2008 tes elrsoares

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE EDUCAÇÃO AS VINTE E UMA FACES DE EXU NA FILOSOFIA AFRODESCENDENTE DA EDUCAÇÃO: IMAGENS, DISCURSOS E NARRATIVAS LAROIÊ Emanoel Luís Roque Soares FORTALEZA 2008

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Exu. Soares

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR FACULDADE DE EDUCAO

    AS VINTE E UMA FACES DE EXU NA FILOSOFIA AFRODESCENDENTE DA EDUCAO: IMAGENS,

    DISCURSOS E NARRATIVAS

    LAROI

    Emanoel Lus Roque Soares

    FORTALEZA 2008

  • EMANOEL LUS ROQUE SOARES

    AS VINTE E UMA FACES DE EXU NA FILOSOFIA AFRODESCENDENTE DA EDUCAO: IMAGENS,

    DISCURSOS E NARRATIVAS

    LAROI

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, Faculdade de Educao, Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Educao.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Gerardo Vasconcelos

    FORTALEZA 2008

  • Ficha Catalogrfica elaborada por Telma Regina Abreu Camboim Bibliotecria CRB-3/593 [email protected]

    Biblioteca de Cincias Humanas UFC_____

    S653v Soares, Emanoel Lus Roque. As vinte e uma faces de Exu na filosofia afrodescendente da educao [manuscrito] : imagens, discursos e narrativas / por Emanoel Lus Roque Soares. 2008. 181 f. : il. ; 31 cm. Cpia de computador (printout(s)). Tese(Doutorado) Universidade Federal do Cear,Faculdade de

    Educao,Programa de Ps-Graduao em Educao, Fortaleza(CE), 01/07/2008.

    Orientao: Prof. Dr. Jos Gerardo Vasconcelos Inclui bibliografia. 1-EXU(ORIX).2-ANTROPOLOGIA EDUCACIONAL.3-CANDOMBL CERIMNIAS E PRTICAS.4-BRASIL CIVILIZAO INFLUNCIAS AFRICANAS.I-Vasconcelos, Jos Gerardo, orientador. II.Universidade Federal do Cear. Programa de Ps-Graduao em Educao. I-Ttulo.

    33/08

  • 3

    EMANOEL LUS ROQUE SOARES

    AS VINTE E UMA FACES DE EXU NA FILOSOFIA AFRODESCENDENTE DA EDUCAO: IMAGENS, DISCURSOS E NARRATIVAS

    LAROI

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, Faculdade de Educao, Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Educao.

    Defesa em: 01 julho de 2008

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Jos Gerardo Vasconcelos UFC (Orientador)

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi UFBA

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Lus Botelho de Albuquerque UFC

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Henrique Antunes Cunha Jnior UFC (Co-orientador)

    _______________________________________________

    Prof. Dr. Rosa Maria Barros Ribeiro UECE

  • AGRADECIMENTOS

    Primeiro agradeo a Exu que abriu os caminhos para a tese, e a Ogum que meu orix de frente, o qual possibilitou minha caminhada nestes caminhos exurianos e Oxagui orix que meu protetor e ao qual sirvo como Og.

    Em seguida agradeo a minha Me Preta de Oxagui minha mentora espiritual.

    E minha me pequena, Lcia, aquela que os orixs escolheram para eu ter como me.

    Me Stela de Oxossi.

    Ebmim Ctia Virginia de Melo Souza

    Ao meu amigo e orientador Jos Gerardo Vasconcelos.

    Aos meus irmos do terreiro Il Kay Alaket Ash xum Cachoeira-BA e a toda comunidade do Alto do Rosarinho em especial a seu Donga vivo de me Baratinha.

    A meu irmo Ivo dos Santos Ges Filho.

    UNEB, na pessoa da reitora Ivete Sacramento ao diretor Wilson Mattos e aos colegas da UNEB do campus V, Santo Antnio de Jesus-BA, especialmente ao colegiado de geografia coordenador James Amorim sem os quais eu no chegaria at aqui.

    A todos os professores e funcionrios da ps-graduao da UFC/Faced. Em especial, Erclia Braga de Olinda, Joo Figueiredo, Sandra Pety, Henrique Cunha Junior, Lus Botelho, Hermnio, Juraci Maia, Jaques Therrien, Bernadete Beserra, Arimatea, Snia Pereira, Gesa, Marquinhos, Gina e Tio. Aos amigos e professores de Filosofia da UCSAL e da UFBA/ps-graduao Faced que sedimentaram este caminho.

    Aos colegas e amigos que contriburam com o trabalho Flavia Damio, Eduardo Oliveira, Ana Carmita Bezera, Lurdinha, Ana Beatriz, Ivan, Noval, Vin, Isabel Said, Kennedy, Mario Broder, Katia, Elmo, Flvia Cearense, Alexandra, Leonora, Dona Meire, Piedade, Rebeca, Renata, Socorro, Soraia, Barrinha, Vicente, Cellina Muniz, Cristina, Sandro Correia, Requio, Fabio Lima, Marcus Martins, Marlene, Raimundo Nonato in memoriun, Eliete Almeida, Flory, Cacau, Naigledson, seu Manuel, brincantes do Cordo de Caro.

    Agradeo ao CNPq que proporcionou os recursos materiais para essa pesquisa.

    A UFRB e aos novos colegas do Centro de Formao de Professores Amargosa testemunhas de uma concluso.

    A Mirna Juliana minha revisora.

  • Dedico esta tese a minha me, Angelita Roque dos Santos, me amorosa e dedicada, aquela que tornou e torna tudo possvel desde a minha existncia at o meu estar existindo nos dias de hoje.

    minha famlia pela compreenso e cumplicidade durante a caminhada: Maria Aparecida Lima Silva (companheira). Jamille (filha) Rafael (filho) Emanoel (filho) E em especial, a Enzo, meu neto, filho de Jamille, aquele que minha continuao.

    E assim dedico famlia a ancestralidade em si.

  • Homenagem Especial

    A Gaiacu Luisa Franquilina de Souza (in memoriam: 1909-2005)

    Quando eu conheci Gaiacu Luisa, a princpio me surpreendi; foi um impacto porque eu esperava encontrar uma velhinha de 96 anos e aquela mulher que eu encontrei no tinha nada de velhinha, era uma pessoa que tinha idade, mas era forte, muito determinada, vi que era da natureza dela mesma e de uma fora muito grande, e depois comecei a falar e ouvi-la, conseguindo constatar essa minha primeira impresso. Nas histrias de vida que ela teve o prazer de contar, eu percebi o quanto era importante. Eram histrias de vida que ela fazia questo de contar vrias vezes, repetindo, mas eram histrias de uma mulher sempre determinada, principalmente no que diz respeito religio foi uma pessoa abnegada, vamos dizer assim, ela se retirou completamente da vida mundana, social e de outro tipo de vida que no a religiosa, com mais ou menos uns 26 anos, quando se iniciou pela primeira vez no candombl, porque ela foi iniciada duas vezes.

    Ela me conta que veio para Salvador ainda muito jovem, com 18 anos mais ou menos. Na capital baiana trabalhou, casou, teve duas filhas, mas as filhas morreram e o casamento dela no prosseguiu. O marido a abandonou, inclusive, grvida da segunda filha. Um dia, andando nas ruas de Salvador, encontrou esse babalorix, foi quem fez ela pela primeira vez, o Nezinho de Porto, que filho de Muritiba e filho de santo de Menininha do Gantois. Eles j se conheciam por causa da localidade. Ele Peji-g morava em Muritiba e ela morava em Cachoeira e os pais, o pai era adepto de uma roa Jje em Cachoeira. Depois deste, encontrou com ela em Salvador e falou para os pais dela que ela estava pedindo esmola nas ruas, e ento os pais desesperados, enviaram uma carta pedindo para ela retornar a Cachoeira. De volta a Cachoeira, eles a levaram at a casa desse senhor, o babalorix, e ele recolheu ela para fazer o santo. Fez Oi no Ketu s que o orix no respondeu e a, por conta disso, houve vrios problemas, ela acabou saindo da casa, perdeu a sua filha por conta dessa situao, porque durante o perodo em que ela estava recolhida ele acabou retirando a filha do ronc que estava junto dela e mandou que entregasse para os pais. A menina tinha 8 meses, na poca, ainda estava amamentando e quando ela saiu do santo ela ficou sabendo que a filha tinha morrido. Ento, eu acho que era uma mulher que tinha tudo, tinha todos os motivos do mundo de, a partir desse momento, abandonar a religio, porque no falo da perda do marido porque eles j tinham se separado, mas da perda de sua filha, depois tudo que ela sofreu, por conta do que esse pai-de-santo que alm de tudo me diz a prpria fazia muita raiva a ela e fez ela passar

  • muitos anos de sofrimento. Depois tiveram vrias outras coisas que acontecerem em relao s outras pessoas que no reconhecia ela como sendo de nao Jje e uma srie de outras coisas que fizeram abandonar uma roa, que ela tinha no Cabrito, e ir para o Rio de Janeiro, por conta das perseguies termo este que ela mesma utilizava.

    Disse-me a vudunsi que foi feita no Jje, por Maria Romana, Romaninha. Esta senhora Romaninha era uma me de santo, uma Gaiacu, como a prpria dona Luisa a chamava, ela tinha realmente o cargo de Gaiacu, s que ela no tinha uma roa de candombl, ela vivia Bogum seria a pessoa que poderia substituir Sinh Emiliana que era a me de santo da poca do Bogum, na poca que a Gaiacu estava recolhida. E foi essa senhora que acabou fazendo Gaiacu Luisa no Jje.

    Uma vida dedicada aos vuduns e orixs, uma vida voltada para tradio e ancestralidade, uma vida de me e educadora preocupada e atenta aos filhos e aos preceitos da religio e agora egun, ancestre fazendo parte da vida coletiva de seu povo.

    Foi a fora desta senhora o primeiro impulso da tese que hora se finda, sinto esta energia irradiar toda a tese, e somar a outras que encontrei pelo caminho. Sinto-me um felizardo em conhecer to importante sacerdotisa ainda em vida e agradeo a Olodum Mar por ter me dado tamanha honra, ax, muito ax Gaiacu Luisa, e muito obrigado por tudo.

    Emanoel Lus Roque Soares

    Fortaleza, 18 junho de 2008,

  • Ns nos recusamos a ser o que voc queria que ns fssemos. Somos o que somos, assim que vai ser. Voc no pode me educar.

    Vocs riem de mim por eu ser diferente, e eu rio de vocs por serem todos iguais.

    melhor atirar-se em luta, em busca de dias melhores, do que permanecer esttico como os pobres de esprito, que no lutaram, mas tambm no

    venceram. Que no conheceram a glria de ressurgir dos escombros. Esses pobres de esprito, ao final de sua jornada na Terra, no agradecem a Deus

    por terem vivido, mas desculpam-se diante dele, por simplesmente, haverem passado pela vida.

    (Bob Marley)

  • RESUMO

    O trabalho tem como objetivo examinar os mltiplos conceitos existentes para Exu, dentre os quais a inverso, observada na maneira deste orix ensinar s avessas, no mito de como ele ensina a Oxum a jogar bzios para ver o futuro, ou do princpio do caos exuriano no qual preciso um grande estado de confuso inicial para que o esclarecimento acontea. Enfoca tambm a matrifocalidade presente na obra de Ruth Lands: A cidade das mulheres, a qual mostra esta inverso exuriana de valores numa cidade machista em que as mulheres mes-de-santo so as poderosas. Sero vistos os diversos conceitos que Exu ganhou aps sua chegada ao Brasil, alm do dialogismo do orix da comunicao, o interlocutor de todos os outros. Os mitos africanos sero analisados, pois o mito base da cultura de um povo e est no incio da sua formao, dando sentido sua existncia. Atravs da investigao desses pontos analisar-se- a natureza polilgica e polifnica de Exu, que o prprio movimento em si, pois ele a fora dinmica que move a tudo e a todos como bem destaca Joana Elbein dos Santos. Os mtodos utilizados so os fenomenolgicos que serviro para que se tenha uma viso sem prejuzos sobre o orix no convvio com o povo de Santo, por meio da escuta e de entrevistas, juntamente com o mtodo genealgico, sero analisados vrios estudos escritos por antroplogos e historiadores, os quais esto misturados, rasurados e mal redigidos muitos deles feitos com intenes de poder, j que os primeiros estudiosos estavam diretamente ligados ao cristianismo. Assim, de olhos e ouvidos bem abertos, como um vigia, pois espreitando como diria Foucault , como numa caada ou investigao policial, buscando a melhor forma de entender a regra do jogo histrico, onde menos se espera que talvez aparea aquilo que no possudo pela histria. A inteno mostrar que em Exu existe um princpio pedaggico e dialgico gerador de conceitos e por ter vrios conceitos e porque continua gerando-os em constante mudana uma vez que essa multiplicidade de conceitos e devir so caractersticas da filosofia segundo Gilles Deleuze , mostra que Exu pode ser assim como Apolo e Dionsio que so para George Colli, o princpio de uma filosofia, desta feita no a grega, mas a filosofia da educao afrodescendente.

    Palavras-Chaves: Exu; Filosofia; Afrodescendente; Educao.

  • RESUM

    Le but du travail est dexaminer les plusieurs concepts qui existent pour Exu, dentre eux linversion, observe dans la faon de cet orix enseigner lenvers. Cest dans le mythe de comment il apprend Oxum jeter le sort en utilisant des coquillages pour voir le futur ou du principe du chaos exuriano dans lequel il faut un grand tat de confusion initiale pour que lclaircement arrive. Montre aussi la matrifocalit qui est prsente dans loeuvre de Ruth Lands : A cidade das Mulheres qui montre cette inversion exuriana de valeurs dans une ville machiste o les femmes mes-de-santo sont les puissantes. Les divers concepts quExu a gagn aprs son arrive au Brsil seront vus et, en plus, des dialogues de lOrix de la communication, linterlocuteur de tous les autres. Les mythes africains seront analyss, car le mythe est la base de la culture dun peuple, et il est au dbut de sa formation en donnant de sens son existence. travers linvestigation de ces points, on analysera la nature polilogique et poliphonique dExu que cest le propre mouvement autour de soi- mme, car il est la force dynamique qui meut tout et tous comme remarque bien Joana Elbein dos Santos dans son oeuvre Os Nags e a Morte . En utilisant les mthodes des phnomnes qui serviront pour quon at une vision sans prejudices sur lOrix au quotidien du povo de Santo , travers lcoute et les interviews avec le mthode gnalogique, ce seront analyss beaucoup dtudes crites par antropologues et historiciens, lesquelles sont melanges, ratures et mal rdiges beaucoup dentre elles faites avec des intentions de pouvoir, puisque les premiers studieux taient directement lis au Christianisme. Ainsi, consciemment, comme un gardien, car cest en piant comme dirait Foucault comme dans une chasse ou dans une enqute policire, en cherchant la meilleure faon de comprendre la rgle du jeu historique, o moins on attend ce quapparaisse peut-tre ce qui nest pas inclu par lhistoire. Lintention est de montrer dans lExu qui existe un principe pdagogique et des dialogues crateurs de concepts, et de cette manire, quil continue les changer continuemment puisque cette multiplicit de concepts et de ce qui viendra sont des caractristiques de la philosophie de Gilles Deleuze qui montre quExu peut tre comme Apolo et Dionysos selon George Colli dans son oeuvre O Nascimento da filosofia le principe dune philosophie pas grecque, mais la philosophie de lducation afrodescendante.

    Mots-Cls: Exu; Philosophie; Afrodescendant; ducation.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Exu On entrada do Terreiro Il Kay Alaket Ash xum Cachoeira-BA (Emanoel Soares)......................................................................................................................13 Figura 2 Instrumentos da orquestra iorubana atabaque maior Rum, mdio Rumpi, pequeno L e o agog de um s sino o G. Terreiro Il Kay Alaket Ash xum Cachoeira-BA (Emanoel Soares)......................................................................................................................16 Figura 3 Ogum de minha irm ebmim Faustina e eu no dia da minha confirmao como filho de Ogum e og de Oxagui, de costas trazendo-nos outra irm ekdi Cle (Janes Lvaroti). ....................................................................................................................................17 Figura 4 Filhos e filhas-de-santo cortando o quiabo para o amal de Xang (Emanoel Soares). .....................................................................................................................................19 Figura 5 A noite depois da matana e do pad festa de Xang, xir em volta da foqueira (Emanoel Soares)......................................................................................................................20 Figura 6 Ossnin o senhor das folhas escultura de Eduardo Oduda (Emanoel Soares) ......21 Figura 7 Pad, aquarela de Caribe (http://www.pitoresco.com.br). ......................................40 Figura 8 Pombagira Cigana de minha irm Perptua (Emanoel Soares). .............................43 Figura 9 Pombagira do Yl Ax Ybara Mengy Kina, em dia de festa Cruz das Almas-BA (Emanoel Soares)......................................................................................................................43 Figura 10 Exu Tranca Rua do Yl Ax Ybara Mengy Kina (Emanoel Soares). ...................44 Figura 11 Pombagira, casa de artigos para cultos afrodescendentes Mercado So Jos Recife-PE (Emanoel Soares). ...................................................................................................46 Figura 12 Exu Tranca Rua, casa de artigos para cultos afrodescendentes Mercado So Jos, Recife-PE (Emanoel Soares). ..........................................................................................46 Figura 13 Zumbi dos Palmares, Praa da S, Salvador Bahia estatua em bronze da artista plstica Marcia Magno (Emanoel Soares)................................................................................49 Figura 14 Legba O senhor dos Caminhos do artista plstico Eduardo Pereira Oddwa (Emanoel Soares)......................................................................................................................84 Figura 15 Vista rea de Cachoeira (acima), ponte D. Pedro II sobre o rio Paraguau, So Felix (abaixo) (Emanoel Soares). .............................................................................................92 Figura 16 Meus irmos de ax, pouco antes de entramos na mata em busca da rvore (Emanoel Soares)......................................................................................................................98 Figura 17 Entrando na mata (Emanoel Soares). ....................................................................99 Figura 18 procura da rvore uma festa (Emanoel Soares). ...........................................100 Figura 19 Achamos nossa rvore (Emanoel Soares). ..........................................................100 Figura 20 Trabalho coletivo: levando o tronco para o candombl (Emanoel Soares). .......101 Figura 21 Subindo o Rosarinho (Emanoel Soares). ............................................................102 Figura 22 Tronco vira pau-de-sebo (Ebmim Ctia)...........................................................103 Figura 23 Mandu (Ebmim Ctia). .....................................................................................104 Figura 24 Travestidos no Mandu (Ebmim Ctia)..............................................................104 Figura 25 Mandu desfila por todas as ruas do Rosarinho (Ebmim Ctia).........................105 Figura 26 O sagrado e o profano juntos no ter (Emanoel Soares).......................................106 Figura 27 Oxum deusa da beleza (Emanoel Soares). ..........................................................107 Figura 28 Senhoras da Irmandade da Boa Morte no dia da festa, em 13 agosto de 2005 (Emanoel Soares)....................................................................................................................112 Figura 29 Ruth Landes (Retirada do livro Cidade das Mulheres). ..................................117 Figura 30 Me Preta de Oxagui (Emanoel Soares). ..........................................................120 Figura 31 Ebmim Catia de Obaluai (Emanoel Soares)....................................................122 Figura 32 Me Stela do Oxossi: (arquivo de Mario Cravo Neto). ......................................135 Figura 33 Gaiacu Luisa (Emanoel Soares). .........................................................................140

  • SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................................13

    1 MTODO ..............................................................................................................................26 1.1 A fenomenologia e a genealogia como mtodos de pesquisa ............................................26 1.2 Exu e a encruzilhada de conceitos: s tsn......................................................................37 1.3 Cronologia ..........................................................................................................................47

    2 MOTIVAES.....................................................................................................................55 2.1 A boalidade como busca do conhecimento ancestral .......................................................55 2.2 O porqu da UFC ser racista...............................................................................................65 2.2.1 Preconceito ......................................................................................................................66 2.2.2 Discriminao..................................................................................................................70 2.2.3 Racismo ...........................................................................................................................73

    3 CONCEITOS.........................................................................................................................81 3.1 Mito e filosofia afrodescendente, e as vinte e uma faces de Exu .......................................81 3.2 Exu, dialogismo e comunicao identitria........................................................................91 3.3 Exu, inverso e irmandades ..............................................................................................106 3.4 Olhares femininos sobre Exu............................................................................................114

    CONCLUSO........................................................................................................................157

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................................168

    GLOSSRIO..........................................................................................................................173

  • 13

    INTRODUO

    Figura 1 Exu On entrada do Terreiro Il Kay Alaket Ash xum Cachoeira-BA (Emanoel Soares).

    Antelquio

    s y, Lary!1

    A j k Barabo e mo jb, wa k s , A j k Barabo e mo jb, e o mo d ko k K Barabo e mo juba Elgbra e s l n n

    a ji qui Barab mo jub au c x, a ji qui Barab mo jub md c c qui Barab mo juba lbara Exu ln

    Ns acordamos e cumprimentamos Barabo, A vs eu apresento meus respeitos, Que vs no nos faais mal. Ns acordamos e cumprimentamos Barabo, A vs eu apresento meus respeitos. A criana aprende na escola ( educada, ensinada) Que a Barabo eu apresento meus respeitos, Senhor da Fora, sois o Exu dos Caminhos.2

    1 Significa: Viva Exu!, ou Salve Exu! (OLIVEIRA, 2004, p. 19).

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    A escolha da msica para abrir esta introduo no foi aleatria, no se trata aqui apenas de um efeito esttico literrio, porm foi devido letra desta msica conter especificamente trs inquietaes que por necessidades tcnicas e teolgicas da prpria tese, tentarei pontuar nesta aurora do trabalho para quem o vai ler enquanto para mim, neste momento, ele j crepsculo, uma vez que a tese em si, j esta escrita.

    A primeira tcnica a respeito ao uso do idioma Yorb, dos termos afrobrasileiros e a sua ortografia. Quando comecei a pesquisa logo notei a quantidade de textos com diferenas nas formas ortogrficas. Alguns autores escreviam em Yorb outros aportuguesaram totalmente as palavras seguindo a normatizao proposta por Yeda de Castro Pessoa para os vernculos estrangeiros j em uso, e outros escreviam somente a fontica, isto : a forma como se fala e se ouve, o que vem a gerar uma enorme variedade de formas para escrever uma mesma palavra. A palavra Kto, por exemplo, que em alguns autores

    encontrei Ktu, em outros Queto, ou ainda Keto, ou Ketu.

    Como a tese o conjunto de vrios artigos escritos nos ltimos 3 anos, e em cada um deles estive influenciado mais por este ou aquele autor, tomei uma deciso exuriana conceito este em que primeiro vem um caos para que em a seguida surgia uma compreenso de deixar cada texto da forma com que foi concebido, apenas mantendo itlico para palavras estrangeiras, primeiro porque o que importa para a tese o entendimento, e segundo para mostrar a questo pluritnica que gira em torno da cultura afrobrasileira ainda em formao e destacar que este problema filosfico da o surgimento desta anomalia na linguagem.

    Por enquanto julgo que o importante saber que Ktu uma nao, antigo reino da frica pertencente aos Egb, diviso dos Iorubas que na poca da escravido vieram em massa para Bahia, do qual Exu foi rei, Exu Alaketu, e da qual se originou todos os tradicionais candombls da Bahia. A msica em Yorb, Ioruba ou Iorub, mostra o universo lingstico que a tese percorre, no qual tudo certo desde quando a lngua viva e nem os doutores da lingstica, antroplogos ou sacerdotes conseguem dom-la; a lngua, a comunicao e princpio so arkh em Exu.

    A segunda inquietao que a letra da msica em si j carrega consigo toda a tese, que fala de educao do aprender e do local do aprendizado, da fora de Exu como motor, como impulso individual, da fora do senhor dos caminhos que age sobre todos. A msica

    2 Msica para Exu em Yorb com pronncia fontica e traduo, grifos e a esttica da arrumao do prprio

    autor (Ibid., p. 17).

  • 15

    fala de uma filosofia do educar e seus vrios caminhos. Esta um microcosmo da tese por ser poesia e parte de enredo mtico. O mito e a poesia perpassaram toda a tese uma vez que, no existe coisa mais prxima do filosofar e do educar que o mito e a poesia. Embora dentro da melodia e da letra desta msica estejam uma grande parte dos significados que esta tese busca desvelar, nem na msica nem na tese esto tudo que se possa falar da filosofia africana da qual Exu a fora propulsora. Msica e tese so partes de um todo, so pedaos, fragmentos de um olhar amante e apaixonado, e tudo que no momento eu posso ver do todo.

    O terceiro motivo de ordem teolgica. No candombl no se faz nada sem antes saldar a Exu, ele a fora que possibilita tudo, em todas obrigaes ele o primeiro a ser saudado tanto com o Pad o ritual do encontro, que acontece aps a matana e antes do Xir dana das festas pblicas, em forma de roda , para ele que se dar de comer e se canta primeiro. Tambm no Axx que uma cerimnia fnebre de passagem do Ai para o Orum, incio da vida coletiva, nosso duplo no mundo paralelo, cerimnia onde se evoca os antepassados ancestrais os Egunguns, primeiro se d comida e canta pra Exu, pois ele quem rene, quem vitaliza ele o mestre de cerimnia o embaixador, ele possibilita as passagens entre o que conhecemos por vida e morte, e tambm s evitam, uma vez que o mesmo o transportador dos bos que livram seus oferecedores da morte prematura dos infortnios das traies. De certa forma Exu engana a morte e tambm impulsiona o egum em sua nova vida, mantendo sua energia no coletivo e assim quer seja egum, orix homem ou at pedra todos tm Exu, pois todos tm energia, potncia, e at mesmo existncia. Por isso escolhi cantar para Exu na abertura deste ritual acadmico de passagem, pois cantando para Exu estou cantando para mim mesmo, fortalecendo minhas energias, ganhando fora individual e coletiva. Canto para que ele conclame todos ancestres e orixs, para que eles se juntem a ns aumentando ainda mais o ax desta festa.

    Seguindo a liturgia do canto que uma das mais importantes manifestaes da cultura afrodescendente, quer no ritual privado do culto ou nas festas pblicas, uma vez que atravs da msica que se vai ao transe e que sada aos orixs eliminando da cultura ioruba a dicotomia entre sagrado e profano, sendo msica e dana as duas coisas sem distino, levando sempre em considerao que o ldico srio, ou mesmo na cultura popular, uma vez que a musicalidade brasileira tem razes fincadas na frica, sem a qual no seria da forma que . Na msica, Exu se faz presente no ritmo, no ferro do agog simples de um s sino conhecido como G, que a ele consagrado, ele que conduz, harmoniza e desarmoniza,

  • 16

    muda o caminho, d tom aos atabaques, marcando msica e dana com o estridente som do ferro. E assim, agora sado e canto para Ogum.

    Figura 2 Instrumentos da orquestra iorubana atabaque maior Rum, mdio Rumpi, pequeno L e o agog de um s sino o G. Terreiro Il Kay Alaket Ash xum Cachoeira-BA (Emanoel Soares).

    gn y, ptk or rs !3

    kr gb gd, kr gb gd gn gb gd gn gb gd gn gb gd gn gb gd gn gb gd lkr gb gd

    Acor ba agad acor ba agad Ogum ba agad Ogum ba agad Ogum ba agad Ogum ba agad Ogum ba agad Lacr ba agad

    O senhor do akor4 protege derrubando o inimigo Com um golpe, Ogum protege abatendo o seu Adversrio com um golpe.5

    3 Salve Ogum, Orix importante da cabea ou O Cabea dos Orixs importantes (OLIVEIRA, 2004, p. 29).

    4 Capacete (Ibid., p. 30).

    5 Msica para Ogum em Yorb com pronncia fontica e traduo, grifos e a esttica da arrumao do prprio

    autor (OLIVEIRA, 2004, p. 31).

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    Figura 3 Ogum de minha irm ebmim Faustina e eu no dia da minha confirmao como filho de Ogum e og de Oxagui, de costas trazendo-nos outra irm ekdi Cle (Janes Lavaroti).

    Canto para Ogum por ser ele o dono da minha cabea, e por ter sido iniciado durante a pesquisa quando participava como observador das guas de Oxal o oss de Oxal no do terreiro Il Kay Alaket Ash xum localizado no Alto do Rosarinho Cachoeira-BA.

    Quando comecei a pesquisa decidi que meu campo seria em Salvador e Cachoeira no Recncavo baiano e o ponto de partida seria o povo de santo tendo como foco principal as Ialorixas. Nesta poca, eu era professor substituto da UNEB no Campus V, municpio de Santo Antnio de Jesus, no recncavo baiano. Ali conheci o professor Sandro Correia, filho baluai do terreiro Il Kay Alaket Ash xum, que se prontificou a me ajudar quando soube do foco de interesse de minha pesquisa, me trouxe ao seu terreiro e me apresentou a todos inclusive me-de-santo Preta de Oxagui pessoa simptica de gestos simples, porm vigorosos, que so coordenados por uma sinceridade embutida na voz que rapidamente me encantou. Se no bastasse ebmim Sandro, hoje meu irmo me emprestou uma casa de sua propriedade que o mesmo usa nas vezes em que est fazendo suas obrigaes para o candombl, comprei uma geladeira de segunda mo, fiz estantes, ajeitei a casa e me mudei para Cachoeira, onde passei a viver fenomenologicamente o mundo do povo de santo acompanhando me Preta em todos os lugares.

    Me Preta sempre me dizendo: Voc quer saber de Exu, quer aprender sobre o candombl me acompanhe atento ao que eu fao e olhe como os outros filhos da casa agem, pois no candombl s se ensina vendo e s se aprende olhando com ateno e repetindo o que os outros mais velhos fazem. E assim segui a Ilorix por todos os lugares, pelas feiras e

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    mercados, onde a mesma me ensinou a negociar nas compras de animais e comidas, tanto para alimentao do povo da casa como para as obrigaes sagradas do Ax, assisti a alguns rituais que eram permitidos para no iniciados entre os quais a matana de Xang que descrevo agora: Sangue vida, um candombl sem matana, sem sangue, no candombl, no tem vida no tem ax. (Seu Donga, vivo de Me Baratinha).

    No dia 20 de junho de 2007 cheguei ao candombl para participar da matana de Xang que dias antes havia sido convidado pela Ialorix Preta. Ao chegar foi convidado a tomar um banho de folhas e a trocar de roupas para participar do ritual.

    Este banho era de folhas de Xang e me deram para beber tambm trs goles do preparado de folhas pisadas misturadas com gua fria e coada. Um filho da casa me deu sabo de coco para eu tomar banho normal e depois ele mesmo me jogou gua do banho que ele havia preparado a partir da cabea por todo o corpo; ele me avisou que a roupa deveria ser de preferncia branca (roupa de rao), mas como eu no tinha, esta foi dispensada.

    Tambm fui avisado que teria que fazer abstinncia sexual por 3 dias, estando liberado aps a festa da fogueira de Xang no sbado noite; e ainda que eu poderia beber nas imediaes do ax na barraca Urupemba (peneira) e que se eu desobedecesse, teria que agentar as conseqncias.

    Aps o banho fiquei no salo esperando o comeo do ritual no qual reparei uma filha da casa que chegava e suas saudaes, primeiro sada porta de entrada virada para qual se deitou, bateu a cabea no cho virando-se para o lado direito e depois esquerdo, depois se virou para a coluna central ou cumeeira (onde provavelmente encontra-se enterrado o fundamento, ax da casa) depois para os atabaques, repetindo o mesmo comprimento e depois para a foto de me Baratinha.

    A me-de-santo estava apresando aos Ogs e Ebomins que cortavam o quiabo para o amal de Xang, pois no poderia iniciar a matana sem que os quiabos estivessem no fogo e reclamava tambm com as filhas que chegavam atrasadas com suas pores de quiabos, camaro, cebolas, feijo fradinho e azeite (ela explicava que teria que repartir na oferenda um pouco do que cada um trouxera para o ax ser pra todos e para a casa, e assim quando algum se atrasa, fica de fora, ou atrasa a cerimnia).

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    Figura 4 Filhos e filhas-de-santo cortando o quiabo para o amal de Xang (Emanoel Soares).

    A cerimnia comeava na cozinha e se estendia ao quarto de Xang onde a me-de-santo com um adj na mo tocava e cantava para Xang em ioruba, logo dois filhos receberam os Orixs todos estavam no cho e descalos curvados para uma espcie de altar onde se encontravam as ferramentas e utenslios de Xang, ao mesmo tempo em que saudava a Xang K wo, ka biy si! Kau kabiecile Podemos olhar vossa real majestade?6 Ela cantava, todos respondiam em coro e ela pedia tudo: sade, dinheiro, felicidade para todos os presentes e ausentes, amigos e inimigos, alm de pronunciar um a um o nome dos presentes e pedir por ns e mandar-nos pedir o que queramos a Xang, ressaltando que no pedisse a morte de ningum pois se isto fosse feito voltaria contra quem pediu.

    Logo a seguir, ela instrui aos Ogs que, segundo ela eram novos, ou seja, era sua primeira matana, a como segurar o galo enquanto ela cortava, para onde escorrer o sangue aps a cabea ser cortada por ela, quatro galos morreram e aps seu sangue serem espalhados por locais determinados pela Ialorix, por sobre o sangue foi derramado mel, azeite e vinho, depois energicamente ela ensinou aos Ogs a como tirar as penas do galo e colocar sobre o sangue e em seguida ensinou como quebrar as juntas das asas e das pernas dos galos. Por

    6 Pela ordem, escrita em ioruba, fontica e traduo.

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    ltimo veio a gua e mais pedidos de cada um, que iam saudando os orixs que estavam entre ns, tal saudao seguia a seguinte ordem: primeiro a cabea batida no cho e depois um abrao esquerdo e direito no orix incorporado; todos saam do quarto e a matana continua agora na cozinha, onde os animais mortos eram preparados, junto ao amal e aos acars.

    Eu e os outros ficamos sentamos no canto da cozinha e conversvamos, e me Preta afirmava que em nenhum candombl, nada feito sem antes se dar de comer a Exu.

    Depois ela ficou muito triste e comeou a chorar lembrando-se da sua me dona Baratinha, e no meio das lgrimas falou de no agentar o peso e responsabilidade de ser me, clamou por Ogum por socorro e aos seus gritos misturados com cnticos dois filhos incorporaram Ogum, os orixs foram saudados por todos os presentes e depois levados ao quarto. E me Preta disse que este era o ensinamento da sua falecida me que quando o corpo fraquejasse a Ialorix que de carne e osso deve chamar pelos orixs uma vez que eles so os responsveis pela segurana do ax.

    Neste nterim as comidas ficaram prontas a Ialorix deu acaraj na mo de cada um, que ela me pediu que aceitasse com a mo direita e depois de comermos seguimos em procisso com as oferendas na cabea, e cantando fomos ao quarto do santo e depositamos as comidas a seus ps com mais pedidos (levei a cabea um acar para Ians), esse foi o meu batismo em rituais do candombl.

    Figura 5 A noite depois da matana e do pad festa de Xang, xir em volta da foqueira (Emanoel Soares)

    At que na festa de oxal o santo de minha me Preta, que Oxagui me escolheu para ser seu Og me pegando pelo brao danando por todo salo e me sentando na cadeira de Og

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    trs vezes, era o incio de uma nova vida regida tambm por Exu o senhor das passagens dos caminhos das mudanas.

    No descreverei aqui este ritual, pois a inteno da tese no de cunho antropolgico e sim filosfico, ficando claro que o que mais nos interessa est para alm da forma. E essa transio da minha vida tinha seu significado vivo de mudana, conduzida por Ossnin o orix das folhas litrgicas que o dono do ronc, quarto onde me recolhi ritualmente por 7 dias, e coordenada por Exu, pois o r significa caminho em ioruba e o c ensinar e assim o ronc lugar onde se ensina o caminho, desta forma foi ele, Exu, aquele que abriu portas e ensinou o caminho para minha nova vida, foi Oxagui que me chamou certo, Ossnin quem conduziu, porm Exu quem potencializa este chamado uma vez que sem seu Exu individual as aes do Orix no podem ser postas em movimento, foi ele Exu que desencadeou as aes em mim e em Oxagui, ele colocou as partes em movimento, ele foi o elo que ligou e que

    facilitou a comunicao entre homem e Orix, tecendo a corrente ligando diretamente Oxagui a mim, conduziu-me diretamente ao culto e a seus ensinamentos, caminhos e passagens para uma nova vida, novo nome, novas mes irms e irmos da famlia unidos, Queto como nao e como terreiro o Il Kay Alaket Ash xum.

    Figura 6 Ossnin o senhor das folhas escultura de Eduardo Oduda (Emanoel Soares)

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    E assim termino esta primeira parte da introduo, cantando pra Oxagui orix ao qual servirei enquanto existir como Og.

    Ep Bb7

    wa d mo ti bi ib , wa d mo ti b bb, wa d mo ti bi ib , wa d mo ti b bb, Bb a d , wa d mo ti bi bb.

    Aud mtib ib aud mtib bab Aud mtib ib aud mtib bab Babo ad aud mtib bab.

    Ao chegarmos a ti eu nasci ali, ao chegarmos a ti, Eu nasci, pa. Pai que chegamos at ele e, ao chegarmos A ti, eu nasci, pa.8

    Do que fala a tese?

    Antes de falar dos captulos que compem esta tese, vou tentar falar do trabalho como um todo, que tem como objetivo examinar os mltiplos conceitos existentes para Exu, dentre os quais a inverso, observada na maneira deste orix ensinar s avessas, e no mito de como ele ensina a Oxum a jogar bzios para ver o futuro, ou do princpio do caos exuriano no qual preciso um grande estado de confuso inicial para que o esclarecimento acontea , e at do empoderamento das mulheres na Bahia. Esta matrifocalidade est presente na obra de Ruth Lands (2002): A cidade das mulheres, a qual mostra esta inverso exuriana de valores numa cidade machista em que as mulheres mes-de-santo so as poderosas.

    Sero vistos os diversos conceitos que Exu ganhou aps sua chegada ao Brasil, alm do dialogismo do orix da comunicao, o interlocutor de todos os outros. Os mitos africanos sero analisados, pois o mito a base da cultura de um povo e est no incio da sua formao, dando sentido sua existncia. Atravs da investigao desses pontos analisar-se- a natureza polilgica e polifnica de Exu, que o prprio movimento em si, pois ele a fora dinmica que move a tudo e a todos como bem destaca Joana Elbein dos Santos em sua obra Os Nags e a Morte.

    7 Respeito ao Pai (OLIVEIRA, 2004, p. 151).

    8 Msica para Oxal em Yorb com pronncia fontica e traduo, grifos e a esttica da arrumao do prprio

    autor (Ibid., p. 158).

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    Utilizando os mtodos fenomenolgicos que serviro para que se tenha uma viso sem prejuzos sobre o orix no convvio com o povo de Santo, por meio da escuta e de entrevistas, juntamente com o mtodo genealgico, sero analisados vrios estudos escritos por antroplogos e historiadores, os quais esto misturados, rasurados e mal redigidos muitos deles feitos com intenes de poder, j que os primeiros estudiosos estavam diretamente ligados ao cristianismo. Alguns destes documentos foram modificados em sua grafia e significado, no na procura de uma linearidade, mas sim de descontinuidade, pois no decorrer da histria devido a desejos exclusos as palavras perdem e ganham novos sentidos, direo ou idia lgica, procurando marcar com singularidade os acontecimentos, afastando-se de toda finalidade sem motivao, atentas aos sentimentos e afeies dos pesquisadores tais como: amor, instintos e m conscincia, sempre alertas a quem as redigiu, com inteno de desqualificar a importncia do orix. Assim, de olhos e ouvidos bem abertos, como um vigia, pois espreitando como diria Foucault , como numa caada ou investigao policial, buscando a melhor forma de entender a regra do jogo histrico, onde menos se espera que talvez aparea aquilo que no possudo pela histria.

    O objetivo desse estudo mostrar que em Exu existe um princpio pedaggico e dialgico gerador de conceitos. Por este ter vrios conceitos, e porque continua gerando-os em constante mudana uma vez que essa multiplicidade de conceitos e devir so caractersticas da filosofia segundo Gilles Deleuze , mostra que Exu pode ser assim como Apolo e Dionsio que so para George Colli em sua obra O Nascimento da Filosofia, o princpio de uma filosofia desta feita no a grega, mas a filosofia da educao afrodescendente.

    No primeiro captulo Mtodo vou falar da metodologia que usei para fazer a tese reafirmando a prtica fenomenolgica como essencial na construo de um entendimento sobre o fenmeno Exu, alm da genealogia que capaz de mostrar no que Exu se tornou aps sua chegada ao Brasil. Ainda nesta parte, fao uma genealogia dos conceitos exurianos, com uma espcie de cronologia conceitual que mostra as transformaes filosficas que giraram em torno do orix.

    No segundo captulo Motivaes explico os motivos que me levaram pesquisa da boalidade com um princpio para o resgate da filosofia africana, e conseqentemente o que me levou a escrever a tese. Em busca de um conhecimento ancestral, de uma filosofia africana capaz de construir a minha prpria maneira de ser afrodescendente. Destacam-se no texto as questes de ordem filosfica e epistemolgica que construram o etnocentrismo europeu e a mentalidade colonizada dos brasileiros, enfatizando que a boalidade a

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    resistncia capaz de manter tradies, mesmo contra a vontade do colonizador uma vez que o boal aquele que no aceita aquilo que lhe imposto, cultivando de maneira ousada e desafiadora as suas tradies. Ainda neste captulo, tento definir preconceito do ponto de vista epistemolgico e o racismo no prisma histrico, alm de explicar a existncia de um preconceito acadmico no s da Universidade Federal do Cear (UFC), mas de todas as universidades brasileiras que tentam ser mais europias que a prpria Europa

    No terceiro captulo Conceitos abro a parte conceitual da tese em mito e filosofia afrodescendente e as vinte e uma faces de Exu, em que parto dos mitos africanos, pois o mito a base da cultura de um povo, est no incio da formao e d sentido a sua existncia, estudar natureza polilgica e polifnica de Exu, que a prpria comunicao, em dilogo com o orix, procurar descobrir as possibilidades de um pensamento afrodescendente. Usarei o mtodo genealgico criado por Nietzsche e desenvolvido por Foucault para investigar a trajetria histrica e mitolgica do orix Exu concentrado na necessidade de atentar-se aos disfarces, as inverses, as lutas pelo poder, as vinganas, as astcias e rapinagens, procurando marcar com a singularidade os acontecimentos, investigando como quem investiga no uma origem, mas para ver como foi o seu tempo de forja, de formao do que hoje se chama de verdade e, assim, perceber como ele era, e como se transformou no que , com a inteno final de encontrar um princpio filosfico pedaggico baseado em Exu, pois este se comunica com todos, e esta comunicao enquanto dilogo pode ser o fundamento do pensamento africano e, conseqentemente, importante ponto de partida do pensamento afrodescendente.

    Ainda neste captulo, especificamente no item 3.2 Exu, dialogismo e comunicao identitria , procuro discutir o conceito de identidade como algo em movimento e em constante formao, no levando em conta o A=A e sim A ancestral de A. Como ponto de partida, tomo as caractersticas do orix Exu, aquele que se comunica e que aceita o contato sincrtico responsvel pela comunicao entre culturas tornando-as mveis, reconstruindo e redimensionando identidades; mostro algumas das influncias das culturas africanas na formao da identidade afrodescendente e refleto atravs de acontecimentos, que mesmo tendo o negro escravizado um status inferior na construo da nova sociedade, foi ele quem mais influenciou na formao cultural desta. Partindo do princpio que a cultura no transmitida por um homem e sim por uma instituio, um conjunto de homens, mostro a importncia das instituies religiosas de matriz africana, onde no existe a dicotomia sagrado e profano, na transmisso da cultura afrodescendente.

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    Continuando neste captulo, trago o item 3.3 Exu, inverso e irmandades mostrando como a partir do mito no qual Exu ensina Oxum a jogar bzios estudar do arqutipo do orix Exu, baseados nas anlises arquetpicas de Colli e Zacarias, as caractersticas mitolgicas dos deuses refletem na forma de ser de um povo, e conseqentemente em sua cultura e de maneira estrutural compem sua filosofia, seu ser a no mundo individual e coletivamente. Alm disso, verifico esta suposio estudando a histria das irmandades que foram criadas no seio da igreja catlica para difundir uma ideologia capaz de estabelecer pacificamente a submisso do colono e do escravo, convertendo-os mansamente ao catolicismo. Como que passa a ser estas instituies que vo promover alforria, o espao de culto africano, o poder da mulher negra? No estaria aqui uma clara evidncia do arqutipo do Orix, que faz do erro um acerto e vice-versa?

    A ltima parte deste captulo Olhares femininos sobre o orix Exu tem como ponto de partida uma breve genealogia da palavra olhar e suas mudanas conceituais de Plato a Maurice Merleau-Ponty, que nos convida a pensar o olhar como a maneira que nosso corpo inspeciona o mundo. A escolha do olhar feminino fundamentada na tese de Ruth Lands, A Cidade das Mulheres (2002), a qual identifica a relao entre pobreza e matrifocalidade, a inverso exuriana de valores, o querer ser mais, que confere s mulheres uma percepo especial no candombl, culminando em outra parte, que nos revela Exu no candombl da Bahia, sob os olhares da prpria antroploga, de duas Ialorixs, uma queto com caboclo, Me Preta de Oxagui e a outra do queto tradicional, Me Stela de Oxossi, alm da Gaiacu Luisa sacerdotisa da nao jeje-mahi. No tarefa deste trabalho criticar ou comentar. O esforo aqui desprendido para tentar mostrar, ou melhor, descrever o olhar feminino.

    Na Concluso analiso as entrevistas olhando os principais conceitos de Exu como principio de uma filosofia da educao afrodescendente.

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    1 MTODO

    1.1 A fenomenologia e a genealogia como mtodos de pesquisa

    Um dos maiores problemas em qualquer pesquisa parece ser a escolha do mtodo, no entanto este pseudo problema embora parea intransponvel de uma resoluo simples, basta definir o objetivo, pois mtodo s a escolha do caminho a seguir para se atingir o objetivo, tal escolha implicaria diretamente no fato de atingir, satisfatria ou insatisfatoriamente, minha meta, alm de ser responsvel na determinao dos tipos de fontes e modo de coletar os dados a serem empregados na pesquisa, que um fazer humano, uma obra do homem e a, logo de sada, tenho uma tica, uma vez que s se faz pesquisa na rea das cincias humanas com o outro.

    Desta forma, escolhido o objetivo do projeto de pesquisa pude me utilizar dos mtodos de pesquisa j existentes, ou estudar estes mtodos para, a partir da, criar o meu, de acordo a tica, a convenincia da pesquisa ou a do pesquisador, sendo que construir um mtodo, uma ferramenta, sempre fazer escolha de como desvelar o fenmeno, ou melhor, o objetivo que quero atingir, entendendo aqui, como fenmeno aquele que se mostra.

    Metodologicamente falando e didaticamente mostrando, ao iniciar esta escrita j fizemos uma destas escolhas que foi a pessoa verbal: escolhi falar na primeira pessoa do singular, pois se tratam de minhas experincias, minhas percepes.

    A escolha de um mtodo deve ser feita, a principio, partindo de alguns critrios como:

    1. A natureza do objeto de estudo no tocante ao campo a que este pertena, como por exemplo, cincias humanas ou cincias naturais;

    2. As habilidades e competncias do pesquisador quanto ao seu conhecimento e manuseio do mtodo escolhido;

    3. A agilidade que a escolha do caminho possa dar pesquisa, tendo em vista que os prazos, para entrega da mesma, exigidos pelas agncias financiadoras da pesquisa devem ser levados em conta desde o incio;

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    4. A fidedignidade da pesquisa, pois a escolha de mtodos inadequados e/ou o uso de fontes no confiveis, podem vir a distorcer ou encobrir os resultados, em vez de elucidar os fatos.

    Essa pesquisa tem como objetivo fazer um estudo do orix Exu. Com a finalidade de descrever os princpios de uma filosofia africana da educao, ela carrega em si dois problemas que vo influir na escolha deste ou daquele mtodo. O primeiro diz respeito natureza do orix Exu que no se deixa escanear pelos esquemas lgicos da cultura ocidental e que embora atualmente seja muito estudado, tem a peculiaridade de ser apenas ou quase sempre descrito, tendo como ponto de vista o seu aspecto antropolgico, no entendido filosoficamente, uma vez que o mesmo no opera na lgica de quem se prope a pens-lo; o segundo problema da natureza filosfica da pesquisa em si, que a torna arredia aos mtodos usados pelas cincias ditas naturais.

    Outro aspecto que se deve levar em considerao para a escolha de tal mtodo so as categorias que vo ser reveladas com uma pesquisa que fala sobre filosofia e educao e, assim, como toda filosofia traz em si uma tica, uma linguagem, uma esttica, uma cosmologia mtica, e neste caso uma pedagogia, alm de outros elementos que possam vir a surgir e que, juntas ou isoladas todas estas categorias falam diretamente do ser do homem em si, do homem a largado no mundo, entregue a sua sorte, portanto uma pesquisa humana.

    No possvel, neste caso, desconsiderar que o pensamento evocado um pensamento diferente do pensamento do outro, uma maneira mpar de se pensar com matrizes diferentes da cultura ocidental e que, por isto, tem que ser analisado, desprovido de preconceitos e etnocentrismos, para que o ser do ente possa mostrar-se, ser desvelado ou, na melhor tradio africana, permanea secreto, no se desvele, mantendo seu carter sedutor, causando vontade de ser conhecido, adepto do melhor estilo de Rubem Alves para o qual a fome, a vontade de comer so fundamentos importantes num processo educativo. Desta forma, nem bem escolhi o mtodo j anuncio o Eros, a seduo, o encobrimento, ponto central de uma filosofia africana, caracterstica basilar do seu proeminente emissrio Exu.

    Mas ao pensar com praticidade, se chegar concluso que o que est em jogo na escolha de um mtodo j existente, na adaptao de outro ou mesmo na inveno ou descoberta de um novo a maneira de como se pretende usar esta ferramenta para esculpir uma pea final (a tese), pois esta maneira, este caminho a ser percorrido vai conferir um estilo pesquisa e uma maneira de tratar os dados fornecidos pelas fontes que traduzido em uma

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    especfica interpretao dos resultados, um olhar determinado sobre o problema no qual estar o ser do pesquisador.

    Desta maneira, por estes e outros motivos escolhi dois mtodos para, em seguida, tentar fundi-los em um s. O primeiro o fenomenolgico, como caminho de acesso ao referido objeto de pesquisa, caminho este que logo de sada vai eliminar esta dicotomia sujeito/objeto, transformando os dois em um s, porm a minha escolha pode vir a gerar objees que fatalmente venham a solicitar uma ou mais justificativas pela escolha, com o surgimento de perguntas do tipo: por que o mtodo escolhido foi o fenomenolgico? E o que isso, a fenomenologia? Como se aplica tal mtodo? Ser que um mtodo ocidental serve para uma pesquisa de matriz africana?

    Logo de sada vale a pena falar do que seja a fenomenologia e seus usos para justificar a minha escolha. Para tanto, entrarei em dilogo com Edmund Husserl (1859-1938) que na sua obra A Idia da Fenomenologia (1990), conceitua fenomenologia como um mtodo crtico do conhecimento universal das essncias. Ento, se a fenomenologia critica as essncias, logo acho a minha primeira adequao do mtodo, uma vez que este supera a antiga querela dicotmica entre aparncia e essncia.

    Diferentemente do que o Ocidente busca em seu modo de relacionamento com o real uma verdade universal e profunda , a cultura negra a cultura das aparncias. Esta palavra ganhou no Ocidente um significado quase to pejorativo quanto boal no Brasil. Boal, j dissemos, era o negro no-integrado (pintado como o Demnio, o Co, em certos discursos populares) e que, por isso, acendeu chamas em torno do continuum africano, dos mitos originrios. Aparncia o demnio da filosofia cristo era o que a metafsica opunha realidade e ao Ser (assim como opunha verdade e iluso), tornando-se depois sinnimo de superficialidade, trivialidade, facilidade, etc. (SODR, 1988, p. 133).

    Assim, posso dizer que este mtodo, ou melhor, este caminho uma maneira filosfica que analisa o conhecimento, suas possibilidades e limite. A fenomenologia no pretende esgotar nenhum conhecimento, visando coisa em si como ela mesma se mostra, sem preferncia entre real e irreal.

    Diante da crise da razo gnosiolgica do seu tempo, que vinha solapando qualquer pretenso de se dar seguimento a uma cincia de constituio do conhecimento puro (a priori), Husserl restaura atitude transcendental como retorno s coisas mesmas, provocando assim, profundas mudanas no horizonte terico do fazer filosfico do sculo XX. Reclamando, renovadamente uma nova tarefa para a Filosofia do Sujeito, precisamente aquela capaz de superar o amadorismo emprico ou transcendentalismo ingnuo (ou realista) das pocas anteriores, Husserl projeta para a filosofia a

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    possibilidade de desfazer-se dos tormentos da obscuridade, e isto atravs do mtodo fenomenolgico (ou reduo fenomenolgica) levando as suas extremas conseqncias, a saber: o retorno conscincia. (GALEFFI, 2000, p. 19).

    Mas, o que seria este retorno s coisas mesmas, esta reduo fenomenolgica, este retorno conscincia, esta suspenso de pensamento na direo de uma conscincia pura. Como se opera um mtodo to radical?

    Esta radicalidade de pensamento exige uma mudana, tambm radical, de comportamento:

    1. necessrio que se esteja livre de conceitos prvios sobre o objeto de estudo, e caso j se tenham algumas informaes sobre ele deve-se mant-las em suspenso na mente, isto , no lev-las em considerao aprioristicamente. De certo modo, no comeo da pesquisa, deve-se fechar os ouvidos para a tradio, o que no desprez-la, mas p-la de lado e esperar que a coisa se mostre;

    2. Mudar o olhar em torno da coisa para que ela penetre na conscincia, na sua totalidade como ela , com as suas mais diversas facetas e possibilidades. Neste caso, a viso deve ser com maior nmero de dimenses e de olhares possveis, sempre mudando (manter-se em movimento, entorno da coisa, abandonando a antiga postura esttica entre o sujeito e o objeto) para no se acostumar s com um ngulo;

    3. Sujeito e objeto devem aproximar-se de maneira que se torne s um, sem distanciamento, nem neutralidade, pois assim o que o ser vai se tornar conscincia de. O sujeito do conhecimento deve participar amplamente da pesquisa sem distanciamento;

    4. Deve o sujeito do conhecimento, sempre interrogar e suspeitar da conscincia emprica, psicolgica e existencial, para que possa atingir um conhecimento

    natural das coisas mesmas dos fatos, das idias e dos afetos;

    5. Desta forma, aberto de maneira consciente, receptivo e sem juzos prvios, num estado de dilogo com o seu objeto de pesquisa, este vai mostrar-se, vai materializar-se na conscincia do observador como fenmeno do verbo grego phanmenon, que significa aquilo que aparece que se mostra luz, que brilha;

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    6. A experincia prvia do pesquisador e os ecos da tradio vo fazer parte de um momento pr-reflexivo que se dar aps a coleta de dados, no momento da anlise e tratamento dos mesmos, ou seja, um momento rico de uma segunda reflexo, aposteriori, entre a coisa mesma e o que eu sabia, previamente, sobre a coisa.

    Ao olhar atentamente, possvel notar que a fenomenologia uma espcie de comunicao da realidade nossa conscincia, uma maneira de conversar com o problema de pesquisa, de inquiri-lo, de dialogar com ele para compreend-lo, interpret-lo; faz-se necessrio um interrogar constante de rigor filosfico para que o fenmeno venha a mostrar-se.

    Desta forma, tal como o nosso objeto, no caso Exu, para o olhar fenomenolgico no pode existir uma s realidade, pois existem vrias interpretaes e, assim sendo, da mesma maneira que existem vrios Exus e todos reais, as verdades fenomenolgicas tambm so vrias, todas reais e relativas, a quem as percebe e as interpreta de acordo com a sua perspectiva, um compromisso, um engajamento, sendo que no existe neutralidade e, sim, uma cumplicidade, uma escolha, quer dizer, a intencionalidade de um perceber perspectivo relativo, porm rigoroso.

    Ao se perceber o fenmeno, tem-se que a um correlato e que a percepo no se d no vazio, mas em um estar-com-preendido. Ir-s-coisas-mesmas a experincia fundante do pensar e pesquisar fenomenolgico faz parte do seu rigor. Por um lado, ao mergulhar nas coisas-mesmas o fenomenlogo realiza um trabalho de desvencilhamento dos seus preconceitos para abrir-se ao fenmeno poche , isto , realiza um esforo no sentido de compreender o mais autenticamente possvel, suspendendo conceitos prvios que possam estabelecer o que pra ser visto. (MACDO, 2000, p. 47).

    a fenomenologia um fazer reflexivo, uma prxis, um labor inventivo, uma construo humana, fruto da interao entre o meu objeto de pesquisa e eu, em um primeiro momento quando se d a reduo fenomenolgica, e num segundo instante quando eu partilho as minhas percepes com os outros sujeitos que esto no mundo comigo, percebendo tambm o mesmo fenmeno, muitas vezes em perspectivas diferentes da minha.

    Na condio de abertura de possibilidades para a investigao rigorosa do ser-do-homem, a fenomenologia permanece sendo apenas uma possibilidade. E isso enquanto se apresente interrogante, ou melhor, metassistmica, pretendendo, portanto ensinar a verdade acabada, e muito menos as leis perenes do ser-no-mundo, mas apenas tornar-se descritivo do acontecimento do sentido fenmeno-lgico. (GALEFFI, 2000, p. 34).

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    Como o projeto fenomenolgico de uma investigao radical entre humanos, o qual vem a desvelar acontecimentos pelas vias interrogativa e crtica, ele exige uma tica to radical quanto o prprio. A primeira necessidade de uma tica individual que o conjunto de motivaes do pathos humano, que leva o indivduo a alcanar uma determinada meta, escolhida livremente pelo mesmo. Quando falo do pathos estou falando do sensvel, da paixo humana, que lhe d o livre arbtrio, que permite a ele simpatias ou antipatias por algo; e quando digo meta, estou falando de vontade humana, neste caso a de conhecer os acontecimentos importantes para a pesquisa e, num segundo momento, uma tica do coletivo ou do relacionamento com o outro que a responsabilidade da participao social, a qual tem como princpio reconhecer no outro um igual, reconhecer no outro um existente,

    reconhecer no outro o eu prprio na procura de melhor coexistncia, preservando incondicionalmente a individualidade, que a vontade do outro, seu igual.

    O mtodo fenomenolgico capaz de utilizar-se de diversas fontes da pesquisa social. Na presente tese, utilizarei as seguintes:

    a) A entrevista, como maneira de analisar as narrativas do povo de santo sobre o orix Exu, buscando o significado filosfico nas narrativas;

    b) As msicas e a iconografia, para que se possa descrever a esttica existente em Exu;

    c) Reviso bibliogrfica dos mitos sobre Exu, buscando seu sentido filosfico que compem a filosofia da educao africana;

    d) Cabe neste trabalho, tambm, fazer uma genealogia do Exu, assinalando a transformao sofrida pelo orix, devido sua vinda da frica para o Brasil, mostrando seu encontro com o catolicismo e com a umbanda;

    e) E, por ltimo, a principal fonte: que sou eu mesmo, com minhas idias, criatividade e resistncia cultura ocidental, a qual Muniz Sodr chama de boalidade. Na verdade, a tese vai falar muito do meu mundo, e para isso nenhuma fonte melhor que eu mesmo.

    Como segundo mtodo para estudar Exu, usarei a genealogia, no sentido nietzscheano da palavra, o apelo para o esquecimento, por aquilo que foi esquecido sobre Exu, aquilo que deixou de ser dito ou foi propositalmente posto de lado, uma vez que uma genealogia est sempre atrs do diferente e no atrs de uma essncia, porm est procura

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    dos segredos julgados no essenciais, haja vista que em histria existe um jogo de poder que oculta algumas coisas importantes, dizendo no serem estas essenciais e que s vezes coloca um carter de essencial ao que no importante, um jogo onde a importncia escamoteada, encoberta, velada, pois serve sempre ao poder, sejam eles, central ou perifrico, que sempre foi motivo de disputa entre religies e ideologias diferentes na luta por hegemonia ou ideais, no que diz respeito ao orgulho pessoal ou ttica de sobrevivncia.

    Suportar os incmodos e dificuldades de procurar um caminho, num espao imenso, com inmeras pistas, marcadas pelas batalhas do poder a tarefa que uma pesquisa desta ordem requer, alm de pacincia, e como diria Foucault, mincia de saber, para definir os locais onde estes atos histricos se tocam e as lacunas que existem entre eles, saber os no ditos a respeito de Exu para escarafunchar os no ocorridos com a figura do Orix e entender seu processo de forja, sem se preocupar com sua origem.

    A genealogia necessria para que eu aprenda num retornar a Exu, no para traar uma curva evolutiva, mas para compreender e reconhecer as diferentes cenas e papis distintos de cada ator histrico. Nesta trilha genealgica as palavras do Nietzsche para com a histria da moral servem para o meu pensar em relao a Exu, pois tanto a moral quanto o modo de ser de Exu foram deturpados, alterados por aqueles que na forma luxuriosa de se manter hegemnicos, manusearam os conceitos legislando em causa prpria, uma vez que a histria da moral, assim como, a histria de Exu, sempre ou quase sempre contada e formatada estrategicamente por quem vence, quer vencer, ou por quem detm ou a qualquer custo quer deter o poder, sempre de maneira parcial.

    Meu desejo, em todo caso, era de dar um olhar to agudo e imparcial uma direo melhor, a direo efetiva histria da moral, prevenindo-o a tempo contra estas hipteses inglesas que se perdem no azul. Pois bvio que outra cor deve ser mais importante para um genealogista da moral: o cinza, isto , a coisa documentada, o efetivamente constatvel, o realmente havido, numa palavra, a longa, quase indecifrvel escrita hieroglfica do passado moral humano! (NIETZSCHE, 2004, p. 13).

    Quem sabe assim eu possa ver onde o Orix foi modificado e modificante no encontro com os outros. Desta maneira, talvez eu possa lanar um olhar de compreenso sobre o modo de ser do africano e do afrodescendente que, a priori, eu posso afirmar ser fruto da dispora e do xodo, do antes e do depois, de um fluxo e um refluxo, idas e vindas entre a frica e Brasil, s vezes, com triangulaes na Europa, atravs do Atlntico, movimento este, que da natureza do Orix Exu.

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    Os meus estudos no perdero de vista a tradio oral, que foi o principal motor de transio do conhecimento do candombl e da cultura africana at ento, porm, quero dizer que na frica existia e existem vrios alfabetos e uma cultura escrita, porm os colonizadores sempre tenham feito a todos pensarem ao contrrio, quando a desqualificou em detrimento da imposio da sua escrita, alegando ser esta a nica possibilidade civilizatria e, embora, essa fosse menos privilegiada em relao oralidade. Tambm importante ressaltar que hoje existem vrios documentos coisa que h bem pouco tempo, era rara , fruto do trabalho incansvel de antroplogos, socilogos, educadores e outros intelectuais que se debruaram sobre os temas dos afrodescendentes, os africanos e as chamadas africanidades e temas afins, nacionais e internacionais, que tentam dar conta das nuanas do povo brasileiro e da dispora do povo africano pelo mundo e sua forma de ser e pensar, de proceder perante o desconhecido, assim como, sua tcnica, sua inventividade e a sua lgica.

    Cabe ao genealogista verificar entre este grande nmero de documentos que esto misturados, rasurados e mal redigidos, feitos com intenes de poder e que, s vezes, foram modificados em sua grafia e significado, no na procura de uma linearidade, mas de descontinuidade, pois, no decorrer da histria, devido a desejos exclusos, as palavras perdem e ganham novos sentidos, direo ou idia lgica. O que leva ao genealogista, aconselhado por Foucault (1995), a empregar o mtodo nietzscheano concentrando toda a sua ateno necessidade de atentar-se aos disfarces, s inverses, s lutas, s vinganas, s astcias e s rapinagens, procurando marcar com a singularidade os acontecimentos, afastando-se de toda a finalidade sem motivao, atento aos sentimentos e afeies tais como amor, instintos e m conscincia sempre alerta, de olhos e ouvidos bem abertos, como um vigia, pois espreitando como que numa caada ou investigao policial, tal qual um detetive ou caador a melhor forma de entender a regra do jogo histrico: onde menos se espera que, talvez, aparea aquilo que no possudo pela histria.

    justamente a regra que permite que seja feita a violncia violncia e que uma outra dominao possa dobrar aqueles que dominam. Em si mesmas as regras so vazias, violentas, no familiarizadas; elas so feitas para servir a isto ou quilo; elas podem ser burladas ao sabor da vontade de um e de outros. O grande jogo da histria ser de quem se apoderar das regras, de quem tomar lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfara para pervert-las, utiliz-las ao inverso e volt-las contra aqueles que as tinham imposto [...]. (FOUCAULT, 1995, p. 25).

    Tal genealogia me leva a uma empreitada exuriana que a de dialogar com historiadores, antroplogos, filsofos e educadores que se debruaram sobre o assunto e com

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    o prprio Exu; comunicar-se, escolher um caminho que resgate o que talvez seja a principal caracterstica do orix que de cunho filosfico-pedaggico, uma vez que a adivinhao no sentido oracular da palavra, a inverso e a relatividade dos fatos so tambm caractersticas do orix, cujo contato com ele sempre se aprende uma lio por ele comunicada, explicitada ou mostrada. Exu, de maneira jocosa forma esta que os pedagogos costumam chamar de ldica, ou atravs de um raciocnio que conhecido pelos filsofos como silogismo est sempre a ensinar de forma filosofante.

    Conta o mito que o adivinho Orumil estava perdido na floresta no sabendo como chegar casa de um amigo do qual tinha o endereo, mas mesmo assim no encontrava o caminho, e h horas andava em crculos. Eis que, de repente, encontra com Exu e aps saudaes o adivinho fala como bom encontr-lo e pergunta se Exu conhecia aquelas matas? Exu responde que conhece como a palma da sua mo. Ento, Orumil pede a Exu para gui-lo, alegando compromissos financeiros. Exu se faz de rogado, at que Orumil percebendo o interesse por dinheiro de Exu, pergunta quanto ele quer para lev-lo. Exu responde que quer 16 curais, preo que Orumil julga caro posto ser o valor correspondente s suas adivinhaes com o If, alegando ser esta tcnica difcil e no podendo ser comparada sabedoria geogrfica de Exu, o qual retruca, falando que embora ele no soubesse o If, sabia o caminho, coisa que a sabedoria do adivinho desconhecia. Vendo-se sem sada Orumil paga a Exu o preo exigido pelo senhor dos caminhos e este leva o adivinho at a casa do amigo, coisa que era bem perto de onde eles estavam para espanto de Orumil. Depois, Exu sai rindo com o dinheiro do sbio no bolso. A lio que fica deste mito que cada um importante no seu saber, nem mais nem menos, todos o saberes so importantes.

    O caminho ou caminhos que sero percorridos nesta pesquisa levar em conta a mitologia e a trajetria esttica, o ponto de partida ser a anlise da ordem do discurso mitolgico, entretanto, por perceber que tal anlise por si s no foi suficiente, tambm conversei com artistas plsticos, observei e analisei as obras de arte referentes ao tema e s manifestaes culturais, como as msicas, as festas, os espaos, as comidas, os vesturios, entre outras. Acredito que na mitologia est o arkh da filosofia de um povo, uma vez que os mitos so as histrias verdadeiras dos tempos primeiros, antes do que passou a existir. A arte retrata um imenso conjunto de habilidades, potencialidades e utilidade no sentido aristotlico de tcnica humana, que remete competncia do fazer, e a cultura como um espelho da organizao social, cabedal de conhecimentos, crenas religiosas, valores intelectuais e morais. Estas categorias falam com maior desenvoltura e veracidade sobre si mesmas, sobre

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    sua poca, seus propsitos, e seu povo. O mito, a esttica e a cultura sempre nos dizem a quem servem e a quem elas interessam, alm de explicar quais os propsitos que alcanam, e para que foram feitas.

    tambm o samba, de roda, de chula, de partido e o da escola no tempo do carnaval, que uma sntese que se rene de materiais e desejos afrodescendentes, que s podem ser conhecidos se o corpo e o esprito tiverem uma entrega total e se deixarem o pandeiro conduzir a vida; coco, coco-de-roda, coisa do litoral nordestino e tambm do serto, to coco como o coco de arroz, do feijo-de-coco; comidas, tantas, de dend, de folha, de arat, pimenta; pimenta boa a da costa, para dar hlito e proporcionar falas sagradas; e sagrado para o afrodescendente o espao pblico do mercado, sntese do mundo e onde Exu sempre lembrado, enquanto agente inaugural do mundo. Bar centraliza o espao do Mercado Municipal de Porto Alegre, cidade que tambm rene muito terreiro de batuque; o afrodescendente no Sul na constituio multicultural da nossa sociedade. (LODY, 2005, p. 16).

    Diferentemente s vezes da rigidez lgica e metodolgica do intelectual acadmico, que faz com que estes homens das cincias no vejam muito, alm do prprio nariz, a esttica mostra para alm do prprio olhar e este encontro com a arte e a cultura afrodescendente ser uma excelente linha de fuga da vertente religiosa, se constituindo em uma janela de onde se possa ver para alm da religio, para que assim o profano desvele-se sem o julgo do moralismo, pois, em primeiro lugar o moralismo, proveniente do catolicismo, que est na base do modo de pensar ocidental e que contaminou at as mais tradicionais casas de candombl, seus representantes e participantes da religio dos orixs, deturpou o nosso entendimento sobre a maneira de ser do orix Exu, quando estereotipou suas caractersticas e o comparou com o demnio da religio crist. Bastide (2001, p. 162): Lembro ainda daquela ialorix a quem perguntei se tinha em seu terreiro filhos de Exu e que fazendo imediatamente o sinal-da-cruz, respondeu: Deus me livre. o co no deixarei jamais entrar pela minha porta.

    Numa entrevista com Me Guaiacu Luisa notei o respeito com que a venerada e saudosa sacerdotisa do terreiro da nao Jeje Mahi, Rumpayme Ayono Runtgi, localizado em Cachoeira, recncavo baiano, embora ela prpria falasse da importncia de Exu no ritual do candombl, no mesmo momento, ela acentuava a necessidade de dominar Exu e da existncia de Exus malvados, atribuindo desta maneira o mal ao orix como se fosse uma caracterstica dele, porm sei que esta caracterstica herana dos jesutas que no o compreendiam. Me Stela de Oxossi, sacerdotisa do terreiro da nao Keto Il Ax Opofunj, localizado em Salvador, no bairro do So Gonalo do Retiro, atribui a Exu a ao de forma desordenada e inconseqente, que devido a sua rapidez, podendo fazer o mal e o bem e necessitando de ordem, pois segundo ela, Exu abre os caminhos desordenadamente, apressado e

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    inconseqentemente, precisando que depois Ogum ponha ordem atrs do caminho feito por ele. Para Me Stela, ele rpido, um ser de aes desmedidas, porm no mal. A ialorix admite que esta fama de Exu ser ruim e malvado foi adquirida atravs da igreja catlica.

    Em segundo lugar, a prpria natureza do candombl, que uma religio das aparncias, que tem o segredo e o encobrimento, como ponto de partida hierrquico para o conhecimento, mantendo os rituais secretos para os iniciados, como tambm as suas tradies que atravs das festas pblicas permitido mostrar apenas uma parte a todos, o ax, energia vital dos iniciados que cresce a partir do seu conhecimento e os nveis de tenso so mantidos entre o pblico e o segredo, au, para os nags, como fundamento. Conforme Sodr (1988, p. 142):

    No au, no segredo nag, no h nada a ser dito que possa acabar com o mistrio, da a sua fora. O segredo no existe para depois da revelao, se reduzir a um contedo (lingstico) de informao. O segredo uma dinmica de comunicao de redistribuio do ax, de existncia e vigor das regras do jogo csmico. Elas circundam como tal, como au, sem serem reveladas, porque dispensam a hiptese de que a Verdade existe e de que deve ser trazida luz.

    E, em terceiro lugar, forjaram um dualismo que no existe no candombl, e que talvez s a arte que transcende aos maniquesmos me ajude a desvel-lo, tal teoria foi bastante explorada por Nina Rodrigues nas suas pesquisas sobre o candombl, que terminou dando cunho cientfico ao trabalho estereotipado, iniciado pelos jesutas, afirmando o que h muito tempo j tinha se estabelecido na imaginao popular. Tal teoria dizia que havia dois princpios na religio dos iorubas, o do bem (Oxal), e outro o do mal (Exu), estimulando assim, decisivamente, o preconceito, uma vez que reduzia a importncia e complexidade da

    religio africana, afirmando que esta no passava de um dualismo primitivo e selvagem, minimizando o conhecimento a respeito dos orixs Exu e Oxal, e do prprio fundamento do candombl e, principalmente, seu efeito fulminante e decisivo para a associao de Exu ao mal, ao demnio e a tudo o que no presta.

    As trs teses aqui expostas justificam por si s os estudos com bases em categorias estticas e me levam a uma quarta, a prpria dinmica do candombl que est em constante movimento, instituindo novos saberes, transformando outros, e transformando-se, reinterpretando e resignificando a si e a outras religies, criando estratgias de sobrevivncias e ampliando identidades, sendo em si mesmo multireferencial, abandonando de uma vez por todas os conceitos de pureza ou de identidade tradicional e fixa, sendo que, depois do

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    encontro de religies, aqui no Brasil, nenhuma delas como era antes. Exu tambm mudou, transformou-se, contaminou a tudo e a todos e tambm foi contaminado por aqueles que estiveram em contato com ele, sendo e fazendo ser no outro no mais igual, e sim, um nico semelhante a si prprio o esprito do encontro o esprito afrodescendente.

    Desse ponto de vista, no existiria tanto uma identidade nica, fixa e rgida, mas mltiplos e cruzados processos de identificao gerados por contextos interlocutores especficos. Nessas interaes sociais, certos sinais diacrticos, fluidos e flexveis, seriam valorizados em funo da utilidade de uma determinada identificao e de acordo com as preferncias e os interesses do momento. Mas essa instrumentalizao da identidade tem seus limites no sentido de que a identidade tambm resultante da identificao imposta pelos outros, e o indivduo ou grupo deve considerar esses limites na sua estratgia. A confluncia do carter situacional dos processos de identificao com a existncia de um repertrio variado de categorias referenciais, permitem postular a noo de uma identidade multidimensional. (PARS, 2006, p. 16).

    Seguir esta trilha, este rastro de filosofia africana genealogicamente no me levaria a um outro lugar que no fosse frica de antes do primeiro encontro, antes da dominao e colonizao portuguesa, antes do encontro de Exu com os jesutas catlicos, no atrs de uma origem, mas para ver como foi o seu tempo de forja, e assim, perceber como o que era se transformou no que .

    1.2 Exu e a encruzilhada de conceitos: stsn9

    Para os nags dos candombls tradicionais da Bahia, s ou Exu escrito na sua forma abrasileirada a principal entidade, no s do culto aos Orixs em que ele a fora dinmica que move o sistema mtico ancestral, como tambm na vida, no dia-a-dia que, segundo a crena do povo de santo, a energia que vitaliza as pessoas e de tudo o que existe. Em resumo, sem Exu no tem movimento, logo sem ele no teramos culto aos orixs, nem

    vida para os seres.

    Quando falo nag estou falando dos Yorubano, daqueles que vieram escravizados, amarrados em pores de navios negreiros, da frica Ocidental para o Brasil, com maior incidncia na Bahia, destinados a princpio a trabalhar na lavoura de cana-de-acar, mas

    9 Nome prprio usado orgulhosamente por pessoas na frica que significa Exu merece ser adorado. VERGER,

    2002; p. 76

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    terminaram no decorrer de sua forada estadia, tendo participao direta em todo o labor, desde o mais sofisticado, como tcnicas arquitetnicas, at a mais simples faxina, passando por uma culinria nica e uma msica sem igual, que resultou na construo deste Estado de maioria negra e cultura afrodescendente.

    Na Bahia se associaram em irmandades catlicas, juntaram crenas de diversas culturas africanas inventando o candombl, que (aqui) se estabeleceu e estendeu sua cosmoviso por todo o pas, encontrando-se e recriando-se com diversas etnias, no melhor estilo exuriano de comunicao e movimento.

    Exu tambm chega ao Brasil com os povos bantos, mais ao sul, no Rio de Janeiro e So Paulo, onde devido permissividade natural destes povos, surge com mais fora a umbanda. Ele no deixa tambm de misturar-se com os ndios na Bahia, e mais ao norte, resultando nas pajelanas e nos candombls de caboclos.

    Oldmar criou s com um e bo ra todo especial de maneira tal que ele deve existir com tudo e residir com cada pessoa. Em virtude de suas competncias e poder de realizao, de sua inteligncia e natureza dinmica, o s de cada um dever dirigir todos os seus caminhos na vida. If quem fala e revela para nos permitir sab-lo. (SANTOS, 2002, p. 132).

    Para os povos Fons, do sul de Benim e da Nigria, que so tambm da frica Ocidental, (porm) que tem como lngua predominante o dialeto mahi, Exu Legba, O Protetor, divindade, Vudum, cultuado nos terreiros Jje Mahi onde goza da mesma importncia do similar iorubano s -Elgbr que convive com os Orixs nas casas de candombl Kto. Para os povos bantos, ele conhecido com Bombogire, Mavambo, Ungira e cultuado no Brasil nas casas de candombl Angola-Congo, fazendo parte da famlia dos Ekice ou inquices.

    E quando digo casas tradicionais, estou me referindo aos terreiros, ditos puros, que so aqueles que lutam para manter a tradio indelvel num exerccio de tenso contra o devir, como se fosse possvel imobilizar identidades de uma religio nova e ainda em construo, tentando em vo no se misturar com o culto aos ndios brasileiros, as conhecidas pajelanas ou festas de caboclos que em outra verso ainda se mistura com o kardecismo, catolicismos, astronomia, alm de outros ritos msticos que do origem religio afrobrasileira, com nfase na matriz africana que se chama de umbanda.

    Desta maneira, as casas tradicionais da Bahia, descendentes diretos do candombl da Barroquinha, lutam contra a umbandizao do candombl, a manuteno e ou recuperao das

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    razes africanas atravs do candombl. Acusam os candombls bantos de permissivos e sincrticos e em busca de uma pureza africana, que lhes confere status, se nomeiam de tradicionais, rejeitando caboclos e santos da igreja catlica, procurando sempre esclarecer as caractersticas de Exu, evitando coloc-lo em evidncia, para que parem de confundi-lo com o diabo, do cristianismo.

    Muitos terreiros do candombl de orixs das naes iorubanas (queto, alaqueto, ef, egb), seno suas maiorias acabaram por incluir o caboclo do rito banto no panteo, embora a legitimidade do caboclo neste candombl nag ou ioruba seja ainda continuamente questionada, sobretudo porque os terreiros mais antigos e tradicionais seguem cultuando exclusivamente os orixs, mantendo separadamente um culto de antepassados que no inclui os ndios. freqente chamar estes candombls de umbandombl, ou ento candombl-queto-caboclo, denominaes consideradas pelo povo-de-santo nada elogiosas. (PRANDI, 2005, p. 122).

    Falar de Exu ser o principal no significa aqui subestimar a importncia dos outros orixs, no entanto, quer dizer da necessidade de Exu para a realizao do culto aos Orixs, onde este leva e traz mensagens e bos, funciona como intrprete lingstico dos Orixs, no orculo ele quem responde quando a me ou o pai-de-santo consulta os bzios, alm do papel que este desempenha na regncia do cosmo, na viso dos iorubanos onde parte individual e a energia vital de cada ser, sendo como Olodumar parte constituinte de tudo que h na run e no iy. Cabe a ele levar as oferendas dos humanos aos Orixs e no incio de todas as festas, abertas ao pblico, acontece uma cerimnia consagrada a este Orix, que o Pd.

    Durante o Pd, s invocado sob o duplo significado de In, fogo e de dr, aquele que prov o bem-estar, ou satisfao. In, fogo seu elemento constitutivo, seu aspecto mais poderoso, aquele que pe em evidncia seu status de filho, de elemento de reunio, de comunicao e de participao. (SANTOS, 2002, p. 185).

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    Figura 7 Pad, aquarela de Caribe (http://www.pitoresco.com.br).

    Esta reunio participativa fruto da comunicao de Exu torna-se clara tambm em outra cerimnia, o Xir, que a ordem das msicas executadas pela orquestra ioruba, formada por trs atabaques, rum, rumpi e l, junto com o agg. Na execuo das msicas forma-se uma grande roda onde as ou os ebmim (filhos e filhas-de-santo) entram em transe recebendo os Orixs, donos da sua cabea, para em seguida, vesti-los, com suas cores e insgnias, sempre danando e cantando.

    Esta cerimnia festiva, aberta ao pblico, o smbolo mximo do sincretismo inter-africano dos candombls, na qual orixs de grupos tnicos diferentes danam juntos consagrando, assim, a mistura de razes africanas, formando uma religio tipicamente brasileira, todos convocados por Exu, que foi alimentado no Pad, para promover este encontro, esta transformao mgica que recontar os mitos e reencontrar os tempos

    ancestrais.

    O candombl no uma cultura religiosa fechada, independente da sociedade em sua volta, isto fora a quem estuda esta religio, a prestar ateno nos valores sociais que cercam os terreiros e nas transformaes a que estes esto sujeitos, o que vem a romper com o culturalismo que considera a tradio cultural como autnoma e para o qual a aculturao s acontece com o contato, podendo culturas se isolar, quer dizer ficarem parte das mudanas sociais. Esta era a maneira de pensar e, conseqentemente, o mtodo usado pelos primeiros estudiosos do tema, que no levavam em conta a transformao social que ocorria em volta dos terreiros.

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    Desta forma, possvel ver que, ao contrrio do que vrios historiadores e antroplogos falam, o candombl no uma ilha da frica dentro do Brasil. O mesmo sofreu e ainda continua sofrendo todas as influncias geradas, desde as circunstncias em que fora criado a brutal viagem da escravido, a quebra dos laos consangneos que confirmava a ancestralidade, a mistura de cultos, pois na frica no existia Xir, a influncia do cristianismo, atravs das represses sofridas, que vo de perseguies do santo ofcio ao Kalundu (forma primeira do candombl) , a atos sincrticos, acrescentado ao culto dos Orixs. J no seu nascimento que acontece no seio das irmandades catlicas, chegando at a violncia fsica e emocional, prpria da represso policial, que s vai ter fim na dcada 1970, final do sculo XX, a reinterpretao de seus smbolos pelo umbandismo, a prpria mudana da sociedade de agrcola e extrativista para industrial, e agora por ltimo a intolerncia religiosa dos evanglicos e dos carismticos catlicos que se debatem usando agressivamente a mdia em busca de novos adeptos.

    Neste momento, a nica certeza de pureza e autenticidade na religio dos Orixs o devir proveniente da adaptao desta novssima religio dinmica da tambm nova sociedade afrobrasileira, uma vez que ilhar-se que pode ter sido uma estratgia no momento inicial , hoje, com certeza, no possvel tal isolao em nossos dias, pois levaria o candombl a um retrocesso destrutivo. Sendo que, de fato, nunca existiu religio sem sociedade, podendo esta esconder-se dos olhares, idias e valores do povo, mas no por muito tempo.

    Tal movimento de mudana interno e externo ao mundo ioruba, e pai Agenor Miranda que fala em relao ao quarto do seu santo e ao segredo que para muitos um dos fundamentos do candombl: [...] no tem nenhum segredo l dentro, no. Os orixs gostam de ateno e respeito, no gostam de segredo [...]. (PRANDI, 2005, p. 8). O segredo que no incio parecia e foi uma boa estratgia, agora no fazia mais sentido, tal que o feitio poderia virar contra o feiticeiro. Mudar de estratgia uma funo dialgica que est nas mos do Orix Exu, o diplomata responsvel por esta interao, o nico capaz de gerar conhecimento educativo e civilizador a partir do caos.

    O candombl uma religio em movimento onde, tanto o panteo como as funes de cada orix esto em mudana, desde a vinda da frica para o Brasil alguns orixs ganharam poder, como no caso Iemanj que era uma divindade cultuada num afluente do rio Ogum e, aqui no Brasil, passou a ser cultuada em todas as guas salgadas adquirindo, para alm de seu carter animista de me das guas do Atlntico, mais duas caractersticas

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    especiais, a primeira de protetora e dona da cabea da humanidade, responsvel pelo equilbrio metal dos homens e mulheres, e a segunda que a torna mais festejada em todo pas a referncia materna universal, a me de todos, pois tambm lhe foi atribudo o status de protetora da maternidade. Enquanto isto, alguns orixs praticamente desapareceram como o caso de Oco, que na frica era o pai da agricultura e aqui no Brasil no encontramos registro no culto nag. O culto a Orumil desapareceu ficando os processos divinatrios sob a responsabilidade do pai ou me-de-santo, que so assessorados por Exu e Oxum.

    Como desaparecem alguns Orixs, outros apareceram fruto deste dinamismo, conforme explica Prandi (op. cit., p. 109):

    Tambm no se manteve nos moldes africanos a confraria de curadores herboristas, os olossains, que ficaram restritos a atribuio de colher folhas e cantar para sua sacralizao, tendo perdido para o pai-de-santo as prerrogativas de curador. Em decorrncia o culto a Ossaim ganhou novas feies e ficou mais assemelhado ao culto dos outros orixs celebrados nos terreiros, podendo inclusive manifesta-se em transe como os demais, o que no acontecia na frica. Espritos das velhas rvores foram antropomorfizados e Iroco, que na frica e simplesmente nome de uma grande rvore, aqui se transformou no orix Iroco, recebe oferendas na gameleira-branca e manifesta-se em transe, ganhando, cada vez mais, independncia em relao rvore, situando-se, por conseguinte, mais longe da natureza.

    A importncia de ressaltar este estado de devir em que se encontra a religio para quem sabe, se possa mais tarde perceber no que Exu se transformou ao chegar ao Brasil e ao se encontrar com as outras culturas com as quais dialoga vai mudando, uma vez que a mudana faz parte das caractersticas deste Orix que diferente de todos os outros. Sendo ele a fora dinmica que atua movendo o sistema e a individual fora de todos os seres, um princpio e um fim em si, s circular como o Xir ou mesmo esfrico como prope seu

    significado etnogrfico (CACCIATORE, 1977).

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    Figura 8 Pombagira Cigana de minha irm Perptua (Emanoel Soares).

    A necessidade de diferenciar os candombls ditos puros da umbanda de cunho moralista, porque nesta existe um territrio chamado de Quimbanda, onde Exu graas ao sincretismo catlico e ao preconceito dos primeiros antroplogos cr