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“Transbordamentos: Arte, Espaço e Urbanidade” Projeto que combinou um seminário na Pinacoteca do Estado e intervenções artísticas no parque da Luz, nos dias 17 e 18 de novembro de 2014. O evento reuniu pesquisadores renomados nas artes visuais, arquitetos e curadores experimentados na problemática das formas de arte produzidas a céu aberto. Saiba mais.

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O evento “Transbordamentos: Arte, Espaço e Urbanidade” combina um Seminário a Intervenções artísticas na cidade de São Paulo, na região do bairro da Luz. Idealizado como parte da programação da Poiesis para a reflexão e fomento à produção artística criada para o espaço urbano atual, esse projeto localiza-se geograficamente numa região da cidade que porta simbolismos e realidades variadas, saudosas, desafiadoras, instigantes para seus vários usuários: moradores, visitantes, artistas interventores, arquitetos, biógrafos e toda sorte de gente que se deixa conduzir pela paisagem do lugar.

A partir dos indícios gerados pelo processo contínuo de transformação dos centros urbanos da atualidade foram compostas as mesas de debate do Seminário desdobradas nessa publicação sob a forma de resumos expandidos. Organizados pelas perspectivas dos campos da Arte, da Arquitetura e da História, cada Mesa foi levada a problematizar as questões estéticas e urbanas que nos antecedem, paralelamente àquelas que projetam o espaço envoltório da contemporaneidade. Seus conferencistas e mediadores representam um conjunto de pesquisadores ligados a importantes instituições de ensino superior e de arte do Brasil, por meio dos quais a relação entre arte e espaço urbano vem sendo cultivada com expressivo rebatimento para a produção e reflexão sobre esse campo de estudos e prática artística no país.

No Parque da Luz realizam-se as duas intervenções artísticas temporárias que propõem a continuidade do cotidiano desse lugar potencializado pela Arte. Os projetos “Hiato” e “Observadores de Pássaros”, elaborados pelos artistas Marcelo Moscheta e Cesar Fujimoto, especialmente para esse espaço urbano de São Paulo, apresentam possíveis ligações entre Arte e Natureza como campo igualmente fértil para as discussões propostas pelo evento.

A condição do transbordamento estrutura os trabalhos em suas etapas interna e externa de maneira a afirmar um modus operandi consonante com a velocidade da megalópole. Indica ainda sua posição de indissociabilidade entre a práxis e a pesquisa teórica. Assim, o transbordamento é compreendido como conduta criativa e criadora dos novos distanciamentos adotados pelos projetos artísticos criados para o espaço aberto e urbano. Como conceito, estabelece parâmetros para que se revise o campo da batalha travada entre o local e o global na esfera artística, ao mesmo tempo em que propõe outra métrica para dimensionar o lugar da arte e de suas instituições, no tempo presente.

Partindo da vascularidade de conceitos, espacialidades, agentes interlocutores e temporalidades possíveis nas múltiplas formas de atuação do artista na paisagem urbana contemporânea, conhecimento intensificado, nas últimas décadas, por proposições artísticas instauradas em distintos lugares do globo, bem como por estudos e publicações pertinentes, o evento pretendeu promover um debate estético e ético sobre os enfrentamentos, acordos, destinações e revisões do dialogo, sempre em construção, entre arte e meio urbano.

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O EMBATE DA ARTE NO MEIO URBANO CONTEMPORÂNEO

Vera Pallamin

Estamos em meio a uma ordem preponderante do tempo que coloca a todos questões cruciais não só em relação ao nosso dia-a-dia, como também àquilo que tomamos por devir. Em seu livro recente, intitulado ‘O novo tempo do mundo’ (2014), o filósofo Paulo Arantes problematiza referências basilares de nosso presente: o andamento do capitalismo, desde o início da década de 1970, tem posto em práticas novas estratégias de transformação do valor em mais valor, em comparação ao período anterior, após a 2ª Guerra Mundial, que implicam transformações significativas no meio urbano. A queda do muro em 1989 e o fim da União Soviética em 1991, esses dois grandes acontecimentos históricos marcam a passagem de um tempo de promessas emancipatórias que teria se alongado durante todo o século XX. Nesse decurso, certas formas sociais foram ultrapassadas historicamente e outras foram radicalmente acirradas. Em certo sentido, estamos em meio a um tempo que significa a ruína daquela ideia de um mundo novo que povoou a imaginação crítica por tantas décadas.

‘O novo tempo do mundo’ diz respeito, segundo Arantes, à “experiência da história numa época de expectativas decrescentes” (Arantes, 2014:27), na qual o capitalismo tornou-se um sistema mundializado, produzindo novas hierarquizações na consecução do regime de acumulação e concentração de riquezas. O modo com que o futuro se coloca nesse movimento decrescente de expectativas contrapõe-se à ideia de um ‘futuro aberto’, que exerceu um papel profundo na modernidade, associando-se às escolhas e deliberações feitas no presente. Esse futuro aberto - para o qual a Revolução Francesa foi um vigoroso impulso, dizia respeito a um mundo em que não se buscava mais, prioritariamente, atender às tradições, mas voltava-se ao empenho pela inovação, pela descoberta científica e técnica. Um dos operadores das grandes expectativas aí acionadas foi a poderosa noção de progresso, que vigorou no ocidente de meados do século XVIII até, aproximadamente, meados do século XX. É preciso lembrar que, no século passado, durante todo o período da Guerra Fria, o progresso foi elogiado tanto pelo lado capitalista quanto pelo lado socialista (como na meta de se chegar à lua, na corrida espacial, etc). Essa ideologia do progresso associava-se a um otimismo em relação ao futuro, que se apresentava como aberto, em direção ao melhoramento social.

O retrocesso dos horizontes modernos de expectativas, assim como a mudança significativa quanto aos sentidos do devir fazem parte da lógica desse novo tempo

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do mundo: na sociedade atual, “um novo regime de expectativas’ entra em vigor, redefinido segundo uma redistribuição igualmente desigual de riscos e urgências” (Arantes, 2014: 63). Nessa redistribuição, o componente da incerteza tende a ser constante, pondo em causa, na vida cotidiana, projetos a longo prazo. No campo das relações de trabalho essa incerteza é propagada pelos contratos temporários, a curto prazo, isentos de garantias sociais.

Nessa matriz da mundialização do capital, o aguçamento da lógica de produção de excedente como objetivo primeiro - que significa a transgressão constante de limites e fronteiras em todos os níveis - acentua a dimensão de riscos de grande alcance e difusos, exacerbando-se a ideia de prevenção e, nas palavras de Arantes, um “presente securitário máximo” (Arantes, 2014:75). Esse novo regime de expectativas é vivido atualmente como sendo um ‘regime de urgência’, em que a dinâmica temporal é percebida como um ‘presente prolongado’ (Arantes, 2014: 96). Esta acepção de um presente prolongado foi proposta originalmente pela socióloga Helga Nowotny em sua obra sobre ‘a gênese e a estruturação de um sentimento do tempo’ (1989) e diz respeito à tendência do presente, na atualidade, substituir a categoria do porvir.

À luz dessa noção de um presente estendido proponho uma aproximação da obra escultórica de Antony Gormley intitulada ‘Another Place’ (1997): o conjunto compôs-se de 100 figuras humanas em ferro fundido, repetidas, distanciadas entre si de 50m a 250m, ao longo de uma (larga) faixa da praia, estendendo-se por centenas de metros em uma região próxima ao estuário do rio Elba, em Cuxhaven (Alemanha).1 Seu regime de visibilidade era variável conforme as condições climáticas e a variação do nível das águas. As esculturas mais próximas da areia foram parcialmente enterradas e aquelas situadas nas áreas úmidas, em alguns momentos, ficavam quase totalmente submersas. Todas foram moldadas a partir do próprio corpo do artista.

Todos esses corpos metálicos, inalteráveis, voltavam-se diretamente para o horizonte, a observá-lo e a esperar. Sua presença marcava um momento dilatado e, naquelas condições locais, sua fixidez contrapunha-se ao campo arenoso e aquoso, rompendo seu continuum, ao mesmo tempo em que nele se integrava, sob a ordem da impassibilidade. Figuradamente, em sua postura de prontidão, formavam um coletivo espacializado ao longo do limite entre a terra e o mar, e permaneciam num presente que mirava o horizonte, praticamente inalterável.

O historiador François Hartog nomeia essa hipertrofia do presente como ‘presentismo’, referindo-se ao tempo que, desde os anos 1970, com o fim do fordismo e com a desagregação da ideia revolucionária, está associado às exigências cada vez maiores da sociedade de consumo, em que o próprio tempo tornou-se também uma mercadoria. Esse tempo coincide com a época do desemprego em massa decorrente da reorganização produtiva, à qual David Harvey nomeou como ‘acumulação flexível’. Para o desempregado, diz Hartog,

“um tempo cotidiano, sem projetos possíveis, é um tempo sem futuro. Para esses ‘homens sem futuro’, como os denominava Pierre Bourdieu, ‘o tempo parece se aniquilar’, pois “o trabalho assalariado é o suporte, senão o princípio, da maior parte dos interesses, das expectativas, das exigências, das esperanças e dos investimentos no presente, assim como no futuro ou no passado que ele envolve” (Bourdieu, 1997:263). O desemprego contribui fortemente para o confinamento no presente e para um presentismo, agora penoso e desesperado”. (Hartog, 2014:148)

A performance de Francis Alys, intitulada ‘Algumas vezes, fazer algo leva a nada’, problematiza esse esvaziamento. Foi realizada na cidade do México (1997) e consistiu no ato do artista empurrar um bloco de gelo ao longo das ruas da cidade, durante horas a fio. Na fase inicial, essa atividade exigia posições corporais de esforço, exaustivamente. Em seu percurso, o artista passou por áreas comerciais mais pobres

1 O trabalho foi instalado, posteriormente, de modo permanente na Inglaterra, em Crosby Beach, Liverpool.

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e mais abastadas, num circuito que percorreu amplamente a cidade. Muitas imagens do vídeo da performance tomaram por foco o chão ou foram feitas a partir do chão e perduraram até que o bloco se tornasse uma pequena pedra e por fim, sumisse completamente...

Para quem quiser fazer uma experiência presentista, exemplifica o historiador, basta andar pelas grandes cidades contemporâneas para as quais o arquiteto Rem Koolhaas propôs os conceitos de ‘cidade genérica’ e de ‘espaço lixo’:

“nelas, o presentismo é rei, corroendo o espaço e reduzindo o tempo, ou o expulsando. Liberada da servidão ao centro, a cidade genérica não tem história (...) e se, apesar de tudo, ainda existir um centro, ele deve ser ‘na qualidade de lugar mais importante’ simultaneamente ‘o mais novo e o mais antigo’, ‘o mais fixo e o mais dinâmico’ (...) o Junkspace [o espaço lixo] ignora o envelhecimento: só conhece a autodestruição e a renovação local, ou então uma precariedade habitacional ultrarrápida” (Hartog, 2014:15).

As mutações do urbano têm se concretizado em grandes aglomerações assumindo formas extremas. O modelo de cidade outrora ligado a uma tradição de integração encontra-se fragilizado em prol da dispersão e segregação de grupos sociais. Os conflitos de classes e as lutas pelos lugares se multiplicam. Nela se dá o predomínio dos fluxos de todas as ordens sobre as localidades, colonizando-as e desfazendo suas circunscrições prévias. Esse processo desestabiliza definitivamente a tradicional acepção de cidade provocando reconfigurações no território e na própria natureza do espaço público. Um dos atuais paradoxos dessa generalização do urbano é que esta é concomitante ao enfraquecimento da urbanidade, da civilidade, em muito decorrente da cultura de se transpor limites, em todos os níveis, que está na lógica mesma de todo esse processo (Mongin, 2005).

Nessa condição urbana, a dinâmica de autodestruição e renovação de localidades responde pelo fato de que no capitalismo financeiro a importância da produção do espaço e a especulação imobiliária são acirradas na extração de excedentes. No âmbito da arquitetura e do urbanismo contemporâneos essa dinâmica aliou-se ao que Fredric Jameson, nos anos 1980, denominou como a ‘virada cultural’, remetendo-se à centralidade assumida pela dimensão da cultura nos modos sistêmicos de valorização do valor.

Entretanto, os processos de produção do espaço urbano a partir dos anos 1970 contaram também com uma outra virada, concomitante a essa virada cultural, e de enorme influência na configuração e enfrentamento dos conflitos sociais aí implicados: a chamada ‘virada punitiva’ que, segundo Paulo Arantes, é um ingrediente determinante deste ‘novo tempo do mundo’ por ele analisado. A compreensão crítica dessa virada punitiva está em relação direta, dentre outros, com os trabalhos do filósofo Michel Foucault - sobre vigilância e biopoder - e do sociólogo Loïc Wacquant - sobre punição e a ‘nova gestão da miséria’. Wacquant foi “o primeiro a ressaltar [nos anos 1990] a virada punitiva que acompanha o novo regime de acumulação, em associação com a regulação coercitiva do trabalho dos pobres” (Arantes, 2014:158). No plano urbanístico, a virada punitiva está ligada ao chamado ‘urbanismo militarizado’, e ao que David Harvey denomina ‘urbanismo por despossessão’.

Wacquant estabeleceu uma ligação direta entre a reestruturação neoliberal, a punição e o modo de enfrentamento das instabilidades sociais associadas às reformas do mercado: “‘a mão invisível’ do mercado necessita do ‘punho de ferro’ do Estado penal e convoca-o” (Wacquant, 2012:8). O gerenciamento social volta-se para o “gerenciamento penal da marginalidade urbana”, como parte das providências para se lidar com a difusão da insegurança social (Wacquant, 2012:9 e 13). Essa virada punitiva implica na ênfase a uma ‘cultura do controle’, que tem várias consequências para o urbanismo e as práticas urbanas, uma vez que está diretamente associada à questão da segurança e suas reverberações pelo espaço social.

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Evidentemente os casos ligados a essa racionalidade econômico-punitiva são muitos. Em São Paulo, certos processos urbanos ligados à Região da Luz tornaram-se emblemáticos, sobretudo nos últimos 10 anos, da conjunção que Wacquant trata entre a ‘penalização dos pobres e a militarização do espaço urbano’ (Wacquant, 2008:58). Associadas ao Projeto Nova Luz foram executadas, desde 2005, quatro operações específicas da Polícia Militar nessa região: 1) Operação Limpa (iniciada em 2005), para expulsar usuários de drogas e sem-teto; 2) Operação Integrada Centro Legal (iniciada em 2009), para eliminar a Cracolândia (com mais de 13.000 abordagens policiais e centenas de detenções); 3) Operação Delegada (iniciada em 2010), dirigida aos ambulantes; 4) Operação Sufoco (iniciada em janeiro de 2012), para dispersar e expulsar os moradores de rua daquela área (Laboissière, 2013).

No que se refere à produção do espaço urbano sob a ordem ‘do novo tempo do mundo’, a região da Luz reúne as diretrizes da virada punitiva e da virada cultural, desde a inauguração da Sala São Paulo (em 1999) e os demais projetos relacionados, Pinacoteca inclusa.

Tematizando aspectos relacionados aos conflitos urbanos dessa região, o coletivo de arte paulistano Política do Impossível realizou, em 2008, um trabalho intitulado ‘Cidade-Luz: uma investigação-ação no centro de São Paulo’. Seu objeto central era o projeto de renovação urbana Nova-Luz proposto pelo então vice-prefeito Gilberto Kassab, para a área da Cracolândia e arredores.2 O projeto previa a criação de um pólo comercial e de serviços (visando promover a instalação de empresas, sobretudo da área tecnológica informática e similares, oferecendo-lhes incentivos fiscais) e de um novo parque. Para tanto seria necessário desapropriar várias edificações.

O Política do Impossível realizou um mergulho detalhado sobre os processos urbanos e seus agentes envolvidos no projeto, concebendo um trabalho que se desdobrou em vários resultados artísticos e culturais, dentre estes o livro Cidade-Luz. Foram propostos espaços de elaboração coletiva e criação artística em diálogo com o campo social, que incluíram cartografias, conversas, intervenções e ações simbólicas, resultantes do encontro com diferentes grupos e pessoas que vivenciam, atuam e pensam o processo de revitalização/reabilitação do centro da cidade.

Política, memória e resistência entrelaçaram-se nas proposições feitas, culminando numa intervenção chamada ‘Traga sua luz’: esta consistiu numa caminhada coletiva noturna como “uma ação crítica de valorização do bairro da Luz (...) [em que] “pessoas iluminadas com velas, colares de leds, luzes de bicicleta e lanternas caminharam da Estação da Luz (...) até a Rua dos Gusmões, onde se encontram os dois primeiros quarteirões desapropriados e demolidos”, (PI, 2008:111). Esses pequenos focos de luz foram espalhados pelo terreno arrasado, formando uma ambígua constelação.

Na mesma chave da resistência como antiviolência destaco a performance de Erdem Gündüz, dançarino turco, realizada no dia 18 de junho de 2013, na Praça Taksim (Istambul). No dia 07, uma multidão dirigiu-se ao parque Gezi, ao norte da praça, onde acampou para resistir ‘in loco’, ao início de um projeto estatal de ali construir um shopping, a despeito da contraposição à ideia, desde o início, por grande parte da população. A resposta à forte repressão policial foi o aumento exponencial, no dia seguinte, do número de protestantes na praça, repercutindo na mídia internacional, seguido, novamente, de forte repressão.

Erdem Gündüz articulou o que o crítico de dança André Lepecki denomina como a “potência da coreopolítica dissensual” (Lepecki, 2012:50) : no dia 18 ele realizou sua performance denominada ‘Duran Adam’ (Homem em pé), permanecendo 8 horas parado, em pé, quieto e encarando o retrato de Mustafa Kemal Atatürk, fundador da República da Turquia, postado ao alto, no centro da praça.

Mobilizando os conceitos de polícia e política articulados pelo filósofo Jacques Rancière, Lepecki afirma que “a coreopolítica requer uma distribuição e reinvenção de corpo, de afetos e de sentidos (...) toda coreopolitica revela o entrelaçamento

2 Suspenso, em 2013, pelo pefeito Fernando Haddad.

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profundo entre movimento, corpo e lugar” (Lepecki, 2012:55). Nos termos de Rancière (1996), a ação política reconfigura o sensível, e sua ocorrência se dá quando a lógica promovida pelas partilhas desigualitárias ou a ordem da dominação, supostamente natural, é perfurada por lutas e conflitos empenhados na atualização do princípio da igualdade.

A longa ‘imobilidade’ de Gündüz na praça, como se vê em seu vídeo, coreografou (direta e indiretamente) atitudes, movimentos e corpos ali presentes, politizando-os. Presença, permanência, duração, memória, coletividade e ação crítica concentraram-se num dispositivo artístico de recusa pública de destruição da tradição e vivacidade de espaços urbanos coletivos, ou, em termos mais amplos, de recusa da lógica, em ação, do ‘novo tempo do mundo’.

Referências Bibliográficas:

ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo, Boitempo, 2014.BOURDIEU, Pierre. Méditations pascaliennes. Paris Seuil, 1997.HARTOG, François. Regimes de historicidade. Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2014 [orig.: 2003]. LABOISSIERE, Bruna. Vida cotidiana e práticas espaciais ligadas à arquitetura e ao urbanismo: um estudo de caso sobre a Região da Luz’. Pesquisa de Iniciação Científica, FAUUSP / Fapesp, 2013. Orientação: Vera Pallamin.LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. ILHA, vol. 13, n,1, p.41-60, jan/jun (2011) 2012, pp. 41-60.MONGIN, Olivier. La condition urbaine. Paris, Éditions du Seuil, 2005.NOWOTNY, Helga. Le temps à sois. Genèse et structuration d’un sentiment du temps. Trad. Sabine Bollack e Anne Masclet. Paris, Éd. de la Maison des Sciences de l’Homme, 1992. (orig, em alemão, Suhrkamp, 1989).Política do Impossível (coletivo de arte). Cidade-Luz: uma investigação-ação no centro de São Paulo’. Disponível em: http://polis.org.br/wp-content/uploads/cidade_luz.pdfRANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. Política e Filosofia. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo, Ed. 34, 1996.WACQUANT, Loïc. A tempestade global da lei e da ordem: sobre punição e neoliberalismo. Revista de Sociologia e Política, v.20, n.417-20, fev, 2012.

Sites:

ALYS, Francis. End: http://www.francisalys.com/public/hielo.htmlGORMLEY, Antony. End: http://www.antonygormley.com/sculpture/item-view/id/230#p0ERDEM Gündüz. End: https://www.youtube.com/watch?v=SldbnzQ3nfM

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TRANSBORDAMENTOS DA ARTE CONTEMPORÂNEAPARA O MEIO URBANO

Sylvia Furegatti

O recorte que proponho para essa comunicação pauta-se pela apresentação de conceitos e práticas artísticas que permeiam minha atuação como artista visual, professora e pesquisadora; tarefas essas que, cada dia mais, tenho considerado indistintas na minha produção. Como artista visual, pratico intervenções, desde o inicio dos anos 2000, logo depois de conhecer os detalhes da emblemática destruição da escultura “Tilted Arc” de Richard Serra.

O contato com as controvérsias e forças que rondam a história dessa escultura em aço, encomendada (1981) e depois destruída (1989) pelo Governo norteamericano, foram seminais para meu interesse. Desde então, adoto como ponto de partida a elaboração de propostas nas quais são discutidas questões desse campo borrado acreditando na indissociabilidade do fazer artístico e do pensamento crítico e reflexivo como modelo de operação.

A relação formada dentre arte, natureza e paisagem, apresenta-se como espectro dos elementos criativos constantes em minha produção artística. Alguns projetos são mais duradouros que outros que, muitas vezes perduram tão somente o dia de sua implantação na paisagem. Outros podem perdurar por meses, a depender das chuvas sobre o terreno ou do interesse dos habitantes de determinado lugar ocupado temporariamente. Essa condição temporal respeita também a duração própria da coleta de espécies de plantas ou demais materiais naturais perecíveis deslocados para novos espaços.

Montes de terra, ilhas de plantas, exemplares de folhas, pedras, espelho e vidro em toneladas tem sido a matéria e a dimensão que organizam a forma dos trabalhos. Por eles, os projetos apresentam a preocupação com o espaço envoltório que os ressignifica, com seus interatores originais e convidados. Para além desses elementos, a análise dos eixos de difusão da arte contemporânea criados pelo circuito artístico atual é ponto gerador para outros trabalhos. Esses elementos são condições sempre presentes em minha produção individual, tanto quanto nos projetos que construo com o grupo Pparalelo de Arte Contemporanea, fundado em 2008, e que desde então, dedica-se a intervenções artísticas fora do eixo das grandes capitais urbanas.

A materialidade escolhida para as intervenções assume um papel importante nas pesquisas e em boa parte, indica o lócus para a ação. Antes do vidro, do espelho

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e de materiais da natureza, o giz e sua qualidade disruptiva, efêmera pauta os projetos feitos em diferentes lugares: Veneza, Buenos Aires, Campinas. Assim, os lugares dessas ações são, por vezes, convocados pelos projetos a reinscreverem-se como centrais nos mapas conhecidos, de forma a revisar as distâncias entre centro e periferia da produção artística contemporânea. Os deslocamentos propostos buscam reconfigurar os interlocutores dos projetos artísticos por meio do diálogo, da proposição de novos corredores culturais para a contemporaneidade e suas complexidades.

O conjunto dos projetos realizados inscreve-se na ideia do transbordamento dos espaços interno para o externo e organiza-se, em boa parcela, por meio de uma disposição espacial próxima às instituições que lhes promove e ou suporta. Ora são gentis intervenções sobre os sítios, tanto quanto podem ser entendidas como intrusas desses lugares, de suas comunidades, do fluxo urbano que interrompem propositadamente. Todas essas facetas são pontos de discussão nas reuniões em grupo, nas minhas indagações pessoais sobre como continuar o trabalho, tanto quanto são entendidas como propulsoras dos textos, das pesquisas e das novas ações sobre o espaço urbano.

As intervenções criadas fundamentam-se pelas revisões do dado espacial e pela configuração polissêmica que estrutura parte da produção contemporânea. Dentro desse aspecto de revisão, a eleição pelo modelo de operação da intervenção dada por oficinas preliminares à ação em si evidencia a presença e a participação ativa desses outros (habitantes, transeuntes, etc) que respondem ao convite para o trabalho, tanto quanto permite identificar uma orbita que se forma em torno do museu e ou instituição promotores dos projetos. Constrói-se uma nova métrica aplicável às distancias entre as etapas interna e externa dos projetos que carregam tais proposições artísticas pela distinção que pretendem entre apresentação e instauração do trabalho do artista interventor da paisagem.

Instaurar ao invés de apresentar nos traz pelo menos dois direcionamentos: o primeiro deles indica a necessidade de observação consistente das especificidades do local, do tempo pretendido para a permanência do trabalho, dos possíveis desdobramentos que essa ação pode causar no grupo de espectadores com quem dialoga a proposta artística. O segundo ponto nos chama a atenção para o fluxo gerado pelo projeto instaurado, ou seja, como o seu estabelecimento em determinado espaço adota um sentido de corte temporal que considera como artístico as alterações propostas a partir de sua presença e ação.

Implantar, sem que essa ação seja definitiva, supõe também a transitoriedade buscada pela arte contemporânea e pelas vertentes da intervenção artística no meio urbano contemporâneo. O território complexo que define o fenômeno urbano tal qual descreve Lefebvre (1999) possibilita a contaminação entre campos organizados das

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comunidades e valores estabelecidos entre as formas de política, capital, tecnologia e cultura. A cidade, em sua ordem moderna, não possibilitava tais questões para seus artistas; é a megacidade que oferece o desafio ao artista interventor contemporâneo. Intervir passa a ser a palavra chave no processo acelerado e aparentemente sem fim da constituição aberta dos grandes centros e megacidades.

Termo originariamente pertencente ao campo da Arquitetura e do Urbanismo, a intervenção no campo artístico configura-se pelo poder de um novo gesto sobre o anteriormente estabelecido; elevação máxima da ideia de continuidade, da existência de múltiplas camadas constitutivas, sobreposições de conceitos, linguagens e formas para a ação que constroem os espaços e lugares do mundo atual.

Essa configuração de contiguidade entre os campos de conhecimento é que potencializa o conceito de transbordamento verificado em parcela significativa da produção da arte em meio urbano contemporâneo, particularmente aquela produzida no Brasil.

Processo e contiguidade constroem novos valores para a produção artística que não mais correspondem aos formatos consolidados pela instituição museológica, pelo mercado de arte e os regimes colecionistas conhecidos. Sabidamente, é a pressão mercadológica aliada à institucionalização do trabalho artístico nos museus que desagrada parte dos artistas que escavam a fresta em busca da condição da periferia, do deserto ou de outros espaços não convencionados para a arte.

Contudo, externo ou interno ao espaço museológico, o trabalho de arte contemporânea é consciente da dependência de sua confirmação como arte por meio da visibilidade e autoridade a ele conferida pelo(s) agente(s) do circuito com quem negocia.

Assim, ao invés de rompimento, prega-se a negociação. Teixeira Coelho deixa uma indicação assertiva sobre a relação de proximidade e negociação estabelecida pela produção artística contemporânea, o museu e o seu mercado. Ele coloca que:

“O museu não foi derrotado. Nem o mercado da arte. Nem as instituições como um todo. Mesmo porque, ao final da década de 70, uma nova atitude diante das instituições despontava: não se tratava mais de contestá-las, destruí-las, tratava-se agora, um tanto cinicamente, de aproveitar aspectos positivos que podiam oferecer a cada um individualmente. Mesmo a tão radical arte conceitual foi suficientemente contemporânea para entrar na nova onda (...) Se as instituições são a Modernidade e se 68 foi contra esse espírito moderno e portanto contra a instituição, de seu lado a pós-modernidade é o reconhecimento (implícito e as vezes expresso) da existência da instituição, com a qual se passa a conviver pacificamente. Muito pacificamente.” (COELHO, 2000:200)

Enquanto o contexto intramuros, tipificado pelo museu, valoriza a ideia do centro e da unicidade, o extramuros dinamiza essa ideia trazendo à tona os valores da concomitância e do transbordamento.

A verificação dos transbordamentos ocorridos no caso brasileiro localiza-se historicamente no trabalho inicial de museus tais como MAM-RJ, MAC USP que, em meados da década de 1960 e 1970, efetivam programas variados de arte na rua, na busca de maior democracia e acesso, tanto quanto buscam desburocratizar o modelo do trabalho museológico conhecido.

É com a participação do Museu que se constrói a fresta de passagem que possibilita o transbordamento dos trabalhos desses artistas para o lado externo e urbano.

Assim, alinhados, o espírito marginal e o valor experimental promovem o distanciamento da institucionalização convencionada nos espaços museológicos no caso brasileiro e facilitam a insurgência de propostas mais híbridas, efêmeras que não criam, necessariamente, um demérito completo da atuação institucional para a Arte.

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É preciso considerar ainda que o afastamento praticado internacionalmente pelos artistas estrangeiros, ao longo da década de 1970, tem sua origem aclarada pelo próprio suporte tecnológico apresentado em boa parcela dos projetos instaurados nos desertos e locais mais afastados, como executam Robert Smithson, Michael Heizer, Allan Kaprow, Christo Javacheff. Mesmo assim, verifica-se nesses projetos, uma proximidade com o transbordamento anunciado, já que o mercado, atrelado à instituição e às próprias linhas de financiamento dos projetos, absorve tais propostas de uma maneira ou de outra.

No lugar de uma reação crítica feroz contra os museus brasileiros, os artistas promovem trabalhos cujo sentido orbital constituído, sugere a orientação do transbordamento. Ao mesmo tempo em que problematizam a instituição confiam-lhe um grau de proximidade em projetos pontuais que produzem.

Sob tal contexto não há reservas, mas sim confluências. O trabalho da arte incide no espaço urbano sob suas condições e intensidades, não o contrário, tal qual pressupunha o trabalho expositivo dentro do cubo branco do museu e da galeria. Para tanto, a especulação aprofundada do discurso estético, relativo a cada proposta, é também um dos elementos de sua distinção uma vez que as demais forças da urbanidade não se separam dos vetores estéticos e artísticos na leitura dos projetos.

Os vários agentes do sistema artístico passam a compreender a necessidade de que seu trabalho estabeleça-se num espaço público validado por sua capacidade de ativar conteúdos próprios ao contexto externo que os recebem e os significam como arte. Nessa direção, apresentam-se sob uma condição espacial que se pode intitular de extramuros.

O trabalho artístico instaurado nesse espaço extramuros assume multirreferências necessárias para a complexidade e mobilidade dos valores deste mundo atual. Sob intensa aceleração, a urgência cotidiana vivida hoje nos centros urbanos, apresenta como resultado a hibridação de papéis e áreas de conhecimento. Tornados mais complexos, os antigos concorrentes do sistema fundem-se na atualidade e multiplicam suas chances.

A escolha das vias não convencionais para se produzir e comunicar a arte permite o alargamento de suas fronteiras e o encontro com as tecnologias finca seu território no espaço urbano. O indivíduo artista já não realiza mais seu trabalho sozinho. Seja movido pelo ritmo industrializado da vida cotidiana, seja pelo emprego direto dessas tecnologias em seu trabalho, tal qual os demais personagens da megalópole, vive, pensa e trabalha cada vez mais na dependência de um conjunto, das trocas que lhes garanta subsistência e visibilidade. A megalópole exige dele que adentre no dispositivo espetacular para que seja comunicado, aparente, para que se torne, assim, real.

A complexidade das relações humanas e espaciais presente nos grandes centros urbanos inibe o tipo de ação permanente, preterida em relação aos eventos, às possibilidades de revisão e renovação, usualmente amparadas pela reversibilidade de funções, usos ou conceitos de objetos, lugares, equipamentos urbanos, monumentos e suas variações. Ao invés de persistirem, as esculturas de grande dimensão e materiais sólidos ou as áreas públicas para o convívio social, perdem terreno para modelos de ação e projeção de imagens, preferidas por se tratarem de propostas artísticas que se instauram por tempo determinado, e que possibilitam a reversibilidade de tudo que foi alterado por sua passagem.

Esse contexto demanda do artista contemporâneo um tipo de inteligência estratégica encontrada além de seu território de investigações originário. Inteligência apontada por Ronaldo Brito em suas análises sobre o circuito artístico brasileiro, ainda nos anos 1970. O crítico pontua a necessidade de reordenação de valores para que se alcancem, com os projetos contemporâneos, estratégias de alargamento do campo de ação da arte.

Arte e urbanidade passam a demandar, portanto, novas formas de atuação ainda pouco ajustadas aos atuais chamamentos das programações públicas

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oficiais. Aliadas ao contexto extramuros, conceitos terminológicos como ocupação, apropriação e intervenção passam a conduzir os critérios atualizados da inserção artística ligada ao espaço aberto e urbano e, sobretudo, a uma nova temporalidade. Mais que forma, durabilidade ou dimensão adotada, o processo e a formulação consciente do discurso assumem novos papeis de importância.

A arte, atenta aos acontecimentos econômicos e sociais que constroem os novos centros urbanos que a apresentam, trabalha com a ideia de novas concepções espaciais criando seus mapas. Organiza seus sustentáculos no espaço extramuros, buscando desintegrar os hiatos, típicos dos rompimentos praticados na Modernidade artística, preferindo estabelecer as negociações que sublevam o processo e o trajeto.

Assim, a postura do confronto deve ser recolocada e a figura do muro como separação vanguardista modifica-se, torna-se porosa. O muro como limite do espaço museológico, expográfico, qualificador do trabalho artístico atual deixa de ser elemento limitador e assume uma característica instigadora para a renovação da criação artística. Nessa paisagem o raio de ação é outro, é orbital e tem outra velocidade e amplitude de formação.

Com o passar das últimas quatro décadas, a noção de ampliação dos campos de atuação para a Arte e para a Cultura torna-se tão evidente que a questão do ajustamento a um lugar discursivo, referencial e de pertença, no qual possam ser adequadas as concomitantes velocidades que atuam sobre o homem e seus projetos, apresenta o conceito extramuros ponto de referência.

Do mesmo modo, a ideia do transbordamento provoca o contrário do isolamento usualmente atribuído ao artista e nos leva ao tom de negociação, com o qual trabalha a dupla: artista contemporâneo e museu de arte. Essa distância, algo programada, responde à conectividade com a atualidade social, artística e cultural e demonstra o sentido de equilíbrio buscado, criticamente, pelo pluralismo contemporâneo.

Referências Bibliográficas:

BAUMAN, Z. O mal estar da pós-modernidade. 1998.BRITO, Ronaldo. Análise do circuito. Revista Malasartes, nº 01, RJ, 1975.CAUQUELIN, Anne. A cidade e a arte contemporânea. Revista Arte e Ensaios. Revista do Mestrado em História da Arte. Ano 3, nº 3. EBA UFRJ. Rio de Janeiro, 1996, págs. 31 a 35.COELHO, Teixeira. Guerras Culturais. SP: lluminuras, 2000.LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Trad. S. Martins. B.H.: Ed. UFMG,1999.

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ARTE PÚBLICA: A CIDADE COMO EXPERIÊNCIA

Paulo Knauss

Direito à cidade

A presença da arte nas cidades é uma das fontes de afirmação do pensamento urbano moderno. Em grande medida, essa interrogação conduziu à discussão sobre a forma urbana e os sentidos de sua beleza, condicionando o papel que a arte deveria assumir nas cidades. Nesse sentido, o embelezamento urbano tornou-se uma medida do desenvolvimento das cidades e legitimou, por exemplo, as grandes reformas urbanas que marcaram a história dos centros metropolitanos ocidentais a partir da segunda metade do século XIX.

O compromisso com a beleza instaurou um urbanismo com foco na forma, capaz de traduzir a racionalidade das atividades e dos fluxos urbanos. Pode-se dizer que a opção por uma abordagem formal das cidades conduziu a afirmar a hierarquia entre os espaços urbanos, seus eixos e ponto de atração central, definindo a cidade moderna pelo controle da ordem espacial. Essa vertente de tratamento das cidades tendeu a uma abordagem estática do espaço urbano, favorecendo a promoção das expressões artísticas de caráter permanente, como a arquitetura e a escultura monumental.

Por outro lado, é preciso reconhecer que o discurso da ordem urbana, com freqüência, andou junto com a promoção da exclusão social atingindo grupos sociais e algumas atividades urbanas tradicionais, que dependiam da liberdade de circulação e ocupação de espaços urbanos não necessariamente especializados para o seu desenvolvimento. Nesse caso, a promoção da ordem urbana identificou-se com formas de repressão, definindo as cidades como espaços de constrangimento e opressão. Assim, o controle social das cidades afetou diretamente artistas de rua, como artesãos nômades, poesia e teatro de rua, bem como o circo, dentre outras manifestações artísticas efêmeras. A defesa da ordem urbana tendeu a discriminar os artistas de rua e marginalizar sua atividade criativa, identificando-a como ação perturbadora da ordem e foco da ação repressiva.

Além disso, é preciso reconhecer também que o projeto de cidade ordenada e disciplinada nunca abarcou completamente a vida urbana e que o processo de exclusão social é uma resposta à dificuldade de submeter o dinamismo citadino e as formas variadas de apropriação do espaço pela diversidade dos sujeitos sociais urbanos que territorializam sua vivência do espaço da cidade. Diante do controle

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social do espaço e da ação repressiva, a presença da arte nas cidades muitas vezes pode ser caracterizada igualmente como uma forma de resistência social.

O estudo da arte nas cidades permite, então, sublinhar que o projeto de cidade ordenada se confundiu muitas vezes com uma cidade submetida a um controle social excludente, incapaz de admitir a cidade como espaço de manifestação livre. Contudo, a arte fornece igualmente uma medida para identificar como as cidades também são capazes de se definir como território de liberdade. Desse modo, a redefinição dos sentidos da ordem urbana se traduz na preparação das cidades como espaço criativo e de livre manifestação, capaz de acolher diversas expressões artísticas, permanentes ou efêmeras, fixas ou nômades, com circuitos sociais locais ou internacionais, dando visibilidade à pluralidade da cidade.

Portanto, analisar a presença da arte nas cidades pode servir para distinguir diferentes projetos de cidade e colocar em interrogação os sentidos de ordem e de liberdade na cidade. Dito de outro modo, por meio do sentido da arte na cidade é possível identificar lógicas de poder urbano. Em consequência, o debate sobre a presença da arte nas cidades relaciona-se com a discussão e a luta pelo direito à cidade.

Percursos artísticos

O Rio de Janeiro foi o lugar da primeira escultura pública do Brasil, a estátua eqüestre de d. Pedro I, imperador do Brasil, inaugurada em 1862, ainda hoje conhecida como a peça de maior quantidade de bronze das Américas. Sua escala traduz sua intenção monumental e sua composição seu caráter narrativo, marcando a paisagem urbana. Desde então, muita coisa mudou nas cidades, mas elas não abandonaram seus monumentos cívicos. Ao lado desse tipo de expressão, as formas da escultura pública se multiplicaram.

A escultura contemporânea não deixa de marcar a diversidade da arte pública na cidade do Rio de Janeiro. Na década de 1990, a Prefeitura renovou a presença da escultura urbana no Rio de Janeiro. Artistas conhecidos, como Franz Weissmann, Amílcar de Castro, José Resende, Ivens Machado, Ascânio MMM e Waltércio Caldas povoaram a cidade com sua criação. O feio e o bonito são tematizados pela opção por materiais inesperados, desgastados ou comuns, ou de tinta de automóvel. O caráter abstrato e a tradição construtiva dessas obras chamam atenção ao se combinar à composição de formas cinéticas ou incompletas, o que faz com que a obra assuma um volume indefinido e nunca se apresente com uma forma absoluta diante do olhar. A cada novo ângulo elas ganham uma nova solução plástica, ora abrindo, ora fechando suas partes umas sobre as outras, ou se contorcendo. A mesma forma, por exemplo, pode parecer um triângulo ou um trapézio, dependendo do ângulo da visão. Desse modo, ao não definirem claramente suas formas, as esculturas contemporâneas do Rio de Janeiro recusam o poder de centro que os monumentos tradicionais exercem sobre a paisagem urbana. Esse aspecto se reforça pela ausência de pedestal, o que deixa uma sugestão de peça perdida na cidade sem implantação própria, aproximando-as dos passantes das ruas. Outra característica que completa essas esculturas é a marca do vazio. Elas tematizam antes o vazio da composição do que o cheio, permitindo que o espaço urbano complete a obra ao se inserir numa moldura escultórica. Fragmentos são emoldurados em formas tortas, ressaltando o momento passageiro em que o olhar capta determinado aspecto da cidade em movimento. Para isso é preciso conviver com a obra e querer aproximar-se da sua construção conceitual. Por meio dessas molduras da cidade, as pessoas podem descobrir um ângulo próprio pleno de intimidade, quase impossível de ser repetido, como um buraco da fechadura que serve para descobrir a cidade.

De outro lado, na atualidade, chamam muita atenção as soluções coloquiais, que no Rio de Janeiro, por exemplo, começaram a surgir a partir da década de 1990. São estátuas que representam personagens de destaque na história da vida cultural da cidade, especialmente da música e das letras. Pode-se dizer que o gênero teve estréia em 1996, com a inauguração da estátua de Noel Rosa, (autoria de Joás Pereira Passos)

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junto a uma mesa de bar com garrafa de cerveja em atitude do cotidiano urbano comum. A consagração do gênero veio no ano de 2002, com a inauguração da estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade, sentado em banco do calçadão da praia de Copacabana (de autoria do escultor Léo Santana). Os exemplos se multiplicaram, variando entre representações em situações prosaicas da vida urbana ou soluções caricaturais. O gênero caricatural é uma variação da vertente escultórica coloquial, e pode ser exemplificada na cidade do Rio de Janeiro pela obra de Otto Dumovich, autor das imagens dos músicos Pixinguinha (1996), Braguinha (2004) e Dorival Caymmi (2009). A marca dessas peças é a intimidade que o passante tem com elas, passando a mão, sentando-se ao lado, ou por provocar a alegria do riso. A ausência de pedestal ou a existência de um pequeno soco e a situação prosaica quebram a distância entre a obra e o expectador.

Esse sentido coloquial reaparece de modo muito diferente em intervenções artísticas efêmeras nas cidades. No Rio de Janeiro, a galeria Gentil Carioca, nos últimos anos, definiu um espaço de arte pública especial no Centro da cidade, ao aproveitar a empena lateral do seu edifício na rua Gonçalves Ledo (http://www.agentilcarioca.com.br/Eventos/parede.html). Todo ano há produções específicas que caracterizam a empena como espaço de curadoria de arte e que compõe o programa da Parede Gentil. Organizada desde 2005, a cada ano a galeria convida artistas para realizar sua criação de arte pública aproveitando a parede por quatro meses. As soluções variam entre soluções pictóricas diversas, como a parede de estréia de Julia Czeko, de marca mais tipográfica, ou soluções mais próximas do grafite urbano contemporâneo como a criação de Marinho, de 2006, ou soluções mais ilusionistas como a de Carlos Garaicoa, de 2008. Ao lado disso, os artistas Botner e Pedro apresentaram Parede Cega, que consistiu na instalação de um visor eletrônico com um olho que mira a rua a partir da empena sem vãos do edifício, normalmente definida como cega. Mas o que mais chama atenção da cidade são as criações que podem ser definidas como instalações vivas, como a obra Abrigo, de Dane Mitchell, do ano de 2006, que consistia numa barraca de camping montada na parede habitada a noite pelo artista. Na mesma linha, em 2007, Guga Ferraz apresentou uma instalação denominada Cidade dormitório composta de beliches de ferro montados uns sobre os outros, por cuja escada qualquer um podia subir e ocupar seu lugar. Em 2009, o espaço foi ocupado, ainda, pela criação de Tiago Primo e Gabriel Primo, denominada A Parede, que consistiu em recriar as áreas domésticas, com camas, mesa, TV, sofá etc. Os próprios artistas ocuparam durante semanas os móveis pendurados na parede pública, escutando música, comendo, dormindo, repetindo atos cotidianos comuns acompanhados pelos olhos de todos que passavam pela rua. O que chama atenção nessas intervenções é a proposta de caracterizar o cotidiano urbano não pela rotina e o indistinto da multidão, mas pela novidade ao criar situações inesperadas e peculiares.

O grafite urbano contemporâneo tem presença forte no universo da arte pública das cidades dos nossos dias. As formas de inscrição livre sem tratamento de suporte multiplicam-se tanto quanto seus artistas que se escondem por codinomes. Os traços e técnicas variam entre o uso da lata de tinta em aerosol (spray), o pincel, o serigrafite e o lambe-lambe, entre a ênfase na mancha ou na linha, entre o destaque policromático e as soluções de cor única ou matizes da mesma cor, entre a figuração e a abstração, entre a solução logotipica (tag) e as composições figurativas. No Rio de Janeiro, porém, o grau de organização de grupo de grafiteiros, chamados de crew, garante a visibilidade das tendências do movimento.

O caráter engajado na vida da cidade de muitas crews atribui ao grafite a condição de instrumento de reconstrução de laços sociais de uma cidade carregada de marcas da violência urbana. Por sua vez, em seus diferentes formatos, o grafite urbano contemporâneo subverte os suportes da cidade, transformando pilares de viadutos em murais, empenas cegas em paredes de formas e cores visíveis, muros que separam em painéis de comunicação, mobiliário e equipamentos urbanos em telas pictóricas. Instalando-se onde ninguém espera e fazendo arte onde não há expectativa alguma, a ordem artística do grafite inspira o movimento que se opera nas cidades, procurando subverter também a ordem urbana baseada na violência.

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O grafite ganhou assim territórios, multiplicando-se nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo. Um bom registro desse trabalho pode ser verificado em publicações como o livro Tinta no morro (Rio de Janeiro, Casa de Arte da Mangueira, 2004), que apresenta um projeto de encontro de grupos de grafiteiros no morro da Mangueira, acompanhados pelos alunos da oficina de fotografia da Casa de Arte da Mangueira, mobilizando a juventude local. Esse potencial criativo e de intervenção social contagiou iniciativas de artistas estrangeiros em favelas em torno de arte comunitária, aproximando o grafite e a pintura mural. Uma das intervenções pictóricas urbanas de grande escala é obra da dupla holandesa Jeroen Koolhaas and Dre Urhahn, que coordena o projeto Favelapainting, desenvolvido na favela da Vila Cruzeiro (http://www.favelapainting.com). Em 2007, a dupla de artistas inaugurou m uma imensa pintura mural sob a fachada de várias casas que margeiam o campo de futebol do bairro popular. Sob um imenso fundo azul, o que se vê é o retrato de um menino soltando pipa (ou papagaio). Em 2008, eles fizeram do espaço que contorna uma das escadas de acesso ao morro um imenso rio com peixes pintados, animando o ambiente inóspito, dando um sentido lúdico à área urbana onde se realizou a intervenção artística. Novamente, o que se opera são os sentidos do belo na cidade na intenção de promover sua transformação social. Cada uma destas soluções artísticas promove leituras distintas da cidade.

A escultura monumental promove uma leitura única do espaço urbano caracterizando a cidade como território do civismo, promovendo uma experiência da cidade como corpo social unívoco e integrado, como se a existência de cada cidadão se realizasse plenamente no plano coletivo. Junto com isso, a solução monumental sacraliza a presença da arte nas cidades também como valor abrangente e estabelecido. Tanto o sentido integrado do corpo social da cidade, quanto o significado da arte é questionado pelas experiências propostas por outras soluções artísticas na cidade. As formas aleatórias da escultura contemporânea provocam uma compreensão variada das relações entre a obra artística com o espaço em que está implantada desafiando o próprio estatuto da obra de arte. Propõe a constituição de um olhar íntimo para as cidades sem crença especial na cidade como conjunto e aposta nas suas dobras e contradições, mas que provoca a interação do passante com seu derredor que por admiração ou rejeição é desafiado a lidar com as obras de arte no seu trajeto urbano. Por sua vez, a escultura coloquial que provoca o riso nas cidades ou de sentido tátil, ao alcance das mãos e da convivência em escala humana, também é vivenciada individualmente, mas de um modo que contagia os outros despertando o convívio próximo com a obra de arte. A interação ganha tons sensíveis da saudade de alguém que nem sempre se sabe quem é exatamente, mas que seguramente está ausente, despertando a lembrança lírica de outros tempos da cidade. De outro lado, a surpresa na cidade é explorada pelas intervenções artísticas efêmeras que, ao final, revela a intenção de instalar o inusitado alegrando a cidade, mas de modo inquietante. As criações intervencionistas, tal como o grafite urbano contemporâneo, também subvertem os suportes da cidade e afirmam o compromisso mais ou menos engajado da arte com o debate e a polêmica social, promovendo o debate sobre o território urbano e seus sujeitos sociais. Portanto, o campo da arte nas cidades é diversificado e muitas vezes coloca as suas diferentes soluções e formas de expressão em disputa.

Arte pública

A arte pública marca as cidades contemporâneas. Sua marca não é apenas acontecer nas ruas e praças, mas promover um território de convivência de diferenças, de encontro da diversidade, que afirma o espaço público como terreno compartilhado. Assim, nota-se que nem toda arte no espaço urbano ou arte urbana necessariamente define a cidade como espaço público, o que define o caráter da arte pública, propriamente dito. Uma bela escultura no jardim de um prédio que se projeta sobre o espaço urbano não define a cidade como construção coletiva e compartilhada ou bem público. Por isso, a arte pública pode ser até desinteressada, mas é próprio dela a capacidade de tocar o cidadão como

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sujeito que atua na cidade e se apropria dos significados do espaço urbano, demarcando os territórios de possibilidades urbanas. Em torno da noção de arte pública reconhece-se que as expressões artísticas vivenciadas no espaço público constroem sentidos sobre a cidade que mobilizam afetos, sentimentos e atitudes, pois cada sujeito urbano descobre-se a partir da descoberta da cidade promovida pela manifestação artística e reconhece a multiplicidade de sujeitos da cidade. A arte pública provoca e conduz à consciência da experiência urbana.

Diversas manifestações artísticas se sobrepõem e concorrem nos espaços das cidades. No campo das artes visuais, se em outros tempos as esculturas monumentais de caráter cívico reinavam na paisagem urbana, nos dias de hoje essas obras tradicionais convivem com outras expressões, caracterizando um terreno diversificado que afirma um universo de arte nas ruas. A partir do acervo de obras de arte nas ruas e bairros da cidade do Rio de Janeiro se pode caracterizar essa diversidade contemporânea da arte pública.

A presença da arte nas cidades permite identificar diversas leituras da cidade que se inscrevem no espaço urbano e no tempo da metrópole. Cada uma das expressões artísticas provoca olhares sobre a cidade, evidenciando a manifestação de sujeitos sociais urbanos e multiplicando as diversas percepções da cena urbana. O que a arte pública contemporânea apresenta é a possibilidade fazer com que o espaço e o tempo da cidade sejam animados pela provocação do olhar e de significados plurais. Assim, pode-se dizer que a criação artística dá vida às cidades e que a arte pública define a cidade como experiência.

Referências Bibliográficas:

AINBINDER, Roberto & VÁRZEA, Mariana. Arte ambiente: cidade do Rio de Janeiro. RJ: Ed. Uiti, 2010.KNAUSS, Paulo. Olhares sobre a cidade: as formas da imaginária urbana. IN: Cidade galeria: arte e espaços urbanos. RJ: EBA-UFRJ, 2001.RAMONEDA, Bianca et alii. Tinta no morro. RJ: Casa de Arte da Mangueira, 2004.

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PRETÉRITO IMPERFEITO: A CIDADE COLONIAL PORTUGUESA E A EMERGÊNCIA DO URBANISMO

Amilcar Torrão Filho

Novos saberes técnicos, científicos e morais sobre a cidade culminaram em meados do século XIX na formação de uma teoria geral sobre o que o engenheiro espanhol Ildefonso Cerdá denominou Urbanização. É verdade que não se trata necessariamente de uma descoberta científica, mas na culminação de uma série de saberes sistematizados por Cerdá em sua Teoría General de la Urbanización, de 1867. É o primeiro texto que nomeia a nova modalidade científica, criando o neologismo Urbanização, que lhe dá um corpo teórico e conceitual, e que reivindica um caráter científico a esta forma de conhecimento. Foi escrito para codificar e justificar as ações propostas por Cerdá no Plano de Expansão de Barcelona, de 1859, cuja polêmica execução e disputas políticas contribuíram para o esquecimento de sua obra fundadora. Ele tinha consciência de criar uma ciência nova para um mundo novo, e para uma cidade nova, que exigiam um novo modo de pensar. A Teoría apresenta a primeira definição funcional do urbanismo, baseada na associação do repouso e do movimento do homem, ou seja, edifícios e vias de comunicação e a reciprocidade de suas relações, formulando, assim, pela primeira vez “os dois conceitos diretores que (...) continuam sendo os dois polos operacionais do urbanismo, a habitação e a circulação” (CHOAY, 1985:270).

Uma de suas grandes novidades não é exatamente a descoberta de alguma técnica nova da engenharia, mas “a globalidade da aproximação à matéria: a ambição de fundar uma ciência da urbanização” (GRAU, 2004:138). O engenheiro espanhol se move, deste modo, “de uma ciência aplicada a uma ciência pura”, de uma técnica bem conhecida e dominada “à teoria”, indo também da “ciência física à ciência social”, por meio de um nexo que é “o exercício de uma profissão técnica em um contexto socialmente conflituoso” (GRAU, 2004:138). Antes de propor sua Teoría, havia escrito já uma Monografía Estadística de la clase obrera de Barcelona, sobre as condições de vida e moradia do proletariado da cidade, propondo a utilização da estatística social como instrumento de ação técnica sobre a cidade (CABRÉ, MUÑOZ, 2002:19). Ou dizendo de outro modo, trata-se da emergência de uma Ciência Total da cidade que procura dominá-la em todos os seus aspectos, possibilitando a realização de planos de intervenção completos e ambiciosos, tanto do ponto de vista técnico quanto social e político. Sua proposta para a expansão de Barcelona é uma novidade não apenas teórica, já que até então a expansão das cidades era um processo lento e desconexo; a

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partir de Cerdá, a engenharia passa a poder propor intervenções globais e coordenadas, muito distantes das antigas ações pontuais propostas no século XVIII.

Ultrapassando o debate das águas, dos esgotos e dos detritos, ainda que siga a trilha pavimentada por ele, Cerdá buscará por meio de uma análise detalhada da topografia, as “leis de formação das ruas”, observando para cada uma das ruas “qual é a influência que tem a topografia sobre a sua evolução”. Parte desta “ciência das ruas” depende de uma leitura não apenas topográfica da cidade, mas também histórica, num método que propõe a leitura do plano da cidade “como um hieróglifo e a análise histórica como instrumento para corroborar as deduções extraídas da leitura do plano” (MAGRINYÀ TORNER, 2002:279). Uma leitura que parte do passado, da formação da cidade e de sua relação com a topografia, mas que também tenta ordenar o futuro de sua expansão a partir da leitura de suas muralhas, existentes e demolidas, que devem formar um “esquema estruturador da capacidade viária que explica a organização do tecido”; ou seja, as muralhas seriam as “condições de contorno”, enquanto as portas, os “elementos de continuidade que definem o contato interior-exterior” (MAGRINYÀ TORNER, 2002:279-280).

Cerdá reconhece a emergência de um novo mundo urbano, que exige um novo paradigma de planejamento e gestão. As cidades atuais, diz ele, “feitas por outra civilização, não servem para a presente, que tem o vapor e a eletricidade como agentes”. Não sendo possível destruir todo o tecido urbano existente, que era um obstáculo à aplicação dos melhoramentos modernos, era necessário “moldá-lo” da melhor maneira possível, por meio “de grandes reformas e ilimitadas expansões” (CERDÁ, 1860:6). Expansões que resolveriam o problema da inadequação das ruas tradicionais, estreitas e escuras, “inábeis para a circulação característica de uma grande cidade mercantil e industrial”, bem como da “mesquinhez de nossas habitações insalubres e excessivamente caras” (CERDÁ, 1861:6). A importância de Cerdá e de sua obra é a possibilidade de acompanhar a emergência de um novo paradigma científico, a codificação do Urbanismo, como um campo conceitual totalizante sobre a cidade, cujas possibilidades vinham sendo gestadas desde o Século das Luzes. Uma codificação sistematizada e teorizada com o auxílio de um domínio técnico experimentado numa das mais bem sucedidas reformas urbanas do século XIX, a expansão de Barcelona.

Há várias camadas de historicidade e de interpretação que a cidade carrega em si, abertas em diversas portas conceituais: espaços construídos, desenhos afetivos, locais de memória, camadas de ação e pensamento que formam as cidades e que refletem sobre a sua existência. Esta diversidade de registros requer atenção, assim, ao espaço da cidade e às suas representações, entre a cidade e o “discurso que a descreve”, que como recorda Calvino não podem ser confundidos, embora exista uma evidente ligação entre eles (CALVINO, 1994:59). Durante muito tempo a cidade não é objeto de pesquisa da história, não sendo mais do que cenário, um palco por onde passam a história social econômica ou política, indiferentes a seu espaço. A complexidade da cidade faz dela um objeto específico, a ser compreendido historicamente e sua constituição como objeto se dá a partir da confrontação cruzada de interrogações das ciências sociais.

A cidade é uma realidade multifacetada que faz convergir nela fragmentos de espaço e tempo vindos de diversos momentos do passado. Ela traz em si “camadas superpostas de resíduos materiais”, que sobrevivem em forma de “fragmentos, resíduos de outros tempos, suportes materiais da memória, marcas do passado inscritas no presente” (BRESCIANI, 1999:11). Assim como a Zaíra de Calvino, a cidade “se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata”. Sua descrição que deveria conter todo o seu passado, entretanto, não o conta, “ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas (…)” (CALVINO, 1994:14-15).

A cidade é central por ser o habitat do homem, esta “pátria artificial” de que fala Rossi, este “depósito de fadigas”, resultante do trabalho e do engenho humanos, além de “testemunho de valores”, “permanência e memória”. “A cidade é na sua história” (2001:22): a cidade e sua história, em sua história, a cidade como história - ou diríamos, a

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história como cidade, sua historicidade -, como densidade espacial, temporal, material e teórica. Por isso, Rossi não nos fala apenas dos edifícios, que são “momentos ou partes de um todo que é a cidade” (2001:24), mas de seu conhecimento concreto, em sua inteireza, para além da tipologia e da função. Sendo assim, ele propõe uma “visão globalizante da cidade”, uma “compreensão de sua estrutura” e verificação de suas sínteses, reconhecendo a sua construção “como uma estrutura complexa” (ROSSI, 2001:160-161).

A imagem do palimpsesto é recorrente ao tratar das cidades, e São Paulo tem sido um exemplo clássico do uso desta metáfora. Uma cidade em camadas que mal se comunicam, que se superpõem substituindo uma à outra, de modo estanque, marcado pelas rupturas bruscas e inesperadas. Por isso os estudos sobre a cidade colonial carregam sempre a imagem da metrópole ao estudar a cidade do passado, procurando a gestação do urbano, do planejamento, ou então do caos. Nas interpretações da história de São Paulo, muitas tópicas se sobrepõem às interpretações, a cidade vazia, o isolamento em meio ao sertão e a uma natureza hostil, uma pobreza indigente e a desordem (TORRÃO FILHO, 2007:88). Esta última aparece como a antítese da sociedade organizada, uma forma invertida do bom governo, responsável pelos desmandos do presente e, certamente, pelos do futuro. Busca-se na história da cidade colonial, sobretudo da capital piratiningana, apresentada como paradigma deste caos, uma imagem da cidade ideal, construída pelos princípios da razão, pois o que “é expressão de desordem chama sua antítese, a ordem” (CHOAY, 2000:7).

Para Rossi, trata-se de uma oposição ligada ao funcionalismo ingênuo, de um lado, e ao romantismo arquitetônico de outro, entre dois termos, “orgânico” e “racional”, que constitui um “grave empecilho à pesquisa urbana”. Para ele, falar em urbanismo racional “é mera tautologia, sendo uma condição do urbanismo precisamente a racionalização das opções espaciais” (ROSSI, 2001:46-47). No caso da cidade colonial, e nos espaços urbanos tributários de uma origem colonial, sobretudo se forem de cepa ibérica, ela é a própria materialização da desordem e da incúria. Sobretudo se esta cidade viveu adormecida por séculos até ser despertada pela modernidade do café, do trabalho livre, imigrante e branco, da indústria, da circulação capitalista. A memória da metrópole nada revela sobre sua natureza, seu passado colonial, seu caráter de entroncamento de caminhos e de comunicação com áreas rurais, de aldeamentos indígenas que forneciam trabalhadores para obras públicas e víveres. A cidade colonial, feita de taipa, é assimilada à vida modorrenta, provinciana, sobretudo secundária no contexto da América portuguesa, que em tudo se opõe ao seu desenvolvimento posterior. Na história de São Paulo, o passado é o espaço da desordem e do mundo às avessas, enquanto o presente representa o desejo de futuro e progresso; se do ponto de vista urbanístico e social há aspectos de desordem e irracionalidade, isso se deve às raízes portuguesas, como está claramente expresso por Sérgio Buarque de Holanda em seu Raízes do Brasil (TORRÃO FILHO,2007).

Sendo assim, o passado de São Paulo será marcado, como ressalta Bresciani, pela “marca da alteridade”, que recobre a cidade colonial de uma “letargia provinciana”, contrastada pela cidade “modificada pelo ritmo rápido do desenvolvimento” (BRESCIANI, 1999:29); a convivência neste mesmo espaço de duas temporalidades tão distintas cria uma inadequação, uma irregularidade e um contraste que com dificuldade dá alguma forma ao caos. A história de São Paulo torna-se, portanto, uma incongruência; o passado de pobreza apresenta-se como um paradoxo que deve ser explicado à luz da grandeza experimentada por esta cidade outrora “pequenina e bisonha” (AZEVEDO, 1971:144), a “formosa sem dote” em frase célebre, atribuída ao conde de Bobadela, Gomes Freire de Andrade (1685?-1763), governador do Rio de Janeiro e das Minas e Goiás. Por isso, o desenvolvimento só pode ser entendido como ruptura, cujo marco será o ano de 1872, no governo de João Theodoro Xavier de Matos, com a inauguração da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí e as reformas realizadas na capital, com o início de serviços de iluminação pública, bondes, abertura de novas ruas, retificação da várzea do Carmo, criação de jardins públicos; data que marcaria

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a segunda fundação da cidade para o historiador Eurípides Simões de Paula, um marco de ruptura com o passado, de suspensão e de nova cronologia, com os marcos consagrados e inquestionáveis do café, da ferrovia, da imigração e da industrialização, que marcam a unção da cidade moderna.

Apesar da modernidade que muitas destas imagens nos dão, a ideia de infância da civilização persegue até mesmo à metrópole do café e da indústria, eldorado de imigrantes, tal como formulada por Lévi-Strauss. O antropólogo francês considera que as cidades americanas não chegarão nunca a “esta vida sem idade que caracteriza as mais belas cidades”, as cidades europeias, bem dito, que são objeto de “contemplação e reflexão” e não apenas “instrumentos da função urbana”. A cidade de São Paulo lhe faz recordar aquele espírito malicioso que “definiu a América como um país que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. Nós poderíamos, com mais justeza, aplicar esta fórmula às cidades do Novo Mundo: elas vão do frescor à decrepitude sem passar pela ancianidade” (LÉVI-STRAUSS, 2005:105). Nestas cidades, como São Paulo, Nova Iorque ou Chicago, não há vestígios do tempo, logo, da civilização que se gesta a partir dele. São Paulo exemplifica como a história da cidade está permeada de complexidades, de imagens conceituais formadas no imaginário, de camadas de memória, bem como na reflexão das várias disciplinas de conhecimento envolvidas na empreitada de decifrá-la.

Referências Bibliográficas:

AZEVEDO, Aroldo de. São Paulo: da vila quinhentista à metrópole regional. Boletim. Paulista de Geografia. São Paulo, 39: 12-46, out., 1961.BRESCIANI, Maria Stella M. Imagens de São Paulo: estética e cidadania. In: FERREIRA, Antônio Celso, LUCA, Tânia Regina de, IOKOI, Zilda Gricoli (orgs.). Encontros com a história: percursos historiográficos e históricos de São Paulo. São Paulo: Unesp, Fapesp, ANPUH, 1999, pp. 11-45.CABRÉ, Anna M., MUÑOZ, Francesc M. Ildefons Cerdá i la isuportable densidat urbana: algunes consideracions a partir de la cartografia i anàlisi de les estadístiques contigudes en la Teoría General. In: Cerdá. Urbs i Territori. Una visiò de futur. Catàleg de la Mostra Cerdá. Urbs i Territori - setembre 1994-febrer 1995. 2. ed. Barcelona: Institut d’Estudis Territorials; Madrid: Electa, 2002.CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CERDÁ, Ildefonso. Reforma y Ensanche de Barcelona, Plan Económico. Barcelona: Narciso Ramírez, 1860._________. Cuatro Palabras sobre el Ensanche, Dirigidas al Público de Barcelona. Barcelona: Narciso Ramírez, 1861.CHOAY, Françoise. A regra e o modelo. Sobre a teoria da arquitetura e do urbanismo. Trad. port. Geraldo Gérson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1985._________. O urbanismo. Utopias e realidades. Uma antologia. 5. ed. Trad. port. Dafne Nascimento Rodrigues. São Paulo: Perspectiva, 2000. GRAU, Ramón. La ciencia de la urbanización como ciencia social. In: VV.AA. Cerdá y su influjo en los ensanches de poblaciones. Madrid: Ministerio de Fomento, 2004.LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Trad. port. Cely Arena. São Paulo: Edusp, 2001.LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Tropiques. Paris: Plon, 2005. MAGRINYÀ TORNER, Francesc. La Teoría de la Viabilidad Urbana de Cerdá de 1861: un tractat de reforma interior de ciutats. In: Cerdá. Urbs i Territori. Una visiò de futur. Catàleg de la Mostra Cerdá. Urbs i Territori - setembre 1994-febrer 1995. 2. ed. Barcelona: Institut d’Estudis Territorials; Madrid: Electa, 2002.ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.TORRÃO FILHO, Amilcar. Paradigma do caos ou cidade da conversão? São Paulo na administração do Morgado de Mateus. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2007.

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DO MUSEU PARA A CIDADE/DA CIDADE PARA O MUSEU

Renata Marquez

Podemos notar que alguns museus - muito além do museu-mausoléu de Theodor Adorno, ou da heterocronia (ou heterotopia acumulativa de tempos) de Michel Foucault - têm perseguido o desejo de ser, também, um espaço comum, espaço onde a vida cotidiana se dá. Não se trata do desejo de dissolução do museu, mas da sua transformação, ainda que efêmera, em outras coisas, no plural: coisas que não são necessariamente a mesma coisa sempre. Seria um museu capaz de camuflar-se de cidade, mimetizar-se de cotidiano, reincorporar a vivência estética no seu sentido original - como modos de sentir, ver e dizer? Seria esse museu capaz de esquecer-se de si para fazer surgir o parque, a praça, a vizinhança, a horta - heterotopias singelas cuja função principal é construir ficções reais para se experimentar na prática outras formas de vida urbana compartilhada?

Na minha prática curatorial, museu e cidade estão obrigatoriamente interconectados. Por mais diversas que sejam as exposições, o que temos é um falar de dentro sobre o fora, que é também um falar de fora sobre o dentro, entendendo a curadoria sobretudo como plataforma de pesquisa na interface arte-arquitetura-geografia. Falarei a partir do Museu de Arte da Pampulha, onde fui curadora entre 2011 e 2012 e a partir do Palácio das Artes, onde realizei, junto com Felipe Scovino, a exposição Escavar o Futuro, na virada de 2013/2014. Apresentarei 5 exposições realizadas nesse período mas, antes, abordarei algumas questões estruturantes das mesmas.

- Primeiro, sobre o que chamo de arte como prática de fronteira. Interessa-me especialmente a arte como forma de conhecimento do mundo, instância capaz de conformar a expansão da linguagem epistemológica. Aquela prática artística que atua como pesquisa coexistente ao conhecimento hegemônico da ciência; que é lugar para experiências e reconhecimentos de mundo que não cabem no conhecimento científico e que são marginalmente posicionadas em categorias estéticas, poéticas ou simplesmente subjetivas, nunca epistemológicas. É como se epistemologia e estética não pudessem andar juntas...

- Depois, uma tentativa de elaborar construtos expositivo-epistemológicos. Entender a situação expositiva como um lugar para a experiência subjetiva do conhecimento do mundo. Nesses construtos, o artista-pesquisador performatiza a fronteira situada entre a arte e outros campos de estudo, desenvolvendo conteúdos de pesquisa e metodologias que resultam em linguagens híbridas e alargadoras do que pode ser arte e do que pode ser ciência.

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- Terceiro, sobre o museu como plataforma de pesquisa: um museu público não deveria estar vinculado diretamente às demandas do mercado de arte nem às suas práticas que empregam a obra de arte como mais uma commodity. Mas, em vez disso, empregar sua infraestrutura como plataforma de pesquisa de arte, envolvendo múltiplas vozes, inclusive vozes em dissenso, num ensaio político de interlocução e prospecção. Se de fato, como escreveu Jacques Rancière, “o real precisa ser ficcionado para ser pensado”, é nesses termos que o museu pode atuar com as ficções da arte ou “rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (RANCIÈRE, 2005:58-59).

- E por último, sobre a noção de público: parece-me necessário pensar com afinco no caráter público das instituições de arte. Público é uma noção precária, incompleta e perversa no Brasil. Precária porque tudo o que é público remete, paradoxalmente, mais facilmente à instituição do Estado (repartição pública, patrimônio público, etc.) do que ao uso comum, compartilhado, um bem de todos. Incompleta porque fomos moldados num projeto incompleto de modernidade, sem as conquistas de fato e predominantemente com os prejuízos globais e o fetiche mítico de tal empreitada. Noção que resulta perversa, portanto.

Vamos ao percurso das 5 exposições.

Museu: observatório

Primeira exposição que realizei no museu, em 2011. Comecemos com o título: a palavra museu associada à palavra observatório sugere a transmutação do Museu em uma nova coisa. Primeira evidência do desejo do museu de ser outras coisas, de ser um espaço comum. A atividade de observar implica certa ascensão, num primeiro momento e, depois, implica interiorização. O observatório é definido como uma estrutura espacial que busca reunir o olhar e o conhecer. Ele abarca o ato imediato de ver, mas, simultaneamente, o esforço prolongado de estudar e de nomear. Nesse processo, ocorre o rebatimento do lugar exterior no lugar interior. “Observar não é olhar, mas olhar, escutar e tomar notas; isolar, construir um laboratório com o olhar e identificar as chaves da nossa relação com o meio físico” salientou Iñaki Ábalos (ÁBALOS, 2005:124).

A singularidade do edifício do Museu de Arte da Pampulha, localizado na parte mais alta da orla da represa artificial, favoreceu sua apropriação como observatório. Seus limites translúcidos, a promenade arquitetural prometida pelo projeto moderno e a sua inserção no paisagismo de Burle Marx sempre potencializaram, no edifício, esse laboratório com o olhar. Mas no Museu:observatório a função do edifício torna-se ambígua e seus limites são rasurados. Não há exatamente obra a ser contemplada, há camuflagens de dentro e de fora. O gramado invadiu o nível térreo. No mezanino, a única parede do museu foi apagada pela réplica das esquadrias com placas de espelho.

Formou-se um rico processo de concepção e produção que transformou o museu em um campo de provas. Para cuidar da obra-gramado, o museu desdobrou as suas atividades e conhecimentos técnicos em direção a territórios alheios, envolvendo especialistas de outras áreas como biólogos e agrônomos. A incerteza dos resultados, bem como a ameaça constante das intempéries, os inimigos a serem combatidos (cupins e carrapatos) e os simpáticos habitantes da região (capivaras), exigiram a multiplicação de vocabulários e estratégias.

Conjs., re-bancos*: exercícios e conversas

Segunda exposição no museu, que trouxe um entendimento do espaço mais direcionado ao território urbano do que ao entorno imediato. O título, conjs., re-bancos*: exercícios&conversas, é uma equação social a ser resolvida por todos.

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Proposta no campo da experiência sensível que promove a aproximação da filosofia política com a arte.

Introduzindo no museu a iconografia da forma NBP (Novas Bases para Personalidade), desenho logo-marca do artista materializado no conhecido objeto de metal pintado de branco com bordas azuis, os conjs. apresentam-se como uma espécie de parque de esportes e os re-bancos conformam uma espécie de praça, ambos lugares inquietos, intermitentes, prestes a serem ponto de encontro e convívio - ou nada, tais quais os espaços públicos da cidade. Parque, praça e museu, tipologias culturais em jogo, remetem a práticas espaciais frequentemente associadas a rituais sociais. Ócio, debate, planejamento e o enfrentamento dos problemas da expressividade no mundo atual são respectivamente ações reconhecíveis que, aqui performatizadas, repensam os lugares ritualísticos de poder.

Como diluir as paredes do museu? Como entender essa caixa simbólica como lugar permeável às nossas mais banais sociabilidades? Tanto o projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? como o trabalho re-projetando (belo horizonte) fazem o museu ecoar no mundo e vice-versa. A forma NBP torna-se uma espécie de bandeira que reconquista temporariamente o território orientando novas ações, reações e ocupações que em função dele devem desenhar-se.

Em re-projetando (belo horizonte), a forma NBP é lançada sobre o mapa da cidade a partir do ponto onde está situado o museu. A forma gira em torno desse eixo e acomoda-se no território indicando mais 7 pontos com os seus outros vértices. O processo de trabalho deu-se a partir do convite a artistas atuantes no espaço público para que, por sua vez, se acomodassem na forma escolhendo, cada um deles, um dos pontos. Cerca de dois meses de pesquisa em cada ponto da cidade foram condensados em um texto construído coletivamente como alinhavo de fragmentos vocais. Uma leitura pública, com a presença de todos os interlocutores e do público, foi acontecimento importante no período da exposição, proposta ativa de ocupação da praça dos re-bancos, bancos desenhados e produzidos para esse fim operístico - dentre outras elasticidades de uso.

Lição de coisas

Terceira exposição realizada, com todas as portas abertas do museu, por onde escorriam 6 mangueiras. A água que percorre o espaço e dá vida ao Hídrica: Episódios é proveniente da caixa d’água situada na laje do museu, que chega ao salão através de um “gato hidráulico”. A água do museu na sua versão superexposta passeia aérea no espaço. Podemos beber água, molhar as mãos, tomar uma ducha, disparar descargas e aguar o jardim, atividades mais ou menos familiares ao âmbito da intimidade que agora se reapresentam estranhamente superexpostas.

O espírito domiciliar renovado não se coloca sem ambiguidade: estamos dentro de casa mas também fora (no museu), expostos ao olhar institucional que tudo parece solenizar. Azulejos, ducha, tanques, mangueiras, filtros e descargas são elementos familiares à vida prática da casa, da cozinha, do banheiro, do jardim ou da jardineira - dos serviços domésticos automáticos; são encenações de hábitos particulares deslocados para o fórum público.

Ilha dos Amores, vídeoinstalação no auditório, foi produzido durante 5 expedições realizadas pela artista na Lagoa da Pampulha. Constituindo uma prática artística na fronteira entre a observação artística e a observação científica, Ilha dos Amores reconta a história da Ilha, lugar integrante da euforia otimista do modernismo brasileiro no planejamento da região da Pampulha como lazer. O vídeo, composto por três sequências simultâneas (a ilha, a água e os animais), trava um encontro com os seus habitantes atuais: pássaros de muitos tipos que sobrevivem à água quase-sólida feita dos rejeitos das redondezas.

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Outros lugares

Os dois trabalhos principais da exposição - em torno dos quais orbitam as demais obras em interlocução - foram produzidos em espaços fora do museu. Tais espaços exteriores não são outros lugares institucionais mas, em vez disso, são espaços banais, aparentemente pontos sem interesse no território, passíveis de serem incorporados à produção massiva do espaço genérico da cidade: um lote vago e uma ocupação informal. Situados nas proximidades do museu, eles incorporaram, respectivamente, o espaço-obra da dupla Ines Linke e Louise Ganz Museu Campestre e o projeto de Mônica Nador Paredes Pinturas.

Ao entrarmos no museu, éramos logo convidados a sair de novo, atravessar a rua e visitar o Museu Campestre. Desde a entrada podíamos ver, ao longe, o lote em frente cultivado e ocupado por mesas, bancos, bancadas, fogão a lenha e canteiros ordenados de milho, couve, alface, rúcula, cebolinha, pimentão, amendoim, cidreira, alecrim, etc., criando um lugar para conversas, oficinas, refeições e descanso. Chegando lá, éramos recepcionados por Cláudio, o jardineiro, e podíamos percorrer os canteiros, colher folhas e frutos, embalar e levar para casa.

Podíamos visitar Museu Campestre como quem vai à feira ou ao parque - mais do que uma instalação, é um espaço para atravessamentos ordinários. É ao mesmo tempo um vazio que foi ocupado por cultivos e um lote imobiliário que foi esvaziado de construções. Alternativamente esvaziado, sobretudo, da construção específica para a qual foi adquirido - um gigantesco anexo do Museu projetado tardiamente por Niemeyer.

No processo de produção da exposição, não demoramos a perceber que o lote vago na orla da Lagoa da Pampulha e as duas vilas vizinhas eram apenas outros lugares iniciais para o processo de expansão programada pelo museu. Durante o desenvolvimento dos trabalhos, mutiplicaram-se os lugares que se conectaram a ele, expandindo-o: Fundação Zoobotânica, Secretaria de Abastecimento, URBEL, SUDECAP, Centro Cultural São Bernardo, Regional Pampulha.

As oficinas de estêncil foram ministradas por Mônica Nador e Daniela Vidueiros, do JAMAC - o Jardim Miriam Arte Clube, fundado em 2003 por Mônica em São Paulo. Paredes Pinturas é um trabalho baseado na construção coletiva de desenhos que são transformados em matrizes de estêncil para a disseminação de padronagens em paredes e outros suportes e acontece desde 1998. Depende de um processo de envolvimento, negociação e produção. O desenfoque da noção de artista baseia-se no seu entendimento como catalisador de ações de pintura e tradutor de suas linguagens dentro de uma espécie de metodologia a partir do estêncil. Compartilhar a autoria do trabalho não é desfazer-se como artista, mas interagir com as dinâmicas do mundo e inventar um mecanismo artístico que privilegia o processo coletivo. Não há desmistificação da arte, mas, pelo contrário, há uma retomada do homem estético, que rouba temporariamente o poder do homem econômico, deslocando recursos de produção de obras de arte para intervenções feitas com comunidades específicas.

Escavar o Futuro

Foi uma exposição-pesquisa que partiu de um resgate do trabalho do crítico, artista e curador Frederico Morais. Ele propôs, em abril de 1970 no mesmo Palácio das Artes, os eventos Objeto e Participação e Do Corpo à Terra, emblemáticos no contexto da arte brasileira por sua força de ruptura histórica em plena ditadura. No trabalho Quinze Lições sobre Arte e História da Arte - Apropriações: Homenagens e Equações, Morais desvia a categoria artística de paisagem da galeria para as ruas da cidade, apresentando como primeira lição ilustrada a Arqueologia do urbano - escavar o futuro, entendendo a paisagem como ação prospectiva no ambiente. A frase de Frederico carrega um movimento duplo e simultâneo de retrospecção e prospecção e dá título à exposição.

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Escavar o Futuro propõe, nesse duplo movimento, uma reflexão atualizada sobre a produção artística dos anos 1960 e 1970, momento histórico no qual o espaço é entendido como matéria-prima da arte, investigando, em suas continuidades e rupturas, o interesse atual dos artistas pela produção social do espaço. Se em 1970 a escultura transformou-se em objeto e participação, a presente exposição-pesquisa assume o desafio de investigar atualizações para objeto e para participação no contexto da ação atual no ambiente, tentando trilhar caminhos para possíveis respostas culturais às duas seguintes perguntas: Como podemos entender criticamente as dinâmicas espaciais frente ao paradigma moderno, suas territorializações excludentes e perversas por um lado e seus poderes fabuladores por outro? Em contexto distinto daquele da ditadura militar, podemos ainda falar de guerrilha artística, como dizia Frederico Morais? Como ficam a promessa de modernidade, a falência de tal promessa e as insurgências, reinvenções e propostas emancipatórias? Os dois núcleos estruturantes em torno dessas questões foram encabeçados pela série fotográfica Moradia nos arredores da cidade, de Marcel Gautherot (c. 1959), e pela série fotográfica Rua Direita, de Cláudia Andujar (c. 1970).

Gostaria de concluir essa apresentação com a instalação Centro Cultural de Vitor Cesar (2009), montada no Centro de Arte e Fotografia na praça central de Belo Horizonte, integrante do complexo do Palácio das Artes. O trabalho dá legenda ao movimento do museu com desejo de ser cidade falando, ao mesmo tempo, de dentro sobre o fora e de fora sobre o dentro ao propor a percepção da ambiguidade da experiência estética cotidiana. Feito de neon, no letreiro Centro é cultural o é pisca por alguns segundos, deslocando sucessivamente o lugar privilegiado da cultura e da arte do centro cultural para o centro da cidade, logo ali.

Referências Bibliográficas:

ÁBALOS, Iñaki. Atlas pintoresco. Vol.1: o observatório. Barcelona: Gustavo Gili, 2005.RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Exo/Ed. 34, 2005.

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PARADOXOS CONTEMPORÂNEOS. MUSEUS EM TEMPOS DE TRANSBORDAMENTOS/ESVAZIAMENTOS

Luiz Guilherme Vergara

Quantas utopias modernistas e pós-modernistas são transformadas em paradoxos ou complexidades do contemporâneo?

Esta abordagem fenomenológica desenvolve-se com foco nos entrelaçamentos que apontam para o sentido de lugar na arte como um acontecimento micro-geográfico de deslocamentos do mundo para a produção de narrativas locais. É das práticas curatoriais e pedagógicas no MAC de Niterói que se conceitua a noção de lugar como recipiente participativo (CASEY, 1998) ou “arquitetônica e responsividade” de Bakhtin ; da comunidade ética formada pelo sentido de artista como coadjuvante da criação; do museu-praça e corpo de múltiplas vozes (EVANS) com a visão da sociedade em processos de subjetivações silenciosas; visitantes como coautores ou heróis-anônimos. Com a idéia de lugar fundem-se mundos dentro de mundos como acontecimento de rasuras de fronteiras por esvaziamentos e transbordamentos da obra, corpo, arquitetura, paisagem e as relações sociais, que indagam, ainda sim, especialmente no MAC de Niterói, para um cosmo único - “imóvel movente” - da arquitetônica da arte.

O conceito de Answerability é tomado nesta abordagem pela sua tradução como Responsividade. O que também articula todo argumento fenomenológico de Bakhtin para a Arquitetônica da Responsividade. Nesta conjugação entre estrutura do discurso e o ato de leitura, Bakhtin traz para sua constituição semântica e produção estética as relações construtivas do papel e participação do outro no discurso artístico. Uma vez que Bakhtin tratava fundamentalmente da literatura, este ensaio desloca sua conceituação da “arquitetônica e responsividade” para uma abordagem fenomenológica das instalações ambientais contemporâneas - tendo sempre em consideração as articulações entre o autor-artista-arquitetura e a produção de um lugar de criação polissêmica pela participação do espectador.

Transbordas Museu - Mundo Abrigo/Imóvel Movente

Transbordamento e esvaziamento são nesta abordagem o ponto de partida para atualizar o legado inacabado das vanguardas do século XX. O conceito de Mundo Abrigo de Oiticica é parte fundamental de uma virada ética do pensamento e lugar da arte em seu estado mais radical de encontros, delírios ambulatórios, crelazer,

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programa ambiental e parangolé. Reúnem-se aí as visões de um “abrigo poético” de Lygia Clark. Ambos celebram o esvaziamento para consagrarem o transbordamento da vida na arte e vice-versa.

A cidade modernista criou para si, ao longo dos últimos dois séculos, a potência e o isolamento da condição humana pela crença no progresso industrial capitalista distante do tempo do corpo de afetos, natureza e cosmos. É justamente como portal ou monumento simbólico suspenso literalmente nas outras margens do Rio de Janeiro que o MAC de Niterói recoloca os artistas e a sociedade como coautores ou coadjuvantes - heróis, peregrinos viajantes diante do atravessamento entre arquitetura - paisagem, corpo - mundo, como partes de uma nostalgia ou ausência de unidade da existência humana com o meio ambiente. Sem dúvida, o MAC de Niterói concretiza esse “topos inacabado” (BLOCH) de uma experiência estética para todos como monumento paradoxal que indaga sobre o sentido da arte enquanto lugar ‘imóvel movente’ de acolhimento e pertencimento indissociável do mundo abrigo para diferentes classes sociais. Da forma tão simples e arquetípica de uma taça, disco voador ou flor de lótus, transpira uma intuição ou chamada para uma fenomenologia do redondo, do lugar esférico do acontecimento artístico contemporâneo, como micro-geografia de transbordamentos e esvaziamentos do corpo-mundo dentro do microcosmo “imóvel movente” (unmoved mover) (CASEY, 1998:50) da Boa Viagem. Edward Casey explora, através de uma abordagem fenomenológica, diferentes perspectivas sobre o conceito de lugar. Em especial a Física de Aristoteles desenvolvendo a ideia de lugar como container - e o cosmos como um imóvel movente.

A quebra de paredes e narrativas afeta tanto as instituições quanto a produção de sentidos público da arte, principalmente nos locais e contextos marginalizados pelas próprias geografias das construções dessas histórias e valores culturais. É da visita ao MAC de Niterói que o confronto da arquitetura monumental de Niemeyer com a paisagem reconta os dilemas das vanguardas modernistas e colonialistas no Brasil. Ao mesmo tempo, a transparência do prédio já afirma pelo elogio a presença da paisagem, o desejo subversivo de se romper com o primado dos objetos estéticos de um determinado artista, classe ou sistema de valores artísticos consagrados. O transbordamento do mundo invade os projetos arquitetônicos modernistas brasileiros talvez já como uma intuição palpável ou ainda intenção quase premeditada anti-colonialista. O caso do MAC de Niterói (1996) e o MAM do Rio de Janeiro (1953) de Affonso Eduardo Reidy colocam este atravessamento estético entre cultura e natureza de forma radicalmente subversiva.

Transbordamento e esvaziamento são fluxos chaves de trocas éticas e estéticas entre o dentro e o fora das instituições e arquitetônicas socioculturais brasileiras, em sua difícil interface entreaberta para a realidade social e ambiental contemporânea. Como se os arquitetos dessa geração de Niemeyer, Lucio Costa, Reidy e os irmãos Roberto, já estivessem apontando para o sentido do lugar como potência e resistência das raízes do Brasil sobre os objetos e valores deslocados de uma razão européia.

A paisagem no MAC de Niterói é também colorida pelo transbordamento de outra ordem que se faz pelas presenças constantes de visitantes de diferentes segmentos sociais, já inserindo na origem e destino do museu este dilema ético e político para o sentido público da arte no mundo contemporâneo. A prática curatorial, pedagógica e artística dos espaços internos, desde a sua inauguração em 1996, precisou pela experiência e prática de seus espaços, tomar para si o cuidado com a sociedade, e não apenas com os acervos e salvaguarda dos objetos. É parte da arqueologia da criação deste museu, a demanda diária pelo cuidado com a sua vida pública como construção de um lugar como escultura social de um corpo de múltiplas vozes, como abrigo de interfaces de saberes poéticos não ainda conscientes para as gerações futuras. Ali se dá o topos de fluxos de transbordamento e esvaziamento formando a dobradura crítica do espaço circular do MAC para o acolhimento e pertencimento de múltiplas temporalidades. Esta ética do cuidado se torna visível apenas pelas lentes da micro-geografia das interações e afetos que constroem o sentido de lugar como recipiente

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participativo do devir, do topos não ainda consciente da forma arquitetônica e da sociedade.

Ernst Bloch rejeita o conceito de utopia dos filósofos gregos da antiguidade, como a Utopia de Platão, ou como as utopias da Renascença de Thomas Morus, Campanella e Bacon. A partir de um estudo de todas as ideias e autores das visões sobre Utopia, Bloch projeta como função utópica da arte uma base estética existencial ligada ao lugar da atividade humana quando orientada para o futuro. A utopia concreta da arte estaria ligada ao topos de uma consciência antecipatório e da força ativa dos sonhos diurnos.

Nesse caso, a experiência do MAC de Niterói se dá como o “paralaboratório” proposto por Mário PEDROSA:

“Diferente do antigo museu, do museu tradicional que guarda, em suas salas as obras primas do passado, o de hoje é, sobretudo, uma casa de experiências. É um paralaboratório. É dentro dele que se pode compreender o que se chama de arte experimental, de invenção.” (PEDROSA in: ARANTES, 1995: 295)

Atualizando esta visão dos anos 60, propõe-se como acolhimento do experimental hoje sua dimensão ética enquanto utopia concreta indissociável da realização do topos como sentido simbólico do lugar onde se territorializa e se compartilha uma consciência antecipatória de futuros. O acontecimento utópico da arte dá-se na concretude das transbordas do tempo-experiência pelas práticas públicas da arte hibridamente atravessadas e de atravessamentos estéticos, ambientais e sociais. Porém, é em meio à massa social de visitantes do MAC que a praça-rua-mundo entra no museu como parte dos dilemas da contemporaneidade. Daí, invisíveis processos de subjetivação inauguram potências de afetos e de agir para cada corpo-consciência que transita anônimo, heróico e silencioso coadjuvante da criação.

Esta é a imagem de uma micro-geografia utópica que demanda uma ética do cuidado ou da arquitetônica - responsividade de Bakhtin, onde se partilha o lugar do acontecimento do ser como presença no horizonte possível de um abrigo de trans-temporalidades da existência. A micro-geografia das subjetivações e transformações sociais é indissociável do sentido de devir do lugar agindo pelas fissuras ou transbordas de estados poéticos na dinâmica fenomenologia das intersubjetividades no mundo.

Joseph Beuys: Res-pública: Conclamação para uma alternativa global

Colaboração internacional de Rafael Raddi, curador e diretor do Instituto Plano Cultural e a Silke Thomas, curadora da Galerie Thomas Modern de Munique.

Joseph Beuys publicou a “Conclamação para uma alternativa Global em 1979, por ocasião da XV Bienal de São Paulo. “Esta conclamação dirige-se a todos os homens sob o influxo da civilização e cultura européias - habitantes do Terceiro Mundo ou das nações industrializadas. Trata-se de uma arrancada para um futuro social inteiramente novo. Trata-se, para tanto, de acabar com as muralhas entre o Oriente e o Ocidente. Trata-se, também, de superar o abismo entre Norte e Sul.”

Toda abordagem curatorial desta exposição foi inspirada nesse discurso de Beuys para a XV Bienal Internacional de São Paulo de 1979, com uma contundência crítica e visionária para uma revolução não-violenta abrindo caminho para o futuro como “conclamação para uma alternativa global”. A integração entre arte, cultura, economia, ambiente, educação e democracia direta, constituíram o foco de atualização do sentido de transbordas do lugar da arte e do artista ativista na sociedade como compromisso com uma mudança inacabada para uma nova ordem social. Esta exposição foi inaugurada justamente em meio ao ano de manifestações e ocupações nas ruas do Brasil, promovendo sinergias para uma visão ampliada do museu-abrigo mundo. A concepção de uma escultura social de Beuys inaugurou no

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museu um programa de fóruns permanentes de debates sobre os paradigmas éticos estéticos da contemporaneidade para a criatividade, educação, democracia, natureza e espiritualidade.

Para o tecer de encontros entre estas passagens utópicas e a contemporaneidade realizou-se no MAC a exposição de Joseph Beuys (2013) que tomou também como partido curatorial a genealogia de uma arquitetônica do lugar para a visão do museu como comunidade ética participante de um processo-acontecimento na forma de uma releitura da “escultura e plástica social”. É dessa mesma abordagem fenomenológica que a experiência do “Topos” é proposta como ação coletiva da arte contemporânea como ordem ética que busca fundar uma comunidade de trocas da dádiva-talentos. Toma-se aqui as reflexões de Fred Evans (EVANS, 2009:175) explorando o conceito de dádiva para a formação de um sentido de comunidade como ética de partilhas de virtudes a partir do que Nietzsche define como “the gift-giving virtue” (dádiva de doar virtudes) em Zaratrusta. Evans projeta o artista como parte de um corpo de múltiplas vozes na base desta ética de doar virtudes (“a virtue ethics” of the multivoiced body). O artista estaria exercendo seu dom de gerar virtudes dentro de uma comunidade absorvendo para si todas as adversidades, assim como desejos e demandas por justiça e liberdade, e retornando como obra de arte - a experiência ou partilha de suas proposições estéticas. Esta produção artística não deixa de remeter ao conceito de “arquitetônica e responsividade” de Bakhtin, traduzida como dádiva e amor que demanda da participação da sociedade o fundamento simbólico de uma comunidade ética de solidariedade e diversidade. O ser como acontecimento da unidade da existência se atualiza como ato de participação das presenças que dão espessura temporal ao transbordamento do futuro no presente. A medida ética do binário transbordamento e esvaziamento é da escala macro e micro da geografia da globalização e da anti-globalização.

A partir da exposição de Beuys o entendimento político e ético do lugar na arte contemporânea foi tomado como indissociável da indagação sobre o que significa expor. Estas fronteiras de transbordamentos e incertezas fundaram os princípios curatoriais e artísticos da exposição de Joseph Beuys (MAC de Niterói, 2013). O ser contemporâneo estaria sempre na zona de desconforto das gerações e vanguardas. Parafraseando Beuys, ‘nós somos uma revolução inacabada’ diante do mundo atual. O legado das ideias e visões de Beuys enquanto artista, educador, ambientalista e ativista político, mas acima de tudo como agente de transformação social, inspirou o próprio sentido e missão do MAC como abrigo de utopias concretas baseadas em comunidades éticas (EVANS, 2009).

Das margens de Niterói, debatiam-se também as ocupações das ruas em várias capitais do Brasil, as mobilizações urbanas que concretizaram os retornos às praças, as questões ambientais e a crise da democracia direta, contextualizando os paradoxos da globalização no confronto com o domínio da economia neoliberal sobre a condição contemporânea. Em todos esses campos a voz dos discursos de Beuys atualiza-se pela conclamação para uma alternativa global diante do Brasil em 2013 e mundo hoje.

O esvaziamento dos centros e transbordamentos das periferias é sintomático de um fenômeno globalizado onde os espaços de protagonismos estéticos, sociais e políticos seguem os múltiplos eixos e fluxos de produção de narrativas coletivas. Os lugares de criação se deslocam também das catedrais das culturas, ou estas, enquanto museus e centros culturais esvaziam-se para simultaneamente acolherem também as éticas emergentes da colaboração com a formação de um horizonte possível de acontecimentos solidários. Mesmo assim, a cultura ainda se vê sujeita e submetida a sua própria sombra neoliberal.

Enquanto grandes arquiteturas monumentais de museus e bienais espalham-se no mundo globalizado, observa-se de forma endêmica o paradoxo do transbordamento e esvaziamento entre diferentes mundos. Porém, no MAC a invasão da paisagem se dá também como presença de um tempo cósmico e histórico que invade o lugar da arte. Ainda como Beuys lutou pela Defesa da Natureza. A mesma medida

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híbrida é alinhada à emergência de uma demanda crítica para o fenômeno artístico contemporâneo composto por agenciamentos anti-monumentais, anti-neoliberais e ambientalistas para ações coletivas e fóruns como zonas de resistência sócio-cultural. As próprias estratégias da globalização são simultaneamente tomadas como campo e meios “undergrounds” da contra-globalização, tomando das novas tecnologias e redes sociais como suportes críticos de tendências de bases éticas para as práticas de resistência contemporânea.

Referências Bibliográficas:

BAKHTIN, Mikhail. Art and Answerability. Early Philosophical Essays. Austin: University of Texas Press, 1990._______________. Towards a Philosophy of the Act. Texas: The University of Texas Press, 1999.BLOCH, Ernst. Anticipatory Consciousness. In. Bloch, Ernst. The Principle of Hope. Massachusetts: The MIT Press, 1996. CASEY, Edward. The Fate of Place. A philosophical History. Berkeley: University of California Press, 1998.EVANS, Fred. The Multivoiced Body: Society and Communication in the Age of Diversity. New York: Columbia University Press, 2009.OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. Itaú Cultural - Programa Hélio Oiticica. Trechos www.itaucultural.org.br.PEDROSA, Mário. Política das Artes - Textos Escolhidos I, (ed.) Otília Arantes. São Paulo: EDUSP, 1995.

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Marcelo Moscheta

HiatoHiato tem origem no termo em latim “hiatus”, cujo significado é “abertura, fenda, lacuna”. Possui diferentes conceitos e aplicações na Linguística, em Anatomia ou Geologia. No sentido figurado, representa uma falha, uma lacuna, uma interrupção entre dois acontecimentos. Nessa direção, o projeto criado para o Parque da Luz propõe a construção de um “corredor” entre duas áreas formadas por sequencias de galhos suspensos por hastes de ferro. Nesse ponto, no vazio do corredor, o espectador pode melhor ver uma árvore do Jardim, eleita para perspectivar a fenda criada pela intervenção.

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Cesar Fujimoto

Observadores

O projeto pretende ser um convite à contemplação da paisagem do Jardim da Luz, mais especificamente aos seus pássaros. Das 73 espécies animais identificadas nesse que é o mais antigo Parque de São Paulo, 67 são aves. Assim, como um observatório de pássaros, o projeto se instala em três pontos distintos do Parque à procura do diálogo entre observadores e observados. Desse modo, replica o lócus de parada que significa esse Jardim para as aves em migração pela cidade, tanto quanto reaviva os valores originários desse lugar urbano.

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Ficha TécnicaOrganização Social de CulturaClóvis Carvalho | Diretor ExecutivoPlínio Correa | Diretor Administrativo FinanceiroMaria Izabel Casanovas | Assessora Técnica

Oficinas Culturais do Estado de São PauloPaulo Rodrigues | DiretorHugo Malavolta | Coordenador de ProgramaçãoWashington Freitas | Coordenador de ProgramaçãoMarlon Florian | Articulador de ProgramaçãoValdir Rivaben | Articulador de ProgramaçãoWinny Choe | Articuladora de Programação

Seminário e IntervençõesSylvia Furegatti | Curadoria e OrganizaçãoHebert Gouvea | Produção e FotografiaBrenda Hada | Comissão de ApoioRenato Almeida | Comissão de ApoioBárbara Luisa Pires | Comissão de ApoioIvan Avelar | Design Gráfico e WebLeco de Souza e Alice Gouveia | Fotografia e Vídeo

Programação do SeminárioConferência Principal: O embate da Arte no meio urbano contemporâneoProfa. Dra. Vera Pallamin (FAU USP)

Mesa 1: Acordos e Fricções entre Arte e Fenômeno UrbanoConferências: Profa. Dra. Sylvia Furegatti (artista visual, IA Unicamp) e Hector Zamora (artista visual)Mediação: Thais Rivitti (crítica de arte e curadora)

Mesa 2: As cidades que nos antecedemConferências: Prof. Dr. Paulo Knauss (UFF RJ) e Prof. Dr. Amilcar Torrão Filho (PUC SP)Mediação: Profa. Dra. Iara Lis Schiavinatto (IA e IFCH Unicamp)

Mesa 3: Apresentação dos projetos artísticos de intervenção criados para o Parque da Luz Marcelo Moscheta (artista visual, Mestre em Artes Visuais - IA Unicamp) e Cesar Fujimoto (artista visual, Mestrando em Poéticas Visuais - ECA USP)

Mesa 4: Do Museu para a cidadeConferências: Prof. Dr. Luiz Guilherme Vergara (MAC Niterói e UFF RJ) e Profa. Dra. Renata Marquez (EA UFMG)Mediação: Prof. Dr. Leando Medrano (FAU USP)

Intervenções Artísticas no Parque da LuzHiato, Marcelo MoschetaGalhos de árvores e estruturas de ferro. 13,30 x 1,50 x 6 m

Observadores, Cesar Fujimoto06 estruturas em madeira medindo 2,20 x 2m com lentes de longo alcance e sinalização gráfica do projeto instaladas em 3 pontos do Parque

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