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Ser negro no Brasil RAÇA E RELIGIÃO Reginaldo Prandi JULHO DE 1995 113 RESUMO O Brasil conta com rico patrimônio de religiões de origem africana. Em que medida as populações negras são seguidoras destas religiões e em que medida estão presentes nas religiões de origem européia e norte-americana? Como a população branca adere às chamadas religiões negras? São as perguntas centrais deste artigo. Na busca de sentido sociológico para a temática da cor e das religiões, são discutidas questões sobre identidade, sincretismo religioso e integração do negro na sociedade nacional, no curso histórico que viu o nascimento e as transformações das religiões afro-brasileiras, e a prosperidade de suas principais rivais, as religiões pentecostais. Palavras-chave: raça e religião; cor e religião; religiões negras; movimentos negros; sincretis- mo; religiões no Brasil. SUMMARY Religions of African origin provide a rich heritage for Brazil. To what extent do Brazilian blacks take part in these religions, and to what extent are they involved in religions of European and American origins? In what ways do whites join the so-called black religions? These are the central issues discussed in the article. In seeking a sociological meaning for the questions of color and religion, the author discusses identity, religious sincretism and the integration of blacks in national society, in a historical perspective covering the birth and transformations of Afro- Brazilian religions as well as the prosperity of their main rivais, the Pentecostal cults. Keywords: Afro-Brazilian religions; Pentecostalism; sincretism; blacks in Brazil. O Brasil está longe de ser uma democracia racial, em que brancos, negros e gentes de outras origens pudessem ter as mesmas oportunidades sociais, embora goste de se ver e mostrar como país sem preconceito e sem discriminação racial (Fernandes, 1965; Hasenbalg & Silva, 1993). Como a imensa maioria dos negros está imersa na maioria pobre da população, confunde-se negritude com pobreza, quando não se justifica a condição de pobre como decorrência da própria condição negra. Vive-se uma "cultura de miscigenação", em que as múltiplas modalidades de classificação racial ou de cor têm contornos frouxos e sutis, às vezes flexíveis. Brancos, claros, morenos, pardos, pretos, mestiços, negros, cafuzos, escuros, nnnnnnnn

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  • Ser negro no Brasil

    RAA E RELIGIO

    Reginaldo Prandi

    JULHO DE 1995 113

    RESUMO O Brasil conta com rico patrimnio de religies de origem africana. Em que medida as populaes negras so seguidoras destas religies e em que medida esto presentes nas religies de origem europia e norte-americana? Como a populao branca adere s chamadas religies negras? So as perguntas centrais deste artigo. Na busca de sentido sociolgico para a temtica da cor e das religies, so discutidas questes sobre identidade, sincretismo religioso e integrao do negro na sociedade nacional, no curso histrico que viu o nascimento e as transformaes das religies afro-brasileiras, e a prosperidade de suas principais rivais, as religies pentecostais. Palavras-chave: raa e religio; cor e religio; religies negras; movimentos negros; sincretis- mo; religies no Brasil.

    SUMMARY Religions of African origin provide a rich heritage for Brazil. To what extent do Brazilian blacks take part in these religions, and to what extent are they involved in religions of European and American origins? In what ways do whites join the so-called black religions? These are the central issues discussed in the article. In seeking a sociological meaning for the questions of color and religion, the author discusses identity, religious sincretism and the integration of blacks in national society, in a historical perspective covering the birth and transformations of Afro- Brazilian religions as well as the prosperity of their main rivais, the Pentecostal cults. Keywords: Afro-Brazilian religions; Pentecostalism; sincretism; blacks in Brazil.

    O Brasil est longe de ser uma democracia racial, em que brancos, negros e gentes de outras origens pudessem ter as mesmas oportunidades sociais, embora goste de se ver e mostrar como pas sem preconceito e sem discriminao racial (Fernandes, 1965; Hasenbalg & Silva, 1993). Como a imensa maioria dos negros est imersa na maioria pobre da populao, confunde-se negritude com pobreza, quando no se justifica a condio de pobre como decorrncia da prpria condio negra. Vive-se uma "cultura de miscigenao", em que as mltiplas modalidades de classificao racial ou de cor tm contornos frouxos e sutis, s vezes flexveis. Brancos, claros, morenos, pardos, pretos, mestios, negros, cafuzos, escuros, nnnnnnnn

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    mulatos, numa pluralidade racial, em que tambm se inserem os amarelos orientais e os ndios e caboclos, e todos o seus diminutivos, podendo-se escurecer e embranquecer os indivduos em funo de posies sociais alcanadas por eles ou em virtude de sua origem familiar. Ser negro no Brasil depende certamente da herana gentica africana, mas a expresso da base biolgica, por assim dizer, reconhecida e diferentemente classificada a partir de uma srie de circunstncias sociais, culturais e regionais.

    Se, de um lado, isto demonstra o carter elstico das formas de discriminao racial no Brasil, de outro, revela um mecanismo de disfarce que vale tanto para mudar a categoria classificatria de um indivduo em funo de sua posio social, quanto para camuflar o preconceito e a discriminao e seus operadores sociais. A flexibilidade classificatria dificulta de certa forma a construo de identidades e o alcance de conscincia que permita enxergar as questes raciais de uma perspec- tiva coletiva capaz de negar a armadilha da percepo da diferena de cor como questo individual: difcil saber quem o qu; difcil assumir-se como grupo com dificuldades, interesses e possibilidades comuns. O quadro se complica quando outros vetores, na origem claramente cruzados com o problema da raa, emergem no panorama do preconceito na forma de preconceito de origem regional, que o preconceito contra os baianos, os nortistas, os nordestinos vistos no Sudeste. Estes, em boa medida so, igualmente, de alguma origem africana, isto , pertencem a alguma modalidade da escorregadia escala brasileira de negritude, e so portado- res, ipso facto, daquilo que a cultura branca dominante segue imaginando serem os caractersticos raciais atvicos e perversos dos descendentes de negros africanos escravizados, como pensava a cincia erudita do final do sculo XIX e comeo deste1 (Schwarcz, 1993). Ao que se junta o preconceito contra as religies afro- brasileiras, que tanto pode ser preconceito do branco como do negro, preconceito to elaborado que, no prprio interior dos cultos de origem negra, no seio da sociedade urbana e industrial em formao e certamente por causa dela, instituram- se mecanismos de apagamento de traos rituais reveladores da origem africana (Ortiz, 1978). Dcadas mais tarde, o preconceito contra religies afro-brasileiras entraria para a receita do sucesso de religies evanglicas formadas no Brasil, que se propagam por muitos pases do mundo, e que usam deuses, santos e entidades das religies nascidas negras para publicizar a presena do demnio, enxovalh-lo e enxot-lo, no exerccio exorcista da vitria do bem sobre o mal. Mal que se manifesta, segundo este neopentecostalismo, na experincia religiosa da herana africana e que s a religio do bem pode afastar.

    Ainda que seja difcil estabelecer com preciso alguma fronteira entre quem o branco e quem o negro no Brasil, descrever um negro, segundo o sentimento inscrito nos esteretipos raciais do nosso dia-a-dia, fcil: negros so preguiosos, sujos, fedorentos, metidos, despudorados, ignorantes, macumbeiros. Migrantes, so ainda beberres, malandros e bandidos, cafetes e prostitutas. So as domsticas que se entregam luxria dos meninos de famlia. Gente desbocada e interessada no prazer, na dana maliciosa dos sales, avenidas, sambdromos e candombls. Gente que gasta o dinheiro da difcil sobrevivncia "pra fazer a fantasia", que faz de tudo para manter o luxo de seus deuses africanos, reiterando uma predisposio de ostentao e mau gosto. E mentem, sempre. Pobres porque preguiosos e ignorantes, amontoam-se nas favelas e nos cortios, vivendo do trfico de drogas, do jogo do bicho, do pequeno e do grande crime. Personagens de uma tragdia social, que em grande parte absolutamente real, ns poderamos descrev-los nestes versos de "O rancho da goiabada" de Joo Bosco e Aldir Blanc: "[...] so pais- n

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    (1) Em 1889, o mdico Nina Rodrigues, num artigo conclu- sivo sobre a inadequao ra- cial do negro baiano frente civilizao branca, proclama- va que "os estados de santo dos frico-baianos no so mais do que manifestaes do sonambulismo histrico. [...] Continuar a afirmar [...] que os negros baianos so catlicos e que tem xito no Brasil a tenta- tiva de converso, , portanto, alimentar uma iluso que pode ser cara aos bons intuitos de quem tinha interesse de que as coisas se tivessem passado as- sim" (Rodrigues, 1935, p. 199).

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    de-santo, paus-de-arara, so passistas/ so flagelados, so pingentes, balconistas/ palhaos, marcianos, canibais, lrios pirados/ danando dormindo de olhos abertos sombra da alegoria/ dos faras embalsamados".

    O branco pobre poder tambm ser quase tudo isso, mas o ser pelo fato de ser pobre. O negro pobre j assim pelo fato de ser negro. A distino que se faz no Brasil entre negros e brancos depende mais da presena de traos fenotpicos que da origem racial propriamente, dando-se aqui o que Oracy Nogueira chamou de preconceito de marca, em contraposio com o preconceito de origem, como nos Estados Unidos, onde, ao contrrio da pluralidade racial brasileira, formou-se uma cultura segregacionista bi-racial (Skidmore, 1992). Aqui, um degrau acima na escala de mobilidade social pode ser suficiente para apagar essas "marcas", num processo de "branqueamento" social que os brasileiros conhecem bem. Como esta possibilidade do branqueamento pela ascenso social se processa individualmente, os movimentos de afirmao racial e identidade negra de carter coletivo so frgeis entre ns2.

    Essa face maldefinida, s vezes definida num disfarce, que se mostra na complexidade dos mecanismos de identidade racial, ou de cor, no se limita ao plano dos indivduos. Est tambm em instituies, modela-as e as faz, por vezes, se reconstrurem, construindo para uma cultura brasileira, genrica e racialmente descolorida, instituies universalizadas, isto , de todos, sem limites de raa, cor, geografia, extrao social. Se uma instituio, como uma religio de orixs, ou a escola de samba, o prprio samba, tem uma origem negra necessria, essa origem h muito deixou de caracterizar necessariamente para seus participantes, produto- res e consumidores a marca da cor, que pode, em determinadas circunstncias, ser rememorada como fonte de legitimidade pela origem. O que no significa querer voltar a esta origem tal como ela era ento.

    (2) "O preconceito de cor ou de marca racial, em contradis- tino ao preconceito racial de origem, implica a idia de pre- terio e, portanto, por defini- o, na possibilidade de serem os seus efeitos atenuados, con- trabalanados ou agravados pela presena ou ausncia de outros caractersticos pessoais ou sociais." (Nogueira, 1955, p. 546)

    As religies negras e o sincretismo como identidade brasileira

    A presena do negro na formao social do Brasil foi decisiva para dotar a cultura brasileira dum patrimnio mgico-religioso, desdobrado em inmeras instituies e dimenses materiais e simblicas, sagradas e profanas, de enorme importncia para a identidade do pas e de sua civilizao. No que diz respeito religio especificamente, os cultos trazidos pelos africanos deram origem a uma variedade de manifestaes que aqui encontraram conformao especfica, atravs de uma multiplicidade sincrtica resultante do contato das religies dos negros com o catolicismo do branco, mediado ou propiciado pelas relaes sociais assimtricas existentes entre eles, tambm com as religies indgenas e bem mais tarde, mas no menos significativamente, com o espiritismo kardecista.

    Desde sua formao em solo brasileiro, as religies de origem negra tm sido tributrias do catolicismo. Embora o negro, escravo ou liberto, tenha sido capaz de manter no Brasil dos sculos XVIII e XIX, e at hoje, muito de suas tradies religiosas, fato que sua religio enfrentou-se desde logo com uma sria contradio: as prprias estruturas social e familiar s quais a religio dava sentido aqui nunca se reproduziram. As religies dos bantos, iorubs e fons so religies de culto aos ancestrais, que se fundam nas famlias e suas linhagens.

    O tecido social do negro escravo nada tinha a ver com famlia, grupos e estratos sociais dos africanos nas suas origens. Assim, a religio negra s parcial- nnnn

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    mente pde se reproduzir aqui. A parte ritual da religio original mais importante para a vida cotidiana, constituda no culto aos antepassados familiares e da aldeia, pouco se refez, pois a famlia se perdeu, a tribo se perdeu. Na frica, era o ancestral do povoado (egungum) que cuidava da ordem do grupo, resolvendo os conflitos e punindo os transgressores que punham em risco o equilbrio coletivo. Quando as estruturas sociais foram dissolvidas pela escravido, os antepassados perderam seu lugar privilegiado no culto. Sobreviveram marginalmente no novo contexto social e ritual. As divindades mais diretamente ligadas s foras da natureza, mais diretamente envolvidas na manipulao mgica do mundo, mais presentes na construo da identidade da pessoa, os orixs, divindades de culto genrico, estas sim vieram a ocupar o centro da nova religio negra em territrio brasileiro. Pois que sentido poderia fazer o controle da vida social para o negro escravo? Fora de suas assemblias religiosas, era o catolicismo do senhor a nica fonte possvel de ligao com o mundo coletivo projetado para fora do trabalho escravo e da senzala.

    Se a religio negra, ainda que em sua reconstruo fragmentada, era capaz de dotar o negro de uma identidade negra, africana, de origem, que recuperava ritualmente a famlia, a tribo e a cidade perdidas para sempre na dispora, era atravs do catolicismo, contudo, que ele podia se encontrar e se mover no mundo real do dia-a-dia, na sociedade dos brancos dominadores, responsvel pela garantia da sua existncia, no importa em que condies de privao e dor. Qualquer tentativa de superao da condio escrava, como realidade ou como herana histrica, implicava primeiro a necessria incluso no mundo branco. E logo passava a significar o imperativo de ser, sentir-se e parecer brasileiro. Nunca puderam ser brasileiros sem ser catlicos. Podiam preservar suas crenas no estrito limite dos grupos familiares, muitas vezes reproduzindo simbolicamente a famlia e os laos familiares atravs da congregao religiosa, da a origem dos terreiros e das famlias-de-santo. Mas a insero no espao maior exigia uma identidade nacional, por assim dizer, uma identidade que refletisse o conjunto geral da sociedade catlica em expanso. O fim da escravido, a formao da sociedade nacional, o extravasamento das populaes pelas amplitudes geogrficas, com a criao de possibilidades as mais diferentes, tudo isso s fez reforar a importncia do catolicismo para as populaes negras. O prprio catolicismo, como cultura de incluso, hegemnica, no fez oposies, que no pudessem ser vencidas, ao fato de o negro manter uma dupla ligao religiosa. Pois em So Lus, talvez o mais vivo e denso centro cultural dos sincretismos afro-catlicos, no so apenas os devotos das religies negras que so tambm catlicos; catlicas tambm so consideradas pelos seus fiis as prprias divindades trazidas da frica (Ferretti, 1995). As religies afro-brasileiras, em suas origens, sempre foram devedoras e dependentes do catolicismo, ideolgica e ritualmente. S muito recentemente quando a sociedade brasileira no precisa mais do catolicismo como a grande e nica fonte de transcendncia que possa legitim-la e fornecer os controles valorativos da vida social , as religies de origem negra comearam a se desligar do catolicismo. Mas isto um projeto de mudana de identidade que mal comeou e que exige, antes, outras experincia de situar-se no mundo com mais liberdade e direitos de pertencimento.

    Desobrigadas, desde o nascimento, das questes referentes administrao da justia que pressupe princpios universalistas e pactos coletivos acima dos desejos individuais, dado que isto era domnio exclusivo da religio geral da sociedade geral, isto , o catolicismo; desinteressadas de contedos formadores da pessoa para o mundo profano, porque o modelo aqui branco; alimentando o culto nn

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    de deuses que se exteriorizam e se expressam especialmente atravs da forma; no sem razo que as religies afro-brasileiras desenvolveram um enorme senso ritual presidido por inigualvel senso esttico, capaz de transbordar os limites do sagrado para se impregnar nas expresses mais profanas que modelam a identidade nacional. Ser brasileiro agora ser do samba, do "camaro ensopadinho com chuchu", do carnaval de avenida que tudo afro-brasileiro e nada absolutamen- te religioso. Os elementos da religio tradicional, ao serem assimilados pela cultura nacional deixam de ser religiosos para serem simplesmente exticos. E mesmo quando contedos religiosos, nessas circunstncias, so mantidos por seus cultores, como o eb para Exu que abre o desfile da grande escola de samba de prestgio universal, isto no tem nenhuma importncia para a sociedade. Este eb, certamen- te, privativo de um grupo que busca firmar sua identidade religiosa singular, no se publiciza a no ser como ingrediente esttico.

    As religies negras no mundo dos brancos

    De modo bastante resumido, podemos identificar duas matrizes africanas bsicas que jogaram papel decisivo na formao das religies negras no Brasil: sudaneses e bantos. Ambas as tradies, cada uma contemplando uma multiplici- dade de variantes, tm em comum princpios fundantes bem definidos: o polites- mo e a concepo de que os deuses so privativos de indivduos e grupos, os deuses como mediao das foras da natureza, o contato com a divindade atravs do transe, a decifrao do destino pelo orculo, o culto ancestralidade e o favorecimento dos deuses pelo sacrifcio ritual.

    Dos povos sudaneses, a herana mais importante veio dos grupos de fala iorub, cujos deuses, denominados orixs, so bastante referidos na cultura brasileira contempornea, mesmo profana, oferecendo artifcios de expresso muito consumidos. Formas rituais, concepes mticas e o panteo iorubano, ou nag, tornaram-se absolutamente predominantes no Brasil e no conjunto das religies negras. Os ew-fons (ou jejes), povos vizinhos dos iorubs, com os quais estes, j na frica, encontravam-se em contato cultural de influncias recprocas, trouxeram a religio dos voduns, divindades pouco conhecidas hoje no Brasil como um todo, mas que sobreviveram minoritariamente na Bahia e se mantm muito significativas no Maranho. O culto dos voduns (jejes) mesclou-se com o dos orixs (nags), sendo responsvel por decisiva contribuio no mbito da organizao ritual da religio que aqui foi se fundindo. A religio dos orixs foi originalmente chamada candombl na Bahia, xang no Recife e Alagoas, tambor de mina nag no Maranho e Par, batuque no Rio Grande do Sul. A partir dos anos 60, o termo candombl generalizou-se.

    As etnias de origem banto, para c trazidas muito antes dos nags e dos jejes, tambm trouxeram sua religio, mas perderam seus deuses, os inquices, divindades que no Brasil no lograram romper sua ligao com o solo geogrfico africano, onde esto fixados. O nico inquice que sobreviveu em solo brasileiro chamado Tempo e associado noo de tempo cronolgico e atmosfrico, contnuo e cclico. Mas os negros bantos recriaram um panteo prprio em terras brasileiras, adotando como objeto de culto os assim considerados ancestrais desta Terra de Santa Cruz, os ndios, os primeiros senhores do lugar, os antepassados verdadeiros, pois. Nasceu da, na Bahia, o candombl de caboclo, que mais tarde foi incorporado nn

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    inclusive maioria das variantes dos candombls iorubanos, tendo o caboclo adquirido tambm enorme importncia no tambor de mina do Maranho, onde seu status de entidade religiosa praticamente est num patamar equivalente ao do vodum africano.

    Os candombls bantos, contudo, no cultuam apenas os caboclos: eles adotaram tambm os orixs dos iorubs. Por volta dos anos 30, incorporaram o orculo de dezesseis bzios e outras frmulas rituais nags, embora tenham mantido uma lngua ritual prpria, de origem banto, sobretudo das etnias quicongo e quimbundo, hoje to intraduzvel como as lnguas rituais que se originaram do iorub e do ew-fon. Este culto a orixs que so invocados com nomes de inquices hoje referido e auto-referido como candombl angola. Muito expressivamente, os caboclos ganharam como lngua ritual o portugus; numa espcie de proto- umbanda3.

    Por muito tempo as religies negras estiveram restritas a grupos negros e mestios, quase que confinadas naquelas regies do Pas onde s tardiamente o desenvolvimento da sociedade de classe diluiu, escondeu ou apagou o sentido da identidade racial, desarticulando a especificidade dos grupos de cor, sobretudo em vista de sua integrao no mercado de trabalho nacional4.

    Junto aos candombls, o catolicismo do senhor branco era e continua sendo vivido como a face branca, nem antagnica nem contraditria, da religio dos antigos africanos. Um simples porm eficaz sistema de equivalncias e justaposi- es entre as religies negras e o catolicismo ibrico de preferncias devocionais a uma infinidade de santos quase hevemricos na concepo popular (o que o protestantismo, fosse o caso, no propiciaria) logo se formou. Apesar da intransi- gncia e perseguio do branco aos candombls, perseguio violenta at h poucos anos, o negro pde por muito tempo ter seus prprios deuses, sendo assim africano, e ser catlico, sendo assim brasileiro.

    O negros que se incorporaram ao movimento de formao das religies afro- brasileiras, ao longo do tempo, foram sempre minoria, contudo. A maior parte dos descendentes dos antigos escravos deixou os velhos deuses africanos para trs, aderindo sociedade do branco, munida unicamente da religio do branco.

    Nas primeiras dcadas deste sculo, as novas grandes cidades do Sudeste se formaram com o surgimento de grandes contingentes de um proletariado pobre, sendo o negro pouco a pouco incorporado ao mercado de trabalho livre, ainda que em condies de inferioridade em relao ao branco recm-chegado da Europa para as ocupaes industriais que se desenhavam. O negro empregado, em geral, nas ocupaes mais ligadas aos setores de servio pessoal ou s atividades manuais no qualificadas, freqentemente em posio formalmente marginal nos bolses informais associados ao mercado de fora de trabalho (Prandi, 1977). Estas cidades em profunda transformao viram tambm nascer, crescer e se espalhar pelo Brasil todo uma nova religio, a umbanda. Os anos que vo de 1920 a 1950 definem o perodo em que se gestou a feio moderna do que viria a ser o Brasil que conhecemos hoje. O desfecho do processso de integrao e excluso que marca a histria do negro no Brasil, e depois do neto do europeu que sonhou com a Amrica, foi se delineando neste perodo. A sociedade de classes estava em formao, a populao era intensivamente redistribuda atravs do Pas, novos centros de hegemonia econmica iam se formando, o Estado buscava de toda maneira encontrar um modelo de eficincia burocrtica, ampliando seus limites de atuao para substituir antigos mecanismos patrimoniais de bem-estar por institui- es impessoais. O Brasil ia deixando de ser uma economia agrria para se nnnnnnnnn

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    (3) Em outro trabalho (Prandi, 1991) ofereo com pormenor uma melhor reconstituio des- te processo, as variantes tni- cas de sua formao, suas me- tamorfoses e minha interpreta- o sociolgica do processo. A meu ver, uma bibliografia bas- tante suficiente sobre essas re- ligies pode ser encontrada neste livro.

    (4) Alm das formas afro-bra- sileiras mais conhecidas, h um grupo de religies de carter muito regional que parecem mais associadas a religies in- dgenas, das quais herdaram o uso ritual do tabaco e a forma cabocla das entidades, mas que se constituram sobretudo com base em estruturas e compo- nentes rituais africanos, com traos catlicos e espritas, como o caso da jurema, ca- timb, pajelana, cura, baba- u. (Prandi, 1991; Ferretti, 1994).

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    industrializar; a sociedade rural, rstica, tradicional se preparava para a modernida- de. A diferena que segregava, que marginalizava, devia ceder lugar a categorias diferenciadas que pudessem compor um todo orgnico. O singular precisava universalizar-se para sobreviver.

    Esse processo, que transformava o negro em pobre, juntou o pobre negro com o pobre branco numa mesma categoria. No espao sem identidade da grande cidade que ento apenas se desenhava, aglomerava-se uma populao cujas referncias originais tinham sido estilhaadas pelas mudanas em curso, fossem eles negros ou brancos, ou fossem ainda "misturados", como os tm sonhado as ideologias brasileiras dos morenismos e do branqueamento da raa.

    Nesta inflexo estrutural da sociedade brasileira, a umbanda surgiu como uma redefinio de origens, smbolos e desideratos. Suas fontes esto na conflun- cia dos candombls de caboclo e de angola, via pela qual herdou os orixs como cabeas de falanges de espritos desencarnados de velhos ndios e antigos escravos, com o kardecismo, com o qual aprendeu no s a lidar com a concepo do karma de herana hindu, mas tambm com uma concepo tica da expresso religiosa crist e com a idia de progresso (material, intelectual e espiritual) alcanvel pela experincia religiosa porm racional (Camargo, 1961; Prandi, 1991).

    Os pontos bsicos fundantes da umbanda poderiam assim ser enumerados: interesse pela tica crist; constituio de um panteo africano e amerndio; concepo de mundo mgico porm salvacionista; valorizao do outro desconhe- cido atravs da prtica da caridade; idealizao do cdigo escrito como testemunho do valor do exerccio intelectual. A estes itens depois se agregaram contedos esotricos, uma mitologia de origem e a concepo (j kardecista) de religio tambm como servio mgico-religioso, que ensejou a constituio da categoria dos clientes distinta da categoria dos fiis. Ampliou-se tambm o espectro "racial" e "nacional" do panteo. A partir deste ncleo, o resto so variaes: com dana ou sem dana, com atabaque ou sem atabaque, com sacrifcio de sangue ou sem sacrifcio de sangue.

    O Brasil se converteu nestes anos 50 e desde ento. A umbanda a religio brasileira agora sim somos todos iguais, sem distino de origem, sem distino de marca. Somos europeus, africanos, indgenas, turcos, ciganos. Somos cristos e espritas. Acreditamos nos santos catlicos e nos orixs. Atendemos aos sacramen- tos da Igreja e nos consultamos com os caboclos. Somos instrudos, porque agora sim lemos e escrevemos muito sobre a religio, e no nos importamos em deixar um outro ego apropriar-se temporariamente de nossa conscincia na vivncia do transe. Na luta pela vida, construmos uma religio que nos dar sempre o impulso para vencer a contenda do dia-a-dia, o apelo constante vitria e o alento permanente realizao pessoal. No s: com a magia legitimada por sua institucionalizao religiosa pode-se avanar mais e mais.

    A umbanda guardou do candombl quase tudo, embora escondesse alguma coisa. Ela no , contudo, uma religio negra nem uma religio de negros. uma religio de pobres e de indivduos das classes mdias baixas, brancos e negros. A umbanda uma religio voltada para a maioria, enfim. Chega de segregao. Mas a maioria negra, que faz parte da maioria pobre, continua catlica. Parte dela, desacreditada do catolicismo, vai encontrar outras alternativas para o sentido da vida. As denominaes pentecostais proliferam a olhos vistos: para brancos e para negros, no importa; o que importa que seja para os pobres.

    Para o brasileiro que busca uma religio, o leque de possibilidades vai se ampliando. Mesmo o antigo candombl, durante tanto tempo uma religio de nnnnnnn

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    preservao de patrimnio cultural especfico do negro, foi se constituindo em religio para todos, buscando agora se espalhar pelas grandes metrpoles do pas, conquistando espao no Sudeste, onde, antes dos anos 60, era apenas uma referncia cultural para quem voltava os olhos curiosos na direo da Bahia. Este candombl refora a africanidade de segmentos da umbanda, impe-se, a partir dos anos 60, como o trao cultural brasileiro ao qual a criatividade pode recorrer sempre, quer se trate da novela nobre da televiso, da msica de bom tom das escolarizadas classes mdias, do cinema de arte, da obra de arte que aspira eternidade. Como trao cultural, se dispe para o brasileiro como chave para o bem e para o mal. Quando estas religies de origem africana, mesmo em se tratando das mais "branqueadas" modalidades da umbanda, so encaradas pelo outro como fonte do mal, expresso do indesejvel, veculo da perdio, a ento sim a referncia origem negra imediata. Diz o preconceito que tudo que do negro no presta, ainda mais quando se trata de uma religio, de uma falsa religio, diro eles, de magia, macumba e magia negra.

    Algumas denominaes pentecostais de origem muito recente e grande sucesso junto s massas, como a Igreja Universal do Reino de Deus, Deus Amor e A Casa da Beno, atraem boa parte de sua clientela pregando contra a umbanda e o candombl, identificados como fontes do mal. Para esse pentecostalismo, o contraponto com as religies afro-brasileiras chega a ser constitutivo. Na prpria histria recente do pentecostalismo no Brasil possvel identificar trs "etapas": as primeiras igrejas tiveram sua nfase no dom de se falar em lnguas estranhas (glossolalia), que revive o episdio bblico do Pentecostes, quando Deus apareceu aos apstolos em lnguas de fogo; surgem depois as igrejas que enfatizam o dom da cura; e numa etapa mais recente, as igrejas que pregam um nova teologia que redime religiosamente o dinheiro e centra o foco ritual no exorcismo dos demnios, identificados e nomeados como as divindades e entidades afro-brasileiras: orixs, caboclos, pombagiras, exus. O conflito entre pentecostais e afro-brasileiros aberto e mesmo incentivado por lideranas pentecostais. Em seus templos e atravs de seus programas na televiso, pode-se ver, atravs de incorporaes no transe, orixs e caboclo mostrados como manifestaes do diabo; transe afro-brasileiro que metamorfoseado no transe pentecostal do Esprito Santo, a presena de Deus (Mariano, 1995).

    As religies e a cor de seus fiis

    A partir de dados amostrais de mbito nacional, coletados pelo Datafolha por ocasio da campanha eleitoral para a Presidncia da Repblica em 1994, podemos traar um quadro bastante esclarecedor sobre a composio por cor dos vrios segmentos religiosos no Pas e que corroboram muitas das afirmaes aqui apresentadas5. O universo desta pesquisa constitudo do colgio eleitoral brasileiro, no incluindo, portanto, menores de dezesseis anos, indivduos de dezesseis a dezoito anos que optaram por no se inscrever como eleitores, e analfabetos e septuagenrios que tambm preferiram no se inscrever. Contudo, a obrigatoriedade do voto para a grande maioria da populao e a valorizao do ttulo de eleitor em nossa sociedade fazem com que praticamente 90% de toda a populao para quem o voto obrigatrio ou facultativo estejam inscritos no colgio eleitoral, fazendo com que nossa amostra se aproxime bastante adequada- nnn

    (5) Agradeo a Antnio Manuel Teixeira Mendes, diretor do Datafolha, por ter aceito en- tusiasticamente minha idia de inserir questes sobre religio e cor em pesquisas eleitorais de 1994, propiciando a pro- duo dos dados aqui traba- lhados.

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  • REGINALDO PRANDI

    mente daquela que seria uma amostra da populao jovem e adulta do Pas, que o que interessa quando se trata de medir filiao religiosa (Berqu & Alencastro).

    Para efeito de organizao dos dados estou considerando os seguintes grupos religiosos: catlicos, evanglicos, espritas kardecistas, afro-brasileiros, alm de outras religies no includas nas categorias precedentes e do grupo formado por aqueles que se declaram sem religio. Vejamos inicialmente as principais denomi- naes e ramos que compem estes grupos e seu alcance demogrfico traduzido em nmero de fiis6.

    A religio catlica sempre foi majoritria e hegemnica no Brasil. Rene ainda hoje trs quartos da populao adulta pesquisada (74,9%). Dentre os catlicos, a maioria ainda constituda daqueles que aqui vamos chamar de catlicos tradicionais, reunindo tanto os que freqentam a igreja esporadicamente como os que tm freqncia regular mas no se envolvem em movimentos de renovao ou agremiaes de enquadramento que propem diferentes modelos de reavivamento da vida catlica. Representam 6l,4% do total. O Nordeste ainda a regio mais catlica do pas. L eles ultrapassam os 80%. A segunda regio mais catlica o Sul, com 78,4%, o que no deixa de surpreender, visto que a presena do protestantismo de imigrao no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina e o dinamismo do pentecostalismo evanglico no Paran faziam supor "descatoliciza- o" mais acelerada da regio. J as grandes capitais do Sudeste, como So Paulo e Rio de Janeiro, vem bem mais rarefeita a populao catlica, cujos totais caem para 65,2% e 59,3%, respectivamente. Nmero tambm reduzido de catlicos se constata em Salvador, onde no chegam a dois teros da populao (65,3%) e onde os catlicos tradicionais so apenas 56,4%, pouco mais da metade. A capital brasileira menos catlica hoje o Rio; depois vem So Paulo, depois Salvador.

    Se a maioria catlica formada de catlicos tradicionais, h por outro lado uma grande fatia de 13,5% dos brasileiros que vivem o catolicismo a partir de reorientao pessoal por uma das diferentes modalidades de internalizao ou engajamento religioso. So os catlicos das Comunidades Eclesiais de Base, do Movimento de Renovao Carismtica, das Equipes de Nossa Senhora, dos Encontros de Casais com Cristo, dos Grupos de Jovens, da Comunho e Liberao e um sem-nmero de movimentos e associaes de carter regional e local, de pastorais coletivas e de organizaes de culto, como as congregaes marianas e o apostolado da orao. Deste leque interessam-nos sobretudo dois movimentos.

    As Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs, movimento formado no curso dos anos 60 at os 70 e hoje em aparente declnio, renem ainda 1,8% do total, perto de dois milhes de brasileiros. Caracterizam-se por valorizao da vivncia religiosa que enfatiza os interesses coletivos das classes sociais desfavorecidas, a famosa "opo pelos pobres". Acreditam na participao militante dos catlicos no mundo, de modo a promover a transformao material da sociedade, que consideram socialmente injusta. Atribuem por isto menos importncia esfera da vida ntima como espao privilegiado da religio. Por sua politizada concepo de mundo, as CEBs tm estado associadas aos mais diferentes movimentos sociais de reivindica- o e de construo de identidades no campo e na cidade, muito prximas dos partidos polticos de esquerda, sobretudo o PT e, em menor grau, o PC do B, tendo se mostrado eficientes na "produo de militantes", ou seja, na formao de lideranas comunitrias e partidrias de esquerda (Souza, 1994; Pierucci, 1984). Representantes mais avanados do catolicismo fundado na Teologia da Libertao, esses catlicos formam contingentes eleitorais em torno de 3% em estados como Paran, Bahia e Cear.

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    (6) A descrio das religies com o dimensionamento de seu corpo de adeptos apresen- tada a seguir foi extrada, com cortes e modificaes, de um trabalho meu e de Antnio Flvio Pierucci, intitulado "Re- ligies e voto: a eleio presi- dencial de 1994", apresentado no Encontro Anual da Anpocs de 1994. Para pormenores e esclarecimentos metodolgi- cos da pesquisa, ver Pierucci & Prandi, 1995.

  • RAA E RELIGIO

    O Movimento de Renovao Carismtica Catlica, nascido nos Estados Unidos no final dos anos 60 e logo transplantado para o Brasil, alcana presente- mente 3,8% da populao pesquisada. Os carismticos, ao contrrio das CEBs, centram a vida religiosa na esfera da intimidade, desenvolvem acentuado controle moral na esfera da famlia, dos costumes e da sexualidade, desinteressam-se completamente dos problemas de carter coletivo, e, por conseguinte, da militncia poltica. Do grande importncia aos dons do Esprito Santo, sobretudo glossolalia o dom de falar lnguas desconhecidas, quando o Esprito Santo se manifesta nos fiis em transes coletivos e o dom da cura divina, o que os aproxima bastante dos evanglicos pentecostais. Marcam porm, e fortemente, sua identidade catlica ao acentuarem a devoo a Nossa Senhora, o apego Eucaristia e a fidelidade ao Papa. Os carismticos podem ser considerados um movimento de dupla reao: para dentro do catolicismo, opem-se frontalmente aos catlicos da Teologia da Libertao; para fora, competem com os evanglicos pentecostais na disputa pelos conversos desejosos de experincia religiosa sensvel, de maior imanncia do sagrado (Prandi, 1992; Machado, 1994).

    Os evanglicos totalizam 13,3% do nosso universo, cerca de 13 milhes. So usualmente classificados em dois grandes ramos: os histricos e os pentecostais (Mendona 1989). Os protestantes histricos so representados pelas igrejas reformadas de origem europia e norte-americana, instaladas no Brasil desde o sculo passado. Esto completamente enraizados entre ns, caracterizando-se hoje por baixo grau de proselitismo e reproduzindo-se tradicionalmente de gerao em gerao. Suas principais denominaes so: Luterana, Batista, Presbiteriana, Meto- dista, Episcopal e Congregacional, denominaes que, na prtica, podem resultar em muitas outras subdivises. Os evanglicos histricos perfazem hoje 3,3% do eleitorado, alcanando cifras maiores no Rio Grande do Sul (7,4%) e Rio de Janeiro (5,5%). Os pentecostais tiveram sua origem no reavivamento do protestantismo nos Estados Unidos, caracterizando-se por incansvel exerccio de converso dos mais pobres e desamparados. Dados da pesquisa mostram que 33,3% dos pentecostais tm renda familiar mensal de at dois salrios-mnimos; a taxa de desempregados entre eles est acima da mdia nacional, enquanto a taxa de ocupados como trabalhadores por conta prpria irregulares os que vivem de bicos e biscates, componentes da parcela marginal de trabalhadores chega a 27,2%, quando a taxa nacional de 19,1%. A proporo de analfabetos bem mais alta entre os pentecostais que a mdia nacional. So indicadores inequvocos de condies sociais que contribuem muito para tornar homens e mulheres incapazes de organizar a prpria vida, obrigando-os a buscar lideranas e instituies que se disponham a fazer isto por eles, quer como uma ddiva, com o que estiveram por tanto tempo familiarizados na sociedade brasileira tradicional, quer como aprendi- zado de uma disciplina de si que os capacite a melhorar de vida.

    Os pentecostais tm o culto bastante centrado no apelo emocional, sobretudo no dom das lnguas ou glossolalia, reproduo do episdio bblico da manifestao do Esprito Santo aos apstolos no dia de Pentecostes, e no dom de cura. As principais denominaes pentecostais de origem estrangeira so: Congregao Crist no Brasil, Assemblia de Deus e Evangelho Quadrangular. A partir dos anos 70, o pentecostalismo deu origem a diversas denominaes constitudas j em solo brasileiro, com nfase cada vez mais forte no dom da cura, e por isso denominadas de pentecostalismo de cura divina. Mais recentemente surgiram as igrejas agora chamadas de neopentecostais (Mariano, 1995). De modo geral especializaram-se no uso da televiso, voltaram o culto para as massas, em grandes espaos, centrando- nnn

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    o enfaticamente nos exorcismos, e desenvolveram uma teologia que valoriza a prosperidade e reabilita eticamente o dinheiro e os ganhos materiais. As principais igrejas formadas em solo brasileiro so: O Brasil para Cristo, esta bastante antiga e considerada uma igreja de transio, Casa da Beno, Nova Vida, Deus Amor, Igreja Universal do Reino de Deus, Internacional da Graa Divina e Renascer em Cristo. Estas denominaes maiores cindiram-se e continuam a cindir-se em um grande nmero de igrejas pequenas. Entre os pentecostais o mal sempre visto como obra do demnio, adotando por isso as igrejas de formao mais recente o exerccio recorrente da vexao e expulso dos demnios, que identificam com divindades e espritos das religies afro-brasileiras. Os pentecostais insistem na permanncia de seus adeptos longe da poltica, fazem propaganda contra partidos e candidatos de esquerda, mas elegem deputados pastores que procuram, pelos mais diferentes meios, ganhar espao para o Evangelho, o que na prtica significa vantagens e privilgios para as suas igrejas, que eles consideram discriminadas negativamente em um pas de cultura catlica (Pierucci, 1989; Mariano e Pierucci, 1992).

    Os espritas seguem a religio de Alan Kardec, introduzida no Brasil no final do sculo passado e que desde ento tem exercido grande fascnio sobre camadas mdias urbanas. Representam hoje um considervel contingente de 3,5%. Cerca de trs milhes de brasileiros so espritas de mesa branca. Valorizam o progresso espiritual e intelectual do indivduo, estimulando a mobilidade social atravs da escolarizao. Do grande importncia ao trabalho assistencial aos desvalidos de toda sorte. Mostram grande capacidade de organizao burocrtica e forte apego a um tipo de literatura religiosa amplamente produzida, atravs da psicografia, pelos espritos de mortos ilustrados. Nos estratos mais altos de escolaridade, os kardecis- tas se destacam dentre todos os grupos religiosos: 35,3% de seus adeptos tm segundo grau e nada menos que 25% tm curso superior. Suas mais altas concentraes estatsticas verificam-se na cidade de So Paulo (8,0%) e Rio de Janeiro (7,5%). Mais da metade dos kardecistas, alis, encontra-se nas capitais e Regies Metropolitanas (52,6%), com outros 35,8% em cidades grandes e mdias. Apenas 11,6 % residem em cidades pequenas do interior, que entretanto somam 33,5% do eleitorado brasileiro, o que refora, por contraste, suas caractersticas de religio de urbanitas.

    Outras tantas religies tipicamente urbanas, melhor dizendo, metropolitanas, so as afro-brasileiras. Mais de dois teros de seus adeptos (70,6%) so residentes das capitais e Regies Metropolitanas. O candombl ainda mais marcadamente metropolitano do que a umbanda (73,7% contra 69,2). As religies afro-brasileiras representam apenas 1,3% do universo brasileiro; mas chegam proporo de 4,9% na cidade do Rio de Janeiro e de 3,7% na cidade de So Paulo, mostrando-se bastante expressivas e especialmente visveis nestes dois cenrios particularmente importantes da vida pblica brasileira.

    As religies afro-brasileiras, abrangendo menos de um milho e meio de pessoas, so formadas primeiro pelas religies tradicionais de origem africana, com 0,4% do universo, as quais recebem nomes regionais: candombl na Bahia, no Rio de Janeiro e agora em So Paulo e demais regies do Pas por onde tem se disseminado nos ltimos vinte anos; xang em Pernambuco e estados vizinhos, tambor de mina no Maranho e estados da Amaznia; batuque ou nao no Sul do pas; alm do omoloc, religio de origem recente, mas que segue os modelos litrgicos tradicionais, sobretudo no Rio de Janeiro e Minas Gerais. At os anos 60, as religies tradicionais afro-brasileiras estavam circunscritas s populaes negras nnn

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    como religies tnicas, perdendo aos poucos este carter para se constiturem em religies universais, abertas a todos, desde os mais pobres at segmentos das classes mdias e altas urbanas. Abertas a todos, sobretudo aos metropolitanos de todo tipo e classe. Conforme era esperado, a taxa de 2,1% para os seguidores do candombl em Salvador a mais elevada. O outro grande ramo das religies afro-brasileiras a umbanda, nascida no Sudeste nos anos 30, resultante do contato entre o espiritismo kardecista e o candombl. Rapidamente espalhada por todo o pas, hoje reunindo 0,9% dos brasileiros jovens e adultos, a umbanda guarda caractersticas de suas religies fundantes, sendo desde logo uma religio que mantm em torno de si vasta clientela que a procura para solues de problemas de sade, emprego, famlia, vida afetiva etc., solues que so buscadas atravs de oferendas propici- atrias s divindades.

    As religies afro-brasileiras, de ritual bastante complexo, desenvolveram pouco ou nada uma orientao para o comportamento baseada num cdigo de tica, em que a medida de justia, de bem e de mal esteja em conformidade com critrios universalistas e de bem-estar geral da coletividade. Ao contrrio, as noes de certo e errado pautam-se pelas relaes entre cada fiel e a divindade que o protege, e o mundo entendido como um campo de conflitos e enfrentamentos no qual o fiel deve procurar sua realizao pessoal (Prandi, 1991 e 1995). Enquanto o kardecismo toma como ideal de sabedoria o indivduo que logrou desenvolver-se intelectualmente atravs da escola, alcanando posto elevado na escala das profisses liberais, artes e cincias, as religies afro-brasileiras valorizam sobrema- neira a sabedoria que decorre da prpria vivncia, glorificando a senioridade dos que vencem por esforo prprio a partir da experincia concreta da vida e que se destacam na luta pela realizao dos sonhos inerentes a todos os que partilham a existncia terrena. As religies afro-brasileiras valorizam o bravo, o experiente, o realizador, o vencedor, mas ainda sofrem o peso de sua herana da sociedade escravista-patriarcal, fazendo com que a valorizao da ddiva e o apego ao clientelismo mostrem-se ainda presentes e fortes.

    Restam 2,0% formados por adeptos de um conjunto muito grande de religies que no se classificam nos grandes grupos acima enumerados: judasmo, budismo, adventista, Testemunhas de Jeov, Mrmons, Seicho-No-I, Perfeita Liberdade, Igreja Messinica, Santo Daime, seitas de prticas esotricas e vrias outras.

    O grupo dos "sem religio" representa, por sua vez, 4,9% da populao estudada, cerca de quatro milhes e meio de indivduos, os quais esto mais presentes nas grandes cidades.

    Vejamos agora como se d a composio racial dos devotos que seguem estes diferentes credos. A Tabela 1 fornece a distribuio por cor para cada um destes grupos. Ela nos informa sobre a participao relativa de brancos, pardos, pretos e amarelos nos contingentes de seguidores dos grupos de religio7.

    A religio com a maior presena de brancos o kardecismo (73,6%), seguido pelo ramo carismtico do catolicismo (65,5%) e pelas denominaes evanglicas histricas (63,1%). So reconhecidamente, com algumas excees no ramo evang- lico, religies de classe mdia.

    Os negros marcam maior presena nas religies afro-brasileiras, onde somam, entre pardos e pretos, 42,7%. Sua presena relativa sobe ainda mais no candombl, originariamente a grande fonte de identidade negra, em que chegam a 56,8% a nica modalidade religiosa em que o negro a maioria dos fiis. Mas h muitos brancos nas afro-brasileiras (51,2%) e mesmo no candombl, em que representam 39,9%. Assim como h um contingente muito grande de negros nas nnnn

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    (7) Na pesquisa que fornece estes resultados, em metade da amostra a cor do entrevista- do foi anotada de acordo com a classificao feita pelo entre- vistador. Na outra metade re- gistrou-se a autoclassificao do entrevistado, em resposta questo "Voc se classifica como branco, pardo, preto ou amarelo?". Ao comparar os dois critrios, notou-se um peque- no aumento na proporo de brancos na sub-amostra em que se usou a autoclassifica- o. Ao se compararem os perfis scio-econmicos des- tes dois grupos, verificou-se, contudo, serem as distribui- es estatisticamente aderen- tes, mostrando-se ambos os critrios adequados para os objetivos em questo (Pierucci & Prandi, 1995).

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    religies evanglicas, chegando a proporo de pardos entre os pentecostais a 34,3%, nmero que maior que todos os observados para as demais religies. Entre as denominaes evanglicas histricas, mais brancas que suas irms pentecostais, h uma porcentagem de adeptos pardos de 34,3%, que a mesma taxa de pardos encontrada entre o total dos afro-brasileiros e prxima daquelas vistas para os catlicos tradicionais (32,6%), catlicos das comunidades de base (34,1%) e para os sem religio (33,1%). Os pretos representam um quarto dos seguidores do candombl (23,9%), 15,2% dos umbandistas, 5,9% do conjunto afro-brasileiro. Sua presena entre os pentecostais de 11,1%. Nos demais grupos sua taxa sempre menor que 11%.

    Tabela 1 Composio das religies por cor dos fiis Brasil, 1994

    sem TOTAL RELIGIO brancos pardos pretos amarelos infor- %

    mao (n)

    Pesquisa de campo: Datafolha (16 de agosto a 5 de setembro de 1994)

    O fato de o candombl conter to emblematicamente a marca africana tem motivado o movimento negro a buscar uma aliana com os terreiros para uma nnnnn

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    militncia conjunta, ao que mes e pais-de-santo resistem fortemente, pois eles, sobretudo em So Paulo e no Rio de Janeiro, onde boa parte dos sacerdotes de brancos, no desejam repor fronteiras raciais que a religio tem abandonado nas ltimas dcadas (Prandi, 1991; Amaral & Silva, 1993).

    Numa pesquisa recente, tivemos oportunidade de entrevistar lderes e dirigentes de entidades que compem o movimento negro em todo o Pas, reunidos no Primeiro Encontro Nacional de Entidades Negras, acontecido em So Paulo, de 14 a 17 de novembro de 1991, que contou com 540 delegados vindos de quase todos os estados, representando cerca de uma centena de entidades negras, podendo-se assim dispor de alguns dados sobre a questo da identidade racial e da religio8.

    Perguntados se a condio de classe social afetaria mais a vida do negro do que a condio de cor, 64,7% dos delegados de todo o pas afirmaram que a condio de cor afeta muito mais a vida do negro, ao passo que 20,8% indicaram a condio de classe social como o fator influente mais forte. Do ponto de vista das preocupaes com o passado cultural de origem africana, 66,7% indicaram que sempre deve haver um cuidado do movimento negro no sentido de recuperar o passado e as razes, incluindo-se a cultura e a religio original do negro, mas que esta postura deve contemplar tambm a questo do mundo atual. importante recuperar razes para reconstruir a identidade negra, mas preciso, simultaneamen- te, preocupar-se com as questes referidas s condies sociais e culturais de hoje que afetam diretamente as condies de vida do negro.

    Suas opes religiosas revelaram-se bem diferentes daquelas da populao que procuram representar, conforme dados mostrados neste trabalho. Sua adeso ao catolicismo baixa, com 47,6%, enquanto 75% dos negros de todo o pas se declaram catlicos. So evanglicos em proporo muito menor (1,1%) que os 14,5% conhecidos para a populao negra. Optam mais freqentemente por no ter religio (23,0% contra os 5,2% para todos negros). Seguem as religies afro- brasileiras 10,8% dos delegados, optando 4,9% deles pelo candombl e 5,9% pela umbanda. Assim, embora a filiao religio negra seja de apenas 10,8%, este nmero representa, na verdade, quase sete vezes a taxa de adeptos dos cultos afro- brasileiros encontrada na populao negra do pas. um nmero comparativamen- te muito grande; um indicador importante de que a religio negra funciona minimamente como uma marca de conscincia e identidade racial em grupos mobilizados. No significa, contudo, que, para a maioria da populao negra, no engajada nos movimentos negros, a religio de origem africana possa oferecer alguma vantagem na sua luta diria para escapar de uma herana histrica marginalizadora, sobretudo em face do preconceito religioso.

    Interessa-me aqui chamar a ateno para a importncia atribuda s questes de origem cultural, de raiz, em que a religio parece estar includa, minimamente como smbolo de recuperao da origem. No conjunto da sociedade, pode ocorrer movimento inverso: as religies afro-brasileiras vo cada vez mais incorporando o branco em suas fileiras, quando no se transformam elas mesmas com o intuito de apagar exatamente aqueles traos que mais evidenciam a origem africana, como o sacrifcio e a lngua ritual de origem africana. Enquanto isso, os negros engrossam cada vez mais as fileiras das religies no negras, da quais algumas mais agressivas modelam sua identidade mostrando-se numa guerra santa contra a religiosidade um dia trazida da frica.

    Quando se trata dos amarelos, chama a ateno o fato de que sua maior participao est no grupo das outras religies, que inclui as religies orientais nnnnnn

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    (8) Antes do Encontro, o Gru- po de Conscincia Negra da USP, um dos organizadores, props que se fizesse uma pesquisa entre os delegados, de modo a se definir seu perfil e se conhecerem algumas po- sies acerca do movimento. Fiquei encarregado do plane- jamento e anlise do material, cabendo ao grupo da USP apli- car os questionrios sob minha superviso, o que foi feito. Os resultados encontram-se numa comunicao escrita por An- dr Gambier Campos, Kelly Adriano de Oliveira, ento meus orientandos de iniciao cientfica, e por mim (Campos, Oliveira & Prandi, 1993).

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  • REGINALDO PRANDI

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    A Tabela 2 reafirma estes achados, mas nos permite identificar as taxas de adeso religiosa a partir de cada grupo de cor.

    Tabela 2 Religio segundo cada grupo de cor Brasil, 1994

    RELIGIO brancos pardos pretos amarelos

    Pesquisa de campo: Datafolha (16 de agosto a 5 de setembro de 1994)

    Todos so majoritariamente catlicos; somente os pretos tm uma participa- o pouco menor (70%) que o 75% dos outros grupos de cor.

    Para os brancos, a segunda opo so os cultos evanglicos (12,6%), depois a opo por no ter religio (4,9%), seguida pelo kardecismo (4,4%), outras religies (2%) e, por fim, as afro-brasileiras (1,1%). Esta ordem no se altera muito nos outros grupos de cor, mas os nmeros so expressivamente diferentes. Os pardos no catlicos so primeiro evanglicos (13,9%) e depois sem religio (5,2%), kardecistas (2,1%), de outras religies (1,9%) e afro-brasileiros (1,2%). Os pretos, que j destoam na taxa de adeso ao catolicismo, tm como segunda escolha as religies evanglicas (16,8%), depois a opo por no ter religio (5,7%), as religies afro-brasileiras (3,0%), o kardecismo (2,7%) e as outras (1,7%). Amarelos no catlicos buscam as outras religies (10%) e depois as evanglicas (8,3%), nenhuma religio (3,8%), o kardecismo (2,7%) e as afro-brasileiras (0,2%).

    Na adeso aos cultos evanglicos e particularmente aos pentecostais, assim como na escolha de religio afro-brasileira, tanto no caso da umbanda como do candombl, observa-se que as porcentagens dos negros so maiores que as dos pardos e dos bran- cos, nesta ordem. Os pretos, mais que os pardos, e mais que os brancos, esto mais dis- tanciados da hegemonia catlica, por assim dizer. Esparramam-se mais pelos ramos reli- giosos que parecem mais afinados com as condies de pobreza e marginalidade social. n

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  • RAA E RELIGIO

    A marca demogrfica negra nas religies afro-brasileiras acentuada, como se esperaria, mostrando-se mais branca na vertente umbandista, conquanto con- templem uma metade que branca. Por outro lado, os negros esto presentes no catolicismo tanto quanto os brancos e os amarelos, embora a participao dos pretos seja levemente reduzida. Os pardos, por sua vez, contribuem numericamen- te em primeiro lugar com o pentecostalismo e o catolicismo das comunidades de base. Pode-se dizer que o candombl a religio com a maior participao de pretos, mas para o pentecostalismo que eles convergem em maior nmero.

    Para concluir, vale a pena enfatizar que adeso de brancos e negros a esta ou aquela religio num quadro de possibilidades em que se pode distinguir, de um lado, as religies de origem europia e norte-americana, isto , religies marcada- mente brancas, e de outro, aquelas constitudas a partir de tradies africanas, as religies negras s pode ser compreendida a partir da dinmica que as religies mantm com o processo de constituio e mudana social da sociedade brasileira.

    Assim, a formao da umbanda, no Rio de Janeiro e em So Paulo dos anos 30 e 40, j significava a possibilidade da adeso indiscriminada dos brancos a uma nova religio afro-brasileira, numa poca em que o espiritismo kardecista, introdu- zido no Brasil no final do sculo passado, j conquistara significativa fatia de conversos e simpatizantes de origem catlica. Ao assimilar muitos traos do espiritismo de mesa branca, a umbanda ganhava tambm feio assemelhada com uma religio de prestgio na sociedade brasileira, uma religio que apostava numa certa racionalidade e na eficcia da organizao burocrtica, que enfatizava a importncia da educao e do progresso intelectual e que se publicizava muito positivamente atravs de suas instituies de caridade que cuidavam de toda sorte de desvalidos e desamparados, numa poca em que a presena do Estado na esfera do bem-estar social era pfia. Nos seus primrdios, a umbanda se autodenominava espiritismo de umbanda, e se ela nunca logrou reproduzir completamente esses traos to caros ao kardecismo, no mnimo sua preocupao em valorizar o modelo muito contribuiu para arrefecer em parte o preconceito contra religies de origem negra e assim atrair mais facilmente boa parte de seu contingente de adeptos brancos. Parece que ela sempre ficou a meio caminho entre suas matrizes negras e kardecista, s vezes assumindo posies doutrinrias dbias, especialmente na esfera tica, em que nunca alcanou o compromisso com uma noo universal de justia, encontrando-se freqentemente numa posio tica que a situa "entre a cruz e a encruzilhada", para usarmos a feliz expresso de Lsias Negro (Negro, 1993). S mais tarde, a partir dos anos 60, quando a umbanda j era religio inteiramente consolidada como universal, isto , sem barreiras de cor, os brancos passaram a aderir tambm ao candombl, que no conheceu, contudo, o fenmeno do autobranqueamento que caracteriza a umbanda, pois o candombl j contava com um processo de valorizao crescente das razes formadoras da sociedade brasilei- ra, quase um movimento que se fez presente em todas as reas das artes cultas e populares de massa, processo que levou o candombl, inclusive, a voltar frica a procura de tradies perdidas na dispora, num movimento que chamei de africanizao do candombl brasileiro (Prandi, 1991).

    Mas os catlicos, brancos e negros, descontentes com sua religio cada vez mais envolvida pelo processo de secularizao da sociedade, cada vez mais deixando de lado seu papel na orientao da conduta (Prandi, 1975), certamente to importante para os segmentos pobres e ainda dependentes das amarras de uma cultura patriarcal-patrimonialista agora diluda na sociedade de classes e que, por isso mesmo, tm muita dificuldade de administrar a prpria vida, esses catlicos nnnnn

    . & Prandi, Reginaldo (1995). "Religies e voto: A eleio presidencial de 1994". Opinio pblica, Campinas, vol. 3, n 1.

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  • REGINALDO PRANDI

    tambm j dispunham das alternativas evanglicas. Alternativas que se ampliaro cada vez mais com outras modalidades religiosas. Ainda que estas religies sofram tambm forte preconceito, sobretudo o pentecostalismo, o ramo mais exuberante delas, a ponto de muitos de seus lderes reclamarem da viso negativa tal como a sociedade as v, especialmente atravs da mdia, o preconceito de que padecem nunca de cor. Mas se elas no sofrem preconceito de cor por parte dos outros, o incorporam na sua disputa constitutiva com os cultos afro-brasileiros.

    Negras ou brancas em suas origens, as grandes religies no Brasil esto hoje longe de apresentar barreiras tnicas, de cor ou de origem, mesmo no caso do candombl, com contornos de uma origem racial muito marcados. Embora as religies diversas possam atrair preferencialmente certos grupos de cor, o que pode at lhes emprestar uma face marcada racialmente, o fato que elas se mostram abertas para todos. Mas a escolha por uma dessas religies no o fim da trilha. Quantos ex-catlicos no esto voltando s igrejas e sales paroquiais para experimentar os dons da Renovao Carismtica Catlica? Outros tantos pentecos- tais se convertem ou reconvertem diariamente s religies dos orixs e encantados, enquanto outros mais abandonam seus caboclos para experimentar a vivncia dos dons pentecostais. O trnsito entre uma religio e outra intenso e, nesse movimento, a cor da pele do transeunte religioso, para no se falar de sua raa, incapaz de identificar, para o observador, a religio abandonada ou a nova crena adotada. Agora somos todos iguais, a ponto de cada um poder adotar a religio que melhor resposta der s suas aflies, ou no adotar religio alguma.

    Recebido para publicao em abril de 1995.

    Reginaldo Prandi professor titular de Sociologia da USP e pesquisador do CNPq. J pu- blicou nesta revista "Perto da magia, longe da poltica" (N 34).

    Novos Estudos CEBRAP

    N. 42, julho 1995 pp. 113-129

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