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ENTREVISTA 24 TÉCHNE 139 | OUTUBRO DE 2008 POVINDAR KUMAR MEHTA Engenheiro químico por formação na Universidade de Delhi (Índia), o especialista indiano é mestre na Universidade Estadual da Carolina do Norte e doutor em Ciência e Engenharia de Materiais da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Professor Emeritus em Engenharia Civil na Universidade de Berkeley, Mehta se aposentou em 1993 após lecionar durante 30 anos sobre concreto. Em 2006, suas décadas de pesquisa na utilização de cinzas volantes no concreto foram reconhecidas pelo Coal Combustion Products Partnership. É também membro honorário do ACI (American Concrete Institute) e Ibracon (Instituto Brasileiro do Concreto). O aquecimento global deve-se em grande parte à emissão de CO 2 . Na indústria do concreto, 90% da emissão de carbono ocorre nos fornos que queimam o clínquer. É assim que Po- vindar Kumar Mehta, professor da Universidade de Berkeley (USA), tenta convencer o setor da construção a re- pensar a fórmula e o próprio uso do concreto. Mehta realizou palestras no 50 o Congresso Brasileiro do Concreto e também na Poli-USP (Escola Politéc- nica da Universidade de São Paulo) sobre o tema "A Glimpse into Sustain- ableTernary-blended Cements of the Future". Sua proposta inclui a atuação em três frentes, mas que têm uma pala- vra em comum: redução. Mehta defen- de que se consuma menos concreto nas novas estruturas, menos cimento nas misturas para concreto e pouco clín- quer para produzir o cimento. Segun- do Mehta, cerca de 50% a 70% da massa de clínquer presente no cimento Portland pode ser substituída por di- versos materiais complementares. En- tre os exemplos estão as cinzas volan- tes, pozolanas naturais e cinzas de casca de arroz. O especialista propõe que pelo menos dois desses materiais sejam utilizados de forma complementar ao clínquer, substituindo 40% em massa. Durante o Congresso, organizado pelo Ibracon (Instituto Brasileiro do Con- creto), o indiano lançou a terceira edi- ção do livro "Concreto: Microestrutu- ra, Propriedades e Materiais". O brasi- leiro Paulo Monteiro, que também le- ciona na faculdade norte-americana, é novamente co-autor do livro. A edição recebeu novos capítulos e um CD com vídeos e outras informações. Concreto sustentável Marcelo Scandaroli "Papa" do concreto, Kumar Mehta defende a redução de clínquer no cimento Portland e menos cimento na mistura, para tornar o material "mais" sustentável. Alvos são as fábricas e projetistas entrevistax.qxd 6/10/2008 17:47 Page 24

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ENTREVISTA

24 TÉCHNE 139 | OUTUBRO DE 2008

POVINDAR KUMAR MEHTA

Engenheiro químico por formação naUniversidade de Delhi (Índia), oespecialista indiano é mestre naUniversidade Estadual da Carolina doNorte e doutor em Ciência eEngenharia de Materiais daUniversidade da Califórnia, emBerkeley. Professor Emeritus emEngenharia Civil na Universidade deBerkeley, Mehta se aposentou em1993 após lecionar durante 30 anossobre concreto. Em 2006, suasdécadas de pesquisa na utilização decinzas volantes no concreto foramreconhecidas pelo Coal CombustionProducts Partnership. É tambémmembro honorário do ACI (AmericanConcrete Institute) e Ibracon(Instituto Brasileiro do Concreto).

Oaquecimento global deve-se emgrande parte à emissão de CO2. Na

indústria do concreto, 90% da emissãode carbono ocorre nos fornos quequeimam o clínquer. É assim que Po-vindar Kumar Mehta, professor daUniversidade de Berkeley (USA), tentaconvencer o setor da construção a re-pensar a fórmula e o próprio uso doconcreto. Mehta realizou palestras no50o Congresso Brasileiro do Concreto etambém na Poli-USP (Escola Politéc-nica da Universidade de São Paulo)sobre o tema "A Glimpse into Sustain-ableTernary-blended Cements of theFuture". Sua proposta inclui a atuaçãoem três frentes, mas que têm uma pala-vra em comum: redução. Mehta defen-de que se consuma menos concreto nasnovas estruturas, menos cimento nasmisturas para concreto e pouco clín-

quer para produzir o cimento. Segun-do Mehta, cerca de 50% a 70% damassa de clínquer presente no cimentoPortland pode ser substituída por di-versos materiais complementares. En-tre os exemplos estão as cinzas volan-tes,pozolanas naturais e cinzas de cascade arroz. O especialista propõe quepelo menos dois desses materiais sejamutilizados de forma complementar aoclínquer, substituindo 40% em massa.Durante o Congresso, organizado peloIbracon (Instituto Brasileiro do Con-creto), o indiano lançou a terceira edi-ção do livro "Concreto: Microestrutu-ra, Propriedades e Materiais". O brasi-leiro Paulo Monteiro, que também le-ciona na faculdade norte-americana, énovamente co-autor do livro. A ediçãorecebeu novos capítulos e um CD comvídeos e outras informações.

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"Papa" do concreto, Kumar Mehta defende a redução de clínquer no cimentoPortland e menos cimento na mistura, para tornar o material "mais"sustentável. Alvos são as fábricas e projetistas

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Uma de suas propostas para umaconstrução mais sustentável é reduziro consumo de concreto, do cimento ediminuição do clínquer no último. Osprofissionais e a indústria estãopreparados para essa mudança?Eu não considero que haja resistênciapor parte dos arquitetos, engenheirosou qualquer profissional dessas áreas.Esses aceitam bem a redução do concre-to, do cimento e do clínquer no própriocimento. O problema está na indústriado concreto, que teme mudanças. Elaestá acostumada ao crescimento e aosparadigmas atuais. Para não afetar isso,a indústria apóia o desenvolvimento deedifícios sustentáveis,que estão em todaparte,mas é preciso,também,estender aquestão ao consumo de cimento.

Como espera alcançar esse concretomais sustentável?Os edifícios ecológicos estão empregan-do soluções que utilizam aspectos natu-rais para aquecimento, ventilação, ilu-minação e estão reduzindo o consumode energia, por exemplo. Entretanto, énecessário estender esse conceito paraos materiais ecológicos. Precisamos

convencer,de forma maciça,os arquite-tos e projetistas a utilizarem materiais esoluções ecológicas em seus projetos.São eles que especificam os detalhesdos projetos e que movem a indústria.São eles que movem também a indús-tria do concreto. Quer gostem ou não,os fabricantes deverão obter soluçõesmais sustentáveis para o concreto. É amão que balança o berço, é assim quefunciona. Enquanto isso, eles vão dizerque essa tecnologia "ainda não existe".É uma maneira de confundir.Não é ne-cessário mudar nada. São como as pes-soas que querem votar em McCain enão em Obama, porque têm medo demudanças.O cenário do status quo estámuito ruim,mas eles têm medo de mu-danças. Há todo tipo de desculpas. Por

“Estou tentandodizer ao pessoal doLEED que deveriamir direto à questão daemissão de carbono”

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exemplo,a administração do presiden-te Bush não assinou o Protocolo deKyoto. Só que o país é responsável por25% das emissões de carbono. Qual arazão disso? Algumas pessoas lucramcom o status quo e há aquelas que têmmedo de mudar. Só que em longoprazo,estão se tornando um obstáculo.Outro exemplo é que McCain deve ga-nhar as eleições. Só que não por méri-to, mas pelo receio de muitas pessoasde mudar certas questões. O medo émuito poderoso.

O concreto auto-adensável ainda éuma tecnologia onerosa no Brasil.Seus estudos indicam uma soluçãocom os mesmos benefícios técnicos e mais barata?Não considero o concreto auto-aden-sável mais caro. Recentemente, a estru-tura de um templo na Índia foi total-mente executada com auto-adensável.Foram lançados 8.200 m³/h, um gran-de volume de concreto com cinzas vo-lantes.Não houve custos extras,não foiacrescentado nenhum aditivo modifi-cador de viscosidade. Portanto, dizerque o concreto auto-adensável é muitocaro é porque os vendedores querempromover seu aditivo modificador deviscosidade. Eles querem vender aditi-vos. Só que isso não é necessário comum volume alto de cinzas volantes nosistema. Assim, temos o que se podechamar de sistema quase auto-aden-sável. Nessa obra, o concreto foi lança-do durante 12 horas, sem parar. Isso sófoi possível porque o concreto flui e seauto-adensa.

No Brasil, é fato que o concretoauto-adensável é mais caro.Talvezisso esteja ligado à abordagem feitaà dosagem. Para partículas maisfinas, coloca-se mais cimento. Amaioria das combinações e dosmateriais combinantes estãorelacionados ao insumo. O módulode deformação é muito baixo, o picode hidratação é muito alto e às vezesnão funciona. Há estruturas queforam executadas com 800 kg decimento, sendo 70% de escória.Ah, meu Deus! Nunca executaríamosnesses parâmetros. Ainda assim são

560 kg de escória. Para as muitas es-truturas que projetei, nunca especifi-quei mais do que 200 kg. Nunca.

Qual a sua visão sobre o LEED naquestão do concreto?Estou tentando dizer ao pessoal doLEED que deveriam ir direto à questãoda emissão de carbono.Essa opção seriabem mais eficiente ambientalmente, háo foco de quantidade no LEED. Porexemplo, é possível reduzir de 20% a25% o teor de cimento com o uso de su-perplastificante. Essa questão não é va-lorizada pela certificação.Se um edifícioeconomizou 2.000 t de emissões de car-

bono, qual o problema de ser pontuadono LEED? É uma questão global, atual,que deveria ser pensada.

Aumentar a produtividade do concretono canteiro é uma preocupação do setor.Qual a sua recomendação para isso?O concreto é pesado para transportar,nisso alguém decide colocar mais água oucimento.Logo surgem as fissuras,é neces-sário consertar. Só que a adição de mate-riais complementares ao cimento Por-tland aumenta a trabalhabilidade do ma-terial, que é um dos problemas mais co-muns nos canteiros. Os processos envol-vendo o concreto são simples. Não é ne-cessária uma mão-de-obra especializadapara vibração e consolidação. Tambémnão vejo impacto algum para introduzirtecnologias sustentáveis. Os responsáveise os operários necessitam ter consciênciado processo da cura. Quando o concretopadrão está adensado, é preciso esperarantes de fazer qualquer acabamento nasuperfície e que a água evapore. Há casosem que os operários ficam até mesmocinco horas aguardando sentados eperde-se a produtividade. Só que se nãohá exsudação,já é possível começar o aca-bamento após o lançamento.Isso é possí-vel com o uso de 5% de microssílica,10%de pó de calcário. Essas tecnologias aju-dam os trabalhadores, aumentam a efi-ciência,não necessitam de equipamentosou treinamentos complexos.

A nanotecnologia e o concreto estãosendo muito discutidos. Como encaraa questão? A nanotecnologia utiliza material parti-culado muito fino. Há três décadas otermo nanotecnologia não era usado, sóque a indústria do concreto já empregavamateriais de nanodimensões. A micros-sílica, que ainda é muito utilizada, é umexemplo. De forma aproximada, 5%desse material preenche os espaços entrepartículas grandes de agregados que pos-sui até cerca de dez vezes o tamanho damicrossílica. Há materiais que, se traba-lhados, permitem obter partículas emoutras faixas de tamanho que podemchegar até cerca de 15 micra. Entretanto,se utilizarmos a microssílica no concreto,essa faixa pode ser de até 0,15 micra.Por-tanto,é um nanomaterial.Esse preenchi-

CONCRETO:MICROESTRUTURA,PROPRIEDADES E MATERIAIS

Autores: Povindar Kumar Mehta, Paulo J. MonteiroEditora: Ibracon (Instituto Brasileirodo Concreto)674 páginas Valores: R$ 100,00 (sócio do Ibracon),R$ 150,00 (não-sócio do Ibracon)

“A nanotecnologia éempregada de formalimitada por doismotivos. O primeiroé que ela é cara.O segundo, é quenesse valor ela não é viável”

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mento do espaço entre o agregado e apasta do cimento ocorre de forma uni-forme e é muito bom para a hidratação.O pó de calcário também é interessantee possui uma granulometria extrema-mente fina. Além disso, não é tão caroquanto a microssílica. Ele é muito inte-ressante por sua dispersão, por reduziros espaços entre a pasta de cimento e osagregados. Por esse motivo, o concretoauto-adensável está usando bastante opó de calcário. A nanotecnologia é em-pregada de forma limitada por dois mo-tivos. O primeiro é que ela é cara. O se-gundo é que,nesse valor,ela não é viável.

Há muitos estudos envolvendonanotecnologia?O material precisa ser moído em umagranulometria muito fina. Isso está nomeu livro. Estou tentando dizer quenão é uma novidade. Na Noruega, oconcreto com cerca de 3% a 5% de mi-crossílica é empregado há 30 anos emconstruções em alto-mar para pros-pecção de petróleo. Nessa dosagem, ouso desse material na mistura deixa o

veneno.Só que ninguém estava disposto afazer nada para consertar isso.Shiva sorveuo veneno com um canudo e a única conse-qüência foi que sua pele ganhou a cor azul.No livro,faço essa comparação entre Shivae o concreto.Acho que esse material podebeber todos os tipos de veneno.Onde colo-caríamos um bilhão de toneladas de cinzasvolantes, que contêm elementos tóxicos?Se entrarem em contato com lagos, lagoase aterros haverá contaminação dos lençóisfreáticos com arsênico, chumbo. Se foremutilizadas no concreto,não haverá proble-mas.O concreto é uma das maiores indús-trias,produz muito e é a única com capa-cidade para absorver essa enorme quanti-dade de resíduo.Só que ela precisa reduzira emissão de carbono. A sociedade vaicontinuar consumindo grandes quanti-dades de concreto, para infra-estrutura,para edificações,renovação.Só que é pre-ciso utilizá-lo de forma eficiente,é precisocontrolar o consumo e reduzir o consu-mo de clínquer para diminuir a emissãode carbono.

Rafael Frank

Tradução: Cristina Borba

concreto livre de exsudação. Assim,essa tecnologia não é tão nova.

E por que essa discussão está tãoevidenciada ultimamente?Há mais implicações para um materialaltamente sofisticado. É como a fibrade carbono, plásticos reforçados, cerâ-micas, onde a trabalhabilidade podeser melhorada por meio da dispersãode pequenas quantidades de partícu-las finas. Estão, cada vez mais, desco-brindo esses materiais. Só que no casodo concreto, microssílica e pó de cal-cário são comuns na área de materiaisde partículas muito finas e a constru-ção civil está utilizando essas duassubstâncias há bastante tempo.

Qual seu vislumbre para o concretodo futuro, ainda mais com asustentabilidade?Acho que o futuro do concreto é brilhante.Na mitologia hindu, há o deus Shiva quecontrola os venenos. No mito, as pessoascomeçaram a vasculhar o oceano embusca de algo valioso e liberaram muito

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