2005 antonio cicero anos70

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Encontros e desencontros com a contracultura Antonio Cicero Na verdade, como normalmente não sou considerado como contracultural, nem por mim nem pelos outros, e não sou um estudioso do assunto, eu inicialmente hesitei muito, ao ser convidado para participar deste seminário. Mas a pro- ssora Santuza Cambraia argumentou, muito persuasivamente, que as declarações autobiográficas que eu lhe dera em outra ocasião, a propósito de outros assuntos, er bastante perti- nentes ao tema, de modo que acabei concordando em dar aqui um depoimento um tanto autobiográfico e tanto reflexivo - mas também _confessadamente um tanto prerio - sobre a a e p ção ltura. No livro indispensável da Heloisa Buarque de Hollanda, Impressões de viagem, ela, acertadamente, a meu ver, distingue, na produção poética da contracultura, o Tropicalismo, que a teria inaugurado no Brasil, o pós-Tropicalismo e a poesia mar- ginal. Nesse caso, a minha ligação se deu princip' almente com tropicalistas e pós-tropicalistas. Ass, se tomarmos por base uma das publicações mais importantes da contracultura, a Naviuca, é verdade que vários dos artistas que dela participa- ram de algum modo estiveram ou estão entre os meus melhores amigos e até pceiros de trabalho, ao longo dos anos, de modo que os conto entre os mais importantes interlocutores que te- nho ou tive. É o caso de Waly Salomão, que i, junto com Torquato Neto e não cheguei a conhecer pessoalmente), o seu editor; d e Óscar os, seus progra- madores visuais; e dos colaboradores dessa revis .Getano Veloso, Salomão e Duda M Eml do eu estudava filosofia na UFRJ, ocorreu o golpe em cima do golpe e i o -5. Foi muito atingido o 54 instituto de hlosotia e Ciências Sociais, onde eu estudava, e onde tive o privilégio de ter sido aluno de Emmanuel Carneiro Leão e José Américo Pessanha, e colega de, entre outros, Paulo Sérgio Duarte, ex Varella, Eduardo Jardim, Kátia Muricy, cardo Dick e do saudoso Wilson Coutinho. Em 1968, o Instituto chegara a ser apelidado por um jornal de "a Nanterre brasileirà' (o que muito lisonjeou os seus alunos), por ter sido um dos principais centros do movimento estudantil. V ários prossores ram cassados e vários alunos ram presos. Eu mesmo, que participava do movimento estudantil, i algu- mas vezes acordado de madrugada e levado para ser interroga- do num lugar chamado Serviço de Ordem Política e Social (sors), na praça , que, segundo me diziam, era um órgão do Centro de Inrmações da Marinha (Cenimar). Não cheguei a ser encarcerado nem torturado, nem ameaçado de tortura, mas meu pai ficou muito preocupado e, embora não sse rico, acabou achando que seria melhor que eu estudasse no exterior. Eu queia ir para Paris, o que outra indica- ção de eu não era nada contracultura a se nando a ca ital da contracultura_eu- ropéia. A razão de minha preferência é que não só já conhecia e amava Paris naquela época, mas que, fora alguns pensadores mo Heidr, Marcuse. Horkheimer e McLu, a maior parte dos autores contemporâneos que interessavam a mim e à maior parte dos meus colegas do IFCS eram anceses: lembro, além dos estruturalistas, de Bach�lard, Canillem, Piaget, Foucault e,_princimcm r. Meu pai, porém, ; temendo que eu me envolvesse em política também na França, fez questão de que eu sse para a Inglater. Meu consolo i que, na época, - eu estava querendo aprondar meus estudos de lógica e a Inglaterra seria um bom lugar para isso. Graças a uma carta de recomendação do professor Hélio Jaguaribe, que eu conhecia desde criança, pois era um dos maiores amigos do meu 55

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2005 Antonio Cicero Anos70

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  • Encontros e desencontros com a contracultura

    Antonio Cicero

    Na verdade, como normalmente no sou considerado como contracultural, nem por mim nem pelos outros, e no sou um estudioso do assunto, eu inicialmente hesitei muito, ao ser convidado para participar deste seminrio. Mas a professora Santuza Cambraia argumentou, muito persuasivamente, que as declaraes autobiogrficas que eu lhe dera em outra ocasio, a propsito de outros assuntos, eram bastante pertinentes ao tema, de modo que acabei concordando em dar aqui um depoimento um tanto autobiogrfico e um tanto reflexivo -mas tambm _confessadamente um tanto precrio - sobre a

    a...per:cepo da ontracultura. No livro indispensvel da Heloisa Buarque de Hollanda,

    Impresses de viagem, ela, acertadamente, a meu ver, distingue, na produo potica da contracultura, o Tropicalismo, que a teria inaugurado no Brasil, o ps-Tropicalismo e a poesia marginal. Nesse caso, a minha ligao se deu princip'almente com tropicalistas e ps-tropicalistas. Assll!, se tomarmos por base uma das publicaes mais importantes da contracultura, a Navilouca, verdade que vrios dos artistas que dela participaram de algum modo estiveram ou esto entre os meus melhores amigos e at parceiros de trabalho, ao longo dos anos, de modo que os conto entre os mais importantes interlocutores que tenho ou tive. o caso de Waly Salomo, que foi, junto com Torquato Neto tclue no cheguei a conhecer pessoalmente), o seu editor; dciano Figueiredo e scar Ramos, seus programadores visuais; e dos colaboradores dessa revista, .Getano Veloso, Joe Salomo e Duda Machada

    Eml.29, quando eu estudava filosofia na UFRJ, ocorreu o golpe em cima do golpe:que foi o AI-5. Foi muito atingido o

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    instituto de hlosotia e Cincias Sociais, onde eu estudava, e onde tive o privilgio de ter sido aluno de Emmanuel Carneiro Leo e Jos Amrico Pessanha, e colega de, entre outros, Paulo Srgio Duarte, Alex Varella, Eduardo Jardim, Ktia Muricy, Ricardo Dick e do saudoso Wilson Coutinho. Em 1968, o Instituto chegara a ser apelidado por um jornal de "a Nanterre brasileir' (o que muito lisonjeou os seus alunos), por ter sido um dos principais centros do movimento estudantil. Vrios professores foram cassados e vrios alunos foram presos. Eu mesmo, que participava do movimento estudantil, fui algumas vezes acordado de madrugada e levado para ser interrogado num lugar chamado Servio de Ordem Poltica e Social (sors), na praa xv, que, segundo me diziam, era um rgo do Centro de Informaes da Marinha (Cenimar). No cheguei a ser encarcerado nem torturado, nem ameaado de tortura, mas meu pai ficou muito preocupado e, embora no fosse rico, acabou achando que seria melhor que eu estudasse no exterior. Eu que_!"ia ir para Paris, o que constin outra indicao de eu no era nada contracultural, 11rna-vez_q.l*-efa Ls que escava se tornando a ca ital da contracultura_eu-

    ropia. A razo de minha preferncia que no s j conhecia e amava Paris naquela poca, mas que, fora alguns pensadores

    mo Heidegger, Marcuse. Adorno. Horkheimer e McLuhan, a maior parte dos autores contemporneos que interessavam a mim e maior parte dos meus colegas do IFCS eram franceses: lembro, alm dos estruturalistas, de Bachlard, Canguillem, Piaget, Foucault e,_principalmcmte, Alihusser. Meu pai, porm,

    ; temendo que eu me envolvesse em poltica tambm na Frana, fez questo de que eu fosse para a Inglaterra. Meu consolo foi que, na poca, -eu estava querendo aprofundar meus estudos de lgica e a Inglaterra seria um bom lugar para isso. Graas a uma carta de recomendao do professor Hlio Jaguaribe, que eu conhecia desde criana, pois era um dos maiores amigos do meu

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  • pai, consegui uma entrevista com o professor Richard Wollheim, chefe do Departamento de Filosofia e Lgica do University College, da Universidade de Londres. Aps conversar longamente comigo e me pedir o meu histrico escolar, ele ficou de entrar em contato dentro de uma semana.

    Antes de receber a resposta, resolvi, desobedecendo meu pai, tentar a sorte eis. Minha av me havia confiado umas encomendas para ms Ded e Sandra Gadelha, que eram casadas com, respectivamente, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que, nessa potavam exilados em I ondres.. Embora Ded e Sandra fossem minhas prim eu no as conhecia pessoalmente, pois viviam na Bahia. Resolvi passar pela casa delas a caminho da Victoria Station; onde pegaria o trem para Dover. Toquei a campainha s onze da manh. Toquei, toquei, e ningum atendeu. Eu j estava desistindo quando apareceu Guilherme Arajo, estremunhado. Disse-lhe que trazia uma encomenda para Sandra, e ele me convidou a entrar. Na casa, todos os outros dormiam. Guilherme acordou Sandra, que - surpreendentemente, diante das circunstncias - foi muito simptica e me disse que os voltasse a procurar, quando chegasse de Paris.

    Em Paris, tentei mas no consegui me inscrever na Universidade de Vincennes, onde, por alguma razo, a confuso era grande naquela semana; de todo modo, pece que eu tinha perdido o prazo. Voltei para Londres, onde recebi uma carta do University College, que me havia aceito.

    Londres vivia o auge da contracultura. Devo dizer logo que isso s me interessou muito marginalmte. Eu no gostava nem de rock, nem de drogas, nem rejeitava a sociedad industrial. A contracultura que me influenciou foi outra.

    Mais ou menos um ms depois, por pura coincidncia, encontrei, num restaurante frequentado por estudantes, um contemporneo meu do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, ' se no me engano, j havia inicia-

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    do sua famosa parceria com Milton Nascimento, e fomos juntos passear na feira de Notting Hill Gate. L topei com Guilherme Arajo, que me disse que a Sandra e a Ded queriam muito que o tasse a casa e as. Eu era ainda mais tmido do que sou hoje, de modo que acho que no teria ido, se o Ronaldo no tivesse ficado encantado com essa idia. Acabamos ind juntos, noite, quando todo o mundo estava acordado: Caeta no Veloso e Ded, Gil erto Gil e Sandra, Pricles Cavalcanti

    oje a trave compositor e cantor, Rosa Maria Dias, que hoj professora de filosofia e autora, entre outras coisas, do hyro Nietzsche e a msica, Luiz Fernando Guimares ue h via sido ator do Teatro Oficina, e, naturalmente, o em resri

    UI erme Arajo. O nome de Nietzsche me lembra que fi i nessa casa de Chelsea que conheci tambm Jorge Mautne , que, entre outras coisas, l o;ientava um crculo de leitura d -

    Todos eram pessoas extremamente interessantes, inteli-gentes e, sem dvida, pelo menos nessa poca, contraculturais. Quem mais me impressionou, porm, foi Caetano.

    Devo confessar que eu no era, na poca, muito ligado em msica popular. verdade que eu gostava de Bossa Nova, de Tom, de Vinicius, de Joo Gilberto; que j havia ficado impressionadssimo com a qualidade potica das letras de Bob Dylan, que me haviam sido mostradas por meu irmo, Roberto; e que um grande amigo meu, o Alex Varella, tambm do IFq, me havia chamado ateno para as letras do prprio Caetano. Alm disso, o Tro icalismo me arecia ter feito uervi cul cura.hr-asi-l@H:a-.aO-jega:r-na-Iata:-de-lffi:ro-naci n ismo pnp.ulista-e..ao_.ab.raa.r--a...m-0demi-dade-como-unnraler universal. Embora apreciasse tudo isso, eu, sem nem sequer pensar muito nesse fato - sem pensar suficientemente sobre ele -, no encarava essas coisas como pertencentes ao registro da poesia que realmente me interessava.

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  • Por isso, no se pode dizer que eu fosse propriamente um tiete de Caetano. Talvez por essa razo eu tenha ficado tanto mais impressionado com a sua inteligncia. Caetano, mais do que qualquer outra pessoa que j conheci, genul"!ant-tinha um modo desarmado de olhar para as coisas que estivssemos considerando, quer fosse uma cano, um notcia, a capa de revista, uma roupa -u u pgr;ma de__g:leviQ: e isso lhe permma fazer as mais. inesperadas e fecundas associaes. Vas j vistas como se fos pela primeira __ ,

    -isto , estranhd-las, como diziam os formalistas russos, , de certo modo, uma ambio de grande parte da esttica moderna, e j era, abstratamente, um projeto intelectual meu. Eu porm, nunca tinha visto isso to autntica e radicalmente realizado quanto por Caetano. Creio que se, por um lado, isso lhe era natural, tratava-se de uma aptido cultivada. Lembro a descrio que Raymond Aron, chegando de Paris, onde tinha descoberto Husserl, fez a Sartre da fenomenologia: "voc pode fazer filosofia falando deste cocktail", e apontava um copo com um drink. 1 Pois bem, Caetano, com uma espcie de ingenuidade construda, punha entre parnteses as hierarquias convencionais, no que diz respeito ao que e ao que no "srio", ao que "maior" e o que "menor", ao que erudito e ao que popular, tanto em relao vida quanto arte.

    Ora, o tipo de inteligncia com o qual eu convivera e que admirava quase exclusivamente at ento havia sido o de eruditos e intelectuais como meu ai ue tinha sido um dos fundadores do ISEB, a intetlgncia dos amigos e meu paT-;(f alguns professores e colegas do curso de filosofia. Ainda hoje lembro com saudade da poca em que, adolescente, participava - como ouvinte, claro - das reunies de meu pai com amigos brilhantssimos como Hlaribl, Celso.-Eur:tad_o, Roland Corbisier, Guerros.. Cndido Mendes e outros.

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    Caetano me revelou um outro tipo de in!igncia. Uma coisa extremamente prazerosa e instrutiva, por exemplo, era assistir ao lado dele um filme qualquer, mesmo que fosse um. filme B, na televiso. Os detalhes que ele observava, as associaes que fazia, as ilaes que se permitia: tudo revelava um esprito extremamente !ivre, original e 6 no. A amizade com Caetano e todos os outros - fiquei especialmente prximo de Ded - foi para mim uma grande experincia emocional e intelectual, e me ajudou a liberar a minha prpria inteligncia dncia excessivamente intelectualista. Foi, portanto, num sentido muito profundo, uma experincia contracultural.

    Hoje creio at que o que aprendi desse modo foi mais fundamental para minha formao do que o que aprendi na Universidade de Londres. Esta representou sobretudo uma diversificao dos meus interesses em matria de filosofia, pois ela era centrada em filosofia analtica e lgica. No final das contas, acabou sendo muito importante para mini ter estudado Popper, Wittgenstein, Austin, Quine etc. -- Devo dizer, ademais, que achei admirvel pelo menos um aspecto do estudo universitrio na Inglaterra. Trata-se do sistema tutorial. No University College, isso funcionava do seguinte modo. Uma vez por semana, um grupo de trs alunos se encontrava, por uma hora, com um tutor que acom:panhava o desenvolvimento intelectual de cada um deles. Ao cabo do encontro, ele pedia que cada um deles escrevesse, para o encontro seguinte, um ensaio sobre um mesmo tema ou texto filosfico importante, e lhes indicava a bibliografia pertinente. a aula seguinte, cada alll.no lia em voz alta o ensaio que escrevera e, em seguida defendia-o das crticas a que o sl:1bmetiam o tutor e os dois colegas. Para mim, essa experincia do tutorial foi muito valiosa, principalmente porque me tocou ter como tutor o professor Ted Honderich, homem e"xtremamente inteligente e sensvel, autor de alguns importantes en-

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  • saias sobre um assunto que me interessava muito naquele tempo, que o determinismo.

    .

    Mesmo assim, na poca eu era muito ctico em relao instituio universitria como um todo. A derrota americana no Vietn, maio de 68 na Frana, a primavera de Praga, o movimento contracultural norte-americano, a revoluo cultural chinesa, o movimento de resistncia ditadura no Brasil etc., toda essa salada mista parecia indicar que o mundo estava em trormao acelerada. Eu achavassill,queestavamos

    _!!$.mi e grandes revo ues. ra, toman o a umversidade como parte integrante do --;q;arelho ideolgico de reproduo das relaes de produo dominantes, eu tinha a impresso de que, breve, as formalidades corporativas como os ttulos ou as carr.eiras universitrias senam to obsoletas - =- -----------quanto ttulos de nobreza.

    At cert ponto, isso coincide com a atitude da contracultura. Assim, por exemplo, Camille Paglia, descrevendo o que aconteceu com ela na dcada de sessenta, quando participou da contracultura, diz o seguinte:

    Tnhamos acreditado que estvamos a caminh trar especialmente a vida acadmica - pois as universidades eram verdadeiros cemitrios, que precisavam de uma revoluo. No gostvamos da natureza conservadora que a cons-

    _sruo ma carreira significa. Minha e;;u.ou nas profisses. Ela queria trans ar a cultura do fad0le1ra istema. No mbito da cultura e da musica, as pessoas a minha gerao no entraram na universidade ou, seentraram, saram antes de completar seus cursos. Ou, se completaram; logo no primeiro emprego recusaram-se a entrar no jogo da carreira. Eu tambm no suportava as palestras ou a bajulao aos catedrticos, aquele horrvel jogo corporativo. 2

    Essa atitude era tambm a minha. por isso que a universidade na Inglaterra - o conservadorismo acadmico, o com-

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    portamento efetivamente fleumtico tanto dos professores quanto dos meus colegas do University College, a obedincia s regras da discusso civilizada, o ceticismo em relao ao radicalismo poltico etc. - posturas ue retros ectivamente, poca ofendiam os sentimentos revolucionrios que eu nutria. Nessas circunstncias, o que mais me interessava na Universidade de Londres era a sua biblioteca, onde eu passava dias inteiros. Eis por que as conversas longas que eu tinha com Caetano noite adentro sejam hoje consideradas por mim como mais importantes para minha formao geral - mais importantes, por exemplo, para o poeta Antonio Ccero - do que as aulas da universidade.

    De fato, a recusa a separar alta baixa cultura, radicalealizada na vida prtica e potica de catao, fazia - parte de uma recusa das convenes estticas eaneira gefai, das conves sociais. Ligava-se tambm recusa ao culto da ascenso social, do trabalho, do consumo, e, de maneira geral, ao princpio do desempenho, ao qual opnhamos, com Marcuse,o princpio do prazer. Marcuse rene o que, a meu ver, so os do's fundamentos aa conttacultura: a afirmao do pensamento crtico, que se utiliza, por exemplo, do conceito de mais-represso, e a afirmao da primazia do princpio do prazer. Atravs desses conceitos, d-se tambm a crtica esquerda tradicional, que acaba, em nome de um mundo futuro, or de radar as possibilidades palpveis do mundo real

    j", como z uma etra e aetano; e "ningum acredita no mundo real", como diz outra. O prprio "socialismo real", ao_ se tomar como mra etapa ou meio para a construo do comunismo, desvaloriza a si prprio, isto , desvaloriza o real, pondo no futuro o seu prprio tlos. Ora, ciso tambm revolucionar a vida aqui e agora. Foi nesse contexto que parte da contracultura considerou que a maconha, sendo incompatvel com o domnio do princpio do de-

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  • sempenho, e as drogas alucingenas, abrindo perspectivas insuspeitadas pelo pensamento conformista, tinham sentido revohicionrio.

    Neste ponto, para terminar, quero tambm indicar uma questo em que no concordo em absoluto com grande parte da contracultura. Foi Timothy Leary, se no me engano, que props a tese de que as drogas possibilitariam uma espcie de conscincia ou experincia expandida e criativa, em relao qual o estado normal, sbrio, de conscincia seria extremamente limitado e estril. Ao mesmo tempo,cura passou a ser tomada como um estado de conscincia expandida.

    " Forasimilares o louco e o l!.!le s. No Brasil, a mesma palavra, "louco'', passou a ser usada praes-igrrfffi60S:.em opos1s "caretas". Passou-s-ial- a considerar como similares a represso loucura e a represso s drogas.

    Observe-se que um dos grandes dolos da contracultura, principalmente na sua segunda fase, que Heloisa Burque chama de ps-tropicalista, Antonio Artaud. Ora, o conceito de "loucur' significa mui-sbrio ou no-careta, e s vezes usado como o oposto do conceito de "razo". - - - '-Por outro lado - e isso ainda mais importante - o conceito de.Ja.zo" significa inf:!.!.!_amente mais do que no-louco. Entretanto, o prprio modo pelo qual se d historicamente a oposio entre "razo" e "loucur' acaba sendo o ponto de partida da crtica que Foucault, por exemplo, em Histri da loucura na idade cldssica [Histoire de la folie l'ge classique], faz ao mundo moderno.

    No menciono Foucault porque pense que ele tenha tido grande influncia na contracultura, mas porque o caldo desta inclui o modo de pensar que se manifesta no livro cita:do. Seja como for, o fato que, em al momento, a contracultura acaba por se o

    -racion 1 ade

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    ocidental", como _se houvesse muitas racionalidades. Desfaz-se, desse modo, uma distino crucil feita por Kant e desenvolvida por Hegel, entre o entendimento ou o intelecto e a razo. Ora, a destrlli.o da razo a destruio da prpria crtica, que penso ter sid dos fundamentos da contracultura, e a partir da qu a prpria distino entre o princpio do prazer-e-oprincpio do penha. Para mim, por isso, a negao da razo foi um equvoco smcida da contracultura.

    Notas

    1 (BEAUVOIR 1960:141) 2 (Paglia 2006 b) 1 O

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    Antonio Cicero001Antonio Cicero002Antonio Cicero003Antonio Cicero004Antonio Cicero005