao lugar do pesquisador em campo e do prprio fazer antropolgico.

    Dividida em 17 captulos condensados em trs eixos ou blocos temti-cos, a obra coloca em perspectiva: um vis terico-metodolgico, um bloco de cunho mais etnogrfi co e outro, histrico. Partindo da festa sempre como evento complexo, espao paradoxal de rompimento e renovao em relao a uma ordem externa, o leitor convidado a pensar, no encadeamento dos pr-prios textos, as ordens e universos simblicos internos acionados em espaos muitas vezes caracterizados como liminares (Turner, 1974).

    No eixo terico-metodolgico La Freitas Perez expe refl exes acer-ca do entendimento da festa em perspectiva, ou festa-fato propondo passar para a sua apreenso como perspectiva, ou festa-questo. Partindo de noes de ritmos, alternncias e periodicidades marcadas pelas festas, como ensinado por Mauss (1974) e Van Gennep (1978), a autora lana o questionamento: Afi nal, o que festa? A partir dessa provocao e ao mesmo tempo convite refl exo, a autora prope abordar a festa-questo como apreenso de uma perspectiva propriamente dita, superando e enriquecendo defi nies conheci-das e at consagradas nas cincias sociais, mas que se restringem a descrever e remeter a festa a um fenmeno externo, muitas vezes no campo das religies, considerando a prpria festa como um mero epifenmeno (p. 23).

    Na esteira da discusso acerca do estatuto de carncia conceitual da festa nas cincias sociais, La Freitas Perez traz luz questionamentos acerca de teses lanadas quanto morte da festa com o advento da modernidade.1 Em seu argumento a autora mostra como a festa ainda est viva celebrando, reno-vando, selando pactos, unies, trocas, sendo parte fundamental da vida social.

    1 Caillois e Bataille a partir do legado de Durkheim e Mauss.

  • 412

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 410-418, jul./dez. 2012

    Patrcia Kunrath Silva

    De suas consideraes irradiam indagaes que orientam no sentido de se questionar e rever aquilo que se pensa e como se pensa a festa na antropologia.

    Olhando para o interesse que as festas de santo despertam nos cientistas sociais, Renata de Castro Menezes lana mo da discusso acerca da tradio e atualidade no estudo das festas a partir de uma leitura de Saint Besse, ou So Besso, de Robert Hertz publicado pela primeira vez em 1913 (p. 43). O culto alpestre, italiano, em homenagem ao santo, estudado pelo socilo-go de certa forma pioneira pelo vis etnogrfi co e abordagem da cultura popular ou religiosidade popular apresenta perspectivas distintas para as diferentes comunidades estudadas nos registros da montanha e da plancie. Alm de desenvolver uma refl exo sobre o fazer do pesquisador e desafi os na produo antropolgica, a autora refl ete acerca das fronteiras e seus rompi-mentos pela devoo entre os grupos sociais, a prpria organizao social, disputas, tenses e questes de reivindicao de legitimidade entre eles. No entanto, a autora aponta que Hertz j destaca o poder de reunio na celebrao apesar desses elementos de tenso e apresenta ao leitor as diferentes verses nas legendas sobre a vida do santo. interessante observar como nessas lei-turas e seus encontros os sujeitos (re)apropriam-se das legendas e impregnam de criatividade as narrativas a fi m de sobrep-las e oper-las, e como tambm investem tempo e energia na realizao das festas de devoo.

    Fechando o primeiro bloco, Rita Amaral prope questes metodolgi-co-organizativas do campo festivo brasileiro (p. 67). A autora aponta o car-ter fundamental, para o estado da arte em que se encontram os estudos sobre festas, de organizar e estabelecer parmetros e diretrizes metodolgicas cla-ras que sirvam como padro para possibilitar estudos comparativos e orientar uma forma de categorizao dos dados.

    Alm disso, segundo a autora, certas defi nies e conceitualizaes nos estudos de festas so fundamentais, como, por exemplo, a defi nio da inten-o do evento (comemorao, celebrao, cumprimento de um rito, ou ou-tro). Categorizando os eventos em festas, festivais e festividades, Rita Amaral sugere tambm pensar e aqui o leitor remetido a lembrar o texto de La Freitas Perez o que (ou no) festa. Em suas consideraes acerca de m-todos e tcnicas de pesquisa, a autora encerra seu texto propondo a aplicao e o modelo de uma fi cha catalogrfi ca para o registro de eventos festivos, sem dvida uma iniciativa propositiva que representa objetivamente seu intuito

  • 413

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 410-418, jul./dez. 2012

    Festa como perspectiva e em perspectiva

    claro de organizao e sistematizao dos dados, passvel de grande interesse para todos os pesquisadores que trabalham com a temtica.

    O segundo eixo, que trata de uma perspectiva mais etnogrfi ca, pode ser subdividido em dois ncleos temticos, como aponta La Freitas Perez, um que se refere s diferentes modulaes festivas do campo religioso brasilei-ro [] outro que trata de manifestaes festivas que mais recentemente tm despertado o interesse de pesquisa e que dizem respeito ao mundo do trabalho [] da infncia, ao comportamento e msica no universo pop [] arte e literatura (p. 15).

    No primeiro ncleo o leitor encontra o texto de Emerson Sena da Silveira tratando das Cristotecas catlico-carismticas e problematizando questes de performance, tradio e identidade (p. 87). Com referncias em Maffesoli (2001), Hannerz (1997) e Barth (1995), o autor estabelece uma refl exo acerca de fl uxos, fronteiras e identidades aqui aplicada ao contexto da religio, festa e consumo, mas que pode ser pensada na problematizao da prpria identidade enquanto juventude dos atores em foco. Desejos, conteno, moralidade, performance, elementos acionados que ganham visibilidade nessa anlise de um espao que parece mediar relaes e prticas atravessadas pela intensa circulao dos corpos, emoes e consumo (p. 103).

    Wania Mesquita trabalha com a religio inscrita no espao/tempo da folia (p. 105). Sua anlise se desenvolve a partir do bloco evanglico no carnaval carioca, o bloco Mocidade Dependente de Deus, da Comunidade Evanglica Internacional da Zona Sul. Traando um breve histrico do bloco por meio de entrevistas e depoimentos dos fi is/folies a autora aborda a par-ticipao e envolvimento destes na criao do samba e dos enredos enquanto dispositivos religiosos que devem alcanar o povo na rua, chamando para a religio. signifi cao e apropriao que esse bloco religioso faz do cenrio da festa, se ope a ideia de outros grupos religiosos que dela se afastam, no interagindo, mantendo uma dicotomia nesse caso ultrapassada do sagrado da religio versus o profano do carnaval. A autora indica ao leitor a importn-cia de pensar a presena da religio em um espao festivo que extrapola a es-fera propriamente religiosa para pensar assim dinmicas importantes da vida social brasileira, bem como o dinamismo e crescimento que esse segmento religioso tem alcanado no pas (p. 117).

    Em seu texto Religio, festa e ritual como agenciamentos poss-veis, Ftima Regina Gomes Tavares coloca em foco as festas religiosas de

  • 414

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 410-418, jul./dez. 2012

    Patrcia Kunrath Silva

    peregrinao atravessadas pela lgica do turismo religioso (p. 119). A autora discute e problematiza a questo da dicotomia das premissas coletivizantes versus individualizante e as fronteiras entre ritual e cotidianidade, propondo utilizar o conceito deleuziano de agenciamento para pensar as relaes de alteridade.

    A preocupao em lidar com as dimenses do pblico e privado nas fes-tas religiosas pode ser encontrada no trabalho de Eufrzia Cristina Menezes Santos, que trata das festas pblicas do candombl como abertas a diversas leituras possveis (p. 131). Ao demonstrar a signifi cao dada pelos adeptos da religio, em que arte e culto praticamente se confundem, sendo a msica, dana e canto formas de comunicao com o sagrado, a autora contrape a viso do pblico que assiste ao culto com curiosidade e interesse, mas em um registro distinto. Tratando da festa enquanto espetculo religioso, Eufrzia Santos destaca elementos a serem vistos no ritual, dentre eles as roupas, a msica e a dana, e encerra com a refl exo acerca da viso de mundo acionada e partilhada na festa ou no culto que apresenta a vida como um continuum entre razo e no razo, entre arte e religio, entre aiy e orun, entre magia e religio, deixando de lado as polaridades e antinomias que fragmentam nosso olhar e nossas emoes (p. 150).

    A temtica da festa segue perpassando diversos contextos ao longo da lei-tura. Ao chegar na temtica do Sacrifcio e festa no Xang de Pernambuco, de Roberto Motta, o leitor encontra um refl exo franca e bem-humorada que ilumina questionamentos tambm acerca do lugar do antroplogo em campo, sua biografi a e trajetria contextualizadas e seu prprio mtier. Partindo da relao entre comida e religio, meat and feast, o autor discute elementos do ritual de sacrifcio, o sangue e a emoo, e pensa em termos da funo de bom pra comer, bom para ser e bom pra pensar.

    No segundo ncleo temtico o leitor depara-se com mais uma rica va-riedade de objetos empricos que passam pelo Caxambu de Marafunda: ri-tual, memria e relaes sociais, texto de Oswaldo Giovanninni Junior (p. 175). A performance e a violncia se apresentam como elementos fundantes no caxambu que, como demonstra o autor, vem passando por um processo de ressignifi cao a partir da criao da Rede de Memria do Jongo e do Caxambu. Jogo que consistia na disputa por versos entre dois participantes da roda, e que poderia levar disputa fsica, hoje se v sendo adaptada a pr-ticas e polticas culturais. No entanto, o autor evidencia como reapropriaes

  • 415

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 410-418, jul./dez. 2012

    Festa como perspectiva e em perspectiva

    so feitas e como os elementos fundantes atravessam o novo formato, tor-nando-se imperativo atentar capacidade ativa e criativa dos participantes.

    John Cowart Dawsey trata da festa dos boias-frias (p. 197). Da mistu-ra do esgotamento fsico e nervoso, nas carrocerias de caminhes de boias--frias, o autor observa surgir o clima de uma festa carnavalizante. Em jogos de deboches, stiras da prpria loucura da loucura de sua condio, estes trabalhadores parecem enfrentar a condio de suas existncias com as festas nos trajetos de ida e retorno do canavial, alternando entre autodeboches, jocosidades com transeuntes, provocaes com outros automveis, etc. As descries oferecidas no texto advertem ao lugar olhado das coisas, remetem s margens e indicam prticas e estratgias desses bricoleurs em festa jogando com os restos e as sobras de estruturas simblicas.

    Marcao do tempo, ritual de passagem e infncia na sociedade con-tempornea ocidental. Com estes marcos temticos, Eliana Braga Aloia Atih articula uma refl exo imaginativa acerca da festa infantil de aniversrio (p. 211). Em sua pesquisa, a autora elucida elementos simblicos dessa festa ritual, uma das poucas marcaes de passagem que se mantm signifi cativas no cenrio moderno. Abordando tanto festas de aniversrio infantil das eli-tes em formatos luxuosos como as realizadas em uma limusine quanto festas das classes populares com menos recursos fi nanceiros, o texto mostra a centralidade que esta ainda ocupa no imaginrio da sociedade e como a sua prtica pode ser pensada em termos mesmo de um cultivo da alma.

    A dimenso da violncia dentro do espao da festa retomada por Jos Augusto Silva e Leila Amaral ao tratarem do universo funk. Mais uma vez trazido tona um recorte de juventude antes colocada em termos de uma juventude crist por Emerson Silveira o que se v agora afl uir a disputa e a briga por uma moral do poder por meio de uma disposio: a disposio para a violncia. O controle e a ordem so buscados pelos seguranas dos bailes, e estes, DJs e funkeiros compem o cenrio tpico da festa funk. No entanto, extrapolando essa esfera se pode depreender da leitura como esses jovens vo alm do espao restrito da sua festa e, organizados em galeras, acionam suas dinmicas em contextos mltiplos como na Parada Gay, na Folia de Reis e na Banda Daki.

    Das anlises propostas no poderia faltar o olhar antropolgico vol-tado ao cenrio da msica eletrnica e das raves. De pequenos universos priv a megaeventos internacionais, Pedro Peixoto Ferreira discute Fuga,

  • 416

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 410-418, jul./dez. 2012

    Patrcia Kunrath Silva

    transformao e sociognese na msica eletrnica de pista (p. 255). A ex-posio de sua experincia de pesquisa junto ao DJ de techno Arlequim e os depoimentos do mesmo demonstram interpretaes e signifi caes de uma proposta de modulaes da mente por meio da msica e todo um ritual envol-vido no que por muitos chega a ser chamado de uma cultura rave. Aliando ou no o consumo de drogas, evidencia-se aqui mais uma faceta de tantas pos-sveis de juventudes pensadas. So pequenos grupos ou massas de pessoas, de certa forma conectadas e engajadas em uma mesma proposta, em nveis mais abertos ou fechados da mente, para a conduo do prprio DJ por meio da msica.

    Leila Amaral discute O carter festivo da ciberarte com base na inte-ratividade, olhando para construes artsticas digitais, o coletivo nesse uni-verso, seu carter sacrifi cial e as dimenses humano e no humano (p. 273). Como indica a autora, coloco, assim, em destaque a caracterstica principal a ser levada em conta nesta minha interpretao do carter festivo da ciberarte: a interatividade e a ao colaborativa desencadeada e ampliada por essa ver-tente artstica mediada por tecnologias (p. 278). Sua refl exo se desenvolve apropriando-se de trs movimentos interpretativos, que passam pelo sacrifcio da noo ocidental de in-divduo dando lugar ao divduo por meio das conectividades, a falta de sentido do mundo e a passagem da condio huma-na transformada em inumana (Dyens, 2008) at chegar ao aparecimento do festivo na interconectividade.

    Sobrepondo mais uma vez festa e violncia, mas agora em planos distin-tos, Regina Coeli Machado e Silva desenvolve uma anlise do conto Feliz ano novo, de Rubem Fonseca (p. 289). Atentando para os planos de vida e morte e a dimenso das possibilidades de violncia nos centros urbanos, a narrativa do conto joga com o medo, a impureza, a repugnncia. Quando um grupo de ladres, sujeitos marginalizados da sociedade, invade a festa de ano novo de um grupo que desfrutava a vida da festa, e d incio a atos de violncia, morte, violao dos corpos e sexualidades, instala-se o confronto dessas re-alidades que convivem nas metrpoles. Entretanto, a autora indica que por um momento o conto subverte essa contradio, unindo dessemelhantes pelo excesso, formando uma unidade tensa em torno do valor precrio da vida.

    Chega-se ao terceiro eixo, o eixo histrico, com os trabalhos de Lilia Moritz Schwarcz, A aclamao uma festa! (p. 313), e de Guilherme Amaral Luz, Festa: barroca? (p. 337), sobre festas na Amrica portuguesa. Lilia

  • 417

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 410-418, jul./dez. 2012

    Festa como perspectiva e em perspectiva

    Schwarcz trata da festa de Aclamao de Dom Joo VI, no Rio de Janeiro, co-locando em questo a construo do cenrio para a performance em uma cele-brao ofi cial e ritualstica. Em uma anlise que cruza antropologia e histria, com recursos de imagens e trechos de versos e inscries, possvel observar como se construiu um encantamento da festa, elemento central tambm de sua efi ccia.

    No que tange a festas do perodo colonial brasileiro em uma refl e-xo sobre festas barrocas, Guilherme Amaral Luz traz dados, imagens e refl exes tericas que colocam luz novamente sobre a dimenso de poder e preenchimento do vazio pelos excessos que se faziam presentes nas festas em questo. O autor mostra que essas festas no seriam a suspenso do cotidiano nas colnias, mas sim a sua extenso, o seu spectrum remetendo pompa da monarquia estando seu diferencial centrado nos efeitos que deveriam ge-rar, tais como reafi rmao de pactos polticos [] desengano das vaidades e a percepo sensorial e afetiva da concrdia. Em outros termos, as festas eram evidncias exteriores de um teatro interior. (p. 341).

    A referncia a esses artigos, nesta coletnea que abrange signifi cativos estudos sobre festas produzidos na antropologia brasileira, indica a existncia de uma pluralidade de olhares, enfoques, metodologias e arcabouo terico sendo pensado e utilizado na rea, ao mesmo tempo em que provoca e indica a possibilidade de espaos para pesquisa e aprofundamento das discusses no campo antropolgico. Seja a partir de pontos intrnsecos realizao das festas, como mobilizao dos agentes, a performance, violncia, identidade, subverso e ordem apontados nos textos , seja a partir de um olhar voltado para o fenmeno festivo complexo, a partir dessa leitura fi ca patente a relevn-cia dessa produo para a compreenso de dinmicas sociais que extrapolam o multiverso festivo (p. 14).

    Referncias

    BARTH, F. Les groupes ethniques et leurs frontires. In: POUTIGNAT, L.; STREIFF-FENART, P. Thories de lethnicit. Paris: PUF, 1995. p. 203-249.

    DURKHEIM, E. As regras do mtodo sociolgico. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.

  • 418

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 410-418, jul./dez. 2012

    Patrcia Kunrath Silva

    DYENS, O. A busca da espiritualidade na condio inumana: o exemplo da obra de arte digital. In: AMARAL, L.; GEIGER, A. (Org.). In vitro, in vivo, in silicio: ensaios sobre a relao entre arte, cincia, tecnologia e o sagrado. So Paulo: Attar: CNPq/Pronex, 2008. p. 297-308.

    HANNERZ, U. Fluxos, fronteiras, hbridos: palavras chaves da antropologia transnacional. Mana, v. 3, n. 1, p. 7-39, 1997.

    MAFFESOLI, M. Sobre o nomadismo: vagabundagens ps-modernas. Rio de Janeiro: Record, 2001.

    MAUSS, M. Sociologia e antropologia. So Paulo: EPU, 1974. v. 2.

    TURNER, V. W. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrpolis: Vozes, 1974.

    VAN GENNEP, A. Ritos de passagem: estudos sistemticos dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoo, gravidez e parto, nascimento, infncia, puberdade, iniciao, ordenao, noivado, casamento, funerais, estaes, etc. Petrpolis: Vozes, 1978.