20110826-correia jornalismo espacopublico

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    Srie - Estudos em Comunicao

    Direco: Antnio Fidalgo

    Design da Capa: Jorge Bacelar

    Execuo Grfica: Servios Grficos da Universidade da Beira Interior

    Tiragem: 500 exemplaresCovilh, 1998

    Depsito Legal N 120607/98

    ISBN 972-9209-59-6

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    NDICE

    Introduo ............................................................................ 7

    I - As Possibilidades da Esfera Pblica Moderna ....... 21

    II - A Crtica da Esfera Pblica Moderna ................... 51

    III - Dos Jornais Indstria Jornalstica ...................... 85

    IV - Interaco, Comunicao e Espao Pblico ....... 121

    V - Comunicao Regional e Mediao ..................... 151

    Concluso ........................................................................ 165

    Bibliografia ...................................................................... 177

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    INTRODUO

    O pensamento, muito embora seja uma ocupaosolitria, depende dos outros para ser possvel

    (Hannah Arendt, Lies Sobre a Filosofia Poltica de Kant)

    O objectivo deste trabalho , com recurso a uma perspec-tiva interdisciplinar, indagar sobre a natureza da relao entrea indstria jornalstica e os seus pblicos no contexto deuma sociedade de massa. Procura-se, assim, definir o lugarque, no mbito dessa indstria, cabe interaco, conceitoque recentemente tem sido objecto de equvocos graas crescente mediatizao tecnolgica da experincia simblica.Pretende-se ainda interpelar uma forma especfica de comu-

    nicao - a imprensa regional - a fim de indagar se as suasespecificidades concretas so de molde a favorecerem umamaior interaco no seio da esfera pblica.

    A problemtica da interaco situa-se no prprio cerneda distino clssica entre pblico e massa. Como oportuna-mente veremos, tal problemtica, no sentido em que aquiabordada, articula-se com os conceitos de intersubjectividade,processo pelo qual as conscincias se reconhecem mutuamen-

    te nas relaes que estabelecem no mundo da vida; deracionalidade comunicacional, exerccio intersubjectivo da ra-zo num contexto argumentativo com vista coordenaoda aco social; e de publicidade, partilha e debate por partedo pblico de um saber ou de uma opinio.

    A interaco, neste sentido, no se resume, pois, possibi-lidade de dar resposta, em tempo real, graas ao progressotecnolgico, a questes que constem de uma agenda pr--determinada, respondendo, por exemplo, a sondagens.Tambm no se confina deciso de compra (ou no) nombito do mercado de produtos culturais. J no se reduz,sequer, pelo menos de forma linear, s situaes da acoquotidiana em que os actantes se encontram face a face esimultaneamente. A interaco, tal como pensada neste

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    Jornalismo e espao pblico

    trabalho, est relacionada com a resposta em face de umaaco que nos dirigida. No mbito do estabelecimento dadiferena entre pblico e massa, pertinente para a anliseda indstria cultural, a interaco, quando coordenada pormodos que visem a intercompreenso, deve ser entendida,ao nvel geral de toda a experincia social, e, em particular,ao nvel da circulao das mensagens mediticas, como a

    aco comum desenvolvida e partilhada pelos membros deum grupo e entre o medium e os membros desse grupo,tendente a realizar e a concretizar os seus projectos ouapresentar as suas opinies; a reagir perante os projectose opinies alheias; a comunicar e expor entre si os seusargumentos, procurando legitimar as suas aces e enunciadosou a questionar a legitimidade das aces e enunciados alheiosem funo da sua maior ou menor racionalidade intrnseca.O prprio conceito de pblico e a qualidade do relacionamentodos seus membros com o medium dependem da maior oumenor igualdade dos sujeitos no acesso aco e discusso.Nesse sentido, a existncia de determinadas formas deinteraco, reguladas segundo modelos que privilegiem oacordo racionalmente fundado, condio constituitiva dopblico.

    Os pblicos so, pois, definidos, na senda de Wright Mills,como forma de sociabilidade onde se verificam as seguintescondies: admissvel a resposta imediata e efectiva, emcondies e proporo idnticas, atravs do recurso argumentao racional, s opinies recebidas; a opinioderivada do debate tem condies de converter-se em aco;existe uma relativa autonomia em relao s instituiesrevestidas de autoridade; o debate e a experincia de ummundo intersubjectivamente partilhado criam efectivamenteuma pluralidade de possibilidades na interpretao das normas

    vigentes, dos valores dominantes e dos enunciados produzidos,no mbito de uma verdadeira tenso entre o consenso e anorma, por um lado, e a mudana e at a rejeio ou ruptura,por outro. a existncia em maior ou menor grau destascondies que nos permite falar numa interaco mais ou

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    menos dinmica. No contexto deste trabalho, a centralidadeda interaco deve-se importncia que a reciprocidade ad-quire no espao pblico.

    Este trabalho tenta aplicar esse conceito a realidades emrelao s quais ganha especial pertinncia: a imprensaregional, como espao de salvaguarda de uma racionalidadealternativa na relao com os seus pblicos; e as novas

    tecnologias da mediao e seus eventuais contributos parao jornalismo regional.

    1. Comea-se, pois, por analisar o devir do espao pblicomoderno enquanto espao privilegiado do exerccio daracionalidade, tal como entendido modernamente.

    Consideraram-se como elementos constitutivos desse espa-o pblico o exerccio de uma nova forma de racionalidade;a afirmao do sujeito entendida como descoberta de umeu senhor de um destino, de sentimentos e de umapsicologia, dotado de livre arbtrio e vontade politicamenterelevantes; o exerccio dialgico da razo com a consequenteemergncia da publicidade como forma constitutiva do Estadomoderno; e a interaco, entendida no seu sentido mais lato,isto como exerccio em comum do entendimento com vista partilha e legitimao de aces e opinies, com base nouso da racionalidade.

    Nesta anlise convergiro dois temas fundamentais.O primeiro trao que se considera decisivo a ligao

    entre a experincia comunicacional e a experincia poltica,que sempre foi relativamente evidente desde o Iluminismo,mas que adquiriu uma maior visibilidade quando a comunica-o se configurou decisivamente como indstria.

    Primeiro, foi a emergncia de uma esfera pblica quecolocou, ainda que em termos ideais, a hiptese de comunicar

    o pensamento, de forma racional e igualitariamente repartida,no cerne da prpria actividade poltica. Depois, foi o devirespectacularizante das mensagens e o aparecimento, no lugardo pblico, dessa forma de sociabilidade heterognea eindiferenciada que designamos por massa. Finalmente, so

    Introduo

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    1 - Joo Pissarra Esteves, Novos Desafios Para Uma Teoria Crtica da

    Sociedade, in Revista de Comunicao e Linguagens, Comunicaoe Poltica, Lisboa, Cosmos, 1995, n 21-22, p. 99.

    2 - Leo Scher afirma emDemocratie Virtuelleque os novos mediapodem

    levar realizao de algumas das caractersticas daagora grega (Cfr.Leo Scher,La Dmocratie Virtuelle, Paris, Flammarion, 1994). Howard

    Rheingold prev em Vitual Community, a recuperao de formas de

    sociabilidade anteriores sociedade de massa (Cfr. Howard Rheingold,The Virtual Community, texto acedido pela Internet). Mark Poster

    considera que, na Internet, existem semelhanas com a esfera pblica

    (Cfr. Mark Poster, Cyberdemocracy: Internet and the Public Sphere,

    Copyright Mark Poster, 1995, texto acedido atravs da Internet)

    as redes que dimensionam a comunicao em termosuniversais. Quebram, no espao e no tempo, as fronteirasconvencionais: (...) do a exacta medida do espao pblicocontemporneo: j no um espao essencialmente topolgicoe fsico, mas, cada vez mais, um espao simblico, virtuale reticular.1

    Ao mesmo tempo que esta tecnologizao se acelerapermanecem, no seio da indstria meditica, frmulas empre-sariais e comunicativas que possibilitam uma relao estreitacom os pblicos. o que acontece com parte da imprensaregional, graas sua conexo com formas de sociabilidadeque parecem pr-existentes sociedade de massa. Paradoxal-mente, o que acontece, tambm, com os mediainteractivosque muitas das vezes aparecem acompanhados por umaespcie de saudosismo em relao quer agoragrega, querao espao pblico burgus, quer s formas de sociabilidade

    a que atrs aludimos.2O segundo trao a que nos queramos referir a constata-o, com nuances diversas, dos problemas subjacentes aoespao pblico no seu devir concreto - com todas as interroga-es que colocam no que respeita aco poltica. O exerccioda racionalidade e da publicidade crticas, prprio do idealdemocrtico, evoluiu no sentido do abstencionismo - no signi-ficado mais lato de ausncia de participao - e do consumo

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    de mensagens regidas na sua produo por uma lgica doespectculo. Assiste-se falncia do agir poltico confinadonos mecanismos da representao. A crise do sistema departidos aprofunda-se. A representao poltica afigura-se cadavez mais ritualizada.

    Muitos dos lugares onde se joga a felicidade so objectoda indiferena das instituies e dos programas dominantes

    no espao pblico vigente. Aprofunda-se a apatia poltica- que conduz ao que Charles Taylor classificava como despo-tismo soft - e espectacularizao da informao em detri-mento da publicidade crtica. A interaco no espao pblicoesgota-se no pronunciamento ritualizado nos ciclos eleitorais(j ele prprio ameaado por um crescimento galopante doabstencionismo) e na resposta s sondagens, diluindo-se noisolamento crescente ou na obedincia a normas e instituies.Nesse contexto, o jornalismo surge, por vezes ou mesmodemasiadas vezes, como um pilar deste edifcio de apatia.Outras vezes, os mediaso apresentados como a ltima es-perana agora revitalizada pelas possiblidades de interactivi-dade tcnica.

    As interrogaes e hipteses sucedem-se com velocidadeinquietante: haver um espao para a redescoberta de formasde vivncia comunitrias onde a partilha de valores comunsseja compatvel com o exerccio da racionalidade? Que papelpodem ainda desempenhar os mediaenquanto catalizadoresde modelos de sociabilidade que contrariem as formas deexistncia e de pensamento estereotipadas?

    Qual ser, finalmente, o caminho deixado poltica quese desenvolve entre ciclos eleitorais, paulatina e preguiosa,perante os escombros do desemprego, as runas do EstadoSocial e o desperdcio das energias utpicas, num momentoem que a redescoberta da interaco parece essencial para

    ultrapassar o anonimato e a apatia das democracias de massa?

    2. De acordo com este ngulo de abordagem, urgedescobrir o entrelaado entre a evoluo do espao pblicoe o devir da indstria cultural. No contexto deste fenmeno,

    Introduo

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    um olhar particularizante revela-nos a evoluo do jornalismodesde a imprensa de opinio at ao jornalismo encarado comoactividade industrial. Neste ltimo, confluem caractersticasbem definidas: a produo em srie; a existncia de um corpoprofissional dotado de uma deontologia, de saberes, competn-cias e tcnicas adequadas feitura de mercadorias especiali-zadas designadas por notcias; interesse na agradabilidade

    e confronto com o dilema que a atraco pelo lucro coloca sua alegada vocao cultural; consumo por parte de umaaudincia cada vez mais heterognea e indiferenciada e que,por isso, cada vez menos se configura como pblico parase apresentar como massa.

    Segundo esta perspectiva, a indstria jornalstica prescin-diu da crtica e da reflexo, aderindo facilmente aos estere-tipos e preconceitos dominantes ou julgados como tal. Asnormas relacionadas com a exigncia de simplicidadeestilstica, com a objectividade reduzida mera descrio,com a temtica de interesse humano centrada noentretenimento seriam a manifestao meditica de umavontade de produzir uma escrita conforme uma opiniojulgada dominante. Esta opinio, identificada pelospreconceitos e esteretipos, constituiria o mximodenominador entre todos os cidados mdios.

    Tal ponto de vista comporta consequncias. At que pontotais normas se assemelham a especificaes produtivas? Seroas melhores formas de informar o pblico ou as que melhorse adequam ao segmento-alvo - toda a gente nivelada porbaixo- que cada vez mais se tornou o mercado dos media?

    A convergncia, j atrs descrita, entre o enfraquecimentoda participao poltica e a emergncia da indstria culturalfaz-nos crer que esta caracterizao do jornalismo aparecesobretudo em esferas pblicas em que a diversidade real escas-

    seia. O campo poltico e o campo dosmediaseriam pilaresde uma idntica uniformizao, de um idntico culto damesmidade.

    Aceitando que a pluralidade dos produtos no coincidecom idntica diversidade de opes sociais, culturais e

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    3 - Utilizamos o conceito de conotao expresso por Barthes em Elementos

    de Semiologia (Cfr. Roland Barthes, Elementos de Semiologia, Lisboa,

    Edies 70, 1989, pp. 75-81).

    polticas - ou seja, todos prolongariam, por meios mais oumenos semelhantes ou pouco divergentes, uma certasemelhana de fins - ento podemos admitir que saparentemente o mercado de bens culturais e informativosdivergir de outro tipo de mercados onde o marketingdomina.

    Esta opo no deve ser aceite sem reservas, sob riscode aceitarmos um determinismo catastrofista. Importa ter emconta que a falncia das grandes narrativas, a forma comotudo o que parecia slido se desfez no ar, influencia de talforma as anlises recentes que, por vezes, se confunde asemelhana entre as alternativas mais visveis no actual espaopblico com a absoluta ausncia de alternativas. Ora, precisoperguntar at que ponto os agentes envolvidos pretendemdesempenhar eles prprios at ao fim esse papel ou pelocontrrio no desdenham, ou at privilegiam, novos horizontesde experincia.

    O relato de um crime ou a identificao da notoriedadede uma personalidade so mensagens que pressupem oudenotam opes sociais, culturais, polticas e ticas. Taismensagens so comunicadas todos os dias a uma audinciaque lhes dedica quotidianamente um tempo decerto escasso.Se for tido em conta que essas mensagens so sancionadasao nvel econmico na compra e na publicidade - no casoda imprensa - e apenas ao nvel da publicidade no caso da

    rdio e da televiso, teremos de admitir tambm que umvasto leque dessas mensagens e consequentes conotaes3

    mais do que induzirem uma resposta racional por parte depblicos, suscitam meros consumos ao nvel da audinciametamorfoseada na massa. Assim, eventualmente, do ladoda produo sero preferidos valores de aceitabilidade fcilcoincidentes com o gosto mdio e a compreenso rpida emdetrimento do raciocnio crtico, mesmo que do lado da

    procura isso no seja conscientemente percebido. O resultado

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    4 - Com claras nuances e diversos graus de enfatizao, trata-se de umatradio que envolve filsofos ( desde Nietzsche, a Adorno, passando

    por Jrgen Habermas, Marcuse e Guy Dbord ) e socilogos (comoBaudrillard e Alain Touraine passando por Wrigt Mills, Breed, Tuchman,

    James Curran e Michael Gurevich, por exemplo).

    ser ento o do conformismo baseado num conhecimentoepidrmico do mundo. Poder-se- mesmo admitir que ojornalista faa uma espcie de sociologia profana, prescrutandoum contedo e uma forma que sejam do agrado do cidadocomum e legitimando a sua atitude precisamente na respostafavorvel por parte desse cidado comum.

    3. Como compatibilizar a vocao dos mediapara reforaros valores dominantes com o exerccio da racionalidadecrtica? Existe uma opinio comumente aceite, fortementedivulgada na comunidade acadmica, segundo a qual osmediadesempenham um papel de difuso e de reforo dos valoresestabelecidos e institucionalizados, interiorizando rotinas,normas, valores e gneros discursivos que correspondem aomximo denominador comum, rejeitando o que se desenvolvena periferia e ambiciona a mudana.4 De alguma forma, j

    se tornou claro que essa viso tem algum acolhimento nestetrabalho. Todavia, o que evidentemente se enjeita, sob penade se cair numa anlise unilateral, que esta caracterizaoseja uma fatalidade que se aplique, ao mesmo tempo, totalidade da actividade jornalstica.

    Apesar do espao pblico, tal como se positivou, terchegado a um impasse pela similitude entre as alternativastradicionais e pelo esgotamento das energias utpicas que

    conferiam sentido a essas alternativas, isso no implica queo sujeito tenha perdido a capacidade de agir dentro dasociedade, das empresas e das instituies, rejeitando oinaceitvel e at lanando novas possibilidades que constituamalternativas cristalizao do sistema democrtico. Recusandoas perspectivas catastrofistas que enfermam a viso tradicionalda indstria cultural em geral e da indstria jornalstica em

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    particular, acredita-se que os agentes sociais em geral, e osmedia em particular, no esto fadados para serem osprotagonistas de um devir obscurantista que negue qualquerpapel razo e responsabilidade individual.

    Mas, para se produzir esta afirmao importa ir mais longe:o que est em causa a interaco social e a forma comoos media nela intervm. Ou favorecendo a dominao ou

    a mudana, o consenso intersubjectivo ou a adeso acrtica,ou localizando-se num conjunto de nuances que se situamentre estas duas possibilidades que, alis, no so estanques.

    Nesse sentido, existe um espao para relembrar ou negara tica. As teorias que abordam este problema muitas dasvezes geram respostas indiferentes ao papel dos mass media.Consideramos apenas as respostas de escolas ou pensadoresque, explcita ou implicitamente, ou mesmo atravs de segui-dores significativos, se debruaram suficientemente sobreproblemas centrais para uma reflexo sobre a comunicao:considerando o processo de subjectivizao como um processode sujeio (Foucault); aferindo a aco social sobretudo emfuno do eficaz funcionamento do sistema (Parsons eLuhmann); identificando a sociedade de massa como umaimensa negao do sujeito racional, demitido da sua funohistrica, identificando mesmo na formao dessaracionalidade os dados que implicitavam o seu devir irracional(Adorno); colocando a intersubjectividade no centro dacompreenso do mundo (como fizeram a Sociofenomenologiae o Interacionismo Simblico) e baseando nessa compreensointersubjectiva um modelo de aco comunicacional(Habermas); perspectivando um espao possvel de realizaodo sujeito e da razo, num porfiar de esperana no qualse vislumbram poucas certezas (Giddens, Touraine, Habermasou Charles Taylor, por exemplo.)

    A nossa perspectiva vai contra a corrente da conclusodominante em todos os que enfatizaram a dominao emdetrimento do sujeito. Parece-nos evidente que o processode construo social da realidade no fatalmente dicotmicoopondo necessariamente sujeito e sociedade. No estamos

    Introduo

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    condenados a relegar a compreenso do comportamentohumano para o domnio da pura lgica determinista dosconstrangimentos sociais, que remete a autonomia do sujeitoao estatuto de pura iluso e reduz a responsabilidade do actorsocial a um mero efeito da sua posio ou trajectria social.5

    Para alm da recusa do determinismo a prpria dicotomiaque se enjeita. Norbert Elias chegou a negar as teorias que, semelhana de Parsons, perspectivavam uma interpenetraode pessoa singular e sistema social: Como quer que seconceba essapenetrao mtua, que outro significado atribuira essa metfora seno o de que se tratam de duas entidadesdiferentes, que comeam por ter existncia separada e depoisse interpenetram, de certo a posteriori?6

    Contra o determinismo ou a dicotomia inerente a algumasdestas vises, em especial as mais apocalpticas ou as maissistmicas, podemos chamar colao uma espcie de resis-

    tncia ou de insistncia que negue o primado da razo instru-mental, retempere a tica e no exclua nem o indivduo nemo sentimento comunitrio, tonificando o individualismo secoe a racionalidade fria prprios de uma certa modernidade,com a abertura simultnea razo crtica e problematizante, memria e aos valores. Estamos de acordo em que oprocesso de instituio de normas coincide com oreconhecimento das mesmas, pelo que toda a transformao

    social tambm um processo de normativizao do indivduo.Todavia, isso no nos autoriza a negar a liberdade do sujeito,a possibilidade de recusar de entre tudo o que se nos afiguracomo perigoso aquilo que se afigura como mais perigoso.A razo, em vez de perder-se na inegvel seduo da suacrtica, no deve abandonar o horizonte da experincia e

    Jornalismo e espao pblico

    5 - Joo Pissarra Esteves,A tica da Comunicao e os Media Modernos:

    o campo dos media e a questo da legitimidade nas sociedadesmodernas,Lisboa, 1994, p.5 ( Tese de Doutoramento na Universidade

    Nova de Lisboa).6 - Norbert Elias,O Processo Civilizacional, Lisboa, Dom Quixote, 1989,

    vol I, p18.

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    7 - Michel Foucault acabaria por admitir uma semelhana de preocupaes

    com os tericos da Escola de Frankfurt, em especial Horkheimer:

    Neste momento, compreendo que os representantes da Escola de Frankfurt

    esforaram-se por afirmar, mais cedo que eu, as coisas que eu me

    esforei por sustentar anos depois () Quanto a mim os filsofos

    dessa Escola puseram problemas que ainda permanecem: especialmente,

    os efeitos de poder relacionados com uma racionalidade que se definiu

    geograficamente no Ocidente, historicamente a partir do Sculo XVI.

    D. Trombadori,Entretien avec Michel Foucault inDits et crits (1984--1988), Paris, Gallimard, 1994, vol IV. David Hoy em Foucault versusJrgen Habermas tenta estabelecer uma filiao entre o trabalho dos

    post - estruturalistas franceses e Adorno e Horkheimer Historicamente,

    recorda os contactos de Benjamin com o Collge de France e o interesse

    Introduo

    precipitar-se no canto de sereia apocalptico que, afinal, no mais do que a outra face do pensamento utpico: ambosdenegam o presente sem reconhecer a complexidade da vida.

    Para alm de considerar todo o processo de subjectivizaodo indivduo como um conjunto de tecnologias de dominaoem funcionamento, ou para alm de considerar o inevitvelabatimento da racionalidade burocrtica sobre o sujeito,

    importa reconhecer tambm a possibilidade ou at ainevitabilidade de resistir, de negar, de afirmar de formadiferente e de interrogar-se sobre o que fazer.

    possvel compreender o que existe e viver o que existenegando a sua legitimidade, no todo ou em parte, ou propondooutros possveis. nesse sentido que podemos pensar umaaco poltica que no se esgote na idealizao de umhorizonte finalista, mas que reconhea a teia de relaeshumanas sobre que a aco poltica incide e que remeta,como pretendia Arendt, a grandeza especfica de cada actopoltico para o seu prprio empreendimento.

    O que alguns dos autores atrs citados fizeram, de formamais ou menos intensa ao longo da sua elaborao terica(com uma crtica particularmente relevante proveniente dosdiferentes pensadores da Escola de Frankfurt e de MichelFoucault),7 foi insistirem na componente da dominao, do

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    constrangimento ou da adequao ao sistema, ainda que comdiferentes juzos valorativos. aqui que se justifica aafirmao a contra corrente: a compreenso do mundo vividosocial implica o reconhecimento de uma dimensointersubjectiva que lhe inerente. compatvel com oreconhecimento de espaos de resistncia massificao(terminologia adorniana) ou ortopedizao (terminologiafoucaudiana), com o reconhecimento, enfim, do agir livreeticamente fundado. Neste sentido, parece pertinente opora noo de intersubjectividade objectivao monolgica,prpria do positivismo, denegando uma espcie de inevitvelconstrangimento do sujeito.

    Esta concluso extensvel aos media, suspeita quesobre eles pesa e esperana que neles reside ou at renasce.At onde podero os media abandonar uma certa vocaode alegre mediocridade para poderem, eles prprios, serem

    elementos catalizadores de racionalidade crtica? nessesentido que neste trabalho se subscreve a intuio de quequalquer projecto crtico tem de incorporar uma preocupaotica. Entende-se que qualquer denegao da realpolitik- da gesto daquilo que temos - pressupe sempre a pergunta resposta: que devemos fazer?

    4. Do lado dos media, pressupe-se, pois, que h ainda

    um lugar possvel para a razo, que seja tambm o lugarda publicidade crtica e da interaco racionalmente fundada.No se trata de propor o fim da histria defendendo o regressoa um estdio primitivo e bom da imprensa, eventualmentecoincidente com a emergncia dos pblicos, propondo asuperao de um estdio de interminvel tagarelice meditica,alienante e grosseira, por uma espcie de inatingvel imprio

    Jornalismo e espao pblico

    de Derrida em Benjamin, expresso num ensaio. Argue ainda em favordesta tese a utilizao que Foucault admite ter feito da obra de Otto

    Kirchheimer em Surveiller et Punir (Cfr. David Hoy, Foucault Versus

    Jrgen Habermasin Thomas McCarthy and David Hoy,Critical Theory,Cambridge, Blakwell Publishers, 1994, pp. 144 e seguintes).

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    da razo onde, graas ao exerccio dialgico do argumentopraticado atravs dos media, cada cidado passaria a sermembro de uma agora democratizada. Trata-se, apenas, deuma forma bem mais modesta tentar descobrir interruptores,espaos de resistncia eventual que permitam ultrapassar umaespcie de mercantilismo dominador, aproveitandopotencialidades existentes e denunciando mecanismos de

    constrangimento. A atitude crtica tem que se dirigir ao queest e pensar o que vivemos sem se resignar nem abdicar,tentando, humildemente, descortinar alternativas que por vezesse no vislumbram nos tericos que se debruaram sobreas formas de dominao que surgiram nas sociedades demassa. Isso implica que a inteno tica se no defira paraum horizonte irremediavelmente utpico, onde as patologiascomunicacionais encontrariam a sua soluo em qualquercomunidade ideal. nesta perspectiva que tem cabimentointerrogarmos uma forma particular da indstria jornalstica- a comunicao regional - indagando-a sobre a existnciade uma racionalidade alternativa, assente numa relao diversacom os pblicos. Uma das estranhezas da crise damodernidade o facto de deixar em aberto espaos deautoregenerao. O Estado Nao e a Democracia de Massadebatem-se nas suas ambivalncias. Curiosamente nas suascrises que estalam os interstcios pelos quais irrompem aspossibilidades de diferena. A comunicao social regional tambm uma hiptese de catalizao e reflexo destesprojectos. Talvez a, onde sobrevivem formas concretas deproximidade em relao aos cidados e aos espaos pblicosonde eles intervm, se possa problematizar um modelocaracterizado por essa possvel racionalidade alternativa. Outrofenmeno que parece relevante analisar o das novastecnologias da comunicao: multimedia, redes, telemtica,

    ampliao das capacidades das bases de dados. Estas podemdesempenhar no mbito dos media regionais um papelfundamental, ajudando a ultrapassar anacronismos sem prem causa mas, antes pelo contrrio, aprofundando a almejadaproximidade com os pblicos. Porm, em vez de fazermos

    Introduo

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    uma aclamao eufrica das possibilidades que eles tenhamde ressuscitarem uma espcie de nova agora, interessainterrogar os limites e legtimas esperanas que despertampara o jornalismo sombra das novas condies tecnolgicas.

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    I

    As possibilidades da esfera pblica moderna

    A noo de esfera pblica, emergente no sculo XVIII,

    tornou-se fundamental para a compreenso da modernidade,designadamente da modernidade cultural e das ambivalnciasque lhe so subjacentes. Se as sucessivas falncias da razoj existiam em estado larvar no espao pblico burgus ese, pelo menos retrospectivamente, tal espao revela a existn-cia de marcas que determinaram essa sua evoluo, esse factono nos inibe, antes nos impe, de fazer a caracterizaoe a identificao dos seus traos distintivos. Apesar das suascontradies intrnsecas, a esfera pblica moderna traduziuuma vontade de emancipao que se identificava, em largamedida, nos ideais do iluminismo. As componentes da esferapblica moderna, tal como ela foi pensada, sobretudo porHabermas, foram, em especial, as seguintes: a emergnciade uma forma de racionalidade que se identificou com aemancipao em relao s explicaes metafsicas eteolgicas; o aparecimento de uma forma de subjectividadeconstituida na vivncia da famlia restrita, da literatura e dapropriedade, e que teve a sua traduo poltica na emergnciado cidado, isto , do sujeito livre e racional que participana formao de uma opinio esclarecida; o aparecimento deuma publicidade crtica, entendida como a publicitao, comvista ao debate, das decises do poder, a fim de que alegitimidade de tais decises fosse obtida no tribunal daopinio pblica; e o exerccio efectivo de formas dialgicasde interaco no debate em ordem constituio da opinio

    mais esclarecida. Ou seja, a nova esfera identificou-se peloexerccio da racionalidade por parte de sujeitos que se olhama si prprios como livres e iguais, pela articulao entrecomunicabilidade e exerccio da razo, e pelo facto de aforma de relacionamento entre os seus membros implicar

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    a interaco e o livre questionamento crtico com base napura e simples troca de argumentos.

    A identificao possvel destes elementos - racionalidade,subjectividade, publicidade e interaco - torna-se, assim,central neste trabalho j que em seu torno que se constituiua reflexo sobre as consequncias filosficas, culturais, sociaise polticas do devir concreto da esfera pblica. Por outrolado, foi em torno dos mesmos elementos constitutivos (eem especial da interaco como elemento bsico que uneo que no deve estar dividido - a poltica e o quotidiano)que se pensaram - e pensam ainda - as possibilidades deum devir aceitvel nas diversas dimenses do agir humano.

    1. Iluminismo e esfera pblica: configuraes e tendncias

    A esfera pblica liberal desenvolveu as formas modernas

    de individualismo e de subjectividade, desencadeou osmecanismos modernos de exerccio da opinio e traduziu,pelo seu carcter profano e de optimismo quanto ao progressoda humanidade, um desejo de emancipao que se prendedirectamente com a nossa maneira de estar no mundo.

    A esfera pblica, tal como se ir consolidar no sculoXVIII, resulta da associao das pessoas privadas que, nolimite, aspiram a modelar o agir poltico. O movimento

    iluminista reflecte e simultaneamente dinamiza, em grandemedida, as ideias e aspiraes abertas e idealizadas por essaesfera: autonomia e primado da razo, enquanto instrumentocapaz de libertar o ser humano da ignorncia, doobscurantismo e da superstio; recusa do princpio daautoridade tradicional por este se apoiar muitas vezes empretensas verdades histricas no comprovadas; consideraoda autoridade do Estado como emanando da vontade do povo;crena na razo como princpio de explicao do mundo;enfatizao do sujeito racional e livre; defesa do princpioda publicidade como forma de reivindicar formas delegitimidade que decorram do uso pblico da razo;valorizao da crtica e recusa do preconceito de uma formaque pode atingir o iconoclasmo. Socialmente, traduz de forma

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    8 - A relao entre as ideias do iluminismo e a ascenso da burguesiadeu origem a polmicas conhecidas Hampson considera que o estabeleci-

    mento de tal relao lhe parece assente em alicerces pouco seguros.Logo de seguida admite que necessrio estar atento simbiose deprogressos econmicos, atitudes sociais e especulao intelectual (NormanHampson,O Iluminismo, Lisboa, Ulisseia, 1973, p. 12 ) Pelo contrrio,Rolan Desn considera que a emancipao do homem em que Kantv o trao que caracteriza o Iluminismo a emancipao de umaclasse, a burguesia, que atingiu a maturidade (Rolan Desn,A FilosofiaFrancesa do Sculo XVIII in Franois Chatelet, org,Histria da Filoso-fia, Lisboa, Dom Quixote, vol IV, p. 71) Porm, igualmente a seguiralerta para o facto de que uma sociologia do Iluminismo revelaria

    que o movimento se estendeu a outras classes sociais. Jrgen Habermasdescreve o espao pblico literrio como uma esfera onde convivema pequena aristocracia e a burguesia letrada Todavia, simultaneamentedemonstra como essa esfera pblica no se poderia ter constitudo foradas transformaes econmicas e sociais ento verificadas, estandorelacionada com o aparecimento do homem proprietrio e a esfera dafamlia restrita, cuja constituio de intimidade depende da autonomiaeconmica. Finalmente, prprio Hampson, aparentemente pouco receptivo ideia, faz uma anlise de como a emergncia da burguesia em Inglaterra

    permitiu o florescimento da opinio pblica. Poder-se- admitir, comas devidas cautelas, que existe uma relao demonstrada.9 - O Marqus de Pombal era um dos frequentadores assduos da Arcdia

    Lusitana, uma das instituies mais significativas da esfera literriaburguesa em Portugal ( Cfr. scar Lopes e Antnio Jos Saraiva,Histriada Literatura Portuguesa, Porto Editora, 1978, p. 671) Todavia, Pedro

    complexa a emergncia de uma nova classe social - aburguesia - a qual, uma vez reunidas as condies para tal,exige uma modificao radical das relaes sociais epolticas.8 Poltica e culturalmente, representa o apogeu dainterveno das classes ascendentes em luta contra a domi-nao aristocrtica e as formas ideolgicas que a legitimavam.Apesar desta associao relativamente evidente, alguns dos

    regimes influenciados pelas Luzes, como seja o DespotismoIluminado, contrariaram de forma decidida e brutal amaturao de uma esfera pblica interventiva, ao mesmotempo que conviviam com alguns dos seus aspectosemergentes. O caso portugus bem significativo deste facto.9

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    Correia Garo, considerado o representante mais ilustre desta instituioliterria, morreu nas masmorras pombalinas devido a prticas jornalsticas

    pouco simpticas ao primeiro ministro de Dom Jos ( Cfr. Jos ManuelTengarrinha, Histria da Imprensa Peridica Portuguesa, Lisboa, Ca-minho, 1986, p. 47).

    nesse sentido que se deve frisar que a esfera pblica liberal,e o conceito de opinio pblica que lhe subjacente, estoindissociavelmente relacionados com o desenvolvimento damodernidade racionalista e democrtica.

    O que resulta mais claro da associao entre a esferapblica e o iluminismo a coincidncia nos traos sociais,literrios, filosficos e polticos de uma cesura, de um corte

    aonde o Homem - ou o personagem assim designado pelafilosofia racionalista - ter mais do que nunca experimentadoa crena na capacidade de encontrar dentro de si prprio,fora de qualquer casulo teolgico-metafsico, o fundamentoque lhe permitia transformar o Mundo segundo o que eleconsiderava ser a razo. Na Grcia, a esfera pblica era,por oposio esfera privada da domesticidade e da economia,o espao de reconhecimento da notoriedade dos homens livrese iguais, alcanada atravs da sua participao nos assuntosda Polis. Na Idade Mdia, publicar significava sobretudorequisitar para o senhor, no se verificando, desta forma,uma distino clara entre o poder pblico - legitimado pelaautoridade divina - e o privilgio feudal. No Renascimentoe no Barroco, a esfera pblica era essencialmente um espaode representao centrado na corte e na sua faustosidade,assumida como espectculo aberto contemplao dossbditos.

    O novo modelo de esfera pblica, que atingiu a sua maturi-dade no sculo XVIII, distinguiu-se de todas estas formasque a precederam pelo seu carcter universalista e crtico.A sua forma de organizao j no , como na Grcia,antittica da esfera privada. Pressupe uma dimenso poltica,constituda na afirmao subjectiva dos participantes em todosos domnios da vida social. Resultou de um processo moroso

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    que recua ao prprio sistema pr-capitalista de troca deinformaes e de mercadorias. No interior deste sistema, aconsolidao do comrcio e o aparecimento do pblicosurgiram a par. Comeou-se por desenvolver uma amplarede horizontal de dependncias que, em princpio, no sedeixavam mais ordenar nas relaes verticais de dependnciado sistema feudal baseadas em formas de economia domstica

    fechada.10

    Institucionalizou-se, depois, um sistema decorrespondncia, primeiro em volta das associaescomerciais, depois em volta de um correio e de uma imprensaregulares. O aparecimento de trocas permanentes pressupsrelaes bilaterais, dilogo e debate ou seja, conduziu emergncia de uma interaco que est na origem da esferapblica burguesa.

    O aparecimento do comrcio moderno, a emergncia das

    grandes companhias comerciais, e a assuno pelo EstadoNao dos novos empreendimentos externos, induziu oaparecimento de uma esfera de poder, consubstanciada numexrcito e numa burocracia permanentes.

    Inicialmente, os membros da esfera pblica eram destinat-rios das informaes sobre as leis que regulamentavam aactividade econmica. Comearam, depois, a interagir entresi na reivindicao de novas leis regulamentadoras da troca

    de mercadorias e do trabalho social. A burguesia viu-se assimcomo protagonista de duas faces de uma importante transfor-mao estrutural com duas dimenses: uma tinha a ver como desempenho de um papel de agente de uma economiaobjecto das atenes e receios do Estado; a outra, tinhaa ver com a prpria constituio de uma nova mundividncia,uma forma nova de olhar e discutir a vida pblica. Asinformaes contidas nas cartas manuscritas trocadas entre

    os comerciantes comearam, ainda que sob o controlo dacensura, a serem objecto de publicao de folhas impressas.

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    10 - Jrgen Habermas, Mudanas Estruturais da Esfera Pblica, Rio de

    Janeiro, Edies Tempo Brasileiro, 1984, p. 24.

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    11 - Cfr. Ibid., pp. 42-43.12 - Jean Marc Ferry, Les Transformations de La Publicit Politique in

    Herms, Le Nouvel Espace Publique, Paris, CNRS, p. 17.

    A actividade econmica d, pois, azo ao aparecimento daimprensa enquanto instituio que exerce a funo de divulgare debater informaes e regulamentaes de naturezaeconmica publicadas pelo poder. A circulao da imprensaconfere aos seus destinatrios o suporte necessrio para oexerccio de uma opinio crtica. Esta esfera ganha uma novadimenso ao assumir-se como verdadeira instncia polticaque comea por exigir a mudana na base de legitimaoda dominao para, depois, pr em causa a prpriadominao.11

    Nesse sentido, a relao entre a nova esfera pblica eo poder absoluto tornou-se progressivamente conflitual. Nofinal do Sculo XVIII, em Inglaterra, a palavrapublicsubstituimankind, enquanto na Frana se refere ao pblico dos leitores.A nova expresso para alm de denotar, no uso, ouniversalismo reformador que mobiliza a burguesia

    ascendente, identifica claramente o papel central que comeaa ser ocupado pela leitura e pela escrita. A esfera pblicaburguesa corresponde cada vez mais institucionalizaode uma crtica para moralizar ou racionalizar a dominaopoltica.12 Nesse sentido, o problema da legitimidade deixade ser concilivel com o poder absoluto e passa a serquestionado no seio da esfera pblica.

    2. A dimenso literria da esfera pblica burguesa

    A esfera pblica liberal tem uma dimenso literria e est-tica, forjada num ambiente crtico apaixonado, onde o textoimpresso desempenhou um papel central que contribuidecisivamente para a formao de um novo tipo de subjectivi-dade. A esfera pblica literria assumiu claramente a suapostura crtica de afirmao de um juzo e de um gosto

    autnomo. Ainda antes que a natureza do poder pblico

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    13 - Jrgen Habermas, op. cit., p. 44.14 - Ibid., p. 49.15 - Cfr. Jrgen Habermas, Ibid.., pp. 57-58.16 - Cfr. Ibid., p. 56.17 - Cfr. Saraiva e Lopes, op. cit., p. 619.

    tenha sido contestada pelo raciocnio poltico das pessoasprivadas formou-se sob proteco da famlia o esbooliterrio de uma esfera pblica a pensar politicamente.13

    Com efeito, nos sales o esprito no mais um servioprestado ao mecenas; a opinio emancipa-se dos liames dadependncia econmica.14

    A nova experincia esttica e sobretudo literria apeiao autor do seu pedestal agrilhoado, dependente do mecenas,para o submeter ao julgamento do pblico. A partir dos primei-ros decnios do sculo XVIII, assiste-se lenta substituiodos mecenas pelos editores. O prprio pblico exerce umanova forma de fruio esttica na qual encontra o Eu e apartir dele o Outro num julgamento intersubjectivo epartilhado do produto esttico. O gosto comea por expressar--se no julgamento dos leigos sem competncia especfica.Surge a crtica especializada, mandatria dos pblicos e

    portadora de uma pedagogia que lhe dirigida com vista educao do gosto.15

    A polmica sobre a esttica faz parte intrnseca da novaesfera literria. A enorme quantidade de panfletos que incidiusobre a crtica ou a apologia das teorias de arte dominantesdemonstra que j existe um pblico de amadores esclarecidosque fazem destes os temas da sua conversao.16

    As obras literrias do Iluminismo so um sintoma das

    condies sociais emergentes.17 O leitor j podia rever-se nosprotagonistas e tambm nos personagens secundrios quegravitavam sua volta num plano inferior. O romance inglsreflecte de forma acentuada as aspiraes deste novo universo.Robinson Crusoe de Daniel Defe (1660-1731) tem porprotagonista o filho degenerado que inicia um voo ascensionalpara superar a sua condio social. Samuel Richardson

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    18 - Paul Hazard,O Pensamento Europeu no Sculo XVIII( de Monstesquieu

    a Lessing ), Lisboa, Presena, 1974, vol I, p. 62Horcio ou Quintus

    Oratius nascido em 5 de Dezembro de 65 AC, em Venosa, antigacolnia romana. autor de Stiras, Odes e Epstolas, algumas das

    quais celebrizadas pelo seu carcter polmico. Dcimo Jnio Juvenal

    um poeta satrico latino autor de stiras extremamente crticas da

    sociedade romana.

    (1689-1761) escreve, em 1740, Pamela,um romance epistolarprotagonizado por uma servial. Henry Fielding redige TomJones (1749), onde a redeno social agora conquistadapor um filho ilegtimo de pais desconhecidos. Tobuas Smollet(1721-1771) escreveRoderick Randon (1748), um fresco sobrea realidade imediata da vida quotidiana onde se procede auma reproduo da fala dos vrios extractos sociais. EmFrana, as peas de Beumarchais e de Marivaux acolhemo barbeiro, o campons e a servial. Em Portugal, CorreiaGaro descreve a existncia quotidiana da mdia burguesiaenquanto Nicolau Tolentino de Almeida se aventura emcritic-la de forma por vezes demolidora.

    A esfera pblica literria torna-se ainda lugar de crticamesmo no sentido mais mordaz: Horcio e Juvenal ressucita-ram; () os romances tornam-se satricos, pululavam ascomdias, os epigramas, os panfletos, os libelos; tudo eram

    alfinetadas, picadelas, unhadas ou lapidaes; todos sedivertiam at mais no poder. E quando a tarefa se revelavademasiado pesada para os escritores surgiam em seu auxlioos caricaturistas.18 Em Inglaterra, Alexandre Pope (1688--1744) publicar Os Ensaios Morais que so stiras ondeno se coibe de atacar os vcios do governo e da corte. SamuelJohnson (1709-1784) assina frequentemente panfletos crticos.Daniel Defe (1660-1731) tambm se dedica ao jornalismo

    panfletrio e stira. O caminho iniciado por Defe seguidopor Swift, considerado por Andr Breton como o pai dohumor negro na literatura ocidental. Em Propostas SimplesPara as crianas Pobres(1692) sugeriu que se poderia acabarcom a fome que grassava na Irlanda com o recurso ao

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    19 - Cfr. Ana Basualdo,A Literatura Inglesa do Sculo XVIII in Histriada Literatura, Lisboa, Editores Reunidos,1995, vol II, (77 ), pp. 202-203.

    20 - Cfr. Maria Dolores Picazo e Fatima Gutierrez, Geraes Literrias

    do Iluminismo Francs in Histria da Literatura, Lisboa, Editores

    Reunidos, 1995 vol II, (80), pp. 229-34.21 - Cfr. Saraiva e Lopes, op. cit., p. 724.22 - Cfr. Maria Leonor Carvalho Buesco,Literatura Portuguesa do Sculo

    XVIII, in Histria da Literatura, Lisboa, Editores Reunidos,1995,vol III, (82 ), pp. 15- 19.

    canibalismo. As suas Viagens de Gulliver(1726) desmascaramridculos de instituies e governos.19

    Em Frana, Montesquieu imagina os costumes nacionaisatravs do olhar sarcstico e crtico de viajantes asiticos:so as Cartas Persaspublicadas em 1721. O Candide(1759),de Voltaire (1694-1788) um conto filosfico que satirizao optimismo perante um universo que se afigura injusto aosolhos do leitor. Pierre Marivaux (1688-1736) escreversobretudo comdias onde inclui subentendidos sarcsticos decariz poltico. Pierre Beumarchais (1732-1799) segue umcaminho semelhante em o Barbeiro de Sevilha (1775) e asNoites de Fgaro (1784). Os romances de Diderot (1713--1784) comoA Religiosa(1760) e Tiago, o Fatalista(1769)pem na boca dos seus personagens acerbos comentrios sobrea sociedade do seu tempo.20

    Em Portugal, Pedro Correia Garo (1724-1772) em

    Assembleia ou Partidaretrata uma famlia que d uma festacom dinheiro e baixela de emprstimo e confrontada coma chegada do meirinho que reclama crditos vencidos. NicolauTolentino (1741-1811) na stira A Guerra mostra-se umiluminista convicto, fazendo lembrar a ironia de Voltaire.21

    Antnio Diniz da Cruz e Silva (1731-1799) escreveuHissope,poema heri-cmico que reflecte grande audcia, relativizadapela suspeita de alegadas interpolaes, introduzidas por

    revisores posteriores, com vista ao uso da obra para efeitosde agitao poltica liberal.22

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    23 - Cfr. Jrgen Habermas, op. cit., p. 66.24 - Cfr. Saraiva e Lopes, op. cit., pp. 727-729.25 - Cfr. Jrgen Habermas, op. cit., pp 60-61.

    A subjectividade nascida e cultivada no interior da famliaburguesa restrita conhecer um aprofundamento que seperspectiva numa espcie de sentimentalismo pr-romntico,de que o romance psicolgico, o culto do amor paixo ea prtica epistolar como expresso do sentimento iroconstituir as manifestaes mais poderosas. Da carta sentidacomo visita da alma partir-se- para a sua publicao e

    finalmente para o romance epistolar. Em Inglaterra, EdwardYoung (1683-1765), introduz em As Noites refernciasbiogrficas morte da mulher com vista obteno de umefeito dramtico. A j citada Pamela(1740) de Richardson,seguida de ClarissaeSir Charles Grandisson, La NouvelleHeloise e Werther, construdos sobre forma epistolar,constituem uma incurso particularmente vigorosa no terrenoda subjectividade.23 As Confisses de Rousseau so decerto

    obra de um esprito que personifica o pr-romantismo. Oselementos sentimentais avultam ainda em Sterne e Bernardimde Saint-Pirre. Em Portugal, no final do sculo, JosAnastcio da Cunha (1744-1787) tenta descrever a plenitudeda vivncia amorosa, enquanto a Marquesa de Alorna (1750--1839), seguidora confessa dos ideais filosficosenciclopedistas, traduz ou imita Goethe e Young, entre outros.O auge desta sensibilidade , em Portugal, Bocage.24

    Agora, no lugar da Razo, j se enfatizam os aspectosintuitivos e emocionais da natureza humana. Seguir-se- oRomantismo, onde esta tendncia se assume de forma abertae consequente.

    A subjectividade e a racionalidade so dois plos quese revelam na esfera pblica burguesa. Ou seja: a expressodo sentimento est directamente ligada manifestao deuma intimidade constitutiva da nova distino entre pblico

    e privado.25

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    26 - Ibid., p. 66.

    3. A dimenso poltica da esfera pblica burguesa

    A esfera pblica liberal est associada desde o seu comeoa uma dimenso que se constitui como primeiro suporte doexerccio pblico da razo. A representao dos interessesde uma esfera privatizada de economia de trocas interpretadacom a ajuda de ideias que brotaram do solo da intimidade

    da famlia restrita: a humanidade tem a o seu local genunoe no, como corresponderia a seu modelo grego, na prpriaesfera pblica.26 Esta insistncia na importncia da vivnciaquotidiana e na respectiva relevncia poltica constitui umaclara diferenciao em relao ao modelo marxista clssicoque faz corresponder a exigncia de uma ordem jurdico--poltica aos meros interesses individuais do burgusproprietrio. Sem excluir a dimenso econmica enfatizada

    pelo marxismo tradicional, Habermas conclui que a exignciade autonomia no pura ideologia. As ideias vividas naintimidade familiar ganham, efectivamente, a fora de umarealidade objectiva.

    A esfera pblica possui, desde logo, uma dimenso polticaprofunda que perpassa todos os domnios da existncia. Nestadimenso poltica podamos descortinar um nvel implcitoe outro explcito.

    O primeiro nvel - implcito - da dimenso polticaimpregna todo o modo de vida burgus. Est presente nafruio esttica exemplarmente sentida como umaprofundamento de subjectividades, onde o sujeito aprendea ser livre na formao do gosto; manifesta-se no amor-paixo,onde a liberdade na escolha do amado se ergue como algopelo qual vale a pena viver ou morrer, numa manifestaoautntica de defesa do livre arbtrio, ainda que sublimada

    de forma ideal atravs da literatura; est presente, ainda, naorganizao do quotidiano em torno de uma certa ideia desujeito, como ser dotado de racionalidade e como tal

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    27 - Cfr. Ibid., p. 44.28 - Ibid., p. 43.29 - Jos Manuel Tengarinha,Histria da Imprensa Peridica Portuguesa,

    Lisboa, Caminho, 1987, p. 77.

    merecedor de liberdade na escolha de seu destino; perfila--se, autenticamente, no desejo de intimidade como lugar decultivo do sentimento. Por tudo isso, perpassa, enfim, umaideia de emancipao.

    O sujeito burgus, existencialmente, aproxima-se do queser o sujeito moderno enquanto senhor de um destinoindividual que ele ambiciona configurar com base na sua

    vontade e na sua razo. A esfera pblica o lugar de afirmaodestes sujeitos livres, dotados de livre arbtrio e produtoresde juzo que no carecem de fundamentao exterior. Aindaantes que a esfera pblica tivesse ganho a sua dimensoexplcita de interveno poltica desenha-se todo um processode autocompreenso das pessoas privadas em relao sgenunas experincias dessa sua privacidade.27

    O segundo nvel - explcto - desta dimenso poltica joga-

    -se em torno da figura cental do poder: aqui a esfera burguesano se limita a discutir a partilha do poder. Com efeito, peem causa a sua natureza: quer modificar a dominao enquantotal.28

    A nova esfera pblica desenvolver-se- durante os sculosXVII, XVIII e XIX. A formao de clubes, o aparecimentode uma imprensa crtica, a obrigatoriedade do conhecimentopblico das votaes efectuadas pelo Parlamento, o surgimento

    de faces polticas at sua institucionalizao em partidos,o apelo opinio pblica que se expressa atravs de petiesescritas e de associaes de ndole diversa, o alargamentodo sufrgio so alguns dos momentos dessa evoluo.

    Em Portugal, a maturao da esfera pblica revestiu-sede aspectos problemticos.Durante o regime pombalino, asevera vigilncia sobre todas as formas de expresso do pensa-mento levou proibio de numerosas obras.29

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    30 - Cfr. Manuel Maria Carrilho, Jogos de Racionalidade, Asa, Lisboa,

    1994, p. 9.31 - Paul Hazard, op.cit., p. 47.

    4. A esfera pblica e a racionalidade

    A esfera pblica moderna pressupe, como condioconstitutiva da sua existncia, uma nova autocompreensoda racionalidade, enquanto expresso de um desejo deharmonia e conciliao entre liberdade e natureza. Apesardas inmeras significaes que se atribuem palavra razoh um ncleo semntico comum que est ligado namodernidade ideia de uma faculdade soberana e suprema,capaz de ordenar o mundo.30

    nova racionalidade j no incumbe a escuta de umapalavra transcendente de origem mgica ou divina mas orecorte de um lugar onde se institui o sujeito humano e sequestiona o seu destino. Com a cesura iluminista surge anecessidade de tudo submeter ao tribunal da razo, abrindo--se, por isso, a questo da legitimidade. A nova racionalidade

    dispensa a autoridade e a tradio que olha como sendo mestrade erros. Incumbe-se de uma tarefa homrica: julga-se capazde compreender de modo exaustivo a realidade e prope--se transformar, de acordo com as suas leis, todas as esferasda vida. Na perspectiva de algum racionalismo iluministatoda a aberrao resultou de se haver acreditado cegamente,em vez de se proceder, em cada circunstncia, a um exameracional.31

    O erudito francs Paul Hazard proceder caracterizaosatrica da forma como os filsofos racionalistas do sculoXVIII se viam a si mesmos e ao seu empreendimento, enfati-zando, de forma subtil e custica, o carcter, afinal tambmele exclusivista, desta razo: (a razo) aperfeioar as cinciase as artes e assim se multiplicaro os nossos prazeres e como-didades; porque ela ser o juzo que nos permitir saber,com mais segurana do que a prpria sensao, qual precisa-

    mente a qualidade dos nossos prazeres e, consequentemente,

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    32 - Idem, Ibidem.33 - Apresentando-se, no sculo XVII, para Descartes, como exigncia

    do mtodo, a vertente racionalista da modernidade seria prosseguida,

    no sculo XVIII, pelos enciclopedistas, como desejo de sistema universal,para acabar por encontrar nas trs crticas de Kant (da razo pura,

    da razo prtica e da faculdade de julgar) uma das suas mais rigorosas

    elaboraes filosficas Adriano Duarte Rodrigues, Comunicao e

    Cultura, Lisboa, Presena, 1994 p. 14.

    quais devemos abandonar e quais devemos manter; () Elatrar a salvao; como diz Durmasais, ela equivaler parao filsofo ao que a graa para Santo Agostinho: sendoluz, iluminar todo o homem que vier a este mundo.32

    Com a recusa dos fundamentos teolgicos e metafsicose da autoridade das tradies, impe-se a reviso crtica dosconceitos essenciais relativos ao destino do homem e

    organizao da sociedade. A vertente racionalista da rupturamoderna com a experincia tradicional decorre de um idealde autonomizao progressiva da razo individual em relaos razes de natureza transcendente.

    A racionalidade emergente durante o perodo em estudoexpressa-se, geralmente, atravs de trs ncleos filosficosfundamentais: Descartes, os Enciclopedistas e Kant.33

    Com Descartes, o pensamento relacionado com a buscadedutiva do que verdadeiro, isto , claro e evidente. Afilosofia s pode erguer-se sobre fundamentos slidos einamovveis pela dvida, no maneira dos cpticos mascomo mtodo de descoberta da verdade. No se trata de duvi-dar realmente de tudo mas, isso sim, de raciocinar comose duvidasse de tudo, isto , por uma questo de mtodo.

    A observao escrupulosa desta dvida metdica conduziu

    Descartes a uma verdade primeira: o cogito. No Discursodo Mtodo, a razo -nos proposta como uma autoridadede facto e de direito, como um poder que durante sculosfora desconhecido. (...)todo o meu propsito, afirma Descartes,

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    34 - Ren Descartes, Discurso do Mtodo , Lisboa, Publicaes Europa

    Amrica, 1977, p. 46.35 - Condorcet apud Gilles Gaston- Granger, A Razo, Lisboa, Edies

    70, 1985, p. 10.36 - Dumarsais apud Rolan Desn,A Filosofia Francesa no Sculo XVIII

    in Franois Chatelet (org), op. cit.,p. 69.37 - Ibid., p.7 0.38 - Immanuel Kant, Crtica da Razo Pura, Lisboa, Fundao Calouste

    Gulbenkian, 1985, p.7.

    tendia a possuir a certeza, a rejeitar a terra movedia ea areia para encontrar a rocha ou a argila.34

    Para os enciclopedistas, outra das fontes do racionalismomoderno, a razo a luz da inteligncia descobrindo osprincpios naturais do conhecimento certo e da acojusta.35 Os filsofos do racionalismo francs demonstram umaconfiana absoluta na razo e no progresso da humanidadeacompanhada pelo cepticismo, desmo ou materialismo emmatria religiosa. Segundo Dumarsais, o filsofo doIluminismo francs no aparece como autor de tratadostericos, nem como mestre doutrinador de discpulos. Pelocontrrio d o exemplo vivo da liberdade, da independnciae da audcia no exerccio do juzo.36 Assim, ele deve aliar justeza de esprito a destreza e a nitidez, e se elabora umadoutrina, no se liga to fortemente a um sistema que nosinta toda a fora das objeces.37

    Com Kant, a razo debrua-se sobre si mesma, descobrindoos seus limites e propondo um convite dirigido Razopara que empreenda de novo a mais difcil de todas as suastarefas, a do conhecimento de si mesma e para que instituaum tribunal que lhe assegure as suas legtimas pretensese possa simultaneamente condenar as usurpaes sem funda-mento no de maneira arbitrria, mas em nome das suasleis eternas e imutveis. 38 Na Crtica descobre-se a sntese

    entre racionalismo e empirismo e a prioridade dada ao sujeitono acto cognitivo. Refuta-se o cepticismo mas corrige-se,ao mesmo tempo, o racionalismo dogmtico, ao interditar-se

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    39 - Diz Kant: As coisas que intumos no so, seno em si mesmas,

    tal como as intumos () os fenmenos no podem existir em si

    mas unicamente em ns () A natureza dos objectos em si (nmenos)

    permanece inteiramente desconhecida para ns. No conhecemos seno

    o nosso modo de os percepcionar, modo que nos particular, masque pode muito bem no ser necessrio para todos os homens ()

    O que os objectos podem ser em si, no o conheceremos jamais

    Kant, Crtica da Razo Pura, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian,

    1985 p. 97.

    a possibilidade de um conhecimento metafsico do mundonumnico - realidade em si - sobre o qual interdito a razopronunciar-se. Nesse sentido, a razo move-se dentro dasfronteiras da experincia possvel no atingindo, por isso,o icognoscvel. Nesta construo filosfica, a consideraodos limites da razo e o distanciamento em relao ao raciona-lismo dogmtico simultaneamente uma poderosa afirmaode subjectividade. O conceito de razo kantiano rompe comuma concepo dogmtica da Aufklrung - que postula oacordo total do pensamento com o objecto - relativizandoo sujeito, pelo facto de a apreenso do real se fazer atravsdas formas da sensibilidade e das categorias do entendimento;e o objecto que conhecemos para ns, como fenmeno, enunca em si como nmeno.39

    Um dos momentos particularmente interessantes em Kant o pensamento tico, onde o uso da Razo perspectivado

    em funo de um sujeito para quem a liberdade condioda eticidade. Tambm no domnio da razo prtica, Kantdesencadeia uma revoluo coperniciana, colocando o sujeitolivre no centro da problemtica tica e atribuindo-lhe umainteno legisladora: age de tal maneira que a tua mximaindividual possa ser erigida em lei universal. A anlise douso prtico da razo constitui uma afirmao do primadoda pessoa apenas realizvel ao nvel da sua autodestinao

    num horizonte de liberdade. O destino final do ser humanoenquanto ser racional assumir-se claramente como sujeitotico ou seja, atingir a capacidade de sentir respeito pela

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    40 - Alain Touraine,Crtica da Modernidade, Lisboa, Instituto Piaget, 1994,

    p. 36.41 - Kant, Fundamentao da Metafsica dos Costumes, Lisboa, Edies

    70,1995, p. 69.42 - Cfr. Norberto Bobbio, De Hobbes a Marx-Saggi de La Storia della

    Filosofia, Napole, Morano Editore, 1971, p. 7.43 - Cfr. Ibid., p.13.

    lei moral enquanto motivo em si mesmo de livre arbtrio.Para a moral kantiana, o bem a aco conforme a razo,submetendo-se, portanto, lei moral, procura do universalno particular, optando por comportamentos universalistas e,ao mesmo tempo, tomando o homem como fim e no comomeio.40 Nesse sentido, a lei moral impe-se em si mesmaa todos os seres racionais, atravs de um dever que assumea forma de um imperativo categrico, que exclui qualquer

    forma de instrumentalizao do outro: age de tal maneiraque uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na dequalquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nuncacomo meio.41

    5. A Razo, o Estado e a Lei

    O pensamento jurdico dos sculos XVII e XVIII pretende

    construir sistemas a partir da deduo de certos princpios.A expresso mxima desta concepo que a lei deve estarem conformidade com o bem comum, definido pela paz epela preservao da vida individual e colectiva, obtidas atravsdo contrato civil.

    O jusnaturalismo conceber nalguns dos seus autores umateoria implacvel, que em Hobbes se expressa namonopolizao do Direito pelo Estado atravs da eliminaode todas as fontes jurdicas que no sejam a lei, a vontade

    do soberano e os costumes.42 S constitudo o Estado civilatravs de um pacto intersubjectivo, que se pode falar deuma aco justa como sendo aquela conforme lei, que derivada vontade do soberano estabelecida nas condies do pactosocial.43

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    44 - Cfr. Ibid., p.16.45 - Cfr. Maurice Prlot, Histria das Ideias Politicas, , Lisboa, Editorial

    Presena, 1972, vol III, p. 39.

    Hobbes formula o Direito Natural como um complexode princpios e normas de conduta que permitem tomarposio perante o direito positivo para o aprovar oudesaprovar. Assim, deduz a ordem da natureza do ser humanotomado individualmente e funda o estado civil sobre o contratode unio formado pela livre vontade dos sbditos. Porm,o individualismo de Hobbes pessimista e fechado,consagrando uma doutrina do Estado absoluto que revelauma profunda desconfiana na natureza humana. Como possvel o carcter absoluto do Estado se a vontade dosoberano deve tomar em conta a lei natural? Na opinio deBobbio, a explicao do paradoxo reside na especificidadedo conceito hobesiano de razo.44 A razo, em Hobbes, no a faculdade com a qual aprendemos a verdade evidentedos primeiros princpios. Tem um contedo utilitrio efinalista: perscruta o que conveniente ou inconveniente para

    alcanar a paz, concebida como fim supremo pela lei natural.Desta forma, a lei natural aquele ditame da nossa razo

    que sugere ao homem que se quer obter a paz, deve obedecerem tudo lei positiva. Hobbes serve-se do fundamentocontratualista do Estado e da lei natural para, contrariamente maioria dos que perfilam o jusnaturalismo, justificar oEstado Absoluto. A lei natural impe a obedincia absolutaao comando do soberano, independentemente do juzo que

    se faa do contedo desse comando.Os argumentos de Hobbes so retomados por Locke emdefesa da liberdade. O estado de natureza considerado comoum estado de guerra e o contrato social entendido como umaespcie de rendio conduzem ao absolutismo; o estado denatureza considerado como estado de paz e o contrato socialencarado como conveno limitada, condicional e revogvel,podem muito bem conduzir liberdade.45 John Locke fornece

    a justificao terica para a concepo contratual da

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    46 - John Locke, Two Treatises of Civil Government, Londres, 1963, p.185.47 - Jean Jacques Rousseau, O Contrato Social, Lisboa, Europa-Amrica,

    1974, p. 16.48 - Ibid., p. 22.

    monarquia como um acordo limitado e irrevogvel entregovernantes e governados que permita a segurana e aestabilidade jurdicas: uma sociedade constitudaunicamente para preservar e desenvolver os interesses pessoaisde ordem civil.46 Trata-se de um consentimento a umarenncia mnima suficiente por si s para compensar osinconvenientes de um estado de natureza mas sem com issodar origem a um estado de sujeio. Locke formula, quasepor inteiro, a teoria do Estado Liberal: limitao do poderpelo reconhecimento de alguns direitos naturais inalienveis,fundamento consensual do Estado, reconhecimento daseparao de poderes.

    Para Rousseau, a questo que se coloca a preservaoda liberdade na passagem do estado de natureza ao estadocivil. Rousseau considera que a renncia liberdade incompatvel com a natureza do homem e significa retirar

    toda a moralidade s suas aces ()47 A sua teoriapressupe a existncia de um contrato social que constituio fundamento do Estado Soberano e que se reduz na essnciaao seguinte: Cada um de ns pe em comum a sua pessoae todo o seu poder sobre a suprema direco da vontadegeral; e recebemos cada membro com parte indivisvel dotodo.48 Nesse sentido, a liberdade perdura atravs daobedincia mais absoluta ao corpo civil, podendo-se mesmo

    dizer que no existe sem esta submisso. Esta passagem doestado natural ao estado civil substitui no comportamentodo homem o instinto pela justia e d s suas aces amoralidade que lhes faltava antes.

    Finalmente, Kant possui uma concepo do Estado queprivilegia a cidadania. O que necessrio que exista umgrande desgnio da natureza, trabalhando por detrs dohomem. Por isso, enfatiza a necessidade de uma boa

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    49 - Kant,Ideia de uma Histria Universal Com Um Propsito Cosmopolita

    inA Paz Perptua e Outros Opsculos, Lisboa, RBA Editores, 1994,p. 24.

    50 - Ibid., p. 24.51 - Joaquim Gomes Canotilho,Manual de Direito Constitucional, Coimbra,

    Almedina, 1980, pp. 114-115.52 - A substncia essencial do Estado de Direito a previsibilidade da

    conduta do Estado. (Vital Moreira,A Ordem Jurdica do Capitalismo,

    Coimbra, Centelha, 1978, p. 102).

    constituio e do princpio da publicidade como condiopara o progresso poltico. Kant diz explicitamente que omaior problema do gnero humano, a cuja soluo a Naturezao fora, a consecuo de uma sociedade civil que administreo Direito em geral.49 Postula uma sociedade em que sealcance o equilbrio entre a mxima liberdade, porconseguinte o antagonismo universal dos seus membros ea mais exacta determinao e segurana dos limites de tal

    liberdade para que coexista com a liberdade dos outros.50A nova concepo de norma, produzida pelos tericos

    racionalistas e pelos legisladores revolucionrios, corresponde vontade das classes emergentes em emanciparem-se dospoderes intervencionistas do Estado, garantindo uma genera-lidade que permite a latitude de actuao do particular, dentrodos limites do instituto jurdico do contrato. Esta vontadeobrigou a burguesia a lutar pela limitao dos poderes do

    princpe, a exigir a sua participao nos negcios estaduais,a reivindicar a garantia dos direitos fundamentais, especial-mente da liberdade e da propriedade dos cidados.51

    O constitucionalismo racionalista originou o liberalismopoltico, ao qual esto associados as doutrinas dos direitoshumanos e da diviso de poderes; permitiu a formao doliberalismo econmico, criando condies polticas favorveisao desenvolvimento da livre concorrncia, e assegurou a cer-teza jurdica, limitando o poder discricionrio do Estado Abso-

    luto quanto alterao e revogao das Leis e garantindoo minmo de restries aos direitos fundamentais economi-camente relevantes.52

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    53 - Adriano Duarte Rodrigues, Comunicao e Cultura, p. 67.

    O novo Direito elevou ainda a noo de indivduo posio de sujeito central e unificador da nova sociedadeemergente, acentuando o desenvolvimento do sujeitointelectual e economicamente livre, como visvel nasDeclaraes de Direitos. Finalmente, sob o ponto de vistado Direito Privado, a nova ordem jurdica triunfante coma Revoluo Francesa limitou a interveno na vida econmicae consagrou a contratualizao como modelo geral dasociedade.

    6. Racionalidade e subjectividade

    A emergncia do racionalismo tem de ser equacionadacom a erupo de uma nova forma de subjectividade. Ohomem livre de decidir o que verdadeiro ou falso, justoou injusto, belo ou no segundo um critrio que procura

    o fundamento em si mesmo, fora de qualquer casulotradicionalista e teolgico.A problemtica da subjectividade est intimamente

    enraizada no pensamento de Kant e Descartes. Se a verdadedo cogito era algo que se revelava pela sua clareza e distinoe no por raciocnio silogstico, no cremos que seja estultciaatribuir-se a Descartes o merecimento de ter dado um passofundamental na autocompreenso do sujeito da Modernidade.Com efeito, se na modernidade a razo passa a desempenhar

    o papel inquestionado de ponto de fuga da representao,de unificao dos saberes, pela indagao da Natureza, dosmodos de funcionamento do Mundo e pela descoberta dasleis que o regem53 , neste eu pensante que o mundo seperspectiva.

    O imperativo categrico de Kant a ltima consequnciadeste individualismo que quer conferir ao homem uma liber-dade que condio da sua radical eticidade. A tica s

    tem sentido para um sujeito livre. A subjectividade manifesta--se na auto-relao do sujeito que se debrua sobre si mesmopara se compreender como uma imagem reflectida no espelho

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    e se interrogar sobre as suas aces, de acordo com um prin-cpio de absoluta autonomia da vontade.

    Porm, a subjectividade burguesa no se esgota nem nopensamento nem na medida, na definio da verdade e doagir justo. Mescla-se com o primado do sentimento,particularmente relevante, sob o ponto de vista literrio, emBernardin de Saint-Pierre, Jean-Jacques Rosseau, Richardsone no jovem Goethe. neste ltimo que assenta a eclosodo movimento Sturm und Drang, paradoxal concluso doIluminismo centrado mais do que nunca numa subjectividadeforte.

    Finalmente, esta subjectividade no se pode reduzir suaautocompreenso filosfica nem literria. A compreensodeste fenmeno algo que s pode ser apreendido em todaa sua complexidade em torno de questes como a propriedade,a famlia, a escola, a arquitectura das casas, a diviso dos

    quartos, a prtica epistolar, a noo de crime e de pena,a noo de doena e de sade mentais.

    Segundo Habermas, no se pode separar o novo sujeitoracional, o cidado, nem do proprietrio nem do pai de famlia.Enquanto proprietrio individual, torna-se objecto de um con-junto de regulamentaes estatais que resultam da emergnciado Estado Nao e da constituio da Economia Polticamoderna. Ser sujeito portador de crticas e opinies que

    se tornam publicamente relevantes. Enquanto pai ele gereo espao ntimo da pequena famlia, onde se desenvolve umaintimidade projectada nas actividades literrias. A construodo sujeito pressupe um aprofundamento da intimidade quese manifesta na famlia restrita. Esta pressupe, por seu lado,um conjunto de modificaes na prpria estruturaarquitectnica do lar que se traduzem na existncia de ummaior nmero de quartos de dimenso mais reduzida e deum salo que ocupa um lugar central. O quarto o lugarda intimidade. O salo o lugar da recepo em sociedade.Nesse sentido, a separao e a articulao entre a esferapblica e a esfera privada passa pelo meio da casa. O modelohabermasiano escapa s dicotomias fceis da vulgata marxista,pelo reconhecimento das potencialidades normativas do

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    modelo liberal burgus. Nesse sentido, considera, por umlado, a existncia de um sector pblico que compreende oEstado regulamentador e a corte e, por outro, de um sectorprivado que inclui o sector da troca de mercadorias e dotrabalho social e a famlia intma. Ora, a esfera pblicapropriamente dita articula-se com o sector privado, pois ela uma esfera pblica de pessoas privadas.54

    A esfera pblica poltica articula-se com a literria, quefunciona no interior das prprias casas onde a vivncia quoti-diana da intimidade gera a autocompreenso quotidiana dasubjectividade, expressa nos dirios ntimos, na prtica dacorrespondncia privada e na literatura epistolar. No poracaso que a Psicologia uma cincia especificamenteburguesa que surge no sculo XVIII.55

    Porm, as relaes recprocas que se estabelecem socomplexas. Esta emancipao psicolgica est relacionada

    com a independncia econmica, com a constituio do bur-gus proprietrio, pelo que Habermas falar de uma efectivadependncia do sector intmo em relao ao sector privadodo mercado. A autonomia s possvel no mbito de umDireito privado que garanta o direito propriedade. Todavia,esta dependncia no exclui a autenticidade da crena naautonomia da esfera ntima.56 As ideias do livre arbtrio,da comunho de afecto e da formao do sujeito, apesar

    das suas contradies, no podem ser consideradas comosimples ideologia. Elas so tambm uma realidade com umsentido objectivo, sob a forma de uma instituo real, semcuja validade subjectiva a sociedade no teria podido repro-duzir-se.57

    54 - Ibid., p. 46.55 - Ibid., p.44.56 - Jrgen Habermas afirma mesmo que a conscincia da independncia

    pode ser entendida atravs da dependncia efectiva daquele sector

    ntimo em relao ao sector privado de mercado. (Jrgen Habermas,

    op. cit., p. 62 ).57 - Alain Touraine, op. cit., p. 280.

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    7. Publicidade e opinio

    Este sujeito confrontado com uma imensa solidometafsica - sem Deus ou abdicando da sua necessidade -busca outro espao de legitimao medida deste homemcerceado na sua dimenso transcendental.

    No existe esfera pblica moderna sem uma instnciacrtica e legitimadora onde se proceda formulao de umjuzo intersubjectivamente fundado e partilhado por sujeitoslivres e racionais que colocam os assuntos ao debate pblico.Esta instncia a opinio pblica.

    No que respeita opinio pblica podemos identificaralgumas posies tericas relativamente bem delimitadas: naviso racionalista, a opinio pblica corresponde a umprocesso racional de confrontao de juzos e de debatepblico sendo a comprovao resultante de diferentes

    correntes de opinio; uma viso irracionalista suportada porautores como Maquiavel, Locke, Stuart Mill e Vilfredo Pareto,identifica a Voz do Povo como ignorante, egosta, caprichosaou baseada no costume ou em meros preconceitos; aconcepo marxista, ao menos na sua verso mais ortodoxa,considera a opinio pblica como a expresso ideolgica dosvalores da classe dominante; a viso intelectualista, sustentadapor Karl Manheim ou Ortega y Gasset, considera que sos intelectuais ou os aristocratas de esprito podem superar

    as posies particulares e contribuir para a formao de umaviso sintetizadora; uma posio institucionalista, mais recente,identifica a opinio pblica com o Parlamento; o ponto devista funcionalista, consideravelmente enriquecido pelocontributo terico de Niklas Luhmann, concebe a sociedadecomo sistema hipercomplexo, caracterizado pelasuperespecializao funcional onde a opinio pblica,nomeadamente a veiculada pelos mediae pelo parlamento,exercem uma funo de tematizao ou canalizao dadiscusso que conduz reduo da complexidade real;finalmente, a concepo crtica da Escola de Frankfurtapresenta uma viso catastrofista da opinio pblica comoestando merc das tendncias irracionais e consumistas dasociedade de massa.

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    costumes e sobretudo da opinio, parte desconhecida dosnossos polticos mas de que depende o sucesso de todas asoutras.61

    Apesar do seu caracter limitativo da razo de Estado, estaopinio pblica baseada numa espcie de conscinciaconsuetudinria dos povos, no surge de uma discussopblica. A opinio pblica evoluir primeiro para um publicespritsocialmente actuante, crtico do abuso e da corrupomas ainda dependente desses valores de sensatez partilhadospelo povo. S mais tarde, evolui para uma reflexo privadasobre os assuntos polticos, seguida de discusso empreendidapor um pblico esclarecido. Ento passa a ter o significadorigoroso de uma opinio que atravs de uma discusso crticana esfera pblica metamorfoseada em opinio verdadeira. a esta evoluo que Habermas pretende referir-se quandoescreve: Na esfera pblica burguesa, desenvolve-se,

    finalmente, uma conscincia poltica que articula, contra amonarquia absoluta, a concepo e a exigncia das leisenrgicas e abstractas e que, por fim, aprende a autoafirmar--se ou seja a afirmar a opinio pblica como nica fontelegtima das leis.62

    A opinio pblica do iluminismo, tal como vingar naesfera liberal, afirma-se como a opinio formulada nos seiodo debate entre os cidados, autnoma da razo de Estado,

    exercida de forma activa e crtica, e com consequnciascrescentes ao nvel legislativo.

    8. A interaco como elemento constitutivo dos pblicos

    A ideia de interaco entre os participantes emerge nosculo XVIII, no novo conceito de pblico e ir sobrevivernas definies que iro ser dadas desta forma de sociabilidade.

    O pblico passa a ser entendido como forma deagrupamento que se aglutina em funo da controvrsia acerca

    61 - Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 58.62 - Jrgen Habermas, op. cit., p. 71.

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    de um problema de interesse comum. Ao contrrio, fixa--se como ncleo semntico fundamental susceptvel deunificar as diversas definies de massa a ausncia deinteraco e de racionalidade crtica que se traduz numaobedincia a objectivos e a lderes, sem prvio exerccioargumentativo que fundamente essa obedincia e adeso.

    Nos pblicos, a concepo de exerccio dialgico da razo

    perspectivada pelo iluminismo, torna-se constitutiva. Areciprocidade, componente central da interaco, articula-secom a ideia de racionalidade baseada na intercompreensoe partilha de saberes mtuos. Na Aufklrung, a interacocarece ainda de uma partilha de espao que assegura a relaoentre os participantes dos pblicos e entre estes e o mediumcom o qual se relacionam. Constitui-se desta forma umaespcie de topografia do espao pblico visvel nos cafs(especialmente em Inglaterra), nos sales (sobretudo emFrana), nas sociedades eruditas (em especial na Alemanha)e, em parte, em Portugal nas Arcdias.

    Em Frana, os sales tornar-se-o o lugar de debate dasideias enciclopedistas e at de recolha de fundos para a suapublicao como aconteceu comLEsprit des Loise a Enciclo-pdia.

    Em Inglaterra, a divulgao de novas bebidas propcias coloquialidade, e o clima de tolerncia social consolidarama formao dos novos espaos de reunio dos pblicos. Noincio do sculo XVII, j existiam em Londres cerca de 3000cafs. Nestes novos espaos, a intelectualidade emergenteconvive com a aristocracia, permitindo uma divulgao rpidadas polmicas de carcter econmico e poltico. Em muitosdestes casos, os cafs tinham formas ritualizadas de recepodas cartas dirigidas aos jornais o que expressa bem a contigui-dade que existia entre os debates levados a efeito nos locais

    pblicos e as polmicas que se desenrolavam na imprensa.Na Alemanha, os pblicos reunem-se nas Sociedades

    Teutnicas, espaos mais exclusivistas e menos interventivosdo que os seus congneres franceses e britnicos. Devidos condies polticas, este espao de reunio do pblico

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    exclui a publicidade, vendo-se forada a uma poltica desegredo que iluda a atenta perseguio dos agentes policiais.

    Em Portugal, no final do sculo XVII e no sculo XVIII,proliferam as Academias, bastante fecundas no que respeita recepo e expresso do pensamento burgus europeu.Destaquem-se a Academia dos Generosos, a AcademiaPortuguesa, a Academia dos Ocultos e a Arcdia Lusitana,

    uma iniciativa particularmente notvel pelo facto de partirquase exclusivamente de filhos da burguesia em fase de secandidatarem ao funcionalismo judicial.

    As caractersticas mais interessantes destes espaos soo igualitarismo que reina entre os participantes; a ausnciade tabus no que respeita aos assuntos seleccionados paradiscusso; e a abertura essencial no acesso dos pblicos.

    Simultaneamente, aparecem lugares de reunio onde seprocede audincia e crtica de obras de arte por partede todos mesmo dos que no possuem competncia especficapara a produo do juzo esttico. Fundam-se sales, inau--guram-se espaos de representao abertos s camadas popu-lares, realizam-se exposies pblicas. Os compositores epintores emancipam-se das cortes e criam sociedades pblicasde concertos, sales e academias. Pela primeira vez, reune--se um pblico de apreciadores a que qualquer um tinhaacesso desde que preenchesse as condies de formao

    cultural.63

    63 - Em Portugal, durante o reinado de Dom Joo V foi extinto o privilgioque o Hospital- de-Todos-os- Santos detinha sobre a explorao dos

    ptios de comdia. Em 1735 fundado o Teatro da Trindade, eem 1742 cria-se o Teatro dos Condes, lugar onde se expressa a invasodo gosto lisboeta pela pera. A influncia deste gnero musical alargar--se- aos seres da pequena burguesia e ao cancioneiro popular, atravs

    dos bonifrates, teatros de bonecos e literatura de cordel. Em 1755,Dom Jos inaugura o Teatro do Tejo, que se desmoronou com o TerramotoO Porto dispe do do Teatro da Guarda desde 1762 e do Teatro deSo Joo desde 1789. O Teatro de So Carlos , financiado pela alta

    burguesia inaugurado em 1793. Paralelamente, o desenvolvimento

    Jornalismo e espao pblico

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    A interaco passa a ocupar uma posio central na consti-tuio das diversas formas de sociabilidade. A sua presenaou ausncia indispensvel para qualificarmos a forma deracionalidade dominante quer na vida quotidiana quer noespao pblico.

    A preocupao de interargir torna-se uma componenteessencial da discusso sobre a participao no espao pblico

    e tambm acerca das relaes entre os pblicos e os media,enquanto suportes de constituio de uma opinio pblica.Isto , a interaco ganha relevo para a conceptualizaoda esfera pblica e para a compreenso, cada vez mais impor-tante, da funo dos media nesse espao, nomeadamente apropsito de um questionamento cada vez mais urgente dasrelaes entre comunicao e poltica.

    Assim, no espao pblico liberal desenhava-se uma formade pensar a poltica que implicava a busca do compromissocolectivo, fundado numa certa proximidade entre decisorese representados. O conceito de interaco, como veremosa seu tempo, constitui-se como trave central para pensar umadas questes que consideramos privilegiada, para o entendi-mento do espao pblico: a reconciliao entre a vidaquotidiana e a dimenso pblica e poltica do agir humanos.Ou seja, s pela existncia de uma certa forma de interacoque funda uma cidadania activa, as instituies polticas

    democrticas abandonam o seu carcter de fico e de lugardestinado ao exerccio de uma sofstica alheia nossa condiode homens.

    As possibilidades da esfera pblica moderna

    material e cultural da burguesia em fins do sculo XVIII produz novoshbitos de sociabilidade: piqueniques, seres com modinhas brasileiras,

    recitativos ou cantatas alm de outros gneros adequados vivncia

    dos sales burgueses. (Cfr. Antnio Jos Saraiva e scar Lopes, Histria

    da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1988, p. 688).

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    II

    A crtica da esfera pblica moderna

    A autocompreenso do espao pblico moderno implicava

    um dever ser intimamente ligado a uma ideia de progressona evoluo da razo. Apesar das suas evidentes contradies,designadamente ao nvel das excluses que comportava, esteconceito revestia um inegvel sentido normativo. No entanto,nas Cincias Sociais e na Filosofia formou-se uma largatradio que olha com suspeita a modernidade e fala daautodestruio do iluminismo, entendido como razo crtica.Trata-se de uma reaco em face dos processos queacompanharam a concretizao da modernidade, como aurbanizao, a burocratizao, a concentrao econmica ea massificao do consumo.

    As vias seguidas nestas crticas coincidem nalguns pontosessenciais: a dissoluo dos pblicos, a emergncia dasociedade de massae o aparecimento da indstria cultural,o triunfo da racionalidade instrumental e burocrtica, oconstrangimento da subjectividade individual e a crise dacidadania e da opinio pblica. Estas caractersticas no soestanques nem contraditrias: a autonegao do iluminismopressupe a dissoluo dos pblicos em massa, isto emformas de sociabilidade profundamente apticas e submissas,dispostas a interiorizarem a autoridade das instituies epropensas escassez de interaco entre os seus membros.A hegemonia destas formas de sociabilidade implica, porseu turno, a concomitante falncia da opinio pblica enquantoinstncia crtica.

    1. A erupo da massa

    As modificaes verificadas na esfera pblica liberal reme-tem-nos anttese formulada entre pblico e massa. Tratam-se

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    A crtica da esfera pblica moderna

    autmato sem vontade prpria.68 Le Bon menospreza acapacidade racional das massas69 e considera que as ideiasno interior desta forma de sociabilidade s se podero tornardominantes se revestirem uma forma muito simples e se lhesapresentarem representadas sob o aspecto de imagens.70

    Assim, os juzos aceites pelas multides so sempre impostose nunca discutidos.71

    Hannah Arendt, por sua vez, articula o conceito de normali-zao com o de massificao: () com a emergncia dasociedade de massas o reino do social finalmente alcanouo ponto em que ele abarca e controla todos os membrosde uma comunidade igualmente e com a mesma fora.72

    Arendt refere a tendncia atomizao, com o desapareci-mento de todos os laos significativos entre os homens ea solido e a vulnerabilidade dos indivduos no que respeita adeso a movimentos totalitrios.73 Grande nmero de

    pessoas, juntas em multides, desenvolvem uma inclinaoquase irresistvel para o despotismo, seja este despotismode uma s pessoa ou de uma larga maioria()74

    Ao invs, o pblico, na tradio do pensamento social,usufruiu sempre de uma conotao menos negativa do quea atribuda ao conceito de massa. Gabriel Tarde, em OPblico e a Multido, revela uma arguta percepo do quese entende por pblico. Apesar de considerar os pblicosum progresso na tolerncia e at na racionalidade, Tarde parecepressentir o aparecimento de diversas formas de manipulao

    68 - Ibid., p. 32.69 - A propsito afirma: os argumentos que utilizam e os que sob